"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 18 de dezembro de 2016

O Livre Mercado é a chave para a prosperidade? A Noruega prova que não.


A Noruega é um país gelado localizado no extremo norte da Europa e considerado por alguns o mais próspero do mundo.

Esse título é comumente atribuído a essa nação devido aos diversos indicadores econômicos invejáveis, estando sistematicamente entre os melhores do mundo em itens como PIB per capita (indicador de geração de riqueza, maior = melhor), IDH (indicador de desenvolvimento social, maior = melhor), índice GINI (indicador de desigualdade social, menor = melhor), índice de homicídios (menor = melhor), desemprego, dentre diversos outros (praticamente qualquer indicador de desenvolvimento tem a Noruega entre as primeiras posições).

Um país com tamanho sucesso em áreas tão distintas é um caso importante a ser estudado por aqueles que desejam o sucesso econômico e social de sua própria nação e este texto se propõe a compreender o que tornou e mantém a Noruega numa posição destacada entre todos os países do mundo.

Serão levantados os principais pontos que tornaram a Noruega um caso de sucesso, dentre tantos outros países que encontraram grandes reservas de recursos naturais, dado que muitos acabam permanecendo no atraso dependendo unicamente da extração da matéria prima encontrada.

A Noruega se tornou um país independente da Coroa Sueca em 1905 e permaneceu com pouco destaque na economia europeia até o início da exploração de petróleo no Mar do Norte, na década de 60, cujo período deve ser resumido antes de se aprofundar em outros aspectos da economia norueguesa.

Isso se faz necessário pelo fato desse país, apesar de possuir uma pequena população,  de apenas 5 milhões de habitantes, ter se tornado o 13º maior produtor de petróleo do mundo, com uma produção de 2 milhões de barris por dia, além de ser a origem de diversas companhias relevantes em nível mundial do setor (como a Statoil, a Aker Solutions, a Subsea 7, a Seadrill e a DOF). Essa relevância é visível na composição das exportações do país, na qual produtos relacionados ao petróleo chegam a quase 65% do valor exportado.

Alguns poderiam dizer que isso é consequência do petróleo fácil, como o do Oriente Médio, mas isso não é verdade. O petróleo norueguês está em alto mar e sempre precisou de tecnologia de ponta para ser devidamente extraído. Sua situação se aproxima muito mais com a do Brasil, do México, da Nigéria, da Guiné Equatorial e da Namíbia do que dos países do Oriente Médio que possuem óleo de altíssima qualidade e extremamente acessível logo abaixo de seus desertos. Não é necessário se estender para concluir que o ouro negro não trouxe prosperidade similar para os outros países em situação análoga à norueguesa.


O Modelo Norueguês de Exploração de Petróleo

Durante a década de 60, a exploração de petróleo na Noruega era quase completamente feita por empresas privadas estrangeiras. No governo de Trygve Bratteli (do Partido Trabalhista Norueguês, que governou nos períodos de 1971-1972 e 1973-1976), foram tomadas decisões que muito influenciaram no destino da Noruega: A criação da Statoil (petrolífera 100% estatal), a definição de que o governo norueguês teria no mínimo 50% de todos os campos explorados a serem licenciados no país e a obrigatoriedade dos estrangeiros desenvolverem fornecedores locais (chegando ao ponto de forçar a contratação de fornecedores específicos para que sua operação fosse autorizada).

A partir da 4ª rodada de licenciamento (1978-1979) foi introduzida a obrigatoriedade de investimento em pesquisa e desenvolvimento pelas empresas interessadas. 

Desse investimento, 50% obrigatoriamente teria que ser feito em instituições norueguesas.

Em 1985, houve alteração no sistema: O Estado Norueguês passou a ter uma participação variável em cada projeto, definida para cada licença, sendo essa participação do Estado executada através da Statoil (ou seja, a todos os campos a serem licitados teriam a Statoil como sócia, com essa porcentagem variando em cada projeto).

No ano de 1990, foi criado o atual fundo soberano norueguês: o Government Pension Fund Global. Fundo esse que se tornaria o maior fundo soberano do planeta, responsável por investir a receita do governo norueguês como consequência de sua participação na exploração de petróleo do país.

As políticas de conteúdo local foram abolidas em 1994, como consequência de um acordo de livre comércio com a União Européia.

Em 2001, foram vendidas parte das ações da Statoil, que se tornou uma empresa de economia mista, mas tendo como maior acionista o Estado norueguês (que permaneceu como único controlador da empresa). Com essa venda, a participação estatal nos campos passou a ser administrada através da recém fundada Petoro (100% estatal), a qual, porém, não opera nenhum campo.



Pode-se dizer que o regime de partilha que tentou se estabelecer para o pré-sal brasileiro foi inspirado no regime norueguês em diversas de suas fases, como:

1- Possuir uma participação estatal variável para cada campo licitado, administrada por uma empresa 100% estatal (Pré-Sal Petróleo S/A), com participação obrigatória da operadora de economia mista (Petrobras), de uma forma que também varia em cada projeto;

2- Criação de um fundo soberano para a investimento das receitas do Estado provenientes da extração petrolífera;

3- Obrigatoriedade de conteúdo local para os empreendimentos.



O Fundo Soberano e o Estado Empresário Norueguês

Pode-se dizer que a principal herança do modelo de exploração de petróleo norueguês é o seu fundo soberano, o Government Pension Fund Global que por si só é uma demonstração do gigantismo do Estado norueguês.

O valor de mercado do fundo soberano no dia de elaboração desse artigo ultrapassava 7 trilhões de coroas norueguesas (mais de 800 bilhões de dólares), sendo que todo o mercado de ações da Noruega estava avaliado em pouco mais de 2 trilhões de coroas norueguesas (menos de 1/3 do tamanho do fundo soberano do país). A dívida pública norueguesa se encontrava em um pouco mais de 1 trilhão de coroas norueguesas, o que significa que o fundo soberano poderia comprar todas as ações e toda a dívida pública norueguesa 2 vezes que ainda assim sobraria dinheiro.

Como o PIB da Noruega está um pouco acima de 3 trilhões de coroas norueguesas (menos de 400 bilhões de dólares), isso significa que toda a riqueza produzida no país em dois anos é menor que o valor de mercado do fundo soberano norueguês.

No entanto, mesmo sem considerar o Government Pension Fund Global, o governo é o principal player econômico do país, controlador de todas as 5 maiores empresas da Noruega em valor de mercado (já excluindo dessa lista as empresas totalmente estatais, que não possuem valor de mercado bem definido para serem avaliadas), que estão listadas abaixo:

Statoil ASA (67% diretamente do Estado, 3% do Estado via fundos. Controlada pelo Estado)

Telenor ASA (54% diretamente do Estado. Controlada pelo Estado)

DNB ASA (34% diretamente do Estado, 10% de fundos do próprio banco. Controlada pelo Estado)

Yara International ASA (36% diretamente do Estado, 5% do Estado via fundos. Controlada pelo Estado)

Norsk Hydro ASA (35% do Estado, 1% dela mesma. Controlada pelo Estado)

Dentre essas empresas se encontram a maior petrolífera do país (Statoil), a maior empresa de telecomunicações (Telenor), o maior banco (DNB), além da maior empresa de alumínio (Norsk Hydro), mas a participação do governo em setores estratégicos não se resume a essas companhias.

No setor de energia elétrica, por exemplo, praticamente não há espaço para a inciativa privada. Toda a transmissão e distribuição de energia elétrica em alta tensão é controlada por uma empresa 100% estatal chamada Statnett, que também é a operadora do sistema.

Na geração de energia, além da Norsk Hydro (segunda maior geradora de energia do país) o Estado está presente através da Statkraft (maior geradora de energia do país) e da TrønderEnergi, dentre outras empresas públicas.

Com geração quase totalmente estatal, a Noruega é um dos líderes mundiais no uso de energia limpa e renovável, com mais de 99% de suas necessidades energéticas geradas através de usinas hidrelétricas. Também lidera no uso de carros elétricos e se destaca mundialmente com planos agressivos de redução das emissões de gases poluentes (o que parece irônico vindo de um país que tem nos derivados de petróleo o principal produto de exportação).

Antes da criação da Statnett e Statkraft, a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica era tratada diretamente pelo Norges vassdrags- og energiverk, que é algo como um Ministério das águas e energia. O que significa que o modelo estatal na área de energia elétrica é bastante antigo.

Outro ponto que deve ser destacado é o baixíssimo nível de corrupção (entre os menores do mundo), tanto no serviço público quanto no privado, que está fortemente ligado à transparência quase irrestrita. Diferentemente de outros países, onde o sigilo fiscal é inviolável e um valor defendido de forma apaixonada, na Noruega a renda e os impostos pagos por qualquer cidadão está disponível a quem estiver interessado desde o ano de 1814 (época em que era unida com a Suécia), quando essas informações já podiam ser obtidas nas prefeituras. Hoje, com a internet, os habitantes da Noruega conseguem facilmente descobrir quanto ganham e os impostos que pagam cada um de seus compatriotas, o que simplifica enormemente o combate à sonegação fiscal e enriquecimento ilícito.


Carta Tributária e o Estado de Bem-Estar Social Norueguês

Outro ponto em que a Noruega se destaca é quanto a seus altos impostos. O sistema de taxação norueguês é todo construído de acordo com a ideia de que cada um deve pagar impostos de acordo com suas capacidades, ou seja, o imposto é progressivo: quem ganha mais, paga mais. Pode-se dizer que os impostos noruegueses são altos porque, desde 1970, o peso dos mesmos está entre 35% e 45% do PIB, com pequenas variações no período, sempre figurando entre as maiores entre os países membros da OCDE.

Sobre o Estado de Bem-Estar Social, pode-se dizer que a Noruega é referência no mundo, sendo utilizada como exemplo clássico de Estado que propicia tudo que um cidadão pode desejar de um governo, o que um (neo)liberal consideraria um entrave para o desenvolvimento de uma nação.

Os direitos trabalhistas são muito extensos. A lei permite trabalho até 40h semanais, mas todos os acordos coletivos vigentes são de até 37,5h semanais. Além disso, funcionários tem direito a redução de carga horária por motivos sociais, de saúde ou bem-estar. Os que não possuem cargo de chefia devem receber no mínimo 40% de adicional em caso de horas extras.

Todos os funcionários tem direito a 5 semanas de férias, sendo que aqueles com mais de 60 anos possuem o direito de uma semana adicional (totalizando 6 semanas). 3 dessas semanas devem ser tiradas de forma consecutiva, enquanto as outras 2 semanas podem ser divididas em dias ou semanas separadas.

Um funcionário tem direito a 10 dias por ano para cuidar de seus filhos doentes, aumentando para 15 no caso de ter mais de um filho. Pais (ou mães) solteiros tem esse benefício dobrado (20 dias no caso de um filho e 30 no caso de mais de um). Em caso de gravidez, são disponibilizadas 43 semanas (algo próximo de 10 meses) de folga a serem compartilhadas pelo pai e mãe (sendo que as primeiras 6 semanas necessariamente devem ser da mãe e 14 dessas semanas necessariamente do pai).

O seguro-desemprego é bastante generoso. O desempregado recebe 62,4% de sua renda bruta por até 1 ou 2 anos, dependendo de sua faixa de renda. Caso você não tenha dinheiro o suficiente para sua subsistência, o governo irá complementar sua renda no valor que considerar necessário (o valor depende do município).

O sistema de saúde norueguês é universal, gratuito, descentralizado e financiado pelos impostos. A maior parte dos hospitais é estatal, com uma quantidade muito pequena de hospitais privados. Além disso, mesmo os hospitais privados normalmente recebem dinheiro do Estado.

A Noruega possui um sistema educacional público bem estruturado, que abrange desde a infância até a universidade. Apenas o jardim de infância é pago, mas o governo tem como objetivo torna-lo acessível para todos que tenham interesse em colocar seus filhos no jardim de infância. Quanto ao tamanho do sistema público em relação ao privado, se encontram fora do sistema estatal de educação 45% das crianças no jardim de infância, 2,2% dos usuários da educação primária e secundária baixa (10 primeiras séries, dos 6 aos 16 anos), 6% dos alunos da educação secundária superior (16-19 anos) e 13% dos alunos universitários.

Levando em consideração todos os fatores apresentados no texto, pode-se concluir que a chave do crescimento do país mais próspero do mundo não foi o livre-mercado, mas a presença massiva do Estado nos setores chave da economia (extração de matéria prima, serviços básicos, saúde, educação, sistema bancário, sistema elétrico, entre outros), o oferecimento de amplo sistema de bem-estar social e o estímulo ao desenvolvimento de empresas e tecnologias locais.

Também salta aos olhos que a corrupção não é combatida com retórica simplista que responsabiliza o Estado e ignora a corrupção privada. Na Noruega as contas dos indivíduos são expostas e isso é utilizado para inibir a corrupção pública e privada simultaneamente.

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