terça-feira, 14 de maio de 2013

Quem tem medo do PLC 122/2006?



Faz 12 anos que o Congresso discute projeto que pune a discriminação sexual e de gênero, como já ocorre em pelo menos 52 países. Mas Legislativo “persiste em ceder a pressões de cunho religioso para barrá-lo”

“Não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos.”
(Salvador Allende)

Em 17 de abril de 2013, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD-LGBT) entregou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal, substitutivo ao Projeto de Lei da Câmara (PLC nº 122/2006).

O CNCD-LGBT é uma instância consultiva e deliberativa do governo federal, ligada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), com representação paritária de 15 integrantes do governo e 15 da sociedade civil e realizou uma ampla discussão sobre o substitutivo antes da apresentação da versão final à CDH.

A proposta conta com a chancela da SDH, demonstrando o entendimento do governo federal de que é necessário proteger as populações vulneráveis por meio de uma lei específica contra crimes de ódio e intolerância.

Entre suas disposições, o substitutivo prevê principalmente punição dos “crimes de ódio e de intolerância, sendo estes os praticados por motivo de discriminação ou preconceito de identidade de gênero, orientação sexual, idade, deficiência ou por outro motivo assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância.”

Em sua definição de crimes de ódio e quem os sofrem, o substitutivo está em consonância com a legislação de outros países, como o Reino Unido por exemplo, que estabelece que “crime de ódio é qualquer crime cometido contra uma pessoa ou contra propriedade motivado por hostilidade ou preconceito com base em deficiência, raça, religião, identidade de gênero ou orientação sexual” (Crown Prosecution Service, 2012, tradução nossa).

Hoje no Brasil existem dados oficiais que comprovam inegavelmente que uma das populações contempladas pelo substitutivo – a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) – é vítima desprotegida desses tipos de crime, especificamente em relação à orientação sexual e identidade de gênero.

Por exemplo, o “Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: o ano de 2011”, elaborado e divulgado pelo governo federal, registrou 6.809 violações contra a população LGBT nos seguintes serviços apenas naquele ano: Disque Direitos Humanos (Disque 100), Ligue 180, Disque Saúde e a Ouvidoria do Sistema Único de Saúde.

No ano de 2012, houve 338 assassinatos de pessoas LGBT no Brasil, com indícios de terem sido mortas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, segundo dados do Grupo Gay da Bahia baseados em monitoramento dos meios de comunicação. Tem-se, portanto, em média um assassinato de uma pessoa LGBT por dia no país.

Leis com proposta semelhante à do PLC 122 foram aprovadas nos Estados Unidos e no Chile em função de assassinatos emblemáticos que chocaram essas nações, o “Matthew Shepard and James Byrd Jr. Hate Crimes Prevention Act” (2009) e a “Ley Daniel Zamudio” (2012), respectivamente.

Outros 23 países também têm leis semelhantes em relação a crimes de ódio e pelo menos 52 países em relação à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero (ver detalhes em Ilga, Homofobia do Estado, 2012), e até hoje não se tem notícia de padre, pastor ou outro religioso ter sido encarcerado por eventuais interpretações de livros sagrados contrárias à homossexualidade manifestadas em seus templos naqueles países.

O senador Paulo Paim (PT/RS), relator do PLC 122 na CDH, realmente tem-se demonstrado qualificado para ser o articulador da sua aprovação (inclusive colocando-a como uma das prioridades de seu mandato em 2013), pelo seu histórico com aprovação de legislação significativa no combate às iniquidades, como no caso do Estatuto do Idoso, do Estatuto da Igualdade Racial e do Estatuto da Juventude, entre outros projetos. Inclusive, enquanto essas e outras chamadas “minorias” sociais já têm legislação específica que visa protegê-las, o segmento LGBT permanece sendo o objeto de omissão legislativa neste sentido. Essa omissão nada mais faz que permitir a impunidade para os que cometem as milhares de violações anuais de direitos humanos registradas pelo governo.

E a certeza da impunidade cria um círculo vicioso em que o preconceito se manifesta na prática da discriminação, e esta repetidamente se manifesta em ofensas, constrangimentos, ameaças e violências psicológicas e físicas, sem que haja a devida contenção necessária em um país cuja Constituição afirma que não haverá discriminação de qualquer natureza.

Apesar de ocorrerem todos os anos no Brasil assassinatos e violações de direitos humanos, o Legislativo federal brasileiro persiste em ceder a pressões de cunho religioso para barrar o PLC 122, apesar de todas as tentativas de encontrar uma redação de consenso. Apresentada em 2001, na forma do Projeto de Lei 5003/2001, a proposição já tramita há 12 anos no Congresso Nacional (cinco na Câmara e sete no Senado).  Espera-se que desta vez prevaleçam o bom senso e os preceitos constitucionais da garantia da vida, da segurança, da igualdade e da laicidade.


Projeto não interfere na realidade interna dos templos

O substitutivo dialoga com setores religiosos resistentes à aprovação, uma vez que no Artigo 3, inciso V, estabelece que constituem crimes de intolerância “impedir, restringir a expressão e a manifestação de afetividade, identidade de gênero ou orientação sexual em espaços públicos ou privados de uso coletivo, exceto em templos de qualquer culto, quando estas expressões e manifestações sejam permitidas às demais pessoas” (grifo nosso).

Assim, o substitutivo reconhece que os cultos religiosos têm suas próprias normas, livros sagrados que norteiam sua condução. O PLC 122 não vai interferir no funcionamento interno dessas instituições.

Ao contrário do que alguns opositores já vêm afirmando, o substitutivo proposto não estabelece (nem sequer por inferência) a obrigação dos cultos realizarem o casamento religioso entre pessoas do mesmo sexo, da mesma forma que não são obrigados a reunir em matrimônio pessoas heterossexuais, e só o fazem em conformidade com o estabelecido em suas “regras internas”. Ademais, já faz alguns anos que igrejas inclusivas no Brasil realizam casamentos religiosos entre pessoas do mesmo sexo que assim desejarem.

Cada igreja tem sua norma a respeito do casamento religioso que realiza e isto não está sujeito à interferência da legislação.

O que a lei vem permitindo cada vez mais é o casamento civil, sendo que já há provimentos em dez estados determinando que se proceda a habilitação de pessoas do mesmo sexo para esta forma de casamento. Neste sentido, é oportuno relembrar que em 2006 a Lei Maria da Penha, no seu Artigo 5o, inciso II, já tinha um entendimento abrangente sobre os arranjos familiares da atualidade, estabelecendo que a família é “compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.

Outro argumento utilizado contra o PLC 122 é que o inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal estabelece a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e assegura o livre exercício dos cultos religiosos. No entanto, fora dos “templos”, essa liberdade não deverá se sobrepor à dignidade humana de setores da sociedade que não se enquadram nessas convicções. O Estado brasileiro é laico. Isso quer dizer que há uma separação entre o secular e o religioso, e que é a Constituição, e não os livros sagrados, a lei maior que determina como o país é governado e quais garantias, direitos e deveres têm os cidadãos e as cidadãs.

Concluo com uma entre várias posições nítidas expressas por ministros(as) do Supremo Tribunal Federal, de que a liberdade de expressão não pode ferir a dignidade humana. Cito Gilmar Mendes versando sobre racismo, em cuja fala o paralelo com qualquer outra forma de discriminação, inclusive por orientação sexual e identidade de gênero, também é válido:

“…a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria ideia de igualdade.

Nesse contexto, ganha relevância a discussão a respeito da medida de liberdade de expressão permitida constitucionalmente, sem que isso possa levar à intolerância e ao racismo, em prejuízo da dignidade humana, do regime democrático, enfim, dos valores inerentes a uma sociedade pluralista.

Não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da dignidade humana…”

(extraído de A Jurisdição constitucional no Brasil e seu significado para a liberdade e a igualdade).

Toni Reis

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