"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Para ordem econômica, o STF deve ser um tribunal de direita ou de esquerda?


Rodrigo de Oliveira Kaufmann

O turbilhão de eventos políticos que vem assolando o país nos últimos anos trouxe uma polarização ideológica entre grupos ou correntes de pensamento que tentam se localizar no espectro político: a “direita” que, grosso modo, abarcaria os pensamentos conservador e liberal; e a “esquerda” que — também de forma resumida — seriam os herdeiros do pensamento marxista.


Por óbvio, essa descrição simplória não tem o condão de amarrar — com clareza de limites — a complexidade do pensamento político, especialmente se colocado em perspectiva histórica. Esses rótulos, com o tempo, ganham novas significações e não se pode negar a simbiose entre eles. Há, porém, um critério de natureza econômica que, embora também problemático, parece ser hoje aceito razoavelmente: dizer que alguém é de “direita” — afastados os preconceitos e as provocações — costuma descrever um pensamento mais orientado às restrições de atuação do Estado e, portanto, à proposta de encolhimento do chamado “espaço público” de intervenção. O pensamento de “esquerda” — também sem considerar os exageros e as insinuações — costuma atestar alguém que, priorizando alcançar a justiça social, destaca a importância da ação do Estado e, portanto, a inevitabilidade de seu intervencionismo. As deformações dessa ação estatal na esfera privada são consideradas geralmente por essa linha de pensamento uma espécie de efeito colateral de um remédio essencial e inevitável.


É com base nessa específica abordagem que se propõe aqui pensar estruturalmente a atuação do STF em questões contratuais e econômicas. De maneira mais ampla, esse debate vem sendo travado sob inúmeras perspectivas especificamente jurídicas, muito embora o ângulo de análise não tivesse ajudado nessa rotulação. Vejam que ponderações na linha da defesa do ativismo judicial ou do neoconstitucionalismo poderiam significar uma leitura constitucional de “esquerda”, uma vez que prestigiam, na linha da proteção às minorias e ao combate à discriminação, uma atuação judicial mais incisiva, mais intromissiva no espaço de liberdade e autonomia do cidadão e da empresa. É o Poder Judiciário a afirmar, nas decisões que representam essa linha de pensamento, que o particular não pode fazer tudo o que acha que pode ou a responsabilizar o Estado legislador ou Estado Executor por omissões ou incompetência na defesa dos direitos fundamentais, especialmente quando falha em limitar a liberdade na esfera privada.


A famosa discussão em torno da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (a chamada drittwirkung na Alemanha) revelava um pouco dessa polarização quando discutia a possibilidade de incidência direta de direitos fundamentais nas relações privadas e nos contratos, inclusive no próprio STF. O tema, entretanto, pode ser perfeitamente descrito de outra forma (talvez uma forma mais fiel e correta sob a perspectiva da teoria constitucional): é possível que direitos fundamentais ligados à justiça social (e que sugerem a intervenção estatal na seara econômica) se sobreponham, em tese, aos direitos fundamentais ligados à liberdade (que sugere a não intervenção do Estado)? Ou, é possível que o direito civil e o direito comercial sejam abstratamente rebaixados em sua importância, fragilizados recorrentemente pela relativização de sua aplicação como garantias da livre iniciativa?


Essa é uma pergunta que vem sendo respondida positivamente pelo STF, contando, para tanto, com certo consenso irrefletido da doutrina. Esse critério (justiça social X liberdade) é tão importante na forma como se analisa o STF que é com base nele que juristas e ministros julgam o nível de “progressismo” do Tribunal em suas diversas épocas.


Certamente, encontra-se, com certa dificuldade, julgamentos que objetivavam o prestígio e a proteção da autonomia privada no STF. Toma-se, nessa linha, o exemplo no pós-1988, (i) da ADI nº 2.290, um eloquente exemplo da defesa do comércio, sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade; (ii) do RE nº 193.749 ao se reafirmar a livre iniciativa contra leis restritivas de instalação de farmácias; (iii) do RE nº 407.688 quando se definiu que ao fiador de contrato de locação não beneficiava a cláusula de proibição de penhora do bem de família; (iv) do HC nº 72.131 ao se afirmar que, na alienação fiduciária em garantia, vigorava a sanção da prisão civil; (v) da ADI 493 que, ao definir, o regime constitucional do princípio da proteção ao ato jurídico perfeito, afirmou não ser possível no Brasil qualquer tipo de retroatividade (certamente uma proteção poderosa do vínculo contratual contra a alteração do regime jurídico); (vi) da ADI nº 1946 que, embora não trate da livre iniciativa propriamente dita, demonstra uma compreensão raramente serena da forma como funciona a lógica econômica desse espaço de autonomia (ao decidir sobre a licença-gestante e o eventual tratamento discriminatório da iniciativa privada, concluindo pela assunção integral do custo previdenciário pelo Estado); dentre outros.


É certo, entretanto, mesmo na composição anterior do Tribunal, encontrar a defesa sólida da intervenção do Estado na seara privada-econômica em certos contextos, tal como se fez no famoso caso da ADI nº 319-QO.


Da mesma forma como se discute hoje a eficácia e utilidade da intervenção do Estado (especialmente diante dos resultados conquistados nos últimos anos), é também chegada a hora de reavaliar essa “premissa” que tem servido de base para a definição, inclusive, da própria pauta do STF. É discurso relativamente comum, mesmo entre Ministros, defender que a pauta “natural” do STF são os casos de direito de minorias, combate à discriminação e limitação da liberdade de empreender e de comerciar.


A jurisdição constitucional como “realizadora da justiça social” paga um preço bastante caro e que até hoje era pouco percebido. Na medida em que o Estado é vista como protagonista de todas as atividades, como garante exclusivo da realização de todos os direitos fundamentais, estrangula-se a iniciativa privada e se reduz à filigrana princípios constitucionais como a livre iniciativa, a livre concorrência e a autonomia negocial, valores essenciais da ordem econômica (art. 170 da CF).


São raras as manifestações do STF em que a interpretação constitucional se orienta para a proteção da esfera privada nesse contexto e baseada em uma premissa de “self-restraint”. Nesse sentido, o ativismo judicial não apenas é perigoso sob a perspectiva política (da separação dos poderes), mas principalmente na dimensão econômica e social, quando parte do pressuposto de que o empresário, o produtor, o comerciante, o profissional liberal e o empreendedor formam uma classe suspeita e perigosa que precisa ser fiscalizada e controlada pelo Estado e que sua autonomia deve ser mínima. Esse estrangulamento da iniciativa privada — baseado, vale dizer, em puro preconceito ou visão distorcida —, além de matar a única força produtiva e autônoma do país, acaba por criar uma imagem equivocada do próprio STF que, nesse contexto, se resume a um papel de “Robin Hood” consistente em redistribuir a riqueza por meio da ação confiscatória do Estado-juiz. O século XX, entretanto, foi a prova viva da falência desse projeto.


Para um país que precisa se desenvolver economicamente (de forma a garantir a criação de mais riqueza), o que se precisa, para um novo paradigma da jurisdição constitucional, não é a criação de novos formatos de intervenção do Estado (o que serviu enormemente para a injustificada “inflação dos direitos”), mas sim, como podemos limitar a ação do Estado conservando a consistência de nossa liberdade responsável. Como já defendido por Dworkin, “direitos são trunfos”, e, por isso, — digo eu - não são eles que alicerçam o Estado Democrático de Direito. Essa idéia fundante está baseada, em realidade, na noção de obrigação e responsabilidade do cidadão, no dever recíproco de todos de respeitar as liberdades fundamentais, de conviver e de compartilhar interesses e espaços de ação autônoma.


Essa proposta de maior proteção à liberdade de empreender e de maior prestígio da livre iniciativa denuncia duas enormes contradições que nosso atual modelo de jurisdição constitucional “de esquerda” no Brasil está a patrocinar: em primeiro lugar, esse modelo indica um caminho diametralmente oposto à idéia original e histórica de direitos humanos que eram considerados verdadeiros “pontos de resistência” contra a ação e gigantismo do Estado (o discurso dos direitos humanos promovendo exatamente esse crescimento do Estado é um contrassenso perverso); e, em segundo lugar, os direitos humanos que deveria ancorar posições para a realização de uma política republicana pacífica, passaram a servir como verdadeiras “declarações de guerra” entre “minoria” e “maioria” ou entre “excluídos” e “incluídos”, grupos esses que, várias vezes, são criados artificialmente para sustentar esse discurso da inevitabilidade da ação e do controle do Estado.



A jurisdição constitucional no Brasil, para servir como pedra angular de um regime verdadeiramente democrático e republicano, deve, portanto, reescrever o seu papel, valorizando mais o cidadão, suas responsabilidades e a esfera privada (onde sua individualidade se realiza) e menos o Estado e suas prerrogativas de intervenção.

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