"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 9 de julho de 2016

O protagonismo do Supremo no processo de impeachment de presidentes


O Supremo Tribunal Federal desempenhou um protagonismo nos casos de impeachment de presidente da República no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro. Os contextos histórico, constitucional e institucional, ao lado das decisões do órgão de cúpula do Poder Judiciário acerca da matéria, constitui objeto do presente trabalho.

A primeira Constituição brasileira, outorgada por Dom Pedro I em 25 de março de 1824, trouxe a controvertida figura do Poder Moderador. Concebida por Benjamin Constant e nunca antes — nem depois — instituída em nenhum outro texto constitucional, esse quarto poder tinha a função principal de garantir a harmonia entre os demais poderes, cabendo-lhe velar incessantemente “sôbre manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”, consoante o artigo 98 da Constituição imperial. Para tanto, poderia o imperador, a quem o Poder Moderador fora delegado privativamente, demitir e nomear livremente ministros, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear senadores e vetar projetos de lei ou de resolução.
Embora a prática, para alguns, tenha contrariado o princípio constitucional da harmonia e a separação entre os poderes, consolidou-se no imaginário institucional brasileiro a cultura moderadora. Quando instalada entre os poderes uma disputa com potencial para desestabilizar as instituições e romper com o ordenamento, confia-se a uma instituição o papel de intervir para assegurar a ordem sob o manto da neutralidade. Desde 1891, com a Proclamação da República, essa função era cumprida pelas Forças Armadas. De 1988 em diante, dados a experiência da ditadura militar e o desenho institucional deitado pela Constituição Federal, a prática moderadora foi transferida ao Supremo Tribunal Federal, cuja técnica permite-lhe ultrapassar a paixão da discussão política no enfrentamento de controvérsias constitucionais.

Nessa condição, tão logo a Presidência da República e o Congresso Nacional chegam a um impasse, o Supremo Tribunal Federal é chamado a solucionar o conflito a partir de uma leitura constitucional.
No advento da Constituição Federal de 1988, o primeiro cenário de forte tensão entre os poderes deu-se no caso do presidente Fernando Collor de Melo, eleito no ano de 1989. Após editar pacotes econômicos polêmicos, que abrangiam medidas desde o confisco de poupança até o bloqueio de conta corrente, e envolver-se em escândalos de corrupção, o primeiro presidente da República eleito diretamente pelo voto popular em mais de 25 anos foi réu de processo de impeachment. Embora tenha renunciado ao mandato um dia antes do desfecho do processo de cassação, em 29 de dezembro de 1992, o hoje senador da República é destituído da Presidência e declarado inelegível pelo prazo de oito anos por 76 votos a 3, assumindo seu vice, Itamar Franco.

Após a instauração de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, foi ofertada a denúncia contra o presidente Collor por Marcello Lavenère Machado, então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasileira de Imprensa. Feito juízo positivo de admissibilidade pela Câmara, o processo foi encaminhado ao Senado Federal, que também admitiu a denúncia, assim afastando temporariamente do exercício das suas funções o presidente, quem impetraria junto ao Supremo Tribunal Federal diversos mandados de segurança — em específico, 21.564, 21.623 e 21.689. Foi a partir do julgamento desses writs que o Supremo elaborou a nova disciplina do processo de impeachment, à luz da Constituição de 1988.

O MS 21.564/DF impugnava ato do presidente da Câmara dos Deputados que, após a admissão da denúncia apresentada contra o presidente da República, esclarece questões de ordem sobre o processamento doimpeachment, como a competência da Câmara para admitir ou não a acusação e a aplicabilidade dos dispositivos da Lei 1.079/50. O writ também suscitou a instauração do processo mediante escrutínio ostensivo, em contraste com o artigo 188 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que dispunha que a votação seria por escrutínio secreto.

No rito de impedimento fixado pela Constituição Federal de 1988, é de responsabilidade da Câmara dos Deputados o juízo de admissibilidade da denúncia, enquanto compete ao Senado Federal o processamento e julgamento. Com amparo no artigo 186 do texto, é colocado em questão o juízo onde deveria a denúncia ser apresentada. Para o ministro Octavio Gallotti, relator do MS 21.564/DF, a Câmara teria competência para fazer o juízo prévio de admissibilidade e acolhimento da denúncia, no que foi acompanhado pelo ministro Carlos Veloso.

Quanto à Lei 1.079/50, a Câmara dos Deputados decidiu por sua aplicabilidade, com exceção do pertinente aos atos do processo, devido à competência exclusiva do Senado Federal para o processamento da denúncia. Ainda havia o questionamento em torno da revogação ou não da Lei de Crimes de Responsabilidade pela promulgação da Emenda 04/61, que introduziu na Constituição Federal de 1946 o parlamentarismo. Todavia, este foi superado sob o fundamento de que, muito embora as hipóteses de crimes funcionais não compreendam atos que atentam contra a probidade da administração pública, cuida-se de rol tão somente exemplificativo. Foi igualmente considerada a promulgação da EC 06, que revogou a EC 04 para restabelecer o sistema presidencialista. Desta feita, teria sido a Lei 1.079 repristinada.
Outra discussão levantada foi o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório no processo de impeachment. O ministro Octávio Gallotti, acompanhando entendimento do ministro Moreira Alves, votou no sentindo da não recepção dos dispositivos da Lei 1.079/50 que versassem sobre o tema, uma vez que determinavam ou a “pronúncia” ou a “impronúncia” — institutos posteriormente substituídos pelo juízo de admissibilidade no texto constitucional. No relatório, o relator decidiu pela vigência de todos os incisos do parágrafo primeiro do artigo 217 do Regimento interno da Câmara dos Deputados, sendo nesse ponto acompanhado pelo ministro Ilmar Galvão. Contudo, por maioria, entendeu-se pela aplicação isolada do inciso I.

Quanto à votação secreta pleiteada no mandado de segurança, a controvérsia decorre da divergência entre o artigo 23, da Lei 1.079/50, que estipula a votação nominal, e o artigo 188 do Regimento Interno da Câmara, que determina votação secreta. A Carta dispõe no parágrafo único do seu artigo 85 que os “crimes [de responsabilidade] serão definidos em Lei Especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento” — em legislação infraconstitucional, assim. Todavia, no contexto da ordem constitucional, que preza pela publicidade dos atos públicos e accountabilitydos representantes populares, a votação secreta é exceção e a regra, o escrutínio pelo critério ostensivo. Dessa forma, o pedido de votação secreta foi negado, por maioria de votos, em entendimento repisado posteriormente no ano de 2016, no bojo da ADPF 378/DF, já sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
O julgamento do MS 21.564 foi em 23/9/1992 e, por maioria do voto dos ministros, a segurança foi parcialmente concedida, apenas mantendo a extensão do prazo de cinco para dez sessões para a manifestação do presidente Collor na Câmara.
Por sua vez, o writ 21.623/DF foi impetrado contra os atos do ministro Sydney Sanches, então presidente do Supremo Tribunal Federal e do processo de impeachment conduzido no Senado, que negou o pedido de suspeição formulado contra os senadores, que atuam como julgadores na causa e possuem direto interesse na causa, e que recusou o pedido de nova audiência de testemunhas antes das alegações finais. Quando ajuizado essewrit, a conjuntura já inspirava o afastamento de Fernando Collor da Presidência.

A principal arguição era o cerceamento de direito líquido e certo, no que tange à ampla defesa. Nesse sentido, foi requerida a reabertura de prazo para alegações finais, uma vez que o primeiro findou antes mesmo da conclusão da instrução probatória. Igualmente, foi reiterado o pedido de afastamento de alguns senadores considerados pelo presidente suspeitos para julgar a ação. Para que os argumentos trazidos pudessem ser devidamente analisados pelo Supremo, foi requerida liminarmente a suspensão do processo. No dia 17/12/1992, o writ foi conhecido, mas improvido por maioria de votos.

No que concerne o devido processo legal, a maioria dos dispositivos na Lei 1.079/50 foi recepcionada. A arguição de que o direito de defesa fora cerceado restou rechaçada pelo tribunal, uma vez que a testemunha não foi ouvida por estar fora do Brasil e que a falta da sua oitiva não importou relevante prejuízo à defesa. Quanto ao impedimento de senadores, o Supremo entendeu não fazer sentido a aplicação das regras de suspeição ao Poder Legislativo, sobretudo por ser o impeachment um julgamento de teor político.

O ato questionado pelo Mandado de Segurança 21.689/DF, por fim, foi a resolução do Senado Federal que aplicou a Fernando Collor sanção de inabilitação para exercício de função pública por oito anos, logo após sentença do processo de impeachment. Nesse sentido, foi arguido na defesa que a normativa seria ilegal por cercear direitos políticos do impetrante de maneira desproporcional e abusiva.

Deveriam ser levadas em conta as preliminares de mérito levantadas no correr do processo de impedimento, a exemplo da inépcia da petição inicial, da ilegitimidade passiva do presidente do Senado Federal e da incompetência do Senado Federal para prosseguimento de julgamento após renúncia do presidente. O quórum para a votação também foi alvo de debate nos autos.

Os ministros do Supremo não conseguiram chegar a um resultado, empatando os votos pela concessão e pela denegação da segurança. Com isso, o julgamento foi suspenso até que três ministros do Superior Tribunal de Justiça fossem convocados, de acordo com o Regimento Interno do STF. Aí, por maioria dos votos, o mandado foi conhecido, mas a segurança denegada. E, assim, terminaria o papel do Supremo Tribunal Federal no processo de impeachment do presidente Fernando Collor, já tempos depois de este ter renunciado ao cargo e de Itamar Franco ter assumido o Palácio do Planalto.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se posicionar novamente sobre o tema quando protocolado pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, na data de 21 de outubro de 2015. Subscrita pelos advogados Miguel Reale Jr., Janaína Paschoal e Hélio Bicudo, a denúncia de violação à lei fiscal foi aceita pelo presidente da Câmara dos Deputados em 2 de dezembro de 2015.

Tão logo foi admitido e processado o pedido, surgiram controvérsias legais em torno da sua tramitação, a exemplo da votação secreta para a Comissão Especial e a possibilidade de candidaturas avulsas. Até então limitadas ao Parlamento, as disputas políticas seriam deslocadas ao Supremo em virtude da interposição da arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo Partido Comunista do Brasil. Tombada sob o número 348, a ação foi distribuída ao ministro Edson Fachin, que deferiu a medida liminar pleiteada para suspender o processo de impeachment até o julgamento de mérito pelo Pleno.

Nessa ocasião, o Supremo pôde manifestar-se a respeito do rito indispensável para que o rito de impedimento não descuidasse da ampla defesa e do contraditório, esclarecendo até mesmo pontos que não foram suscitados na exordial, como o foro competente para a determinação do afastamento da presidente, em antecipação a discussões que poderiam ser judicializadas posteriormente. Acenava-se com possível mudança da jurisprudência firmada à época do impeachment do presidente Fernando Collor.

Colocado em julgamento a arguição, o ministro relator decidiu pela improcedência de praticamente todos os pedidos formulados pelo PCdoB. Entretanto, restou parcialmente vencido pelo voto do ministro Roberto Barroso, seguido pela maioria dos integrantes do tribunal.

Seguindo o relator, decidiu-se pela impossibilidade de aplicação subsidiária das hipóteses de impedimento e de suspeição do presidente da Câmara, a inexistência de direito de defesa prévia da presidente, a instrução e julgamento pelo Senado, a aplicação subsidiária dos regimentos internos para disciplinar questão interna corporis e a atenção à proporcionalidade nos blocos parlamentares. Em outros aspectos, o voto do ministro Barroso terminou vencedor, sendo acompanhado pela maioria dos demais membros do tribunal em divergência frente ao relato no que diz respeito às funções da Câmara e do Senado no processo de impeachment, mantendo-se o decidido no MS 21.564/DF, à impossibilidade de chapas avulsas, devendo ser os membros das chapas indicados por líderes e à votação por voto aberto da Comissão Especial, entendendo ser o voto secreto exceção prevista no próprio texto constitucional.

Sendo instado a arbitrar um processo eminentemente político, mas de conteúdo jurídico, fez o Supremo Tribunal Federal valer sua função moderadora no sistema constitucional. No Estado Democrático de Direito, compete ao tribunal constitucional intervir quando ameaçada a própria Constituição, sob pena de nada valerem os direitos fundamentais e a segurança jurídica. Contudo, esse papel moderador é tão somente parcial, pois falta ao Supremo Tribunal Federal competência para arbitrar assuntos eminentemente políticos. Daí a importância da discussão sobre o semipresidencialismo, regime em que a figura do presidente da República cuida da "alta" política, por assim dizer, exercendo funções de Estado e relegando ao primeiro-ministro as funções de governo.
O impeachment, previsto na Constituição brasileira, disciplinado por lei e interpretado pelo Supremo, que definiu suas balizas, encontra-se presente na tradição jurídica do presidencialismo brasileiro e, quando presente crime de responsabilidade, pode ser deflagrado a fim de sancionar quem atentou contra a Constituição Federal.



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