"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 28 de setembro de 2013

O Direito está nas ruas, na lei ou na consciência?

Da voz das ruas à consciência e assim por diante: as falsas “ditricotomias”

Durante o affair “Embargos Infringentes”, forjou-se uma falsa “ditricotomia”: ouvir a voz das ruas ou a voz da lei (ou a consciência individual, do tipo “faço o que acho o certo”). Nada mais ficcional do que isso. Além do fato de que os ministros do STF por vezes sustentam uma tese e, em outras, a tese inversa. Veja-se, nesse sentido, o voto do ministro Roberto Barroso no MS 32.326 (caso Donadon), em que apelou textualmente, como motivo para não chancelar a existência de um Deputado presidiário, cumprindo pena de mais de 13 anos, em regime inicial fechado: “A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário”.

Dias depois, ao aceitar os Embargos Infringentes, disse o contrário: “A verdade não tem dono. A única coisa que um juiz pode fazer, em meio ao vendaval, é ser leal a si mesmo e ao Direito tal como ele o compreende. À sua consciência.” Ou seja: antes, a indignação cívica é fundamento; logo depois, não mais o é.

Só por aí já poderia desenvolver páginas e páginas. Veja-se que o ministro Celso de Mello, por exemplo, para sustentar seu voto de desempate e, com isso, “anunciar” a vitória da lei sobre a voz das ruas, disse que o STF deve ficar imune às pressões das ruas e ater-se apenas à tecnicidade da lei. OK, mas, o que é isto, a tecnicidade da lei? A lei tem vida própria? O Direito é feito de “normas gerais” que contém de antemão todas as respostas?

Vários artigos foram publicados nas redes sociais, contendo argumentos com perguntas do estilo “o STF deve julgar pela consciência, pelas ruas ou pela lei?”. Por que essa “ditricotomia” (ou contraposição) é falsa? O professor Marcelo Cattoni, da UFMG, e eu vimos discutindo isso há muito tempo. Com efeito.

As oposições “voz da lei versus voz das ruas” ou “voz da consciência versus voz das ruas”, ou ainda, “voz da lei versus voz da consciência”, são reducionistas e fragilizam o Direito. É como discutir se a legitimidade vem do pluralismo das ruas ou simplesmente do direito posto pelo parlamento (ou pelo STF, no seu Regimento Interno) ou pelas consciências dos intérpretes autênticos (ou inautênticos). Com efeito, se é certo que o Direito não deve ser reduzido à vontade não-mediada institucionalmente de maiorias e/ou minorias conjunturais, por outro não pode ser reduzido à mera estatalidade político-burocrática, muito menos àquilo que dizem que ele é (Realismo Jurídico). Afinal, as decisões estatais no Estado Democrático de Direito só são válidas se garantirem suas pretensões democrático-constitucionais.

É claro que todo o Direito é público, não resta dúvida quanto a isso. Mas o público não se reduz ao estatal, no Estado Democrático de Direito, e está numa relação pública de complementaridade e interdependência entre público e privado.

Assim é que a coerência normativa exigida pela integridade do/no direito é de princípios (exigências do hoje), e não meramente de regras (convenções do passado). Disso se pode dizer que, se o Direito não nascer na(s) rua(s), se a legalidade não nascer também das reinvindicações populares, a partir de demandas sociais diversas, e não se sustentar com base em razões que sejam capazes de mobilizar os debates públicos, pela atuação da sociedade civil e dos setores organizados da sociedade, e assim, sem uma perspectiva generalizada, universalizada, instaurada pelas lutas por reconhecimento e por inclusão social e econômica, não ganhar os fóruns oficiais do Estado, não ganhar o centro do sistema político, e não se traduzir em decisões participadas, como falar em legitimidade democrática?

Dito de outro modo: é na mediação discursiva entre a informalidade e a formalidade, garantida num nível institucional pelos processos deliberativos constitucional e democraticamente institucionalizados, legislativos, administrativos e jurisdicionais, que o poder político/jurídico é gerado comunicativamente e a legitimidade é gerada através da legalidade...

Portanto, já de pronto afasto essa “ditricotomia”, pela incindibilidade entre direito e fatos e entre interpretação e aplicação. Mas, quero avançar. E enfrentar outra questão que corre paralela.

Legalistas versus pragmatistas?

Leio em O Globo artigo de Eduardo Jordão e Diego Werneck Arguelles, intitulado O STF observado. O artigo é interessante, porque critica o modo como as votações são conduzidas, como, por exemplo, ocorre a incidência da pressão da opinião pública. Os articulistas mostram a instabilidade dos compromissos dos membros do STF, verbis: “Legalistas convictos buscam soluções muito além do texto da lei. Históricos pragmáticos, orgulhosos de sua flexibilidade e bom senso, tratam as palavras da lei como se delas não pudessem se desvencilhar”.

Tenho “batido” nessa tecla de há muito. Tenho denunciado essas “idas e vindas” nas posições dos ministros (e não só deles). Por vezes, a letra da lei... em outras, os limites semânticos são implodidos... Em todos os meus livros denuncio essa problemática. Mas não se trata apenas de opor, como de certo modo fizeram os dois articulistas, “legalismo versus pragmatismo”, até porque não há dados consistentes acerca de quem são os “legalistas” e quem seriam os “pragmatistas”. Isso seria simplificar a discussão. Seguramente, há munição para os dois lados, afinal, o decisionismo é um animal camaleônico e imprevisível. Ele usa o Anel de Giges (quando quer, desaparece sem deixar rastros). É o predador implacável da integridade e coerência do Direito. E sem integridade e coerência dos intérpretes, de nada serve a Constituição. Talvez fosse isso que os articulistas quisessem dizer. O que deve ser frisado é que há algo mais profundo e que esconde essas falsas “ditricotomias” “consciência versus voz das ruas versus lei.

Refiro-me à ausência da discussão acerca de uma teoria da decisão. Ou seja, para além do problema de “como se interpreta”, que por si já é um problema (basta ver o uso abundante da metodologia de Savigny misturada com componentes da jurisprudência dos valores e dos interesses), tem-se a questão de “como se decide”. Dessa arte, quero registrar, de novo, que toda essa problemática da fragmentação das decisões — e, portanto, da falta de coerencia e integridade detectável nessas idas e vindas entre “legalismos e pragmatismos” — advém do fato de que recepcionamos equivocadamente (no mínimo) cinco teses ou posturas, conforme explitei na coluna passada (clique aqui para ler).

Mas é a quinta recepção que me parece a mais perigosa, porque demonstra uma algaravia mais explícita, uma espécie de “flambagem transteorética”. Refiro-me à mera tentativa de superação do tal “legalismo” exatamente por posturas pragmáticas ou proto-pragmáticas, algumas delas envernizadas sob o rótulo de neoconstitucionalismo, em que simplesmente se (re)coloca a moral no direito a partir dos princípios entendidos como...valores. Bingo. E o resultado é desastroso, ou seja, na medida em que a moral é contingente, cada juiz ou membro de tribunal “repõe” a moral no Direito a partir de seus pressupostos pessoais (donde a minha crítica à questão da “consciência”...!). Despiciendo lembrar que há centenas de dissertações, teses e livros que caem nessa armadilha.

Veja-se que para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica “o caminho” para a interpretação, colocando a consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa “metodologia” de vários modos. Ou seja, criou-se uma falácia naturalizada, pela qual é “normal” que o judiciário decida conforme o que cada membro pensa a respeito do direito...

E isso “aparecerá” de várias maneiras, como na direta aposta na:

a) interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”;
b) interpretação como fruto da subjetividade judicial;
c) interpretação como produto da consciência do julgador;
d) crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores” a partir de seus “valores”;
e) razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador;
f) crença de que “os casos difíceis se resolvem discricionariamente”;
g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes proporciona(ria)m uma “abertura se sentido” que deverá ser preenchida e/ou produzida pelo intérprete.

Sigo, então. Por vezes, parece — e isso me preocupa sobremodo — que pesquisadores do Direito resvalam na aceitação-institucionalização da “vontade” como fundamento da decisão (por exemplo, quando se coloca frente a frente “legalismo e pragmatismo”, já se está, inexoravelmente, no olho do furacão). Algo do tipo “já-que-os-ministros-decidem-como-querem, segundo-e-seguindo-suas-ideologias-e/ou-preferencias-pessoais-ou-as-respectivas-consciências (seja lá o que isso quer dizer)”, temos (nós, a doutrina) que estudar essas suas preferencias para argumentarmos estrategicamente... Ou, ainda, “devemos nos limitar a produzir as melhores condições para a livre emanação da vontade do intérprete, ou entender os momentos inoportunos para sua manifestação...”.

Assim, se o juiz ou ministro gosta de estrogonofe, devemos fazer de tudo para que a ele seja servido esse prato no dia do julgamento. Se ele torce para o Flamengo, não devemos pedir liminar no dia seguinte à demissão do Mano Menezes... Peço que me incluam fora dessa. Se a aplicação do Direito é um ato de vontade, ele não é mais Direito. É um jogo de poder. E nesse banquete, a choldra fica de fora. Só participam os do andar de cima, os que tem acesso à katchanga (real). Como somos paradoxais no Brasil, pois não? Falamos tanto em democracia e, no entanto, ao fim e ao cabo, jogamos tudo nos braços da moral, da política e da economia.

Do Direito, nada resta. Aliás, para quem não entendeu isso ainda: quem sustenta que a interpretação jurídica é um ato de vontade ou coisa do tipo “a decisão está na consciência do intérprete”, está dando um tiro no pé... a não ser que o defensor da ideia tenha o poder de decidir. Se, por exemplo, um advogado pensa assim, a pergunta que deve ser feita ao causídico é: para que você serve, afinal? O mesmo se deve perguntar a quem escreve ou tem pretensões doutrinárias... Afinal, se tudo se resolve na consciência ou na vontade do sujeito-intérprete, tudo o que você fizer será supérfluo. Peço perdão pela minha rudeza. Não quero retirar a ilusão de tanta gente...

Sigo. E o faço para dizer que, pensar que a decisão judicial é (ou não passa de) um ato de vontade (de poder), é, sem tirar nem por, dar razão à Kelsen (na parte da aplicação do direito, ou seja, no “andar de baixo” de sua teoria — peço, encarecidamente, que os leitores leiam as poucas páginas do famoso 8º capítulo da Teoria Pura do Direito). E é também dar razão a juristas como Richard Posner, um pragmati(ci)sta da cepa, que odeia princípios e acha que a autonomia do Direito não serve para nada. Só que isso transforma o Direito em uma mera racionalidade instrumental, algo à disposição do intérprete. Mais do que isso, trata-se da derrota da teoria do direito e a vitória da retórica (ou da mera retórica). O direito se transforma em um jogo de cartas marcadas, como já denunciava Warat há décadas.

Decisão é, mesmo, um ato de vontade?

Vou tentar mostrar isso de outro modo. Há algum tempo, fiz um debate com o penalista da escola crítica do Direito Penal brasileiro, o estimado Paulo Queiroz. Ele havia publicado um artigo (O que é direito?) que me assustou sobremodo, em que dizia: “sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade”.

E disse mais o penalista baiano: “parece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos condenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante fazê-lo”.

Veja-se: embora substancialmente a contribuição crítica de Queiroz seja inegável, neste ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas manifestações processuais de Promotores, Juízes e Ministros do STF. No livro O Que é isto – decido conforme minha consciência, rebato essa tese de Queiroz, que, aliás, não difere daquilo que o ministro Marco Aurélio tem dito acerca do interpretação do Direito (a de que a interpretação é um ato de vontade — por exemplo AI 252.347 e AI 218.668, ou seja, nem mais, nem menos do que diz Kelsen no 8º Capitulo de sua TPD).

Como contraponto, sustento que acreditar que a decisão judicial é produto de um ato de vontade (de poder) nos conduz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade pessoal (algo do tipo “se-o-juiz-quer-fazer,-faz; se-não-quer, não-faz...!). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada para além do querer de alguém...!

Eis o meu repto, meio solitário, bem sei. Tudo o que venho escrevendo serve para dizer: “Fujamos disso”! Aliás, a hermenêutica surgiu exatamente para superar o “assujeitamento” que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia da consciência... – ou a sua vulgata voluntarista!). Toda a minha aula de terça-feira à noite foi sobre isso: sobre o paradoxo que representa o Direito. Se se achar que a decisão é um ato de vontade de poder, então não deveríamos apostar no Direito. Deveríamos apostar na política, na sociologia, nas estratégias, na guerra, em qualquer coisa.

Ora, o Direito foi feito justamente para se opor e controlar o poder, a política, etc. Se ele for um instrumento de poder, pessoal ou coletivo, ele não é Direito... Ele é arbítrio. E arbítrio é o contrário de Direito. Por isso, ser jurista é ser otimista. Meu amigo Paulo Queiroz e os que pensam como ele (por exemplo, o ministro Marco Aurélio), são pessimistas. Fatalistas. Kelsen também foi um pessimista. Por isso ele relegou a aplicação do direito a um ato de segundo nível, a mera “política jurídica”. Não penso que deva ser assim. Ou sejamos todos políticos. Azar será daqueles que não tem poder... Se me entendem o que quero dizer!

Por que o Direito é, hoje, a soma de todos os nossos medos?

Ao longo dos anos, minha preocupação tem sido exatamente com o debate contemporâneo “democracia-constitucionalismo”. São compatíveis? Orgulhosamente, digo: Sim! Porque sou um otimista. Mas disso exsurge um dilema: para impedir que a jurisdição constitucional, pelo qual se controla a constitucionalidade, seja transformada em uma judiciariocracia, é fundamental que controlemos as decisões judiciais. Isso implica abandonar as teses que sustentam o poder discricionário (que não passa de um ato de vontade). Democracia e discricionariedade são incompatíveis. Daí que é espantoso — mas muito espantoso — que os projetos dos Códigos Processuais mantenham esses anacronismos (como, por exemplo, a livre apreciação da prova). É espantoso que se queira commonlizar o direito brasileiro sem uma adequada teoria que trate da decisão judicial.

Para ser mais claro e simples: de que adianta (ou de que adiantou) colocar na Constituição (e na legislação) as conquistas de todos os matizes se, no momento da concretização, dependemos da vontade individual ou de uma dada vontade individual (ou do que diz a consciência)?

Pergunto: tem sentido o país parar e ficar em suspenso esperando que um ministro desempate uma votação e não sabermos o que ele irá dizer? Suspense!

Pergunto: que Direito é esse que não nos fornece o mínimo de previsibilidade? Quer dizer que, se estivéssemos discutindo o aborto e o placar estivesse em 5x5, teríamos que ficar torcendo — dependendo de que lado estivéssemos — pelas crenças pessoais de sua excelência? Ou torcer para que seu almoço ou seu dia tenham sido do seu agrado? Torcer pela bondade dos bons?

Demo-cracia é isto? Mas, então, o que é isto, a democracia?

PS: se me perguntarem o que é isto, a dogmática jurídica dominante, respondo, em uma linha: é a soma de todos os nossos medos!

Felicidades. E boa sorte. De novo!

Lenio Luiz Streck 

TSE aprova criação do PROS e do Solidariedade

O Plenário do Tribunal Superior Eleitoral deferiu, na noite desta terça-feira (24/9), o registro de duas novas siglas partidárias, o Partido Republicano da Ordem Social (PROS) e o Solidariedade Nacional, respectivamente o 31º e 32º partidos brasileiros. Também por decisão dos ministros nesta terça, foi confirmado que a data de concessão dos registros é a mesma da ocorrência da sessão. Dessa forma, ambos os partidos estão aptos a lançarem candidaturas para as próximas eleições nacionais em 2014.

Nos dois casos, o deferimento se deu por meio da maioria de votos, prevalecendo a tese de que se a Secretaria Judiciária do TSE certificou o número de assinaturas necessárias para o registro, bem como reconheceu os demais requisitos formais para a criação das siglas, não cabe impugnar o pedido de criação de partidos. No primeiro julgamento da noite, acabaram vencidos os ministros Luciana Lóssio e Henrique Neves, que admitiram inconsistências nas certidões de apoiamento enviadas diretamente pelos cartórios à corte superior eleitoral, sem a supervisão dos Tribunais Regionais Eleitorais.

Apesar do processo de certificação de assinaturas para fundar o PROS ter passado por novas diligências e do voto favorável da relatora do processo, ministra Laurita Vaz, que ratificou a contabilização do número de assinaturas, Luciana Lóssio manifestou preocupação quanto a suposta ocorrência de duplicidade de assinaturas, sobretudo naquelas certidões que advinham de um mesmo cartório eleitoral. Lóssio foi acompanhada de Henrique Neves, que ajustou seu voto também em favor da abertura de novas diligências, sugerindo, assim, que as certidões enviadas pelos cartórios fossem reencaminhadas e acompanhadas da devida lista de assinaturas.

O ministro Dias Toffoli criticou o entendimento, dizendo que  o TSE se ocupava de uma decisão meramente administrativa e que não cabia, portanto, por em dúvida a fé pública dos cartórios que certificaram as assinaturas. Toffoli disse confiar nos servidores da Justiça eleitoral e que o modelo brasileiro para eleições é o mais seguro de todo o Ocidente. "Estamos verificando outro requerimento, em que o partido Rede alega que a Justiça eleitoral foi rigorosa demais apesar de terem coletado 30% a mais das assinaturas necessárias. Relatam ainda que mesmo os fundadores do partido tiveram a certificação de suas assinaturas questionadas", disse Toffoli. "Isso mostra que a Justiça eleitoral não tem sido conveniente ou facilitadora na análise desses apontamentos, pelo contrário, tem agido com rigor".

A ministra Cármen Lúcia também questionou o fato de os ministros vencidos colocarem em dúvida o "princípio da confiança". A presidente do TSE chegou a dizer aos colegas que a relatora do processo, ministra Laurita Vaz, passou o final de semana trabalhando arduamente a fim de verificar se, de fato, as exigências legais foram cumpridas.  Cármen Lúcia disse "não entender" o porque dos colegas desconsiderarem o resultado apurado pelas diligências até aquele ponto, favoráveis à certificação e  à consequente contabilização das assinaturas.

Já o deferimento do registro do Solidariedade, partido fundado pelo sindicalista Paulinho da Força, foi mais apertado, com uma maioria de quatro votos a três. Ficaram vencidos o ministro Marco Aurélio - que reiterou sua posição de aceitar somente as certidões validadas pelos TREs - e Luciana Lóssio e Henrique Neves, que novamente recomendaram a realização de diligências. Os ministros votaram para que as certidões que tivessem lacunas de preenchimento, ambiguidades e inconsistências fossem reencaminhadas à corte com a lista das assinaturas coletadas.

Relator do processo de concessão de registro do Solidariedade, o ministro Henrique Neves reconheceu irregularidades formais em algumas certidões, mas afastou as alegações de fraude. Para o ministro, nada impede que investigações policiais apurem as acusações e que um inquérito seja aberto, mas que não cabia, dentro de uma atribuição administrativa, por em dúvida a fé pública dos cartórios. No entanto, o relator reconheceu inconsistências em uma série de certidões, recomendando a realização de diligências.

Porém, a maioria dos ministros entendeu que era necessário manter a coerência em relação a decisões anteriores, respeitando os precedentes do tribunal ao deferir o registro de outros partidos. "Podemos colocar em dúvida as certidões dos juízos eleitorais?, questionou a ministra Laurita Vaz.

Vencido, o ministro Marco Aurélio chamou a atenção para a "dualidade" provocada pelo fato de o TSE aceitar tanto as certidões de apoiamento validadas pelos TREs quanto o modelo daquelas encaminhadas diretamente pelos cartórios das zonas eleitorais. "Veja a dificuldade que o TSE tem ao fazer as vezes de [tribunais] regionais, tendo que conferir a validade das certidões", protestou.

Rafael Baliardo 

As causas da proliferação de partidos políticos

O sistema eleitoral brasileiro vem mantendo sua habitualidade em contrariar a vontade da sociedade brasileira, que, já cansada da multiplicidade de partidos políticos sem identidade e sem qualquer representatividade, novamente foi surpreendida pela prática do “vale tudo” para a aquisição de parlamentares, com a criação de dois novos partidos.

Lamentavelmente, porém, isso só se tornou possível a partir de alteração jurisprudencial recente do Supremo Tribunal Federal na interpretação dos princípios da soberania popular e da democracia representativa, com reflexos na divisão de recursos do fundo partidário e do acesso gratuito ao rádio e televisão (ADI 4.430/DF e ADI 4.795 MC/DF, rel. min. Dias Toffoli, decisão: 27, 28 e 29 de junho de 2012). Por esse novo posicionamento majoritário do STF, os parlamentares que se filiarem aos recém-criados partidos levam consigo o tempo correspondente ao direito de arena e os valores relativos ao fundo partidário (‘portabilidade’).

Entendemos que no julgamento das ADI 4.430 e 4.795, o Supremo Tribunal Federal acabou afastando o absoluto e incondicional respeito à vontade do eleitor depositada nas urnas em um sistema eleitoral partidário de representação proporcional, por lista aberta uninominal, que deveria reger todo o sistema político, inclusive, no tocante a distribuição dos horários reservados à propaganda e ao fundo partidário.

Os parágrafos 2º e 3º, da Lei 9.504/1997, com a redação alterada pela Lei 11.300/2006, disciplinavam os horários reservados à propaganda em cada eleição, de maneira a ponderar os votos totais que a legenda recebeu nas últimas eleições. Isso por estabelecer como critério principal para a divisão do horário eleitoral, a representação de cada partido na Câmara dos Deputados resultante da eleição. Ou seja, leva-se em conta a totalidade do conjunto de votos que cada partido político recebeu em sua lista aberta, de maneira a contabilizar a somatória dos votos somente em legenda com os votos dados diretamente aos seus candidatos. Assim, o critério adotado com base na representatividade democrática de cada partido foi sua representação na Câmara dos Deputados resultante da eleição.

Esse critério adotado pelo Congresso Nacional respeitou os “princípios obrigatórios que informam o ordenamento constitucional” (MS 26.604), como salientado pela ministra Carmen Lúcia, e atende ao princípio da razoabilidade, ao consagrar como requisito principal para a divisão do tempo de propaganda eleitoral (direito de arena) o “desempenho eleitoral passado” dos partidos políticos, ou seja, o “o resultado obtido nas eleições”.

O reconhecimento da razoabilidade na fixação desses critérios pelo Congresso Nacional havia sido realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em duas oportunidades anteriores (ADI 1.408 e ADI 1.822), ao decidir que o substrato normativo da matéria referente à distribuição da propaganda eleitoral gratuita — o denominado direito de arena — é constitucional (CF, artigo 17, parágrafo 3º), tendo, porém, o Legislador Constituinte Originário delegado ao Congresso Nacional sua regulamentação por meio de lei ordinária.

Igualmente, o posicionamento anterior de nossa Corte Suprema, nas citadas, ADI 1.408 e ADI 1.822, foi no sentido de que os critérios adotados pelo legislador ordinário atenderam aos princípios da igualdade e razoabilidade. Sendo eles: a) distribuição de fração menor de tempo de propaganda eleitoral gratuita de rádio e televisão a todos os partidos políticos (atual inciso I, do artigo 47 da Lei 9.504/1997); b) distribuição de fração maior de tempo de propaganda eleitoral gratuita de rádio e televisão a todos os partidos políticos (atual inciso II, do artigo 47 da Lei 9.504/1997) a partir do “desempenho eleitoral passado”, ou seja, a partir do “resultado eleitoral”, por respeito ao princípio da soberania popular e ao nosso sistema eleitoral de partidos políticos.

Esse foi o posicionamento de nossa Corte Suprema, no julgamento da medida liminar da ADI 1.408-1/DF, em que se negou o pedido de concessão de medida liminar (Plenário, 15/2/96), para suspensão do então artigo 57, da Lei 9.100/95. Ficou decidido, por ampla maioria (9 votos a 1), que a distribuição dos períodos de propaganda eleitoral gratuita em função do número de representantes de cada partido na Câmara Federal estabelecido pelas urnas não feria o princípio da isonomia, tampouco caracterizava “generalidade normativa”. Conforme salientou o ministro Francisco Rezek: “quanto ao princípio da isonomia, é de ver que os partidos políticos são profundamente desiguais e desigualmente devem ser tratados, sobretudo no que concerne ao tempo de uso gratuito de televisão, durante o qual consumirão as energias daqueles que se entregam a tarefa de assisti-los e de compará-los para formular suas opções de voto. Essa desigualdade não é congênita, nem é produto de desenho legislativo algum: é uma desigualdade que as urnas determinam, e que há de ser vista com respeito pelo democrata”.

Igualmente, em seu voto, o ministro Sepúlveda Pertence salientou a necessidade de análise de “uma colisão de valores a considerar”, entre eles: “o significado e a inserção já demonstrados do partido no eleitorado, que necessariamente hão de ser medidos por algum índice de desempenho eleitoral passado de cada um”.

Na ADI 1.822, em que igualmente foi impugnado o critério escolhido pelo Congresso Nacional para a divisão do horário eleitoral gratuito de rádio e televisão, especificamente tendo sido arguidas as inconstitucionalidades da então redação do inciso I e do inciso II do parágrafo 2º, e os parágrafos 3º e 4º, todos do artigo 47 da Lei 9.504/1997, decidiu o Supremo Tribunal Federal, por votação unânime, não conhecer da referida ação direta de inconstitucionalidade, que pretendia retirar do ordenamento jurídico o critério escolhido pelo Congresso Nacional. Ficou entendido que: “quanto ao primeiro pedido alternativo sobre a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei 9.504/1997 impugnados a declaração de inconstitucionalidade, se acolhida como foi requerida, modificar o sistema da lei pela alteração do seu sentido, o que importa sua impossibilidade jurídica, uma vez que o Poder Judiciário, no controle de constitucionalidade dos atos normativos, só atua como legislador negativo e não como legislador positivo”.

Dessa forma, por unanimidade de votos, nossa Suprema Corte não declarou a inconstitucionalidade do então previsto pelos parágrafos 2º e 3º, do artigo 47 da Lei 9.504/1997. No citado julgamento da ADI 1.822, salientou o ministro Marco Aurélio a impossibilidade do Poder Judiciário alterar a escolha do critério feito pelo Congresso no tocante a distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita de rádio e televisão. Idêntico foi o entendimento do ministro Sepúlveda Pertence, para quem não seria possível conceder interpretação no sentido de entender inconstitucionais os critérios estabelecidos pelo Congresso Nacional.

O posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria sempre havia sido de prestigiar a opção do Congresso Nacional, desde que atendesse os princípios da igualdade e razoabilidade, fortalecendo o desempenho eleitoral passado, sem qualquer discriminação, com absoluto e irrestrito respeito ao princípio da soberania popular, instrumentalizado no Brasil pelo princípio da democracia representativa, em um sistema eleitoral proporcional de partidos políticos para as eleições da Câmara dos Deputados.

Assim, o sistema de representação proporcional consagrado pelo Constituição Federal e disciplinado pela legislação ordinária adota o escrutínio de lista ou voto de legenda nos partidos políticos, que depende, para sua efetiva implementação, de prévia definição do legislador ordinário no exercício do poder de regulação que lhe foi atribuído pelo ordenamento constitucional — que o fez por intermédio da Lei 9.504/1997.

No sistema eleitoral brasileiro o eleitor exerce sua liberdade de escolha para a Câmara dos Deputados apenas entre os candidatos registrados em partidos políticos. Isso porque a eleição é realizada pelo sistema de representação proporcional, por lista aberta, uninominal, sendo que o primeiro destinatário do voto é o partido político viabilizador da candidatura por ele oferecida e a distribuição de cadeiras obtidas é realizada entre os Partidos Políticos, a partir da votação.

Não há dúvidas de que, nos termos do parágrafo 3º, do artigo 17 da Constituição da República Federativa do Brasil, os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e televisão, na forma da lei, porém respeitando-se de maneira absoluta e incondicional a vontade do eleitor depositada nas urnas em um sistema eleitoral partidário de representação proporcional, sob pena de subvertermos as regras da democracia representativa, desconsiderarmos as votações obtidas nas eleições e permitirmos lamentáveis episódios de verdadeiros “leilões” para obtenção de filiações de parlamentares aos novos partidos.

A medida de representatividade de cada partido político, com a consequente divisão do direito de arena e do fundo partidário, necessita de um critério objetivo que somente pode estar pautado no resultado pretérito obtido nas urnas, ou seja, na vontade popular.

Alexandre de Moraes 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Marina e as regras do jogo

“Coloque o dedo na ferida: sem as assinaturas é uma esperança vã, impossível de frutificar”. A frase, do ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma potencial sentença de morte para a Rede, a “vã” esperança partidária de Marina Silva.

Marco Aurélio tem razão quando põe o dedo na “ferida” jurídico-administrativa, mas a “ferida” política está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade partidária. Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir, hoje, fundar um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples apresentação de um estatuto? Isso é liberdade partidária — algo que não temos pois a elite política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos políticos.

A Constituição de 1988 consagrou a estatização dos partidos, refletindo um consenso de nossa elite política. Os partidos oficiais adquiriram o curioso direito de avançar sobre o bolso de todos os cidadãos, extraindo-lhes compulsoriamente os recursos que financiam o Fundo Partidário e as propagandas partidária e eleitoral nos meios eletrônicos de comunicação. Em 2012, as dotações do orçamento federal para o Fundo Partidário somaram R$ 286,2 milhões. Nós todos pagamos R$ 850 milhões, em 2010, sob a forma de compensações fiscais às emissoras de tevê e rádio, pela transmissão dos horários cinicamente rotulados como “gratuitos” e utilizados pelos partidos.

O projeto do PT de reforma política, que almeja introduzir o financiameno público de campanha, tem a finalidade de expandir ainda mais a transferência de recursos da sociedade para os políticos profissionais.

A Justiça Eleitoral é, ao lado da Justiça do Trabalho, uma das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma democracia precisa de tribunais para organizar eleições, missão que pode ser cumprida por meros órgãos administrativos. A razão de ser de nossos tribunais eleitorais encontra-se no princípio anti-democrático da subordinação dos partidos ao Estado. O aparato judicial especializado desempenha a função de identificar os partidos que cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro dos cidadãos — e, eventualmente, disputar eleições.

“Não cabe estabelecer critério de plantão para esse ou aquele partido”, explicou Marco Aurélio referindo-se à Rede, antes de concluir com a inflexão típica do juiz que zela pela igualdade de direitos: “Abre-se um precedente muito perigoso”.

De fato: os princípios da liberdade partidária e da estatização dos partidos são inconciliáveis — e, para preservar o segundo, nosso ordenamento político sacrifica o primeiro, sem jamais abrir perigosos precedentes.

Os partidos estatais formam um dos pés do tripé que sustenta um sistema político avesso ao interesse público e orientado para a corrupção sistemática. O segundo pé são as coalizões em eleições proporcionais, um expediente de falsificação da vontade do eleitor destinado a conferir viabilidade a partidos que não representam ninguém mas acomodam frações periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de loteamento político da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência, apenas na esfera federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação.

A privatização do Estado é o outro lado da moeda da estatização dos partidos políticos. “Não tem conversa, a lei é peremptória”, enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral Eleitoral, alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante do pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como fiadora burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir mão da coerência do conjunto do sistema.

No balcão cartorial do Estado brasileiro, registrar partidos é um negócio tão lucrativo quanto fundar sindicatos ou igrejas. PTC, PSC, PMN, PTdoB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB, PPL, PEN — a sopa de letrinhas das legendas oficiais vazias produz a falsa impressão da vigência de ampla liberdade partidária. Aplicando sua inteligência à produção de sofismas, Marco Aurélio argumentou que a ausência da Rede não prejudicaria as eleições de 2014 pois, afinal, o país não carece de partidos. Na esfera exclusiva da lógica burocrática, o ministro tem razão: todos poderão votar em partidos que não representam ninguém, mas cerca de um quarto do eleitorado experimentará a impossibilidade de sufragar a candidata de sua preferência. De certo modo, o Irã é aqui.

Marina e os seus não aprenderam direito as regras do jogo, explicam nos jornais os ínclitos políticos fundadores de legendas de aluguel e seus advogados especializados nos “negócios do Brasil”. Mas, como atestado de uma devastadora crise política e moral, ninguém pergunta aos representantes de nossa elite política sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás, centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua frustração e sua ira com um Estado hostil à sociedade.

Depois disso, o Supremo Tribunal Federal decretou que os políticos de sangue azul se distinguem dos cidadãos comuns pelo privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior Eleitoral prepara-se para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto de um quarto dos brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se um fosso ameaçador, quase intransponível.

Nos círculos próximos a Marina, comenta-se que ela não aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma legenda de negócios. Numa hipótese viciosa, o gesto de desistência configuraria uma rendição disfarçada por discursos de indignação — e Marina contrataria um despachante astuto para viabilizar a Rede no horizonte de 2018. Por outro lado, na hipótese virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de partida para uma “anticandidatura” de mobilização da sociedade contra a estatização dos partidos e a privatização do Estado. Estou sonhando?

Demetrio Magnoli

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Juiz deve considerar opinião pública ao julgar

Na última sessão do Supremo Tribunal Federal, em que foi apreciada a Ação Penal 470, repercutiu o debate — ainda que respeitoso — entre os ministros Marco Aurélio e Luís Roberto Barroso.

O mais novo juiz da corte, ao sustentar sua posição foi ousado: “Faço o que acho certo, independentemente da repercussão. Não sou um juiz que me considero pautado pelo que vai dizer o jornal do dia seguinte. Sou pautado pelo que considero certo”.

Ao longo do debate, Barroso reafirmou a sua indiferença à opinião alheia: “Nós não julgamos para a multidão, nós julgamos pessoas”, acrescentando: “Eu não estou subordinado à multidão, estou subordinado à Constituição”.

A troca de conceitos havida naquela oportunidade serviu para demonstrar os princípios em que se inspiraram os dois julgadores nos votos proferidos.

A posição assumida por Marco Aurélio Mello foi no sentido de que “é preciso ter cuidado com a repercussão dessa decisão nos jovens juízes”. Foi como se tivesse a afirmar que o critério que vier a prevalecer ao final do julgamento, deverá servir de bússola aos novos magistrados quando se depararem com situação conflitante, como ocorreu na ação em julgamento.

Deste desencontro de manifestações emerge a seguinte dúvida: o que representa a opinião pública numa querela judicial? Até que ponto estará o juiz vinculado ao que pensa o homem da rua, diante dos fatos que, por se tornarem controvertidos, reclamam a palavra final do Judiciário?

Na advertência sempre atual de Rui Barbosa, “A primeira lição de moral política, que convém ao povo, é que a justiça abstrai das pessoas e paira, independente, sobre as mais altas, como sobre as mais humildes individualidades”.

Nessa primorosa reflexão, o notável baiano defendeu a existência de um permanente compromisso que o juiz tem para com o povo ao pronunciar o seu veredito. Sem esta vinculação não há como aceitar as decisões judiciais, seja qual for aquele que vier a ser atingido pela sentença proferida.

O velho refrão de que “o julgador deve ser escravo da lei”, há muito perdeu o seu significado, diante do que prescreve a Lei de Introdução ao Código Civil, ao dispor que: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (artigo 5º).

Destarte, aceitar obstinadamente a proposta do ministro Barroso de que o seu compromisso é somente com a Constituição, importa em manifesto desprezo à obrigação que tem o julgador de considerar os fins sociais da norma aplicável e o que dela espera todo cidadão, para que possa atender “as exigências do bem comum”.

O Brasil, no regime militar, conviveu com duas cartas outorgadas impostas ao Judiciário, que procurava resistir aos seus ditames. Isto aconteceu num período de abastardamento das garantias democráticas, ditado pelos Atos Institucionais que acarretaram opressões iníquas e muito sangue derramado.

Como, então, admitir, na vigência da Constituição Cidadã, que Ulisses Guimarães exaltou, o desprezo pelas multidões, a indiferença pelo que será noticiado no jornal do dia seguinte.

Acolher passivamente as ilações do ministro Barroso equivale a ignorar o peso da opinião pública, decorrente de um fenômeno social, ainda que cada indivíduo esteja sendo impactado por um processo dialético oriundo das diversas fontes de informação.

Independência de juiz não está condicionada a salário

Como relator do processo do mensalão, o ministro Joaquim Barbosa ganhou merecida notoriedade pelo denodo com que se houve na condenação de infratores de reconhecido prestígio político. Daí ter o seu nome sugerido, inclusive, para a presidência da República.

Recentemente, a imprensa noticiou que Barbosa entrará no panteão dos heróis nacionais, na série infantil Pequenos, grandes brasileiros, a ser publicada, em breve, pela Thesaurus editora. A coleção tem por objetivo levantar “exemplos para a juventude”. Será o único nome contemporâneo ao lado de Juscelino Kubitschek, Santos Dumont, Barão do Rio Branco e outros.

Mas, a despeito do prestígio granjeado em todas as camadas da população, o ministro tornou-se protagonista de alguns fatos que afetaram a sua imagem de autêntico catão dos dias atuais, pelo combate enérgico a prevaricação que assola o país.

Recebeu muitas críticas devido ao tratamento ofensivo a um repórter que pretendera entrevistá-lo. Num encontro com magistrados, que sustentavam a necessidade da criação de novos tribunais federais, cortou a palavra de um juiz que tinha opinião contrária à sua.

Nas diversas altercações que teve com o ministro Ricardo Lewandowski, a sua rispidez ultrapassou a razoável dissensão que possa ocorrer num colegiado. A esta altura, o presidente do STF tornou-se pródigo em despertar reações de amor e de ódio.

Em pleno turbilhão do aguardado desfecho da Ação Penal 470, Joaquim Barbosa defendeu o reajuste dos vencimentos dos ministros em mensagem dirigida ao Congresso. Sustentou que assim procedia para adequar os contracheques de seus pares “à realidade econômica do país”.

A questão da remuneração condigna não deixa de ser relevante no exercício da prestação jurisdicional. Ocorre que suscitar essa questão após o tumulto do mês de junho, numa fase de descrença generalizada com os Poderes da República, chega a ser uma temeridade.

Com efeito, havendo uma lei sancionada em 2012, estabelecendo que o reajuste do Judiciário será de 5% ao ano, Barbosa pretende ampliar esse aumento introduzindo um acréscimo de 4,6%, além do já concedido.

A vingar sua iniciativa, os ministros do STF perceberão, a partir de janeiro de 2014, R$ 30.658,42, o que importará em uma despesa de R$ 150 milhões ao ano. Este aditamento servirá de pretexto para deputados e senadores, que reclamarão o mesmo tratamento, por se considerarem com direito ao idêntico valor pago aos ministros do STF.

Ao ilustrar sua proposta, Joaquim Barbosa alegou que em Cingapura os membros da Suprema Corte percebem US$ 1,5 milhão por ano, o equivalente a R$ 275 mil por mês.

Valendo-se da informação recebida do ministro da Justiça daquela cidade-estado, Barbosa acrescentou que ali ninguém se opõe a esses valores, pois, se o julgador “não tiver remuneração desse nível, tendo em vista suas responsabilidades altíssimas, ele não terá como exercer com independência as atribuições do seu cargo”.

A comparação entre Brasil e Cingapura foi de extrema infelicidade, considerando-se o potencial econômico daquele tigre asiático e o país onde o salário mínimo é de R$ 678.

Convenhamos que a independência com que o juiz exerce a sua atividade não está condicionada ao que lhe é pago pelo Estado; mas sim ao zelo, à seriedade e ao respeito que deva ter pela própria função em que está investido.


Celso de Mello ultrapassou os limites do debate ao votar

Não fiquei perplexo. Sempre me acautelei em relação às vicissitudes das decisões judiciais, por mais respeitáveis que sejam.

Quanto ao voto de desempate proferido na Ação Penal 470, desde as primeiras palavras do culto ministro que o proferiu, convenci-me de seu apelo à letra do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, como de sua apatia à participação popular nas diretrizes de uma sociedade.

Ao referir-se à “pressão das multidões” e ao clamor das “maiorias eventuais”, inferi o seu desprezo à expressão “vox populi vox Dei”, adotada pelos filósofos da Idade Média, e à magistral conceituação de Rousseau: “A vontade geral é a única indicada para dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua instituição, que é o bem comum” (“Discurso sobre a Origem das Desigualdades”, 1793).

O mencionado voto afagou o conceito do ministro Luís Roberto Barroso, emitido na sessão anterior, de que o juiz não deverá impressionar-se com a avaliação que a imprensa fizer de seu pronunciamento.

Ocorre que, entre os gregos e romanos, o povo foi reconhecido como um poder capacitado a decidir os mais importantes assuntos do Estado.

O eminente julgador, que consagrou a validade do regimento interno, poderia fazê-lo, mas sem ultrapassar os limites do debate instaurado. O confronto no deslinde dos embargos infringentes cinge-se, somente, aos votos emitidos no Tribunal e à conclusão do pronunciamento de cada votante.

Não foi o que ocorreu. O decano da Corte, ao final de seu voto, externou, desde logo, a sua adesão ao intento do réu José Dirceu em submeter a decisão final do STF ao reexame da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Segundo afirmou, desde o pacto de San José da Costa Rica, a que o Brasil aderiu, vige a obrigação do nosso país cumprir o que for decidido naquela Corte, após esgotada a jurisdição interna.

Certamente, não ocorreu ao eminente julgador a advertência feita pelo presidente daquela organização, o jurista peruano Diego García-Sayán, que aqui esteve em março passado. Indagado quanto à fortuita reforma de uma decisão condenatória imposta pelo Supremo, foi incisivo ao afastar tal correção pelo Tribunal: “A Corte Interamericana não é um tribunal penal no qual se modificam penas”.

A teor do artigo 1º de seu Estatuto, o seu “... objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.  A Corte exerce suas funções em conformidade com as disposições da citada Convenção e deste Estatuto”.

Em face desse autorizado pronunciamento, como aderir à sugestão do ilustre ministro, no exame do cabimento dos embargos infringentes, se nenhum dos votos cogitou de um novo julgamento externo que ensejasse a reforma da decisão soberana do STF?

Não constituirá surpresa que ao final do processo, subsistindo as condenações impostas, a falange petista arguir que, como as infrações cometidas pelos réus não figuram entre os crimes hediondos (Lei 8072/90), lhes seja concedido o indulto, benefício previsto no artigo 84, XII da Constituição.

Na atualidade, tudo é possível, por mais desusada que seja a pretensão política — e não jurídica — dos inconformados com a decisão derradeira que lhes for adversa.

Aristoteles Atheniense 

sábado, 21 de setembro de 2013

Na Suécia, até a monarquia se submete à transparência

Reis da Suécia 

A liberdade e a transparência da informação, na chamada era eletrônica, representa verdadeiro direito e garantia fundamental do cidadão, devendo ser prestigiada pelos ordenamentos jurídicos regentes, especialmente naqueles Estados que se denominam “democráticos” e “de Direito”.

Como corolário de sua aplicação e desenvolvimento, a transparência da informação possui liame intrínseco com o aperfeiçoamento das instâncias de poder e, portanto, do próprio Estado, com o estímulo à meritocracia no seio das instituições públicas e diminuição dos níveis de corrupção estatais, ao ponto de se poder conjecturar que a liberdade da informação é capaz de estimular e consolidar a segurança social lato sensu.

Verificar como alguns outros países tratam a questão da transparência da informação, especialmente aqueles de vanguarda em iniciativas democratizantes, serve de estímulo comparativo às práticas legislativas empreendidas no Brasil, onde recentemente foi promulgada a Lei 12.527/11, a Lei de Acesso à Informação (LAI). O objeto do presente artigo, portanto, é cotejar alguns elementos da legislação sueca sobre o tema, com a percepção teórica e prática da transparência da informação no Brasil.

O tema da transparência na Escandinávia não é recente. O Freedom of Press Act, diploma legal democrático no qual já se identificava a participação legislativa da figura de proa de Anders Chydenius, foi publicado em 1766 na Suécia.

O tempo transcorreu e a legislação sueca aperfeiçoou-se, sendo editado, em 2009, o Public Access to Information and Secrecy Act, garantindo à sociedade daquele país o acesso à informação, bem como o regramento de seu sigilo. As semelhanças e as diferenças entre a Lei da Suécia e a LAI são sintetizadas neste artigo.

Dentre as semelhanças há que se verificar que, tanto na Suécia como no Brasil, o livre acesso à informação consubstancia-se em princípio constitucional. Tal situação imprime uma força cogente de maior envergadura na produção da norma jurídica aplicada ao caso concreto, notadamente quando há conflito normativo de interesses. Em sendo princípio constitucional, a transparência da informação impõe-se não somente diante de regras dispostas na Norma Normarum, mas também em face de regras infraconstitucionais.

De igual modo, em ambos os países, o princípio da livre informação consiste em direito e garantia fundamental do cidadão. No Brasil, o referido princípio é percebido pela dicção normativa dos artigos 3o e 5o da Lei 12.527/2011.

O caráter de excepcionalidade do sigilo à informação é demarcado, em ambos os países, como se observa no inciso I do artigo 3o, inciso III do artigo 6o e parágrafo 4o do artigo 11 da LAI, sendo que, no caso sueco, são taxativos e legalmente previstos os casos de preservação do sigilo ou a manutenção do dever de confidencialidade da informação.

No entanto, há diferenças marcantes entre as duas legislações.

Em primeiro lugar, há uma ausência de preocupação maior do Estado Sueco com o sigilo das informações fiscais dos seus cidadãos, ao ponto de determinadas páginas eletrônicas possibilitarem o acesso de qualquer um do povo a informações como a renda média do cidadão sueco, as pessoas que mais ganharam na comuna de uma determinada região ou no país, dentre outras informações.

Em segundo lugar, verifica-se na Suécia que a transparência é percebida pelo funcionário público como legítima garantia do exercício do direito de liberdade de expressão de o servidor prestar contas à sociedade sobre seus atos. Ou seja, enquanto no Brasil o direito ao acesso à informação é visto como temor e como subterfúgio evasivo do pleno exercício do “poder da autoridade”, na Suécia a transparência é vista pelo servidor de forma proativa, como direito a priori que toda autoridade pública tem de outorgar publicidade aos seus atos, independentemente de controle ou de prévia autorização hierárquica.

Terceiro aspecto de destaque é a desnecessidade, em termos gerais, de o demandante na Suécia ter que se identificar para solicitar uma informação específica. No Brasil, não obstante sejam “vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação” (parágrafo 3º do artigo 10 da LAI), a identificação do requerente é exigida e a solicitação é respondida tão apenas de forma privativa ao demandante.

Por fim, mas não se limitando somente aos aspectos abordados, na Suécia, o recurso a uma decisão denegatória do fornecimento de uma informação específica deve ser julgado por um Tribunal Administrativo, esfera independente da autoridade que negou a informação. No Brasil, todo o trâmite recursal ocorre no âmago da estrutura administrativa do órgão que não forneceu a informação solicitada, o que retira, de certa forma, a tão almejada imparcialidade no processamento e julgamento das modalidades recursais previstas.

Os países escandinavos notabilizaram-se pela construção de uma verdadeira estrutura social desenvolvida, ao se aproximarem do ideal de justiça social tão propalado pelos diversos regimes políticos. Ocupam a cúspide global do bem-estar de sua população, detentores dos maiores índices de IDH do planeta.

A liberdade da informação desempenha papel importante neste contexto, pois somente uma sociedade aberta e democrática é capaz de depurar as suas mazelas, aprimorar as suas instituições e estimular eficiência social, com base nos méritos, na capacidade individual e no esforço dos seus cidadãos.

Bom exemplo de tal esforço democrático de ruptura do paradigma do sigilo fiscal, é que na Suécia mesmo os membros da monarquia são vistos como servidores estatais, submetendo-se, inclusive, ao acesso de suas informações fiscais ao conhecimento da sociedade como um todo, como qualquer outro cidadão sueco.

 Ildo Fucs

Admissão de Embargos Infringentes pelo STF foi erro

As atenções da comunidade política brasileira ficaram voltadas esta semana, quase que exclusivamente, para o pronunciamento do voto do ministro Celso de Melo na Ação Penal 470, vulgarmente conhecida como “processo do mensalão”.

Desta vez, por conta de um compromisso acadêmico no IV Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito da PUC-Minas campus Serro, não pude assistir à sessão do Supremo Tribunal Federal pela TV. Mas ouvi todo o longo voto do ministro Celso no caminho de Belo Horizonte ao Serro.

Foi ele transmitido ao vivo pela Rádio CBN. Acho que, nem nos meus mais recônditos sonhos de jovem jurista, poderia eu imaginar que, um dia, uma sessão do Supremo Tribunal Federal seria transmitida pelo rádio, pela TV, pela internet, tudo ao mesmo tempo agora. Mas o foi. A TV e a internet ainda são mais cativantes para atrair a audiência porque, além da fala, temos as imagens que geram algum tipo de “entretenimento”. Mas, no rádio?! Nesse último caso é a fala, e apenas ela, que conduz o ouvinte.

Todo aquele rompante de linguagem empolada cai nos ouvidos e, no instante seguinte, induz-nos ao sono. Sem embargo, a sessão “deu no rádio”, como dizia a minha falecida avó materna. E eu a ouvi. Isso, definitivamente, é um sinal dos tempos. E, concomitantemente, um sintoma do grau de mobilização que este processo é capaz de provocar. E toda essa mobilização político-social gera seus efeitos deletérios. No caso, chega a ser aflitivo — para alguém determinado a analisar a questão na perspectiva da autonomia do Direito — o estado de poluição de informações a que o caso está submetido. Há um caos nesse estranho mundo da opinião jurídica.

E vejam: não estou aqui me referindo aos populares incautos que procuram expressar suas opiniões sobre o problema. Estou a me referir a uma certa “elite intelectual” brasileira que opina sobre questões jurídicas como quem vai a um restaurante e diz no dia seguinte se o prato saboreado estava bom ou ruim; se o chef conseguiu aproveitar todas as qualidades naturais dos ingredientes usados na preparação da receita; ou se o vinho indicado pelo maître harmonizou com o prato degustado.

Geralmente, cria-se uma oposição entre o “bom” e o “ruim”, sem que isso esteja, necessariamente, conectado com a melhor resposta jurídica para o problema. Uma revista, de grande circulação nacional estampou na capa que o voto do ministro Celso — que desempataria a questão sobre a possibilidade ou não de interposição dos Embargos Infringentes diante do direito vigente —, estava diante de um dilema: “tecnicidade versus impunidade”. Por outro lado, reverberava por todos os lados o eco da fala do ministro Barroso quando enunciou que, como juiz, não tomava decisões baseado no “grito das ruas” ou no “clamor popular”. Esse fator voltou a lançar luz sobre o problema da relação entre Judiciário e opinião pública. Ao final, no modo como se propagaram as coisas, deu-se a entender que — aqueles cinco ministros que votaram pela impossibilidade de interposição dos embargos em face da inadequação e ilegitimidade diante do direito vigente — não foram “técnicos”. Ao contrário, o que eles fizeram foi simplesmente jogar a questão para a plateia; decidiram segundo o clamor das ruas e não segundo o Direito.

A questão que envolve essa ação penal é muito complexa porque, tudo nela, parece levar a análise dos problemas jurídicos a uma dimensão do gosto político professado pelo analista. A oposição entre “tecnicidade” e “impunidade” é péssima porque dá logo a impressão de que a análise “técnica” ou estritamente jurídica da questão leva, necessariamente, à possibilidade de interposição dos embargos e à consequente continuação do processo para aqueles que se enquadram nas condições regimentais de ajuizamento da medida. Por outro lado, para afastar o fantasma da impunidade, seria necessário dar um salto sobre o direito para se fazer justiça.

Do mesmo modo que toda a retórica levada a cabo pelo ministro Celso para defender o papel contramajoritário do Poder Judiciário contribuiu para jogar os votos daqueles que decidiram pela impossibilidade dos embargos para dentro do grupo dos “seguidores do clamor popular”.

E o que falar das mais diversas manifestações — pelos mais diferentes meios e mídias — que repudiavam a aceitação dos embargos afirmando que uma tal decisão representaria um perigoso precedente para as futuras ações penais a serem julgadas pela corte. Consequencialismo? Novamente, estamos fora de um argumento que preserve a autonomia do Direito. Seria de se perguntar: mas, afinal, a ordem jurídica vigente incorporou ou não os embargos infringentes do regimento interno do Supremo Tribunal Federal? Somente se a resposta a esta pergunta for não é que se justifica o seu afastamento no caso concreto. Do contrário, se a resposta for no sentido de que eles são parte do direito vigente, então eles teriam mesmo que ser aplicados, independentemente das consequências posteriores.

Mas o ministro votou e afirmou a tese da recepção dos embargos ao Direito vigente. Sem embargo, na hipótese, entendo que o ministro Celso de Mello, assim como seus cinco colegas que votaram pela admissão, errou. O decano não errou apenas nesse momento, em que exarou seu voto tendo como objeto a análise da questão em específico. Errou antes, quando, já no início do processo, se antecipou para dizer que o cabimento desse recurso ordinário, previsto no regimento interno da corte, representava um óbice para a tese da defesa de que o julgamento dessa ação, diretamente pelo plenário do STF, representaria uma ofensa à garantia de um segundo julgamento. Na verdade, a posição jurídica do ministro já havia sido selada neste momento. E já nesse tempo estava assentada em um equívoco jurídico.

E anote-se: entendo que a posição definida pelo ministro Celso de Mello não é a que oferece a melhor interpretação para o Direito vigente não porque tenho eu um desejo guardado no fundo do meu ser de ver os réus desse processo apodrecendo na prisão. Ou, ainda, porque, nesse Fla-Flu, faço parte da torcida que é refratária ao partido político daquele que se apresenta como “o mentor” de todo o esquema que deu origem à ação penal.

Não é disso que se trata. Não estou aqui seguindo o “clamor público”. Como acredito que os ministros que votaram pela impossibilidade dos embargos também não o fizeram.

Penso que, na hipótese, os embargos infringentes não foram recepcionados sequer pela Constituição de 1988. Sei que minha posição, nesse caso, pode causar alguma estranheza, mas, de todo modo, defendo que o problema aqui posto não se configura apenas como uma questão de não recepção formal. Trata-se de uma não recepção material. A Constituição de 1967 e a emenda número 1 de 1969 concediam “poder normativo” ao Supremo Tribunal Federal para criar normas de processo que regulamentassem as ações por ele julgadas e os trabalhos da corte. Como é possível sustentar que, no regime jurídico configurado pela Constituição de 1988, uma norma de processo — criada pelo STF no exercício de competência normativa — pode ser com ela compatível? E, mais do que isso, como é possível justificar que uma tal previsão seria adequada ao artigo 22, inciso I da Constituição Federal que diz expressamente que compete à União, portanto ao Congresso Nacional, legislar sobre processo? Nesse caso, não estamos diante de uma simples questão de forma porque a distribuição das competências federativas é elemento essencial para a configuração de nosso federalismo.

Esse argumento reverbera, em alguma medida, a posição da ministra Cármen Lúcia quando defendeu a unidade do direito processual no sistema jurídico pátrio. Ora, foi uma opção do constituinte que o sistema processual fosse único, para todo o país. Como admitir que ele possa ter “exclusividades” no âmbito de um único tribunal da federação? Claro que questões procedimentais podem ser articuladas de forma específica. Mas, isso não se aplica a normas que prevejam recursos. Bem sei que regimentos internos preveem recursos. Inclusive no âmbito dos tribunais dos Estados. Mas, daí a um erro justificar o outro...

Nesse caso, nem a OEA ou até mesmo o papa Francisco me convenceriam do contrário. Não existe argumento jurídico que possa superar essa questão: como é possível um simples regimento interno valer mais do que a Constituição?

Isso sem falar que a Lei 8.038/1990, quando tratou da ação penal originária no âmbito do STF e do STJ, silenciou-se sobre a possibilidade dos embargos infringentes. Nesse sentido, concordo integralmente com a interpretação oferecida por Lenio Streck aqui mesmo nesta ConJur (clique aqui para ler) e que foi citada longamente no voto do ministro Gilmar Mendes. Não é possível dizer que houve um silêncio eloquente do legislador que deve ser complementado pelo Poder Judiciário. Silêncio, aqui, implica revogação. A não ser que aceitemos que um recurso pode existir no STF e não existir no STJ, quebrando a unidade do direito processual, que é determinação constitucional.

Assim, entendo que a tese jurídica — técnica — adequada à questão indica a não recepção dos embargos infringentes à ordem jurídica pós-1988. Não por populismo ou por horror à impunidade, mas, porque é ela adequada à Constituição e às leis da República. Isso para qualquer réu de ação penal originário julgada pelo Supremo Tribunal Federal: seja ele torcedor do Flamengo ou do Fluminense; do São Paulo ou do Corinthians; do Grêmio ou do Inter; do Atlético ou do Cruzeiro etc., etc., etc.

A decisão do Supremo Tribunal, contudo, foi pelo cabimento dos embargos. É errado dizer que isso representa uma possibilidade de, em algumas hipóteses, levar o julgamento ao infinito, como disse o colunista da Folha de S.Paulo Vinícius Mota na sua coluna de segunda-feira, dia 16 de setembro. Mas, se não chega a tanto, é preciso dizer que a decisão é ruim, que errou o Supremo neste caso.

A interpretação do Direito depende de uma suspensão de pre-juízos. Não há democracia sem autonomia do direito. E isso não é simples “clamor popular”.

 Rafael Tomaz de Oliveira

STF: entre a tradição e a inovação

De plano, cabe falar a respeito do método que forma o mais graduado órgão do poder Judiciário brasileiro. Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) fazem parte de listas oferecidas ao chefe de governo para que este selecione um nome, o qual será sabatinado, ou seja, passará teoricamente por avaliação oral a respeito do seu então já reconhecido e notório saber jurídico.

O método citado faz parte do Estado brasileiro desde os tempos republicanos e segue a fórmula da Corte Suprema dos Estados Unidos da América. No entanto, no passado os Ministros eram escolhidos com mais critério, talvez por existir um resquício de respeito ao guardião da Constituição e suas responsabilidades para com o povo e o pacto social republicano.

O que se verifica atualmente é a indicação de juristas mais próximos dos atos do governo em questão, em virtude de suas teses já elaboradas para tanto, preparadas para seduzir administradores do alto escalão do poder Executivo a fim de aguçar o apontamento presidencial.

Uma vez indicado, o candidato passa por sabatina do Senado Federal. Aqui, a principal pergunta é: se para compor o Senado Federal o candidato precisa apenas ser basicamente alfabetizado (ou às vezes decorar o desenho de sua assinatura), como poderá avaliar a competência, capacidade e equilíbrio de um jurista com notável e comprovado saber científico?

Que fique evidente: não existe resposta convincente de nenhum dos poderes, inclusive do Judiciário, que segue se submetendo ao sistema. Cargos técnicos que dependem dos estudos das ciências devem depender apenas de merecimento por reconhecimento. Não são e nem devem ser democráticos nos mesmo critérios dos cargos eletivos. Mas isso é tão básico de entendimento que só não entende quem não deseja entender diante de alguma vantagem pessoal ou partidária.

Dentro de um sistema comprometido como o acima citado é possível verificar tempos mais ou menos conturbados e abusivos no que tange à transparência e à dedicação ao povo eleitor, contribuinte. Nem todos os ministros do STF foram simpáticos às causas de seus indicadores ou sabatinadores. Alguns realmente seguiram suas carreiras como julgadores que guardam a eficácia da Constituição e seus dizeres e decisões.

Então, faz-se necessário esclarecer que o STF tem como função originária, principal, a guarda do texto constitucional e o cumprimento ou concretização do mesmo. É exatamente por isso que a Corte Suprema tem prerrogativa para analisar os casos levados ao seu conhecimento com poder e competência para fazer valer a tradição dos julgados anteriores ou mudar o rumo do direito e de seus efeitos diante do que precisa ser mudado. Tudo se aperfeiçoa diante do tempo. Até a água, quando estagnada, apodrece.

Se o objetivo do Tribunal Maior de uma nação fosse apenas chancelar os entendimentos de outras instâncias anteriores a ela, não teria porque existir, a não ser para afirmar a tirania ditatorial de um regime tirano de governo e de seus cúmplices parlamentares.

Diante de um caso novo e de seus desdobramentos técnicos e sociais é que os julgadores tidos como mais experientes e responsáveis pela ordem moral dos governados e de seus governantes devem atuar, quando preciso, de forma inovadora na medida em que a situação do Estado e de seu povo exija.

No que se refere ao desempate entre os ministros do STF com relação aos embargos infringentes atinentes ao caso Mensalão, coube ao ministro Celso de Mello definir qual caminho a seguir.

É um dos ministros mais técnicos do Judiciário. Um dos poucos que de fato e direito podem compor a Casa. Notável e notório saber jurídico no caso dele esmagam outros componentes do Supremo. Vida dedicada e ilibada ao direito e à justiça.

Então qual é a dúvida a respeito do voto de Minerva que desempatou a questão? O ministro é adepto de uma corrente jurisprudencial conexa à ampla defesa, o que significa aceitar embargos infringentes para qualquer caso julgado originariamente no Supremo, pois não existe outra instância de recurso além do STF.
Para evitar o desmembramento dos processos dos acusados para as varas estaduais de cada acusado, e assim transformar o processo como um todo numa bagunça, aí sim, sem prazo para acabar, pois teríamos inúmeros juízes e ainda mais recursos em cada comarca até que todos chegassem no Supremo Tribunal Federal (se chegassem), o ministro preferiu aceitar a possibilidade dos embargos, pois, dessa forma, pelo menos, o processo seria reavaliado por uma mesma Corte, cujos membros possam ser acompanhados e cobrados publicamente com muito mais facilidade e transparência.

Se existe algo a ser modificado com urgência para que o Supremo possa ser melhor cobrado são as normas eleitorais, penais, a avaliação dos candidatos, a reforma política como um todo, o que é muito mais simples do que se possa pensar. Basta querer fazer e saber cobrar.

Acompanhando a carreira do ministro Celso de Mello é mais provável supor que ele tenha tido a esperança de ver os seus pares votarem quase que absolutamente contra a possibilidade dos embargos infringentes, o que não aconteceu. Mesmo assim, é preferível ver a reabertura do julgamento numa mesma seara do que ter o julgamento pulverizado entre vários juízes sem qualquer controle popular e sem qualquer garantia de responsabilidade.

Prevaleceu a tradição processual técnica prevista em lei. Sim, é lamentável que hoje a composição da Corte seja diferente daquela que condenou os corruptos. Contudo, os membros do Supremo nunca estiveram tão expostos em suas funções quanto estarão nesse caso.

As decisões de cada um devem ser fundamentadas textualmente. O que farão diante das provas e dos votos dos ministros aposentados mas ainda opinantes, os quais apontam documentos fartos comprovando os crimes em tela? Como explicarão à nação uma eventual absolvição? Examinar os embargos infringentes não significa absolver os acusados. Para algo ser modificado, precisa ser defendido com muita, muita consistência.

Caso o STF em sua maioria resolva beneficiar os acusados sem motivos técnicos e evidentes também ao povo, será conhecido como a instituição responsável pela derrocada do contrato social, da cidadania e do Estado democrático de direito em nosso país.

Novas eleições podem nos ajudar a começar uma regeneração do Congresso Nacional e no poder Executivo, mas não tem alcance para expurgar assessores políticos residentes na Corte Suprema, considerada com razão o último bastião da Justiça, da Moral e da Ordem em nações livres.

Por isso mesmo os ministros do STF não devem e não podem se submeter à opinião pública meramente por emoção. Mas precisa lembrar sua obrigação de dar satisfação clara de seus atos. Jamais deve ser submisso, mas deve manter a coerência. Deve primar pelo exemplo de conduta e probidade. Deve garantir a eficácia das normas, o desenvolvimento, a Ordem e o Progresso previstos em nossa amada bandeira.

João Antonio Wiegerinck

domingo, 15 de setembro de 2013

Democracia: fazer mais e melhor


Sebastião Ventura Pereira Da Paixão Jr


Passadas as comemorações da independência, é chegada a hora de refletirmos sobre temas políticos que nos são fundamentais e que merecem, por assim ser, um enfrentamento sério e uma definição precisa. Até mesmo porque de que vale ser independente se não se sabe o que é a liberdade?

E como compreender o conceito de liberdade com escolas públicas pobres e empobrecidas, com professores mal remunerados e com alunos pouco estimulados a desvendar os segredos do saber? Então, como falar de democracia perante uma nação que parece condenada ao vazio do desconhecimento e ao desvão da indigência cívica?

Sim, não há dúvida de que a Constituição garante o direito de voto, mas votar nem sempre significa democracia. Afinal, bastará uma ditadura permitir eleições com resultados previamente definidos para termos votações farsescas e participação política de fantasia. Ora, democracia é muito mais que voto.

Democracia é querer participar efetivamente das decisões políticas do país; é não temer o poder, ter liberdade de criticá-lo e propor novos caminhos; é não calar e enfrentar injustiças; é não se acovardar frente às dificuldades; é bater de frente com corruptos e corruptores; é ser firme para dizer não e ser generoso para falar sim; é compreender que liberdade e independência são prerrogativas pessoais que precisam do respeito à lei para se tornarem valores políticos absolutos; é exigir um governo responsável que cumpra diariamente o dever de falar a verdade e jamais transigir com a mentira.

Não há dúvida de que punir mensaleiros e quejandos é necessário e inadiável, pois impunidade não combina com decência. Mas é preciso ir além. Precisamos estabelecer um debate sobre os valores e princípios que nos formam, que constituem nossa dignidade política como nação e que nos legitimam como cidadãos. Gostamos muito de exclamar que somos uma democracia, quando, na verdade, confundimos democracia com direito de voto. É lógico que sem direito de voto não existe livre participação política, mas votar é apenas uma estação do ano democrático, uma primavera ou um verão da liberdade.

Portanto, para mudarmos esta rotina moralmente degenerada e eticamente pueril, precisaremos ser melhores cidadãos do que fomos até aqui. Precisaremos sair do comodismo de apenas criticar e começar a fazer, pois as situações não mudam por inércia nem por palavras jogadas ao vento.

Democracia é uma responsabilidade pessoal de luta pela liberdade individual com consciência política coletiva. Não é apenas um fazer por si, mas também pensar na família, nos amigos, na comunidade e em todos os brasileiros que precisam de um sério trabalho conjunto para ter o mínimo de dignidade e decência na indecifrável aventura do viver. Será, então, que podemos fazer mais e melhor?

“Democracia e busca por privilégios: é possível conciliar?”

Das opções disponíveis para organizar as sociedades, o mercado parece combinar aumento de bem-estar com liberdade de escolha. Talvez pela flexibilidade tenha sido a opção predominante.

Para que economias de mercado funcionem plenamente, entretanto, é preciso que estejam inseridas em regimes democráticos. As ditaduras, sejam quais forem, geram distorções que esgaçam o tecido social, tornando inviável, em algum momento, o convívio. Neste Dia Internacional da Democracia e diante dos recentes protestos que se espalharam pelo Brasil, ponho-me a refletir sobre nossa obsessão em buscar privilégios para alguns em detrimento da maioria.

Nossa convivência com a democracia, a bem dizer, não é lá algo intrínseco ao nosso modelo de sociedade. Ao longo da República, flertamos diversas vezes com regimes totalitários. Mesmo hoje ainda temos dificuldades em entender como a democracia pode funcionar. Temos problemas de representatividade, instituições frágeis, processos de escolha conturbados e uma série de outros problemas que engessam a nossa economia de mercado. Em vez de termos aprofundado nossa democracia, preferimos segmentar nossas opções.

E aí se insere a opção por “meias-entradas”, como bem descreveu recentemente o economista Samuel Pêssoa, inspirado no artigo “Democracy and Growth in Brazil” dos também economistas Zeina Latif e Marcos Lisboa. Em outras palavras, ao contrário de perseguirmos igualdade de oportunidades para todos na saída, minimizando assim o impacto das circunstâncias (educação dos pais, local de nascimento, gênero etc.) no resultado que as pessoas alcançam, preferimos privilégios e benefícios para alguns. É assim que preferimos investir cinco vezes mais em educação superior para ricos do que investirmos em educação básica para os pobres.

Preferimos, leitor, financiar alguns poucos escolhidos via subsídio do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] do que construir um mercado privado de crédito. Ou então criamos renúncias fiscais para o setor automobilístico, congestionando nossas estradas, em vez de investirmos em transporte público. Nossas opções políticas, afinal, não são horizontais, não beneficiam a maioria. Pelo contrário, são voltadas para pequenos grupos. Nossa democracia é, nesse aspecto, frágil, com baixa capacidade de resolver o problema de alocar recursos escassos frente a necessidades infinitas, fazendo com que a nossa sociedade enfrente inúmeros desafios.

Não por outro motivo, essa sociedade está indo às ruas. Ao que parece, cansou de assistir às inúmeras distorções geradas por um sistema político viesado. Entretanto, não busca resolver as causas desse problema com uma reforma política, por exemplo. Ela quer mais “meias-entradas” ou, pior, “passes-livres”, como se o orçamento público fosse ilimitado.

Nesse contexto, ao contrário da resposta fácil, que consiste em colocar políticos de um lado e sociedade do outro, como se aqueles representassem o mau e esta, o bem, há uma simbiose inescapável entre um e outro. A opção da sociedade brasileira é por rent-seeking, isto é, pela busca de privilégios e benesses para alguns em detrimento da maioria. A opção não é, pelo contrário, por igualdade de oportunidades, por resolução dos conflitos econômicos e por mais liberdade de escolha.

Nossa jovem e frágil democracia parece não entender o conselho de Machado de Assis em crônica publicada na Gazeta de Notícias em 1888: “Não se pode ir à Glória sem pagar o bonde”. As escolhas que fazemos enquanto sociedade refletem-se em distorções que pedem mais intervenção e geram novos problemas. Esse ciclo vicioso acaba em protestos, insatisfação e conflitos. A democracia brasileira precisa, assim, de um norte que resolva de uma vez por todas essa busca por privilégios: ela necessita urgentemente de um sistema público de educação básica universal e com qualidade. Sem isso, continuaremos em busca de bolsas e migalhas de toda a espécie.

Vítor Wilher

Liberdade de imprensa e democracia

Segundo o senso comum, democracia é sinônimo de eleições. No entanto, procedimentos eleitorais, isoladamente, estão longe de representar garantia de democracia efetiva. Por seu caráter simbólico, o processo eleitoral é muitas vezes utilizado de forma demagógica e populista para conferir um verniz democrático a regimes com traços ditatoriais. O exercício da democracia plena é bem mais complexo: inclui instituições fortes e autonomia dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -, além de uma cultura de transparência e de convivência tolerante com a crítica, por mais contundente que seja, e de respeito à saudável diversidade. Numa democracia plena, a liberdade de expressão e de imprensa são pilares de fortalecimento democrático, e pressupostos da própria democracia.

A liberdade de expressão incomoda especialmente os arautos de ideologias que pregam uma espécie de “democracia perneta”, na qual vale apenas a liberdade de sua própria expressão, nunca a expressão de oposições ou das diversidades sociais. É o caso da Venezuela, onde os veículos oposicionistas de mídia têm sido sufocados sistematicamente, inicialmente por Hugo Chávez, e depois por seu sucessor, Nicolás Maduro.

A Bolívia e a Argentina, entre outros, também seguem cartilhas semelhantes. Em todos os casos, são várias as formas de pressão contra organizações jornalísticas, incluindo as tributárias, boicotes, intervenções estatais na produção privada de papel imprensa e o impedimento da distribuição de jornais, a invasão de redações etc.

O Brasil conseguiu se livrar das obscuridades da ditadura militar e, felizmente, tem conseguido resistir às tentativas de grupos minoritários de impor restrições à imprensa, por meio do eufemístico “controle social da mídia”. Por vezes ouvimos discursos na linha de que não cabe à mídia investigar, já que “o povo sabe formar sua opinião, não precisa quem interprete”. Ora, as democracias mais consolidadas do mundo chegaram a este estágio não a despeito da atividade informativa, investigativa e opinativa da imprensa, mas justamente com a ajuda dela. Para a compreensão do mundo, o cidadão precisa de educação, de informação e de opinião qualificada. Não para ser guiado e dominado, mas para ter informações e poder construir sua própria opinião.

A humanidade já fez diversos experimentos político-sociais, incluindo tentativas de implantar artificialmente modelos que só funcionam nos livros. Por tentativa e erro, a humanidade chegou ao modelo democrático como seu melhor – ou menos pior – modelo de convivência social. Desde seus primeiros passos, a democracia moderna teve a imprensa como coadjuvante de peso. E se a liberdade de imprensa foi e é fundamental para combater as ditaduras, ela é também decisiva para criar anticorpos produzidos dentro do próprio sistema democrático.

Quando o jornal “The Guardian” publica denúncias de que o governo da mais tradicional democracia do mundo, a norte-americana, está violando dados de cidadãos e instituições de outros países, incluindo o Brasil, de novo a imprensa cumpre o seu papel, o de investigar e denunciar, permitindo à sociedade exigir explicações e mudanças. Como sempre, vale a expressão do juiz americano Louis Brandeis: “A luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. Neste 15 de setembro, Dia Internacional da Democracia, é sobre isso que os cidadãos, mais uma vez, precisam refletir.

Judith Brito

Democracia: Valor cultural ou universal?

Vindo de uma família de chineses, ouvi diversas vezes (e ainda ouço) a discussão sobre se a China conseguiria manter seu espantoso crescimento econômico caso adotasse a democracia política.

Invariavelmente nestes momentos aparece alguém afirmando que “a democracia é um valor que faz parte da cultura ocidental” e, portanto, nem todos os países anseiam por ela e, muito provavelmente, a China seria um exemplo. Ou seja, o que eles dizem é que para alguns países a democracia seria um valor fundamental, enquanto para outros, ela não passaria de uma “característica cultural”. É isso mesmo? Há mesmo povos “mais naturalmente propensos” à democracia e outros “menos propensos”?

Não vou me alongar sobre as origens históricas da democracia como regime político (todos já sabem que ela existe há milênios, pelo menos desde a época dos gregos antigos), mas vamos focar no nosso momento atual, o século XXI, indistintamente do local geográfico (Ocidente ou Oriente). Não parece haver mais nenhuma evidência, lógica ou empírica, que indique “gradações” de seres humanos: o homo sapiens, ao que tudo indica, é o mesmo, sendo ele branco, negro, amarelo, vermelho, ou de qualquer nacionalidade, religião, credo, condição social, orientação sexual etc. Com isso, parece bem claro que não existe defesa plausível para que lei alguma, de qualquer lugar, trate pessoas de maneira distinta. É dentro desse contexto que se diz que “a Justiça deve ser cega”, ou seja, tratar todos de maneira indistinta, oferecendo-lhes iguais condições e iguais oportunidades para ter uma vida estável neste planeta (se uns terão mais sucesso que outros dependerá de outras variáveis, mas não deveria ser por diferenças de oportunidades).

Pela análise econômica do direito, o sistema democrático também tem forte justificativa. O economista almeja, em boa parte das vezes, a eficiência. E eficiência pode ser traduzida simplesmente como a situação em que o máximo de bem-estar social é gerado. Ora, para se mensurar o bem-estar de uma sociedade qualquer é preciso que todos expressem as suas preferências, os seus gostos e escolhas. Mais uma vez, nada indica que alguns devam ter mais “voz” e/ou poder de escolha do que outros: a revelação e a expressão de cada um dos indivíduos nesta sociedade têm o mesmo peso e o mesmo valor. Fica claro que para o alcance da eficiência econômica é preciso também garantir a democracia.

Por fim, há uma variante do conceito de democracia, que é o de democracia econômica. Aqui, além de se garantir o mesmo tratamento pela Justiça e pelas leis vigentes no país, os cidadãos também deveriam ter iguais oportunidades para o exercício de atividades econômicas que lhes bem aprouver. Independentemente do tipo de atividade (lícita, que não cause danos a outrem), se o individuo entende-a como promotora de seu próprio bem-estar, ele (a) deveria ter todas as chances possíveis de exercê-la e continuar exercendo enquanto preferir. A meritocracia se encarregará de premiar os “melhores”, mas, antes disso, a ninguém deve ser negado o direito de fazer escolhas que julgar ótimas. E nenhuma lei, nenhuma regra ou pessoa deve dificultar a concretização dessas escolhas por cada um dos cidadãos. Privilégios e proteções não deveriam existir.

Assim, como pudemos discorrer acima, pode-se perceber que tanto a democracia política quanto a democracia econômica são requisitos para o alcance de uma sociedade mais justa e com mais bem-estar, independentemente do lugar e da cultura. No Ocidente e no Oriente.

Luciana Yeung

domingo, 8 de setembro de 2013

O poder de limitar a cidadania também encontra limites

No Brasil, sempre buscamos uma boa razão para limitar o direito do cidadão de exercer o seu direito ao sufrágio. Por aqui, a raça, o sexo, ou a falta de dinheiro, já foram fatores que limitaram o exercício pleno da cidadania. No século XIX, o grande jurista do Império, Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente, certamente colhido pelo contexto em que vivia, não teve pejo de declarar legítimas as limitações ao exercício do sufrágio pelo que acreditava ser um conjunto de “incapacidades resultantes do sexo, da menoridade, da demência, da falta de luzes e da ausência das habilitações, que convertessem o voto em um perigo social”.

Contudo, já vão longe os tempos em que o negro, a mulher, ou o pobre não podiam exercer seus direitos políticos. Contemporaneamente, sufrágio geral, ou princípio da universalidade, ou da generalidade, em matéria eleitoral quer significar, em primeiro lugar, que o simples fato de o indivíduo pertencer ao povo de um Estado já lhe confere o direito de votar e ser votado, de eleger e ser eleito. Com eleições gerais, ou universais, quer-se dizer, pois, que o direito de votar compete a todos os cidadãos, excluindo-se, de regra, aqueles que não detenham a cidadania do país em que as eleições se verificam.

Por outro lado, não se pode esquecer que a capacidade, ou o direito fundamental, de um cidadão ser candidato para cargos políticos, mescla-se, certamente, com o direito de todos os eleitores de escolher determinadas pessoas para ocupar determinado cargo público. Em outras palavras, o princípio da universalidade protege tanto eleitor como o candidato, vinculando uma à outra realidade.

Assim, o lado mais visível do princípio da universalidade impõe a conclusão de que, ao limitar o direito dos cidadãos votarem, direta ou indiretamente, obstaculiza-se também o direito daquele que pretende lançar-se como candidato. Entretanto, e esse é o lado menos notado do princípio da universalidade, todas as vezes que se impede alguém de se candidatar, estamos, sem dúvida, cerceando o cidadão no exercício legítimo de seu voto. A equação é de fácil entendimento: (i) se, de um lado, num universo mais restrito de eleitores, muito provavelmente, diverso será o resultado daqueles que serão eleitos; (ii) de outro, ao restringir o universo dos candidatos, com toda certeza, também se reduzem as possibilidades abertas aos eleitores.

Da mesma forma que, no passado, uma legislação muito restrita quanto ao círculo de eleitores (excluindo mulheres, pobres, ou analfabetos) comprometia o resultado quanto ao universo de candidatos com reais possibilidades de êxito eleitoral, atualmente, ao reduzir, significativamente, o universo de candidatos, o sistema eleitoral brasileiro compromete o âmbito de proteção dos direitos do próprio eleitor. Em síntese, quem cria inelegibilidades, além de limitar candidaturas, goste ou não, atinge também o voto do eleitor.

Nada obstante, sustentados num forte apelo midiático contra a política, não são poucos os que festejam qualquer espécie de inovação legislativa tendente a restringir o número de candidatos.

Como não se pode restringir o direito político de ser candidato sem comprometer o direito político de votar, aqueles que tomam a sério o direito fundamental de participação política do cidadão, facilmente, compreenderão que, ainda que uma ou outra restrição se mostre necessária, ela apenas se justificará em situações e diante de motivos de considerável relevância constitucional.

Pieroth e Schlink afirmam ainda que o princípio de que as eleições devem ser gerais é, além de tudo, caso especial do princípio da igualdade das eleições, já que aqui se estabelece e se impõe a idéia de que todos os cidadãos do Estado têm igual capacidade para eleger e ser eleito.

É certo, como adverte Klaus Stern, que a generalidade, ou universalidade, não implica necessariamente a impossibilidade de serem impostas restrições ao direito ao sufrágio. Tampouco implica a impossibilidade de toda espécie de diferenciação. Limitações ou diferenciações, não obstante devam ser evitadas, podem ser admissíveis, desde que exista uma causa constitucionalmente justificadora de sua existência. Por exemplo, a nacionalidade tem sido, como se viu, uma exigência quase universalmente admitida como requisito à titularização e ao exercício do sufrágio. No caso brasileiro, a nossa Constituição, no artigo 14, parágrafo 2º, excluiu do universo dos eleitores tanto os estrangeiros como, durante o serviço militar obrigatório, os conscritos.

De qualquer sorte, não obstante a exigência da nacionalidade, deve-se atentar, no Brasil, à especial condição dos portugueses, conforme o artigo 12, parágrafo 1º (cito): “Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição”.

Além disso, no artigo 14, parágrafo 1º, a Constituição já havia excluído do conjunto de titulares dos direitos políticos os brasileiros que ainda não tenham completado os 16 anos. Por sua vez, os analfabetos, conquanto possam votar, são excluídos da capacidade política passiva (artigo 14, parágrafo 4º, da Constituição). Não podem ser candidatos.

No Direito Comparado, depois de prever o sufrágio, no corpo original da Constituição, os norte-americanos através de emendas impuseram, ainda, uma série de limites aos Estados no que tange ao seu poder de impor restrição ao princípio da universalidade do sufrágio. Assim, a 15ª Emenda à Constituição norte-americana proibiu os estados-membros de impor restrições com “base na raça, cor, ou prévia condição de servidão”; a 19ª Emenda proíbe cerceamentos ao voto em razão do sexo; a 24ª impede a imposição de tributos como condição para que se possa votar (any poll tax or other tax), e a 26ª Emenda garante o direito dos cidadãos ao sufrágio quando alcancem a idade de 18 anos.

Entretanto, não obstante a ausência de expressa restrição ou autorização constitucional para que se imponham restrições à universalidade do sufrágio, a Suprema Corte norte-americana tem entendido razoáveis restrições impostas pelos estados-membros com base em exigência de residência mínima na circunscrição eleitoral. Com base, nesse entendimento, por exemplo, aquela Corte já teve ocasião de decidir que apenas os cidadãos residentes numa determinada municipalidade têm direito votar, considerando legítima a denegação da garantia do voto a cidadãos que residam em áreas adjacentes à cidade, mas nelas ainda não incorporadas, ainda que o município estendesse aos moradores das faixas limítrofes os seus poderes de polícia sanitária e de licença para negócios.

Em resumo, segundo o direito norte-americano ou alemão, o que o princípio da universalidade do sufrágio impede é a existência de exclusões ilegítimas do cidadão do processo eleitoral. Nesse sentido, mais uma vez a universalidade do sufrágio, ao apresentar-se como caso especial do princípio da igualdade no âmbito das eleições, proíbe o legislador, para além das próprias restrições constitucionais, de excluir das eleições grupos determinados de cidadãos por motivação política, religiosa, econômica, profissional ou social, assim como exige que todos possam o mais possível exercer os seus direitos políticos em igualdade de condições.

A idéia de que, à luz do princípio da universalidade do voto, o legislador ordinário não pode impor exclusões ilegítimas poderia parecer despicienda no Brasil, ao argumento de que aqui as únicas exclusões são aquelas já fixadas constitucionalmente. Contudo, ao contrário do que tendemos a acreditar, a própria Constituição abre a porta para que, direta, ou indiretamente, o legislador possa impor restrições ao universo dos que possam votar ou ser votados, quando, por exemplo, estabelece os casos de perda e suspensão de direitos políticos, arrolando situações que, na sua maioria, dependem da disciplina do legislador ordinário.

Além disso, no seu artigo 14, parágrafo 9º, a Constituição veiculou autêntica reserva de lei qualificada, autorizando o legislador complementar a estabelecer outras possibilidades de restrição ao sufrágio passivo, na forma de “outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

Diante desse específico dispositivo constitucional, por tudo o que se disse, a reserva de competência legislativa para restringir o sufrágio passivo deveria ser aqui, como sempre, exercido com especial senso de cautela e de autocontenção. Sinceramente não tenho certeza de que esse tenha sido o caso da Lei Complementar 135, de 2010, a chamada Lei da Ficha Limpa. Colocando de lado todas as suspeitas de inconstitucionalidades que contra ela foram levantadas, mas afastadas pelo Supremo, o fato é que, do ponto de vista, puramente político, essa nova lei, indubitavelmente, pelo extenso rol de inelegibilidades que suscita, simultaneamente, além das candidaturas que sepultou, subtraiu do cidadão muitas de suas possibilidades de escolha. Não seria exagero dizer que, no Brasil, hoje, em função da referida lei, boa parte das nossas disputas eleitorais serão decididas não nas ruas e pelos eleitores, mas, em Tribunais e por juízes e operadores do Direito. Se isso, realmente, como sustentam os defensores da Lei Complementar 135, faz bem à democracia, acredito que não demoraremos a descobrir.

Mas o Direito Eleitoral ordinário registra outros casos de restrição ao sufrágio, seja na sua forma ativa, seja na sua forma passiva. O artigo 71 do Código Eleitoral, por exemplo, arrola várias situações em que o cidadão perderá a condição de eleitor com o cancelamento de seu alistamento eleitoral, entre as quais estão a infração as regras relativas ao domicílio eleitoral, suspensão ou perda dos direitos políticos, a pluralidade de inscrição (alistamento eleitoral) ou deixar o eleitor de votar em três eleições consecutivas. Logicamente, à exceção dos casos de perda ou suspensão dos direitos políticos (porque casos de restrições impostas pelo próprio texto constitucional, no seu artigo 15), todos esses motivos de exclusão da condição de eleitor, como autênticas restrições ao princípio da universalidade do sufrágio, só se justificam, se forem considerados compatíveis, constitucionalmente, entre outros princípios, com o princípio da proporcionalidade e com a proteção do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

Assim, atenta à restrição ao voto imposta pela exclusão de alistamento eleitoral a quem, por exemplo, deixe de votar em três eleições consecutivas, a jurisprudência do TSE tem considerado superada a infração do eleitor que tenha justificado o seu voto (artigo 7º, do Código Eleitoral). Além disso, conforme lembra José Jairo Gomes, o Tribunal Superior Eleitoral fixou em resolução não estar sujeito à sanção do cancelamento da inscrição como eleitor o portador de doença ou deficiência que torne impossível ou extremamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais.

Em resumo qualquer restrição ao sufrágio, seja no que diga respeito à capacidade política ativa, seja no que respeite à capacidade política passiva, deve submeter-se ao que a teoria constitucional, contemporaneamente, designa como “limites dos limites”, entre os quais sobressaem o princípio da proporcionalidade e a garantia do conteúdo essencial do direito fundamental.

No caso do sufrágio, tenho séria e honesta dúvida se a legislação do chamado “ficha-limpismo” no Brasil alcançou respeitar esses limites.

 Néviton Guedes