sábado, 13 de julho de 2013

Quando o poder econômico toma o lugar do eleitor


19/07/2012 

O conhecido princípio do voto direto, ou princípio da “imediaticidade do sufrágio” ou da imediação da eleição — Unmittelbarkeit der Wahl, como designam os alemães — consiste num dos principais aspectos de um regime democrático, ao estabelecer que os membros da representação do povo sejam eleitos diretamente pelo eleitor sem a intermediação de qualquer espécie de “eleitores qualificados”, também chamados de “supereleitores” (Wahlmänner).

Conforme B. Pieroth e B. Schlink, o princípio do voto direto, presente nos regimes democráticos, volta-se contra todo e qualquer processo eleitoral no qual, realizada a eleição, entre o eleitor e o candidato se interponha alguma instância ou vontade que, de fato, promova a escolha do representante popular.

A ideia de um eleitor qualificado retiraria do cidadão a possibilidade de, por si mesmo, determinar com o seu voto a sua representação no poder. De outro lado, a garantia do voto direto consagra a ideia de que todo voto manifestado pelo eleitor seja “diretamente” conferido ao candidato, ou ao partido por ele escolhido, isto é, sem a intermediação de outra instância decisória que possa, ao fim, alterar a vontade política manifesta pelo eleitor.

Por tudo isso, salvo exceções de importância histórica cada vez mais inexpressiva (como o sistema de escolha do Presidente da República nos Estados Unidos), o chamado sistema de eleição por delegados, ou a chamada eleição indireta (Wählmännersystem), perdeu completamente o seu significado prático.

Infelizmente, não obstante a verdadeira unanimidade formada em torno da sua importância, ao ponto de ter sido transformado em dogma dos regimes democráticos, sérios perigos ameaçam o voto direto, e eles são tanto mais insidiosos quanto mais se utilizam de roupagens institucionais novas, de modo a torná-los absolutamente imperceptíveis e, com isso, impermeáveis à crítica.

Quais seriam esses perigos? Por falta de espaço, cuido aqui de apenas uma dessas grandes ameaças, consistente no poder econômico, conformado pelos grandes financiadores de campanhas eleitorais. Mas o Direito Comparado e mesmo a legislação brasileira conhecem, perfeitamente, a existência de outras grandes ameaças à relação direta que deve existir entre cidadão e a escolha de seu representante. Apenas para ficar nos exemplos mais conhecidos, sejam citados o caso do poder político e do poder da mídia.

Eu acrescentaria ainda outro, menos conhecido, mas não menos perigoso, consistente na ameaça ao voto direto que pode existir em qualquer sistema de verificação de poderes — que administra e fiscaliza as eleições —, no qual se atribua em demasia a possibilidade de intervenção por parte de órgãos e agentes do Estado encarregados de zelar pela regularidade das eleições — no caso brasileiro, como se sabe, esse poder é atribuído ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.

O Poder Judiciário e o Ministério Público Eleitoral não podem, e isto me parece uma obviedade, a título de administrar ou fiscalizar eleições, intervir em demasia na escolha dos cidadãos e nos resultados do processo eleitoral. Mas hoje, como dizia, cuidarei apenas dos grandes financiadores de campanhas.

O mandato representativo, como elemento clássico das Democracias representativas, tem como corolário a ideia de que, como representantes de todo o povo, os agentes políticos eleitos não têm quaisquer vínculos ou encargos que não sejam com sua consciência. Daí carecer manterem-se livres tanto de vínculos com os poderes estatais como de outros poderes sociais.

Faço aqui um parêntesis para explicar um ponto importante e, não obstante, de difícil compreensão. Na verdade, como bem demonstrado por Norberto Bobbio, no seu "O futuro da democracia": uma defesa das regras do jogo, na inexistência de mandato imperativo, depois de eleito, o agente político deve estar livre inclusive de vinculações com os interesses parciais de seu eleitor direto, pois lhe cumpre a defesa dos interesses de toda a comunidade e não restritamente dos eleitores que lhe outorgaram o voto.

Assim, um representante de uma dada categoria, ou de uma parcela da comunidade, deve, por difícil que isso nos pareça, estar livre dos interesses corporativos de seus eleitores, para representar o interesse público geral. Em outras palavras, numa verdadeira Democracia, o eleitor deve, com generosidade, escolher diretamente o candidato, sabendo que, depois de eleito, ele deverá representar não apenas seus interesses parciais imediatos, mas os interesses gerais da comunidade.

Eu sei que isso é tanto mais difícil de acontecer quanto mais necessário se mostre à razão, mas não é por outro motivo que a nossa Constituição expressamente afirma que a Câmara dos Deputados é constituída de “representantes do povo”, e não apenas de representares dos seus eleitores, de corporações, classes ou de categorias isoladas (artigo 45). Concluo o parêntesis.

Voltando ao que nos interessa, tudo isso considerado, numa nova conformação hermenêutica do princípio da “imediaticidade do sufrágio”, abarcando-o em sua dupla esfera de manifestação (sufrágio ativo e passivo) e conjugando-o com a igualdade entre os competidores e a liberdade de conformação da vontade política do eleitor, há de se consagrar a ideia de severa limitação e controle no que respeita à possibilidade de atuação dos grandes financiadores privados de campanhas eleitorais.

Eles, bem observados, sem controle, podem configurar uma nova modalidade de “supereleitores”. Em outros termos, os grandes financiadores de campanha são os “grandes eleitores” dos novos tempos. Infelizmente, como se sabe, a legislação brasileira é bastante permissiva quanto às contribuições financeiras às campanhas eleitorais, limitando-as, no caso de pessoas físicas, a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição (artigo 23, parágrafo 1º, da Lei 9.504/1997); no caso de pessoas jurídicas, o limite é de dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição (artigo 81, parágrafo 1º, da mesma lei), tudo dependendo, pois, da riqueza pessoal ou do tamanho do faturamento dos financiadores.

A relação entre partidos políticos e candidatos, de um lado, e financiadores de campanha, de outro, poderá revelar-se ainda mais constrangedora ao princípio da imediaticidade, caso prevaleçam na Lei 12.034/2009 dispositivos que autorizam aos candidatos e aos partidos políticos transportarem suas dívidas de campanha para além do fim do processo eleitoral, conforme a Lei 9.504/1997, no artigo 29, parágrafos 3º e 4º, tornando ainda mais difícil e imperceptível o controle dos gastos tanto por parte dos eleitores como dos órgãos que têm a atribuição legal exercer a sua fiscalização.

Em resumo, a possibilidade de grandes contribuições financeiras privadas às campanhas eleitorais, no Brasil, a um só golpe, corrompe a igualdade de chances entre competidores e limita muito a possibilidade de livre formação da vontade política do pequeno eleitor, esmagado por uma desenfreada manifestação de poderio econômico no marketing eleitoral, mas, sobretudo, corrói a legitimidade do mandato representativo ao deformar a relação ou o vínculo que possa haver entre o eleitorado como um todo (o povo) e o candidato eleito.

Com efeito, na existência de grandes contribuições privadas a campanhas eleitorais, há de se esperar que o candidato, sobretudo depois de eleito, se mostre mais sensível aos interesses particulares do seu grande eleitor (o responsável por suas despesas de campanha) do que propriamente com o interesse geral representado pela massa de pequenos eleitores comuns, que, individualmente, se contrariados pelo candidato escolhido, mais não podem do que lhe recusar o voto na próxima eleição.

Aliás, a conclusão de que grandes contribuições privadas corrompem o processo eleitoral está, por exemplo, na base da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, ao entender como constitucionais as restrições impostas pela legislação daquele país aos valores que eventualmente poderiam ser doados na forma de contribuição direta (contribution) à campanha dos candidatos.

Ali, a Suprema Corte distinguiu, de um lado, o conceito de despesa sem coordenação (vinculação) com o candidato (expenditure) e, de outro, o conceito de contribuição feita diretamente ao, ou em coordenação, com o candidato (contribution), concluindo que as doações vultosas diretamente às campanhas eleitorais corrompem a vontade do candidato, considerando, com isso, absolutamente constitucionais as limitações do Federal Election Campaign Act de 1971, alterado em 1974.

Entendeu, entretanto, a Suprema Corte que o cidadão pode, em homenagem à liberdade de expressão, desde que informe à Comissão Federal das Eleições (Federal Election Commission), despender o valor que queira para defender as ideias e candidatos que mais representem o seu perfil ideológico ou interesses, desde que o gasto (expenditure) não seja feito na forma de contribuição direta (contribution) ao candidato, nem realizado em coordenação com a sua campanha.

Em boa hora, pois, vem se mostrando crescente a preocupação dos especialistas em Direito Eleitoral com o problema das grandes contribuições privadas a campanhas eleitorais.

Néviton Guedes 

Nenhum comentário:

Postar um comentário