"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 5 de março de 2009

O Racismo á brasileira


Por: Nei Lopes,


fevereiro de 2006

Em um texto publicado ano passado, comentávamos um outro, em que o médico e escritor Afrânio Peixoto creditava o sucesso da célebre família baiana dos Rebouças ao “handicap mestiço” — o termo inglês, jargão dos hipódromos e estádios, significando vantagem que se concede a um competidor para compensar suas deficiências e igualar as chances de vitória. Dizia Afrânio Peixoto que o Velho Rebouças, patriarca da família, teria experimentado ascensão social tão somente porque “a cor” o ajudara. Sobre os filhos proeminentes, Peixoto aguilhoava: “... são bons estudantes na Escola Militar e engenheiros estudiosos (...), mas, se não fora a tal vantagem, talvez nem sequer nomeados (fossem)...”


“Qual a grande obra dos Rebouças?” — perguntava Afrânio Peixoto em seu texto insidioso, para assim responder: “Se fossem brancos não teriam chamado a atenção. Não os quero diminuir; mas não quero que por eles se diminuam os brancos da Bahia... Quero uma aferição justa de valores. Que importa a cor?”


Passam-se os anos e leio agora um artigo do jovem e brilhante jornalista Ali Kamel, já famoso, hoje, por contestar periodicamente, através deste espaço, as políticas de ação afirmativa que nós queremos ver criadas, para nosso povo, no Brasil.


Discriminado na França por suas origens árabes, Kamel, em artigo intitulado “Imigrantes” (O GLOBO, 10/1), expõe, entre outros assuntos, os propósitos com que os imigrados, ao tempo de seus avós e pais, vieram para o Brasil — “trabalhar e acumular capital”, uns com o propósito de voltar à terra natal, outros com ânimo de aqui permanecerem. E aí está, na expressão entre aspas, a idéia que queremos demonstrar.


Kamel, que, legitimamente, não se sente “menos brasileiro do que qualquer brasileiro de quatrocentos anos de tradição”, como fala em seu texto, lúcido que é, certamente se vê mais cidadão que a imensa multidão de despossuídos que constitui a massa dos descendentes de africanos neste país. Certamente, ele os identifica, ao primeiro olhar, pela cor da pele e pelas características físicas. E é reconhecido, ele, Kamel, como um tranqüilo brasileiro, como diz em seu artigo, principalmente, no nosso entender, por não ser portador dessas características tão estigmatizantes; e por terem seus avós e pais conseguido, no Brasil, se não acumular capital, não sabemos, pelo menos dar-lhe condições para honrosamente chegar onde chegou.


É de conhecimento geral a forma pela qual foi abolida a escravidão no Brasil, sem nenhum projeto de benefício social para os emancipados, que já haviam sofrido um duro revés com a Lei de 1850 que lhes restringia drasticamente o acesso à propriedade fundiária. Na nova ordem, aqueles descendentes de africanos, mesmo os africanos livres, que possuíam algum capital, quase nunca o tinham obtido por via de sucessão hereditária. E foi graças a esse fator primordial, capital acumulado, que, a partir do século 20, a maioria dos filhos de imigrantes aqui chegados teve acesso, desde o curso elementar, aos melhores estabelecimentos de ensino, neles tecendo redes de amizade e parcerias importantes para a vida adulta, e através delas chegando, em vários níveis, aos núcleos de influência, poder e decisão.


Dados do IBGE e do IPEA, periodicamente divulgados, têm demonstrado o fosso existente no Brasil entre a população afro-descendente e a não-negra – aí incluídos os imigrantes que para cá vieram, espontânea e honradamente, para trabalhar e acumular capital (grifamos). Sem capital, e tendo gravada no rosto a palavra “negro” como um estigma (da mesma forma que nome e “feições árabes” são vistos hoje na França), só tem restado à massa dos pretos e mulatos brasileiros os patamares mais baixos da pirâmide social.


Em face disso, fica a indagação: por que não estabelecer comparação entre o racismo e a exclusão vigentes no Brasil e as condições vigentes hoje na França? Por que não entender que, assim como os árabes no país do Iluminismo, é preciso também que as massas de origem africana se integrem à vida brasileira; que “é preciso equipá-las para que enfrentem o racismo” (cf. recomendação de Kamel sobre os árabes na França); que é urgentemente necessário que todos os afro-descendentes nos tornemos 100% brasileiros?! ( idem ).


Impressionante, então, como o jovem jornalista Ali Kamel pensa igualzinho ao médico-legista Afrânio Peixoto (1876-1947)! Só que Peixoto se insurgia contra ações afirmativas existentes em sua época, postas em prática, espontânea e informalmente, até mesmo pela família imperial, e que beneficiaram afro-descendentes como os Rebouças, Theodoro Sampaio, Machado de Assis, José do Patrocínio, ou seja, quase todos os grandes negros brasileiros do século 19. E Kamel se insurge, hoje, contra a possibilidade de políticas assim se tornarem leis.


Por quê? – perguntamos. Será que é só uma questão de euro ou dólar versus real? Ou será que o racismo à brasileira não tem finesse , pedigree , não dá mídia?


Nei Lopes (neilopes.blogger.com.br) é compositor.

Artigo publicado no jornal O Globo, 31/1/2006.

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