"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Análise constitucional do PL 122/06



O PL 122/2006 tramita com a intenção de alterar a Lei n° 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, dá nova redação ao § 3° do art. 140 do Código Penal e ao art. 5º da CLT. Insere nas citadas leis os termos "orientação sexual e identidade de gênero".


O presente estudo tem por objetivo efetuar a análise constitucional do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n° 122, de 2006, doravante denominado PL 122/2006.


Para o desenvolvimento de um tema tão polêmico e, ao mesmo tempo, apaixonante, é imprescindível voltarmos às bases do ordenamento jurídico pátrio, onde podemos verificar seus parâmetros, dentre eles a hierarquia de normas, sem a qual pereceria a nossa segurança jurídica.


“[...] o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo”.


Desta feita, qualquer obra legislativa que venha entrar em rota de colisão direta com o sistema normativo posto deve ser declarada desconforme com esse próprio sistema, ainda que sejam observados com o devido rigor todos os critérios em sua confecção.


Hierarquia, para o Direito, é a circunstância de uma norma encontrar sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade numa norma superior. A lei é hierarquicamente inferior à Constituição porque encontra nesta seu fundamento de validade. 


Aliás, podemos falar nesse instrumento chamado lei, porque a Constituição o cria. Tanto isto é verdade que o Supremo Tribunal Federal, ao declarar que uma lei é inconstitucional está dizendo: “aquilo que todos pensaram que era lei, não era”, dado que lei é instrumento criado pelo Texto Constitucional. 


Pois bem, se a hierarquia assim se conceitua é preciso indagar: lei ordinária, por acaso encontra seu fundamento de validade, seu engate lógico, sua razão de ser, sua fonte geradora na lei complementar? Absolutamente não!


No nosso caso, a Constituição serve de parâmetro insuperável diante de outras leis e instrumentos normativos e, por conseguinte, ocupa o lugar primeiro na hierarquia das normas, devendo ser respeitada para a manutenção da segurança jurídica nacional, pois ela é o porto seguro para todos os que entram em sua órbita de alcance e proteção.


Até porque, como já fora dito antes, quando nos referimos ao sistema jurídico pátrio, é comum designarmos de ordenamento jurídico e, é importante ressaltar que não há como se admitir em ordenamento jurídico sem pluralidade de leis.


Para que haja uma convivência harmônica no universo plural das leis é preciso que seja estabelecido uma cadeia de comando, pois sem isso não poderia haver, de fato, um ordenamento, pois todas as normas teriam, talvez, o mesmo grau de importância, com isso, a resolução dos conflitos de normas seria impossível.


Uma lei que entra é promulgada sem a observância da Lei Maior assemelha-se ao natimorto, pois carecerá de validade e eficácia, ainda que seja assim declarada por força de controle de constitucionalidade repressivo, como é o jurisdicional e, por seu turno, a posteriori, ou seja, a supremacia da Constituição é a própria condição de validade para todas as outras normas.


Evidentemente que em benefício da nação, muito melhor seria que tal controle fosse feito com mais rigor pelo próprio legislativo, ou seja, antes da possível entrada da futura lei na órbita normativa, pois incumbe ao próprio legislador a tarefa de analisar criteriosamente os projetos de lei em tramitação com base na Constituição e, para essa tarefa, estão designadas as diversas Comissões de Constituição e Justiça nas mais diversas esferas legislativas.


Tal como na vida militar, a hierarquia no sistema normativo disciplina todas as relações entre os diferentes tipos de normas, assegurando o pleno respeito à “cadeia de comando” no âmbito das relações entre leis, eliminando, quer pelo controle preventivo, quer pelo controle repressivo, toda e qualquer norma que se “rebele” contra o sistema posto.


Projeto de Lei 122/2006 e a Constituição de 1988


Art. 1° Esta lei altera a Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, o Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943, definindo os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. 


O mencionado Projeto de Lei 122/2006 tramita com a intenção de alterar a Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, dá nova redação ao § 3° do art. 140 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 


– Código Penal, e ao art. 5º da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943, e dá outras providências.


Substancialmente, insere nas citadas leis os termos “orientação sexual e identidade de gênero”.


Mas o que vem a ser orientação sexual? É comum a visualização desse termo a partir dos sentimentos e preferências de uma pessoa em relação a outra - sexualmente falando – com isso, se autodeterminar de acordo com tal sentimento. 


Já a identidade de gênero é o conceito que a pessoa faz de si como masculino ou feminino, não obrigatoriamente coincidente com o formato anatômico natural (macho ou fêmea).


A nossa análise vai confrontar alguns artigos do PL 122 com a CF/1988, pois nem todos, ao nosso ver entram em rota de colidência com a Lei Maior, principalmente quando postos frente a alguns paradigmas religiosos cristãos legítimos – sob o ponto de vista dos cristãos.


Antes de qualquer coisa, é importante ressaltar que não se trata de preconceito contra qualquer grupo, mas uma preocupação com possíveis distorções que podem trazer insegurança jurídica ao país.


Além disso, nossa preocupação é que se tal Projeto de Lei se tornar lei poderá entrar em conflito com o que a Constituição denomina Garantias e Direitos Fundamentais, os quais são vistos sob a seguinte ótica:


“[...] Os direitos fundamentais participam da essência do Estado de Direito democrático, operando como limite do poder e como diretriz para a sua ação. 


As constituições democráticas assumem um sistema de valores que os direitos fundamentais revelam e positivam. 


Esse fenômeno faz com que os direitos fundamentais influam sobre todo o ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de todos os poderes constituídos”. 


É certo que o Estado deve proteger tais minorias, mas há valores sociais, como questões que envolvem liberdade religiosa e liberdade de pensamento que não podem ser retirados, como equivocadamente deseja a autora do dito Projeto. 


Esses valores sociais tendem a ser menos imperiosos como já foram no passado, mas sua essência deve ser preservada, sob pena de, tentando reduzir desigualdades para uma minoria marginalizada, no futuro o próprio Estado crie novas minorias marginalizadas.


Por óbvio que, tanto a intolerância das religiões com tal minoria, tanto a tentativa dessa minoria fazer valer sua garantia de liberdade impondo a outros sua condição, não contribuirá para o diálogo e convivência pacíficos.


Há que se encontrar um ponto de equilíbrio, o qual seria muito importante se posto a partir da discussão desse Projeto de Lei, mas tudo isso sem as paixões inerentes às partes envolvidas e sem alguns oportunistas quererem levantar bandeiras em seu próprio benefício político.


A legitimidade do PL 122/2006


“[...] A Câmara dos Deputados é composta por representantes do povo, ou seja, por Deputados Federais eleitos que manifestam a vontade do povo. 


Lembramos que todo o poder emana do povo, que o exerce, ou na norma direta ( ex.: plebiscito, referendo e iniciativa popular – soberania popular, art. 14, I-III), ou por meio de seus representantes, que em âmbito Federal são os Deputados Federais[...]”.


Sem sombra de dúvida é totalmente legítimo o tal Projeto, pois uma minoria historicamente marginalizada, através de um representante eleito pelo voto, tenta corrigir as distorções provocadas por anos de discriminação.


É perfeitamente normal também que haja uma mágoa generalizadas naqueles que sofreram na pele a indiferença.


Decerto, uma Lei Federal só pode ser alterada por outra Lei Federal e pode ter seu início na Câmara dos Deputados, como ocorreu com o PL 122/2006. Obedeceu a iniciativa correta e tem seguido, pelo menos até o momento, a tramitação normal, ou seja, mais elementos que se somam à sua legitimidade.


Qualquer anseio da população deve, de fato, ser defendido pelos Deputados, os quais, como já dissemos, são legítimos representantes do povo, como decorrência do sistema pátrio, o qual é democrático-representativo, onde se encontram também os Senadores da República que representam seus Estados.


A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela Lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. 


Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que pelas chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.


Assegurar a igualdade a todos é uma tarefa complexa, pois num universo tão grande de valores, sentimentos, anseios, esperanças, tornar real o alcance de tal isonomia sempre trará desconforto para os que tiverem que ceder um pouco de espaço para que o próximo tenha um pouco mais de direitos. Isso é inerente ao ser humano.


Certamente as pessoas que sofrem o preconceito apenas por terem uma preferência sexual diferente do que se chama natural estão no momento atual ganhando novos espaços, os quais se consolidam cada dia mais no mundo globalizado através de vários tratados internacionais, sendo o Brasil signatário de muitos.


Agora, o fato de terem um pouco mais de visibilidade e poder, principalmente por causa das chamadas ações afirmativas do atual Governo do Brasil, não lhes dá o direito de se colocarem acima dos outros cidadãos, como fica nítido em vários trechos do PL 12/2006.


Parece que o direito à liberdade religiosa, incluindo a crença e a defesa de condutas condizentes com a fé cristã, à luz de tal Projeto, seria atingida frontalmente, o que parece não estar de acordo com preceitos solidificados na Constituição de 1988.


Sob o argumento de promoção de igualdade o mencionado Projeto parece demonstrar toda a vontade de se estabelecer o equilíbrio traduzido garantia de novos direitos, os quais são legítimos, mas produzindo novos desequilíbrios e interferindo diretamente me liberdades, sem as quais a própria democracia não sobrevive.


PL 122/2006 e o Princípio da Isonomia


Pelo fato do Projeto ainda estar em tramitação, seria interessante a correção de tais vícios aparentes para que a produção legislativa alcançasse o plano da validade e da eficácia, estas possíveis somente se, e somente se, lançarem seus fundamentos e encontrarem guarida na Carta Magna, a qual foi batizada de Constituição Cidadã.


Art. 7° A Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar acrescida dos seguintes art. 8° - A e 8° - B:


“Art. 8° - (A) Impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público, em virtude das características previstas no art. 1° desta Lei:


Pena: reclusão de 2 a 5 anos.


Art. 8° - (B) Proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs:


Pena: reclusão de 2 a 5 anos. 


Ao inserirem o termo autorizativo aos demais cidadãos, mostra-se clara a tentativa velada de criação de uma categoria superior de pessoas, lançando por terra assim, o princípio da isonomia, o qual está consagrado em nossa Constituição e preconiza em seu art. 5°, Caput, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]”.


Ao se estabelecerem classes de cidadãos, onde uma tudo pode sem qualquer restrição, sob pena de enquadramento penal aos que tentem impedir ou restringir, aos outros é permitido, leia-se “nós, os da classe superior permitimos”.


Isso é totalmente nocivo à idéia de uma sociedade justa e igualitária, ademais, em última análise, qualquer forma de discriminação é punida no Brasil, inclusive se alguém promover a manifestação direta a uma pessoa por sua opção, certamente arcará com as consequências legais proporcionais ao seu ato.


Então não se trata de inexistência de normas protetivas para tais minorias, mas se trata do anseio dessa minoria ter uma legislação que legitime suas escolhas e, de certa forma, obrigue os discordantes a aceitar, mas a aceitação de qualquer coisa não se impões por uma lei, mas conquista-se ao longo do tempo.


Ora, não se pode instituir um direito legítimo a cidadãos que escolherem a homossexualidade como prática de vida tolhendo outros cidadãos que, livremente, também optaram pela heterossexualidade.


Seria um golpe mortal do princípio da isonomia, o qual não é absoluto, pois os homossexuais não podem ser eternamente expostos a toda a sorte de discriminação e um viés da isonomia muito aplicado no Brasil é o tratamento desigual para os desiguais.


Muitos homossexuais perderam seus empregos, suas famílias, seus amigos exatamente por terem tal opção de vida, mas outras minorias também sofreram isso e, nem por isso, liberdades tão importantes, ainda que para a promoção da isonomia, foram retiradas de outros cidadãos, como no caso das políticas afirmativas dos negros.


Neste caso, todos os que são contra o estabelecimento de cotas raciais, por exemplo, puderam expor suas opiniões e o assunto ainda causa muita discussão, o que é muito salutar no processo democrático.


Imaginemos, um casal homossexual no pátio de uma igreja, que é local privado aberto ao público, demonstrando um caloroso beijo. Tal cena seria, aos olhos dos fiéis e do próprio pároco, absurda e digna de repreensão, mas diante desse Projeto de Lei incorreriam em crime passível de reclusão caso desejassem interromper a manifestação de afetividade, diga-se de passagem, fora de lugar.


PL 122/2006 e o Princípio da Liberdade Religiosa


Liberdade religiosa – abarca as liberdades de crença e de culto. Elas são tão importantes que o Supremo, desde a Constituição passada, considerou inconstitucional sentença judicial que proibia beneficiário de susrsis desenvolver culto religioso no ambiente doméstico. 


Também decidiu que os passes de médium, em centros espíritas, não caracterizavam o delito de curandeirismo, mas mera exteriorização religiosa. 


A liberdade religiosa é um valor muito caro ao povo brasileiro, onde há uma forte miscigenação e, com ela, a diversidade de credos religiosos.


Comparados com outros países, principalmente os de língua árabe, o Brasil é avançadíssimo no que tange à tolerância da fé.Tal valor deve ser resguardado, pois ele serve de alicerce para a formação de uma pessoa e também de um povo. 


Certamente, com base em valores religiosos arraigados pessoas pautam suas vidas, surgindo também a liberdade de consciência, na qual ninguém pode obrigar a unidade de pensamento e cada um vive de acordo com o que a sua consciência diz.


A liberdade religiosa também traduz-se na possibilidade de cada um acreditar em algo superior ou não, seguindo ou não uma religião, até mesmo na liberdade de uma pessoa professar o ateísmo.


Apesar do nosso Estado ser laico, é inegável que há garantias estatais para a manutenção da religiosidade do povo, a qual serve também para afirmar e solidificar a nossa cultura. Não fosse isso, qual o motivo para tantos feriados religiosos?


Art. 8° Os arts. 16 e 20 da Lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passam a vigorar com a seguinte redação:


“[...] Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero:


[...]


§ 5° O disposto neste artigo envolve a prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica”.


Como fora dito anteriormente, a liberdade religiosa é demonstrada na possibilidade de se acreditar nas bases da fé que se professa, na possibilidade de se fazer proselitismo, ou seja, do religioso poder pregar a sua fé com intuito de arrebanhar outros seguidores.


Com base no trecho colacionado do Projeto de Lei 122/2006, o pregador de uma religião afirme que a prática homossexual é pecado infringiria norma penal e estaria passível de sansão.


Ora, como exercer de modo pleno a liberdade religiosa sem poder pregar e professar valores caros à determinada religião?


Parece haver no caso analisado mais uma frontal infringência a princípio cristalizado na Constituição Federal de 1988.
Importante ressaltar que a liberdade religiosa não pode servir de esconderijo para qualquer tipo de discriminação. 


Deve-se saber diferenciar o que é discordar de uma prática, como por exemplo, o direito de discordar da prática de beber bebidas alcoólicas e o que é discordar de uma pessoa que pratica algo que a religião condena. Essa pessoa deve ser respeitada apesar de sua prática.


Se houvesse entendimento nessa linha de raciocínio, talvez não houvesse tanta intolerância.


PL 122/2006 e a Liberdade de Pensamento


“[...] O limite à liberdade de crença situa-se no campo do respeito mútuo, não podendo prejudicar outros direitos. Isso porque o Brasil é um Estado leigo, laico ou não confessional, isto é, não tem religião certa. 


Apenas durante a vigência da Carta de 1824 que o credo Católico Apostólico Romano foi oficializado. 


Do Texto de 1891 até a Carta de 1988, o Estado separou-se da igreja, vigorando a liberdade de crença religiosa, de que deriva a liberdade de culto e suas liturgias". 


O Eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, ao proferir, em sede de medida acautelatória, seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.566 do Distrito Federal, a qual versava sobre proibir ou não o proselitismo em rádios comunitárias, assevera que, sob pena de cerceamento de liberdade religiosa e de pensamento,o Estado não pode proibir tal prática, pois é indiferente o conteúdo das idéias pregadas por grupos confessionais.


Ainda, de acordo com o Senhor Ministro, caso o Estado haja de modo diverso, incorrerá em inaceitável interferência em domínio estranho às atividades estatais, simplesmente porque o Estado não pode e não tem interesses confessionais.


A liberdade de pensamento e religiosa fundem-se, pois a liberdade religiosa também manifesta-se na medida em que o crente pode expressar seu pensamento de acordo com a sua fé.


O próprio fato de, através de uma lei, constranger ou restringir uma pessoa a exteriorizar seus pensamentos concordes com sua fé fere a própria diversidade de idéias, um aspecto tão importante da democracia.


O Projeto de Lei 122/2006 está repleto de comandos que, se postos em prática, impediriam um seguidor de uma fé que condene a prática homossexual e suas variantes a expressar seus pensamentos.


Não se trata de não haver liberdade de pensamento absoluta, pois todos os que a utilizarem com abuso, principalmente para respaldar práticas discriminatórias, serão alcançados pela lei, independentemente da religião que professam como foi demonstrado no célebre caso do Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus que chutou uma santa. 


A referida autoridade eclesiástica sofreu as conseqüências de seu ato discriminatório e reprovável. Um Estado democrático deve primar pela amplitude de suas liberdades, principalmente de pensamento, pois um povo que pensa demonstra sinais de evolução.


Tais liberdades servem para solidificar a estrutura do país, pois ninguém detém o monopólio da verdade. Quanto menos liberdades tivermos, menos democráticos seremos.


Se tal análise transcendesse o plano acadêmico, visto que não há no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de controle de constitucionalidade repressivo durante a feitura de uma lei. Só resta o controle preventivo, ou seja, durante a feitura da lei.


Decerto que nem as liberdades podem ser absolutas nem a ampliação de direitos de minorias podem ferir princípios constitucionais.


Considerações finais


Encontrar o equilíbrio, conter o ímpeto de quem sofre preconceitos ao longo do tempo, é uma tarefa que cabe ao legislador, o qual deve saber legislar sem paixões, sempre visando garantir a segurança da democracia brasileira.


Parece-nos legítima a tentativa de cidadãos que, ao longo do tempo, sofrem preconceitos e humilhações, para minimizar as desigualdades e injustiças praticadas contra homossexuais e afins.


Mais legítima ainda, a sua manifestação no sentido de não mais agüentarem calados os preconceitos sofridos, isso não se discute, pois em uma sociedade machista, que há poucas décadas vivia uma ditadura militar, os desvios e a falta de respeito são extremas.


Em que pese tais considerações que deve ser levadas em conta, a questão é que já vigoram no nosso ordenamento jurídico inúmeros dispositivos que coíbem qualquer tipo de preconceito, independentemente da orientação sexual do indivíduo. Talvez, o Estado e seus órgãos devam estar mais preparados para receberem tais demandas, de quem quer que seja.


O perigo é criarmos situações que criminalizam pensamentos e opiniões que vão contra a prática sexual de alguém, pois isso tolheria a liberdade individual, criando talvez, no longo prazo, uma espécie de sistema totalizante no sentido de “retirar do mundo” qualquer outro que não seja a favor da opção sexual dos homossexuais, como dizia o antigo adágio, nem tanto ao mar, nem tanto à terra.


Creio que o fortalecimento das instituições democráticas seja o melhor caminho para alcançarmos a paz social tão almejada no caso em discussão, pois a discordância livre de idéias é um dos pilares da democracia. 


A partir do momento em que a discordância de idéias e de práticas passar para a discriminação e violência, contra quem quer que seja, o Estado deve fazer uso do monopólio de sua força e resolver as situações fáticas para que sejam extirpadas do nosso país esses males.

Marco Vinicius Pereira de Carvalho
mrs_vinicius@yahoo.com.br

Estado de Direito ou Direito do Estado?




Você já ouviu falar em "Estado de Direito"? Na definição do direito, na sociologia e na política é, via de regra, a síntese das vontades da sociedade, do povo, em torno das regras de convívio. É como num condomínio.


Suponhamos que todos - ou a maioria - participem das assembléias dos condôminos e decidam, pelo voto, as regras, as idéias, os projetos de reforma, etc., que afetam a todos que moram naquele condomínio. O síndico ou o Conselho Diretor não podem decidir sozinho, só executar o que a assembléia decidir.


Num município, em um estado federado ou mesmo em um país, o principio é o mesmo. A população deveria ser consultada sobre cada decisão que afetasse suas vidas.


A intenção de algumas idéias podem até ser boas. O problema que a imposição dessas leis, sem consulta popular ou plebiscito mesmo, denota uma total falta de confiança no povo brasileiro.


Você já foi consultado alguma vez? a verdade é que plebiscito ou referendo é palavrão para a maioria dos políticos. E quando é proposto, o fazem de forma a manobrar massas em interesses escusos ou no mínimo duvidosos, como o plebiscito da proibição da comercialização de armas marcado para outubro de 2005.


Não é só o povo que não confia mais nas instituições e nos políticos. Estes também não confiam no povo que os colocou lá... 


As MPs (Medidas procrastinadoras ou permanentes?) 


Mas não pára aí. Tem ainda as Medidas Provisórias, um instrumento que coloca em vigor imediato determinadas leis e regras, independente de o Poder Legislativo ter ou não aprovado.  E, nas atuais circunstâncias, a Câmara fica então, com a pauta das demais votações trancada até que se vote a MP encaminhada como "urgente" pelo Poder Executivo.  


Ou seja, os poderes Legislativo e Executivo em "cabo de guera" cuja ponta mais fraca é a sociedade, obrigada a engulir o resultado da contenda - qualquer um não serve mesmo.


Está assim, decretado,  o "Estado da Instabilidade"!


A imposição de leis, produzidas em escala industrial - desde 1988 já foram, segundo o IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário - editadas cerca de 1.600.000 regras, desde leis, decretos regulamentações, atos normativos, instruções e portarias, tornando impossivel para  operadores do Direito e da Contabilidade acompanharem a progressão desse cipoal. 


A imposição dessas leis,  seja ela congressual ou governamental (do executivo), passa a ser o "Direito de Estado" ou seja, o inverso do "Estado de Direito", pois o povo só tem que obedecer ao que foi imposto, sem que tenha sido consultado.


É como se você fosse, voltando ao exemplo do condomínio, obrigado a pagar um aumento da taxa de condomínio por uma obra não emergencial a ser realizada, uma pintura geral por exemplo, por medida provisória do síndico. Você gostaria?


Tal como em um condomínio, você sabe que quanto menos apartamentos ou casas, mais fácil administrá-lo. Certo? Absolutamente certo.


Os estados devem então que decidir sobre estas coisas, junto com a sua própria população, como num condomínio, "um pouco maior" desse que você mora. 


CADA ESTADO COM SUAS LEIS

Os estados devem ter autonomia para legislar sobre qualquer matéria - penal, tributária, trabalhista, administrativa, subtantiva e adjetivamente, ou seja, incluindo os aspectos processuais. 



Assim, todos os códigos, civil, penal, trabalhista, etc., perderão validade quando entrar em vigor cada um desses códigos estaduais, sob uma nova Constituição Estadual, sob uma nova Constituição Federal.

Isso significa dizer que todos os temas polêmicos, como Pena de Morte, Eutanásia, Aborto, Prisão Perpétua, Prisão com Trabalhos Forçados, Penas Alternativas, Cassinos e outros jogos de azar, serão objeto de decisão do povo de cada estado. Do povo? Sim, através de plebiscitos.

Não se pretende aqui anular o papel dos legisladores mas de ressignificá-los, dentro de seu verdadeiro papel de legislar. 


Preocupados com a causa pública,  o político legislador, na qualidade de deputado ou vereador, poder representar os anseios da sociedade ou parte dela, para criar e propor legislação no âmbito da respectiva casa legislativa e até conseguir que seja aprovada. 


Mas a decisão final deve ser do Povo, em plebiscito ou referendos, pois afinal, é quem irá experimentar os efeitos da legislação proposta - ou da falta dela.

Esse procedimento deve ser bem construído, evitando-se que propostas isoladas do Executivo, ppor exemplo, sejam encaimhadas diretamente ao referendo popular, pois aí então, se estará passando por cima do Poder Legislastivo, na abjeta prática do democratismo, a manobra das massas.

LEGISLATIVO MUNICIPAL


Considerando que os municípios terão ampla autonomia para sua gestão, estes terão também, autonomia para legislar sobre assuntos sobre os quais o Estado e a União não proíbem expressamente.  



Assim,  não haverá necessidade da existência de uma Câmara de Vereadores, por exemplo e regras ou leis comunitárias ou municipais poderão ser decididas até mesmo em praça pública conforme o tamanho da comunidade.

Nas grandes cidades, é muito provável que as câmaras continuem a existir, normalmente, mas é recomendável que muita legislação seja decidida em referendos populares. Há cidades nas quais, boa parte do processo legislativo e administrativo pode ser passado para as regionais, ou seja, as áreas fruto de divisões administrativas de metrópoles, tais como São Paulo, que tem algo em torno de 37 ou o Rio de Janeiro com 29. 


Cada região dessas poderia se constituir em um distrito com autonomia financeira, administrativa e legislativa, reservando-se à Prefeitura e a Câmara Municipal da "Matriz" as atribuições de interesse geral da cidade. 


Permite-se maior democracia e a prática da descentralização dentro do espírito federalista pleno das autonomias proposto pelo Partido Federalista, ou seja, a perseguição constante da mais ampla subsidiariedade.

São medidas que vão fazer com que a população se reaproxime da política, amplamente ressignifcada no seu contexto, atualmente satanizada face a prática pouco recomendável do jogo político-partidário-eleitoral.

LEGISLATIVO FEDERAL

O modelo do Poder Legislativo Federal continua bi-cameral porém com mudanças de conceito. Os deputados federais continuarão a ocupar a Câmara Federal, porém não mais na condição de "vereadores federais" em defesa de verbas para seus estados ou ainda, para suas regiões eleitorais (currais eleitorais?)


Os deputados federais se ocuparão com legislação de interesse realmente da Federação, muito acima do chamado "interesse nacional", termo este usado para esconder ambições centralistas.

As leis emanadas da Câmara, seguirão para votação e aprovação em Congresso, união da Câmara dos Deputados com o Senado. 


Em caso de aprovação da nova regra, se esta interfere em autonomias estaduais e/ou municipais, será necessário o referendo de 2/3 ou 4/5 dos estados federados para a sua aprovação final, sendo apenas homologado pela Presidência da República, sem poder de veto. 


O preceito é, da mesma forma, válido para emendas constitucionais. 

Já as leis  federais de cunho administrativo, que não afetem autonomias estaduais e que representem o interesse geral da Federação, serão aprovadas pela Câmara dos Deputados, depois pelo Senado, sendo ratificadas pelo Presidente da República, agora com poder de veto.

O Senado Federal terá ainda a incumbência de ser um conselho consultivo e fiscal, podendo instaurar processos de responsabilidade cível e criminal contra o Presidente da República, o respectivo Vice e determinadas autoridades federais, encaminhando-se as conclusões ao Poder Judiciário para eventual instauração do processo legal.

CONCLUSÕES

O processo legislativo passa então a ser visto sob uma nova ótica, o papel do legislador passa a ser focado na legislatura, sendo, é claro, proibido o assistencialismo e uma série de outras atividades que nada dizem respeito ao papel de um deputado ou vereador. 


A política deve voltar a ser política, sem a esperança de ser perfeita mas livre dos defeitos que a tornaram na abjeta politicagem.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Democracia Participativa: uma nova forma de entendermos a democracia



A crise da democracia representativa e a inaplicabilidade da democracia direta. 

Serão apresentadas a seguir algumas definições conceituais. 


A democracia direta


Quando pensamos na origem da democracia nos reportamos à experiência vivida na Grécia clássica. Atenas é considerada por muitos o berço da democracia. É a partir desse momento que passamos a entender a gestão dos negócios públicos como o resultado do desejo de uma maioria. Não existia, nesse modelo, a figura dos representantes e, conseqüentemente, eleições.

O complexo governo de Atenas pode ser resumido da seguinte maneira: uma assembléia a que todos aqueles que eram considerados cidadãos podiam participar, e lá eram tomadas as principais decisões públicas. Atualmente, a impossibilidade de implementação de um sistema como esse é explicada, principalmente, por três razões: o enorme contingente de cidadãos existente em um país, a extensão dos territórios nacionais e, conseqüentemente, o tempo que seria gasto para que decidíssemos algo. 


A democracia representativa


A democracia representativa não pode ser entendida como uma resposta histórica às impossibilidades geradas pela democracia direta. Isso porque a trajetória do conceito de democracia não é linear.

No século XV, na Suécia, foi criado um parlamento que dava a representantes do povo, da burguesia, do clero e da nobreza voz num parlamento. Já no século XVII, funcionando como sistema de pesos e contrapesos - com o intuito de limitar o poder absolutista -, a Europa experimentou uma série de experiências de separação dos poderes.

Ocupando lugar nos parlamentos, estavam cidadãos eleitos para representar determinadas parcelas da sociedade. É dessa escolha que nasce a idéia de democracia representativa. 


O século XX e a crise da representação


Iniciamos o século XX com a percepção de que não bastava mais pensarmos em representação de determinadas classes no poder. A idéia de que deveria votar quem tinha algo a perder - sob o aspecto econômico - foi paulatinamente deixada de lado. 

Passava a vigorar o sentimento de que todos os cidadãos podem contribuir para a construção do poder, e isso significa dizer que nenhum adulto deve ser isentado do voto. Nasce a idéia do sufrágio universal. 


A mulher passa a fazer parte da política, assim como os cidadãos das classes mais pobres. Atravessamos grande parte do século XX sob a crença de que a forma representativa, desde que assegurada a liberdade de participação de todos os cidadãos, era "ideal" para contemplarmos amplamente o conceito de democracia. 


Após quase cem anos, chegamos ao fim do século XX acreditando na existência de uma crise dessa forma representativa. 

Mas o que nos leva a esse tipo de percepção? Os representantes já não conseguem mais identificar e atender todas as demandas da sociedade. 


Primeiro porque a globalização e a economia mundial enfraqueceram o poder dos Estados. Segundo porque a sociedade tem se organizado melhor em torno de infinitas questões, e essas organizações têm cobrado de maneira mais efetiva os governos e seus representantes. 

As exigências vêm se tornando mais complexas, e parece clara a necessidade de interatividade entre o governo e a sociedade, ou seja, entre representantes e representados. 

O papel das organizações no século XXI


O conceito de democracia sofre então uma nova guinada em sua dinâmica trajetória. O sistema representativo já não responde aos anseios da sociedade, e a democracia direta parece inviável. Como resultado, começa a se fortalecer o conceito de democracia participativa, com características semidireta, ou seja, não desconsidera os representantes, mas aproxima a sociedade da arena decisória. 

De acordo com alguns teóricos, a democracia participativa passa a configurar-se como um continuum entre a forma direta e a representativa. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas define em seu relatório sobre o Índice de Desenvolvimento Humano de 2000 uma nova forma de se entender a democracia. Já não nos basta votar em eleições livres, e nem tampouco garantir a existência de oposição, liberdade de imprensa etc. 

Essas exigências já fazem parte do conceito mais elementar de democracia. As nações modernas precisam incentivar a sociedade a organizar-se. O objetivo é fazer com que, juntos, os cidadãos reivindiquem espaço e avancem em suas conquistas. Ao Estado cabe oferecer ferramentas que catalizem essas demandas, afastando-se da clássica visão horizontal de poder. 

A participação institucionalizada no Brasil


A promulgação da Constituição de 1988 iniciou a retomada do conceito de cidadania no país. Durante a elaboração da Carta Constitucional, a sociedade buscou participação na construção do texto oficial.

Reconhecendo a importância dessa contribuição, foram criados três mecanismos que aproximaram a constituinte da sociedade. O primeiro deles foi um banco de dados disponibilizado pelo Senado.

O Sistema de Apoio Informático à Constituinte (SAIC) coletou, por meio do preenchimento de um formulário distribuído por todo o país, 72.719 sugestões. 


Além disso, a sociedade foi chamada para comparecer a reuniões de subcomissões temáticas. Foram cerca de 400 encontros, de onde emergiram mais de 2.400 sugestões. Após a elaboração do anteprojeto, uma terceira e última possibilidade foi ofertada. 


De acordo com o artigo 24 do Regimento Interno da Constituinte, entidades associativas, legalmente constituídas, teriam um prazo de pouco mais de um mês para coletar 30.000 assinaturas e apresentar emendas a esse anteprojeto. A responsabilidade por tais sugestões deveria ser encabeçada por três entidades. 

Durante o curto período de tempo que tiveram, foram colhidas mais de 12 milhões de assinaturas, e encaminhadas 122 emendas populares. Dessas, 83 atenderam às exigências regimentais e foram defendidas por interlocutores no Congresso. O processo constituinte foi um claro exemplo do poder de mobilização da sociedade em torno de questões de interesse coletivo. 

A coleta de 12 milhões de assinaturas, as 2.400 sugestões e o envio de quase 73 mil formulários ao SAIC transpareceram a esperança de que, após o regime militar, estávamos dispostos a participar ativamente das decisões políticas do país. A Constituição, no entanto, não respondeu a contento a essa demanda. O voto foi garantido a todos os cidadãos. Uma participação que fosse além desse instrumento pontual, no entanto, não foi contemplada. 

O referendo não foi utilizado ao longo dos anos que nos separam da promulgação da Constituição. O plebiscito foi usado, nacionalmente, apenas uma vez - quando decidimos manter nossa república presidencialista. Por fim, as leis de iniciativa popular passaram a exigir um esforço descomunal da sociedade. 


Para apresentar uma lei à Câmara dos Deputados são necessárias mais de um milhão e cem mil assinaturas, o que corresponde a 1% de nosso eleitorado. Um único projeto venceu essa barreira. Sua aprovação ocorreu em 1997, transformando-se na lei 9.840/97 que trata da corrupção eleitoral. A sociedade, após a marcante participação no processo constituinte, teve seus impulsos arrefecidos. 

As modernas formas de participação


A despeito dos tradicionais canais de participação - garantidos em quase todas as constituições democráticas do mundo - o país não assistiu a utilização em escala razoável de tais instrumentos. Medidas inovadoras, no entanto, surgiram e tornaram-se exemplos emblemáticos do compromisso de políticos com a transparência e com a aproximação entre representantes e representados.

O Brasil tornou-se um exemplo mundial no desenvolvimento de ferramentas alternativas de participação. 


Em 1989, destaca a ONU, o Orçamento Participativo de Porto Alegre tornou-se um símbolo do controle social sobre a aplicação das verbas destinadas aos investimentos. A medida espalhou-se pelo país, e hoje centenas de governos - estaduais e municipais - implementaram tais ferramentas. Em inúmeras localidades também foram testadas, com sucesso, experiências de Gestão Participativa. 

Além de discutir os investimentos, a sociedade passou a participar de reuniões que visavam democratizar o gerenciamento de alguns serviços. Além dessa ferramenta, milhares de Conselhos Gestores de Políticas Públicas surgiram para discutir temas pontuais, dando aos governos diretrizes e idéias a respeito de serviços pontuais. 


Por fim, surgiram as Comissões de Legislação Participativa, uma iniciativa inaugurada pela Câmara dos Deputados que, rapidamente, espalhou-se por dezenas de estados e municípios. 

A idéia consiste em viabilizar a participação da sociedade nos trabalhos legislativos. A comissão recebe idéias enviadas por organizações da sociedade, sem a necessidade de coleta de assinaturas, e as aprecia. Aprovadas nas reuniões internas, as proposições passam a tramitar normalmente, como uma proposta parlamentar comum. 

Escolas de política e educação para a cidadania


O que essas experiências brasileiras apontam é que a implementação de tais ferramentas torna-se verdadeiras escolas de cidadania à população participante, e o interesse se eleva de acordo com o funcionamento do mecanismo. Em Porto Alegre, por exemplo, aumentou muito o número de participantes a medida em que a sociedade notou a eficácia do instrumento. 

A percepção de que a política transcende o voto é fundamental, sendo a deliberação e a participação indispensáveis ao atendimento das modernas concepções de democracia. Em outros casos, como, por exemplo, a Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, o interesse ainda é pequeno, o que gera algumas distorções. 


A despeito dos ensinamentos que tais ferramentas oferecem aos cidadãos, temos um grande contingente que não reconhece a importância de tais mecanismos e, consequentemente, não procura participar. 

Nesse caso, é necessário pensarmos em um rigoroso programa de educação política. A sociedade não pode descobrir a importância da participação apenas na prática, pois muitos não têm a oportunidade, ou o interesse, de atuar. O papel do cidadão precisa ser revelado na escola, como forma de legitimar ainda mais as ferramentas participativas e a democracia como um todo. 

Algumas iniciativas educacionais são emblemáticas, mas alcançar o país como um todo exige um esforço ainda maior, exige um compromisso governamental. Humberto Dantas, doutorando em Ciência Política pela USP, professor universitário, consultor do Instituto Ágora do Eleitor e da Democracia e voluntário do Movimento Voto Consciente.

A participação popular na gestão pública no Brasil




A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 consagra-se uma nova ordem jurídica e política no país. 


A década de oitenta, considerada por muitos como uma década perdida do ponto de vista da economia, trouxe no campo social um conjunto de inovações que pretendem dar ao Estado brasileiro uma feição democrática sepultando, de uma vez por todas, as mazelas do regime autoritário. Sem a menor dúvida a Constituição Federal de 1988 pode ser considerada um marco da transição democrática brasileira.
As inovações consagradas na Constituição de 1988 colocaram o Brasil como um dos paises de legislação mais avançada, no que diz respeito à proteção aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais. 


Contudo, essas inovações tendem a não surtir o efeito esperado, na medida em que a sociedade brasileira desconhece seus direitos e em que proporção eles são protegidos pelo Estado, permitindo que setores conservadores façam "tábua rasa" das conquistas sociais presentes no texto constitucional.

Dessa forma, o primeiro passo a ser dado na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática é possibilitar ao cidadão o acesso à informação de em que medida seus direitos são protegidos pelo Estado e de que forma eles podem acionar o poder público na defesa desses direitos. Essa, sem dúvida nenhuma, é uma tarefa, também, da educação em nosso país qualquer que seja a sua origem (pública estatal, pública não-governamental ou privada). Essa tarefa está relacionada à noção de que a educação só é legitima quando se propõe a construir a cidadania em relação ao indivíduo e a democracia em relação à sociedade. Feitas essas considerações iniciais passaremos a discutir nas próximas linhas a participação popular, enquanto direito consagrado em nossa atual Constituição.
Para a professora Flávia Piovesana partir da Constituição de 1988, há uma redefinição do Estado brasileiro, bem como dos direitos fundamentais. Em seu preâmbulo, a Carta de 1988 define a instituição de um Estado democrático: "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]. Dentre os princípios que alicerçam o Estado brasileiro destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana conforme previsto no artigo 1º, incisos II e III.
Mais adiante, a Constituição de 1988 consagrou, entre seus princípios fundamentais, a "participação popular"na gestão pública como direito à dignidade da pessoa humana. Em seu artigo 1º, parágrafo único, o legislador constituinte, expressa o princípio da soberania popular pelo qual "todo o poder emana do povo" que o exerce através de seus representantes ou "diretamente", na forma estabelecida pela Constituição. Este princípio reúne as concepções de democracia direta e democracia representativa, de modo a somar seus efeitos em benefício da coletividade, objetivo final do Estado e da Administração Pública.
Para Dallari, a participação popular prevista na Constituição Federal de 1988 é um princípio inerente à democracia, garantindo aos indivíduos, grupos e associações, o direito não apenas à representação política, mas também à informação e à defesa de seus interesses. Possibilita-lhes, ainda, a atuação e a efetiva interferência na gestão dos bens e serviços públicos.
Essa noção de"participação popular" está intrinsecamente ligada à própria concepção de cidadania que está prevista em nossa Carta Magna que vai além da concepção liberal de titularidade de direitos civis e políticos, que reconhece o indivíduo como pessoa integrada na sociedade, onde o funcionamento do Estado estará submetido à "vontade popular", como base e meta essencial do regime democrático e do Estado de Direito. Nesse sentido, é que nossa Carta Constitucional é considerada por muitos uma Carta cidadã. Dallarirefere-se a esta questão da seguinte forma:
a participação popular significa a satisfação da necessidade do cidadão como indivíduo, ou como grupo, organização, ou associação, de atuar pela via legislativa, administrativa ou judicial no amparo do interesse público - que se traduz nas aspirações de todos os segmentos sociais.
Além desta norma genérica vários artigos da Constituição de 1988 prevêem a participação do cidadão na gestão pública, seja através da participação da comunidade, no sistema único de saúde e na seguridade social (art. 198, III e art. 194, VII); seja como, "participação efetiva dos diferentes agentes econômicos envolvidos em cada setor da produção" (art. 187,caput). E ainda, nos casos da assistência social e das políticas referentes À criança e ao adolescente onde a participação da população se dá "por meio de organizações representativas" (art. 204, 22).
Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela lei 8.069/90, dá conteúdo ainda mais preciso às inovações introduzidas na Constituição de 1988 no que diz respeito à participação popular na discussão de políticas públicas de proteção à criança e ao adolescente. Assim os Conselhos da Criança e do Adolescente – considerados obrigatórios seja a nível nacional, estadual ou municipal – "deverão ter assegurados a paridade entre organizações representativas da população e os órgãos do governo" (art.88,I).
Na área da saúde, a legislação federal introduz em todo o país a participação da sociedade na gestão pública, mediante conferências de saúde – órgão de caráter propositivo – e dos conselhos de saúde, a quem compete formular estratégias e controlar a execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros.
Ainda na esfera federal, a lei 9394/96 que institui as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pressupõe a participação do cidadão na gestão democrática do ensino público de acordo com as peculiaridades e conforme os seguintes princípios: 


I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; 


II- participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (LDB, art.14, I e II). Já a lei 9424/96, que dispõe sobre o fundo de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e de valorização do magistério (FUNDEF), diz que os recursos federais do FUNDEF serão objeto de controle social sobre a repartição, aplicação e transferência, junto aos respectivos governos, por conselhos a serem instituídos em cada esfera no prazo determinado pela lei (180 dias a contar da data da vigência da lei).
Por outro lado as Constituições Estaduais, por iniciativa de seus legisladores, diante do chamado "efeito dominó" estenderam a participação popular a diversas outras áreas, notadamente àquela referente ao monitoramento das políticas sociais. Na mesma trilha as leis orgânicas municipais contemplaram várias formas de participação direta do cidadão no planejamento municipal com destaque para os conselhos municipais, o orçamento participativo e as audiências públicas.
Neste cenário, o fato novo e de grande repercussão para os gestores públicos em geral, foi a entrada em vigor da lei complementar nº 101 de 04 de maio de 2000, lei de responsabilidade fiscal, que se aplica a União, estados e municípios estabelecendo o seguinte: deve haver ampla divulgação dos planos e do orçamento durante o processo de elaboração e discussão; os processos de elaboração das leis orçamentárias devem ser transparentes, isto é, claros, públicos, com incentivo à participação popular e a realização de audiências públicas (art. 48, § único); as contas deverão ficar disponíveis durante todo o exercício para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade (art. 49); para o acompanhamento e avaliação da gestão fiscal, a lei prevê a criação de um conselho fiscal, constituído de representantes de todos os poderes, inclusive, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade (art.67)


Por outro lado, é de se observar o surgimento de outras formas de participação direta ou semidireta no Brasil, com a criação de ouvidorias, e a instituição de serviços de apoio à participação popular (PROCON, defensorias públicas etc.) que ampliam o campo de incidência da participação popular.
Em síntese, extrai-se do sistema constitucional e infraconstitucional brasileiro os delineamentos de um Estado constitucional democrático mais conhecido como democracia participativa. Sem dúvida, a concepção que busca articular a democracia representativa com mecanismos de democracia direta é chamada de democracia participativa. Ela se opõe tanto à concepção pluralista de democracia (democracia direta), quanto, sobretudo, a uma concepção minimalista de democracia, que é denominada de "democracia legal" proposta pelos liberais.
Para Lyra só há participação popular efetiva quando existe democracia participativa, quando o cidadão pode "[...] apresentar e debater propostas, deliberar sobre elas e, sobretudo, mudar o curso de ação estabelecida pelas forças constituídas e formular cursos de ação alternativos [...]", ou seja, sempre que houver formas de o cidadão participar, decidindo, opinando, diretamente, ou de forma indireta, por meio de entidades que integra, a respeito de uma gama diversificada de instituições, no âmbito da sociedade (família, empresas, mídias, clubes, escolas etc.) ou na esfera pública (conselhos, orçamento participativo, plebiscito, referendo etc.).
Fica claro, portanto, que a democracia participativa não se confunde com a democracia representativa, embora possa coexistir perfeitamente com ela, como, aliás, ocorre no Brasil. Nas palavras de Lyra "[...] os constituintes optaram por um modelo de democracia representativa, com temperos de princípios e institutos de participação direta do cidadão no processo decisório governamental ".
Para Rocha um dos primeiros teóricos a falar da democracia participativa foi Macpherson. Ele considerava o regime soviético uma forma de institucionalização, ainda que falha, da democracia direta. Mesmo se o estudo do caráter dos regimes ditos socialistas está longe de ter avançado, poucos sustentariam hoje que eles tenham configurado algum tipo de democracia. Na verdade, muito pouco tem a ver as atuais experiências de democracia direta com os modelos conceituais formulados por Macpherson.
No seu livro A democracia liberal, Macpherson mostra-se favorável à democracia participativa, combinada com a representativa "um sistema piramidal com a democracia direta na base e a democracia por delegação em cada nível depois dessa base". Trata-se de um sistema de delegação seqüenciado para cima, com a organização de conselhos de cidades, da região, até o topo da pirâmide, com a organização de um conselho nacional. 
Em seu livro A ascensão e queda da justiça econômica, Macpherson se rende às dificuldades para a construção de uma democracia participativa nos moldes das democracias ocidentais, estimando que os grupos de pressão organizados na sociedade civil, não teriam condições de harmonizar a lógica interna de seu funcionamento e/ou defesa de seus interesses particulares, com o envolvimento de seus integrantes em práticas participativas voltadas para o bem comum. As formulações de Macpherson sobre o tema mostram-se bastantes defasadas da democracia participativa na atualidade. Em particular da que floresce no Brasil caracterizada pela rica diversidade de suas experiências.
Outra contribuição importante para a formulação da concepção de democracia participativa foi a teoria de Nicos Poulantz sobre a democracia direta formulada nos anos 70. Na perspectiva de Poulantz, a disseminação da democracia direta, sob a forma de focos embrionários de poder popular se confundiria com o desabrochar das instituições socialistas. Para Poulantz a transição do capitalismo para o socialismo consistiria em impulsionar a proliferação de centros de democracia direta, a partir das lutas populares que extravasam sempre, e de muito, o Estado.
No Brasil Weffort, afirma que a luta pela consolidação da democracia participativa em nosso país se torna uma estratégia, utilizada pelos movimentos sociais, ONGs, igreja etc. para efetivação da cidadania e, conseqüentemente, a instalação de uma sociedade mais justa e igualitária. Para aqueles que consideram a democracia um regime fundamental e a reforma um instrumento válido para a transformação social, a democracia participativa se constitui em ingrediente indispensável.
Por fim, podemos concluir que a participação veio a dar a tônica contemporânea da democracia no Brasil. Cumpre-se, portanto, examinar a participação popular enquanto requisito essencial à cidadania. Dentro dessa realidade e com base no texto da Declaração Universal de 1948, podemos fixar as linhas de um novo direito social em formação, representado pelo direito que tem cada pessoa a participar ativamente no processo de desenvolvimento de sua comunidade ou de seu município.

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GESTÃO PÚBLICA

O despertar da sociedade civil e a participação ativa de seus setores no processo de desenvolvimento da sociedade constituem fenômenos marcantes da história atual. A substituição das antigas formas paternalistas, autoritárias e clientelistas pelas práticas e processos democráticos, em que o cidadão passa a atuar, fiscalizar e tomar iniciativas, através de comunidades, grupos de múltipla atuação e movimentos sociais, passa a ser uma exigência àquelas sociedades que querem se considerar verdadeiramente democráticas, isto é, a substituição do paternalismo pela participação é um imperativo da moderna política social.
Ser cidadão não se trata apenas de receber os benefícios do progresso, mas de tomar parte nas decisões e no esforço para sua realização. Em lugar de ser tratado como objeto das atenções paternalistas dos donos do poder, o cidadão passa a ser reconhecido como sujeito histórico e protagonista no processo de desenvolvimento. Trata-se de uma exigência decorrente da natureza inteligente e responsável da pessoa humana. Na medida em que se queira respeitar a dignidade da pessoa humana, é preciso assegurar-lhe o direito de participar ativamente na solução dos problemas que lhe dizem respeito.
Dentro desse quadro, vimos que a Constituição de 1988 consagrou, entre seus princípios fundamentais, a participação popular na gestão pública como direito à dignidade da pessoa humana, determinando que o regime político no Brasil é não apenas representativo, mas, também participativo.
Contudo, o princípio da participação popular previsto em nosso ordenamento tem sido interpretado de várias maneiras pelos diversos atores sociais, seja através de estratégias de manipulação da opinião pública(populismo), seja para negar qualquer condição de institucionalidade à participação popular. Vejamos algumas dessas posições para ao final apresentar nossa concepção de participação popular.
As formas de participação popular podem ser classificadas com base em diversos critérios. Ferrier, adota o sistema correlativo às formas de exercício da democracia, e as divide em: Participação ideológica - é a participação mediata, visto que entre o administrado e a Administração Pública há um representante eleito que agirá em nome dos cidadãos perante o poder público. Aqui, o cidadão participa representado pelos parlamentares eleitos; Participação psicológica - ocorre normalmente em nível local (municipal), onde a distância entre o cidadão e o poder público é muito menor. 


Com isso, o particular tem maiores possibilidades e oportunidades de influenciar nas decisões da Administração Municipal e de pressionar para que elas sejam colocadas em prática. Por essa razão é que a descentralização e a autonomia municipal são de fundamental importância para a efetivação da participação popular. Aqui, de forma não institucionalizada, o cidadão tem um maior poder de influência junto à Administração da cidade; Participação direta - Nesse caso, não existe entre a administração e o cidadão um intermediário. 


O indivíduo, pessoalmente ou através de grupos ou associações representativas, interferirá na elaboração das leis, nas decisões administrativas e na gestão de bens e serviços públicos. Aqui, a participação da população na gestão do município ocorre de forma institucionalizada e concreta, através de mecanismos legais.
Por sua vez, a professora Maria Silvia Zanella Di Pietro divide as formas de participação popular em duas grandes modalidades: formas de participação direta, como, por exemplo, a iniciativa popular legislativa, o referendo, o plebiscito; e formas de participação indireta, como a participação por meio de ouvidor, ou através da atuação em conselhos. Outro critério de classificação corresponde às possibilidades de participação democrática dentro de cada um dos poderes do Estado definidos por Montesquieu. 


Com base nesse critério, pode-se conceber, uma estrutura como a que se segue: poder legislativo: a consulta prévia, as audiências públicas, iniciativa popular, plebiscito ou referendo; poder executivo: conselhos de gestão, direito de petição, ouvidor (ombudsman); poder judiciário: ação popular, representação ao Ministério Público e ação civil pública.
Maurizio Cotta, propõe quatro distinções que englobam as várias formas de participação concebidas, ou de alguma forma exercitadas, em alguns regimes políticos. 


A primeira, entendida na dicotomia - participação indireta (sentido amplo) e participação direta (sentido estrito). A participação indireta abarca todas as manifestações do cidadão no sentido da incorporação ao sistema político, desde os atos eleitorais até ações que visam a definir orientações políticas dos órgãos de poder ou de controlá-los através de mecanismos de intermediação. 


A participação direta envolve a ação direta, sem intermediação, nas várias instâncias de decisão. A segunda visão é tida como alternativa à crise do sistema representativo, principalmente por movimentos de caráter comunitaristas, de base localista, que investem na virtude cívica dos cidadãos, minimizam a complexidade e diferenciação da sociedade contemporânea e propugnam o autogoverno como solução para todos os males.
Outra distinção apresentada por Cotta, diz respeito à participação orientada à decisão e à participação orientada à expressão; a primeira caracteriza-se pela intervenção de forma organizada no processo decisório e tem sido enfatizada, até pelos seus críticos, como elemento fundamental e definidor do conceito. A segunda, voltada para a expressão, ainda que possa apresentar impacto ou influência no processo decisório, tem o caráter, mais simbólico, de marcar presença na cena política e não é muito estudada pela ciência política.
Segundo Lima, a participação popular pode ser vista por dois enfoques básicos: o enfoque funcionalista e o histórico cultural. Do ponto de vista funcionalista, a participação da população seria considerada um meio de se obter apoio para programas oficiais de desenvolvimento social, uma vez que sem esta o programa não poderia se concretizar; ou um meio de se aproveitar melhor os próprios recursos da população. 


A partir desta abordagem, a participação é explicada pelas características culturais e sociais de indivíduo e grupos, que superariam a defasagem de participação através da organização e mobilização em programas de desenvolvimento, através da mudança de valores tradicionais para valores urbanos e modernos.
Nesta concepção, problemas sociais como saúde, emprego, moradia etc., são vistos como decorrentes da falta de integração da população à sociedade, por razões de ordem cultural como a ignorância, atraso, apatia etc., que devem ser superados com a introdução de programas sociais que incentivem a participação da população através da introdução de valores modernos e de tecnologia. 


O enfoque histórico-estrutural da participação popular privilegia a noção de estrutura econômica, política e ideológica nas formações sociais concretas, procurando, nas diferentes etapas históricas, as causas que geram a marginalidade e a participação. As relações de produção, assim como suas expressões ideológicas e políticas, são vistas como fundamentais para explicar as formas de participação social e cultural.
Para Dallari, ao falarmos em participação popular nas políticas públicas, devemos diferenciar a participação real da participação formal. A participação formal é a prática de formalidades que só afetam aspectos secundários do processo político. A participação real é aquela que influi de algum modo nas decisões políticas fundamentais.
A novidade, no Brasil, nos anos 80, é justamente a idéia de que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação organizada de seus segmentos. O processo de democratização trouxe à cena novos atores e questões na esfera das relações Estado-sociedade. Do lado da sociedade, torna-se visível a presença de uma diversidade de atores. 


Do lado do Estado, vai-se firmando sua dimensão de espaço de representação e pactuação. O processo de participação deixa de ser restrito aos setores sociais excluídos pelo sistema e pretende dar conta das relações entre o Estado e o conjunto de indivíduos e grupos sociais, cuja diversidade de interesses e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade espaço e atendimento pelo poder estatal.
O sociólogo basco Jordi Borja, referindo-se a esta questão, afirma a necessidade de uma tripla credibilidade do Estado democrático, honesto, eficaz, envolvendo representação em todos os níveis, descentralização, transparência nos seus gastos e abertura de diálogo. Considera o autor que a participação é antes um problema do Estado e de seu governo do que da sociedade.
Borja, analisando a crise do Estado europeu a partir dos anos 60/70, caracterizada pelo alargamento crescente do distanciamento entre representantes e representados, passa a afirmar que o grande desafio da esquerda seria o de reformar o Estado atual, no sentido da descentralização e da participação cidadã. Considerando que os parlamentares não dão mais conta de toda a diversidade presente nas sociedades contemporâneas o centro da crise situa-se na equação entre o aumento da expectativa em relação à plena cidadania e os mecanismos de decisão dominantes nas agências públicas.
A expressão "participação popular" foi, também, muito usada para descrever a ação desenvolvida pelos movimentos populares, sobretudo os urbanos, nas últimas décadas, em grande parte de caráter reivindicativo, ou de protesto. Esta visão colocava-se como antiestado embora tivesse o Estado como alvo de suas reivindicações, e a política concebida como ação apenas no cotidiano, sem nenhuma relação com o institucional. A reflexão teórica é substituída pela troca de experiências, com a idealização do saber popular.
Por outro lado, a expressão foi concebida com evidente sentido ideológico, em termos de privilegiar os segmentos sociais mais explorados principalmente urbanos, em detrimento de setores sociais definidos fora do campo popular.
Ademais, a expressão também foi utilizada por governos e organismos internacionais para envolver segmentos dominados da população em projetos e políticas governamentais, inclusive como estratégia de cobrir insuficiência de recursos, além de objetivos de manipulação ideológica, pretendendo conferir legitimidade a governos, ou mesmo na estratégia de privatizar certas atribuições até então conferidas ao Estado.
Diante disso, Rocha propôs a construção de um quadro teórico que agrupe as diversas concepções sobre participação popular em três categorias básicas de análise histórico-teórica das formas de representatividade da participação popular na gestão pública, a seguir resumidas, pretendendo, com isto, estabelecer as bases para reflexão sobre o tema:
a) Participação popular comunitária: a idéia da participação comunitária apareceu no início deste século, representando um novo padrão de relação Estado-sociedade no setor da educação, para dar respostas ao grave problema da relação entre pobreza e educação. Caracterizou-se por dirigir-se aos mais pobres, através das escolas comunitárias, por ressaltar os valores da educação, do trabalho e do coletivismo como caminhos do progresso. 


Para estas concepções a comunidade era definida como social e culturalmente homogênea, com identidade própria e uma suposta predisposição à solidariedade e ao trabalho voluntário de auto-ajuda. O Estado, por sua vez, estimula em muitos casos, a capacidade de a comunidade unir-se, organizar-se, esforçar-se, enquanto solução em si mesma. A população deixa de ser alvo inerte de uma ação controladora e passa a ser chamada a cumprir um papel minimamente ativo e consciente.
b) Participação popular contestatória: Nos anos 70, a participação passa a ter um sentido explícito de luta e contestação contra as limitações governamentais à tentativa de conquista da educação pelas classes populares. 


O espaço de participação ultrapassa os limites do setor de educação, alcança o conjunto da sociedade e do Estado e ocorre uma radicalização da prática ao se articular a mobilização dentro das instituições de educação, como as formas de luta, resistência e organização das classes populares. Para estas teorias, qualquer forma de aproximação com o Estado è vista como cooptação e o sentido da participação é o de acumular forças para a batalha permanente pela mudança geral do modelo existente.
c) Participação popular cidadã e o controle social do Estado: o Estado democrático e de direito reconhecem a necessidade de defender a sociedade contra os eventuais excessos no funcionamento da máquina estatal, através da divisão de funções entre os poderes e de mecanismos recíprocos de controle, em nome da sociedade. A novidade nos anos 80 é justamente a idéia de que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação organizada de seus segmentos. 


O processo de abertura política e redemocratização do país trouxe à cena novos atores e orientou a ação para a criação de espaços públicos não-estatais de pactuação e superação dos obstáculos pelo diálogo e pelo consenso. Do lado da sociedade, torna-se visível a presença de diversos atores sociais, cuja diversidade de interesses e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade espaço e atendimento pelo poder estatal.
Neste caso, a categoria central deixa de ser a comunidade ou o povo e passa a ser a sociedade civil organizada, tendo sua base na universalização dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, na ampliação da dimensão da cidadania e da democracia, e numa nova compreensão do caráter e do papel do Estado pós-moderno.
A construção destas categorias de análise nos permite ter uma melhor compreensão do marco referencial da participação de setores populares na definição das políticas públicas, revelando os estágios da reforma democrática do Estado brasileiro, que parece ainda estar em curso.
Entendemos que a dimensão atual da participação popular difere das duas primeiras acima mencionadas. Na verdade impõe-se a terceira concepção proposta, como sugere Telles : "requalificar a participação popular nos termos de uma participação cidadã que interfere, interage e influencia na construção de um senso de ordem pública regida pelos critérios da equidade e justiça".Entendemos por participação cidadã, a formulação apresentada por Borja  e Teixeira , como sendo:
O processo complexo e contraditório de relação entre sociedade civil, Estado e mercado. Neste processo, os atores redefinem seus papeis no fortalecimento da sociedade civil, através da atuação organizada dos indivíduos, grupos, associações, tendo em vista, de um lado, a assunção de deveres e responsabilidades políticas e, do outro lado, a criação e exercício de direitos, no controle social do Estado e do Mercado em função de parâmetros definidos e negociados nos espaços público.
Nesta perspectiva, a participação cidadã diferencia-se da participação social e comunitária, na medida em que não busca realizar funções próprias do Estado, como a prestação de serviços. Não se constitui, outrossim, na mera participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos, ou simples expressão de identidades. Essa dimensão da participação popular, própria da sociedade civil, é a que garante o exercício da democracia para além dos espaços formais de poder e da representatividade eleitoral. Esta perspectiva leva em conta os interesses do conjunto da população, em especial dos excluídos e dos pobres, e tenta refletir uma visão abrangente e integrada do território, da sociedade e das questões do desenvolvimento e que se volta estrategicamente para o médio e o longo prazo.
A participação cidadã é vista como um processo capaz de gerar uma nova dinâmica de organização social, fomentando a intervenção da população nas políticas públicas. Não se esgota dentro do projeto, mas relaciona-se diretamente com questões amplas, tais como democratização, equidade social, cidadania e defesa dos direitos humanos. Neste sentido, requer a democratização do poder sobre o uso de recursos financeiros e sobre a definição e implementação de políticas públicas.
Por fim, conclui-se que o sucesso da atuação do Estado, no que tange à consolidação da cidadania, está absolutamente condicionado à tarefa de reinventar a atuação estatal sob uma nova lógica e referência. Essa referência é a concepção inovadora de cidadania que põe como requisito essencial a participação do cidadão na gestão pública nos seus três níveis de atuação.
José Cláudio Rocha