domingo, 8 de setembro de 2013

O princípio federativo e a autonomia dos sistemas de ensino

27/jun/2005  

O princípio do federalismo exige precisão na distribuição e delimitação, na matéria constitucional, e das competências legislativa e administrativa dos entes federados.

O princípio do federalismo exige precisão na distribuição e delimitação, na matéria constitucional, e das competências legislativa e administrativa dos entes federados. Dentre as competências privativas salienta-se o contido no art. 211 da Constituição de 1988: “a União, os Estados e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, seus sistemas de ensino.” 

O art. 22, inciso XXIV, reserva à União estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional, mandamento que resultou na Lei 9.394/96, a qual regulamenta no seu art. 10 a competência da União e dos Estados para autorizar, credenciar, reconhecer, supervisionar e avaliar os cursos e programas das instituições de seus respectivos sistemas de ensino.

Em que pese a clareza dessa matéria constitucional e infra-constitucional, o Ministério da Educação tem produzido instruções e portarias que não levam em conta a autonomia dos Estados quanto a seus sistemas de ensino, quando a matéria trata do nível de pós-graduação. Tal posicionamento faz que se confunda o conceito de sistema federal de ensino com o de sistema nacional de educação, o qual será a perfeita harmonização das competências da União com as dos estados-membros da Federação, respeitando-se incondicionalmente as respectivas autonomias.

George Burdeau, em seu consagrado ensaio sobre o Liberalismo, publicado originalmente em 1979, construiu preciosa metáfora que adentraria, por sua oportunidade, o século XXI.

São palavras suas: Na mitologia contemporânea, as Parcas têm os nomes de burocracia, tecnologia e centralização. São elas que fazem os nossos infernos, não porque fiam, tecem ou cortam o fio de nossas vidas, mas porque nos obrigam a viver sem liberdade.

A centralização política, econômica e administrativa que ainda ocorre no Brasil, ao arrepio da matéria constitucional, é resultado de obscuras forças centrípetas que têm raízes longínquas no autoritarismo de nossas práticas coloniais e do período imperial e, mais recentes, mas não menos prejudiciais à construção democrática, no coronelismo da 1ª República e nas oligarquias geradoras de privilégios que marcaram todo o século XX.

Tudo isso somado ao despreparo de uma população desprovida de sustentação educacional para reagir ao desmedido controle governamental em suas vidas, que vem abortando suas utopias e sua liberdade, têm gerado, ainda hoje, condições psicossociais para a imposição de regras autoritárias produzidas nos laboratórios da alquimia política de Brasília, sob os olhares permissivos, quando não cúmplices, de um Parlamento suja maioria se agarra às benesses do poder central, a este se submetendo.

Felizmente a história brasileira registra momentos iluminados pela ação de pequenas, mas valorosas elites intelectuais. Foi assim, no Império, a luta pela autonomia das Províncias e dos Municípios. Assim também foi nas fases republicanas, sempre que foi acionado o Poder Constituinte. Graças a essas elites foram deflagradas ou estimuladas forças centrífugas que culminaram com o Federalismo, hoje cláusula pétrea de nosso Direito Constitucional.

Entretanto, não se pode negar, todas essas conquistas têm sido enfraquecidas, na prática cotidiana, pelos impulsos centralizadores infelizmente repetidos pelos governantes de todos os partidos e ideologias, confortavelmente sustentados por uma tecnocracia empedernida. Temos assim, no Brasil, uma federação legal mas ainda carecemos de uma federação real, daquela utopicamente propugnada pelo Iluminismo tardio de nossas elites, no século XIX.

A teoria política nos ensina que a vida democrática de uma nação depende, em boa parte, do seu nível de descentralização política e administrativa. Isso se dará em dois planos: a) o horizontal que nos é oferecido quando ocorre a separação, na prática institucional, entre Estado e Governo, o que somente será possível com a adoção do sistema parlamentarista; b) o vertical, obtido com a autonomia objetiva dos entes federados.

O desinteresse dos governantes, aliado ao despreparo da maioria da população, não têm permitido a conquista do parlamentarismo entre nós, tema indigesto para os que governam sob a égide da concentração de poderes e indiferente à boa parte da classe política que não percebe ou não quer perceber os fundamentos e conseqüências dessa mudança fundamental.

Quanto à descentralização a nível vertical (a autonomia dos entes federados), trata-se do resultado de um impulso muito forte que perpassa por toda a nossa história. Vários movimentos autonomistas marcaram profundamente a nossa evolução política. Mesmo o conhecido Manifesto Republicano de 1870 foi na verdade um resultado do movimento federalista que vinha de longe.

Entretanto descentralização não é palavra mágica que possa produzir efeitos simplesmente pela sua introdução no regime constitucional de um Estado. Exige uma práxis continuada e conseqüente. Conforme observa com precisão o constitucionalista Paulo Marcio Cruz:

Existe descentralização política quando as entidades regionais e locais integradas no Estado não só podem executar, com governo e administração própria, mas também elaborar, elas mesmas, suas próprias leis, com a mesma capacidade normativa e força vinculante das leis estatais contrais.

O federalismo foi a fórmula que se desenvolveu historicamente no Brasil para a realização de um Estado politicamente descentralizado e, portanto, assegurador de liberdades públicas e individuais. A estrutura federal não é só cláusula pétrea em nosso regime constitucional, mas também um dos valores nacionais permanentes devidamente consagrados. O desafio que se nos impõe é assegurar um federalismo real e harmônico com claras demonstrações de mútuo respeito e intercolaboração. Enquanto a tecnoburocracia da União continuar, com várias de suas práticas, ameaçando desorganizar esse delicado equilíbrio, pela invasão na competência privativa de Estados e Municípios, estaremos submetidos a grandes riscos na afirmação do constitucionalismo democrático entre nós.


2 - A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a Educação Superior

É sabido que, numa Federação, para a funcionalidade e a harmonia do sistema político-administrativo, é fundamental que a Constituição Federal distribua as competências que devem nortear os órgãos públicos das diferentes esferas de poder, na realização de suas funções. Estas, quando decorrentes de competência constitucional privativa, são irrenunciáveis e indelegáveis, mas também com sua completude devidamente definida e delimitada.

O Diploma Constitucional de 1988 estabelece, em seu art. 22, item XXIV, que é competência privativa da União legislar sobre Diretrizes e bases da educação nacional. Esse mandamento foi cumprido através da Lei 9.394 publicada a 20 de dezembro de 1996.

Esta lei, atendendo ao prescrito no art. 211  da Constituição, regula os mecanismos necessários ao pleno cumprimento da matéria. Assim, quanto à educação superior, dispõe a Lei, no seu art. 10, in verbis:

A União incumbir-se-á de (...) IX- autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino. (...).

Os Estados incumbir-se-ão de (...) IV- autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino; V- baixar normas complementares para o seu sistema de ensino.

Já no art. 44, a LDBEN assim dispõe:

A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas: (...) III- de pós-graduação compreendendo programas de Mestrado e Doutorado, cursos de especialização, aperfeiçoamento e outros, abertos a candidatos diplomados em cursos de graduação e que atendam as exigências das instituições de ensino.

Como se pode concluir, não se trata de casos de competência concorrente mas de competência privativa, cujo exercício se torna obrigatório, indelegável e não sujeito a quaisquer turbações.

Na lógica da LDBEN – que segue a lógica dos princípios constitucionais que regem superiormente a matéria - o sistema nacional de educação outra coisa não é se não a coordenação de ambas as esferas de sistemas de ensino (o federal e os estaduais), devidamente articulados com vistas à validade nacional dos diplomas expedidos pelos cursos e programas devidamente credenciados.


3. A situação atual

Em vistas dos dispositivos constitucionais e infra-constitucionais que dispõem sobre a matéria em estudo, não deveria existir qualquer preocupação entre as instituições de educação superior, integradas a qualquer sistema estadual de ensino quando devidamente credenciada. Não é, no entanto, a realidade que elas estão vivenciando, tantas são as dificuldades existentes.

Para entendermos as contrafações ao que é propugnado pelo nosso direito positivo, evocamos mais uma vez a metáfora de Burdeau mencionada no início deste trabalho.

A tecnocracia que domina as instituições federais dão-nos a impressão de que jamais elas se conformaram com o federalismo material contido na LDBEN, pois este esbarra na cultura concentradora de poderes que domina no País da qual a política do Ministério da Educação quanto à pós-graduação, é exemplo constante.

Verifica-se que até hoje o Conselho Nacional de Educação se omitiu na questão do registro dos cursos e programas credenciados pelos sistemas estaduais. Outrossim as resoluções do CNF e do MEC, quando dispõem sobre normas para os cursos e programas de Doutorado e Mestrado, desconhecem ou fingem desconhecer a existência da autonomia dos diferentes sistemas de ensino.

O resultado de tudo isso é que nas listas oficialmente divulgadas dos cursos e programas de Pós-graduação stricto sensu, ditos como únicos com validade nacional, aparecem apenas aqueles credenciados pelos órgãos da União. Não há mesmo um cadastro nacional indicando as instituições educacionais com programas de mestrado e doutorado que estejam vinculados a um e outro sistema de ensino. Bem ao contrário, a burocracia da União parece haver adaptado velha regra dos processualistas dogmáticos que agora passa a ser “fora do sistema federal, fora do mundo.”


4. Perspectivas e Conclusão

As reflexões contidas neste trabalho foram estimuladas pela leitura de brilhante parecer do Conselho Estadual de Educação de São Paulo  elaborado em 2004 mas que só agora nos chegou às mãos.

O referido parecer, ricamente fundamentado no princípio do federalismo e em matéria pertinente da Constituição Federal de 1988, faz uma análise minuciosa da legislação que dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional para culminar com a seguinte conclusão, que transcrevemos:

2.1 a divisão organizacional determinada pela constituição federal, é regulamentada pela Lei nº 9394/96 e observada pela lei nº 4024/61 (com a redação dada pela Lei nº 9131/95);

2.2 a própria LDBEN determina as competências dos sistemas de ensino, também afirmando a abrangência do ensino superior compreendendo a graduação e a pós-graduação, além dos cursos seqüenciais e de extensão;

2.3 aos sistemas estaduais compete autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar os cursos e programas das IES integradas;

2.4 a Constituição Estadual estabelece que o Conselho Estadual de Educação é o órgão normativo, consultivo e deliberativo do sistema de ensino, devendo ele, portanto, exercer – obrigatoriamente – suas atribuições em relação ao tema tratado.

Segunda a nossa percepção, a importância maior deste parecer foi o fato de provocar a retomada de discussão sobre a autonomia dos sistemas de ensino que devem funcionar sob regime de coordenação e nunca de subordinação.

Antes dessa manifestação do CEE de São Paulo, somente nos era conhecida a decisão, no mesmo sentido, produzida em atitude pioneira, pelo Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina. Agora, o mais poderoso Estado da Federação externa também posição inequívoca e no mesmo sentido, sobre assunto que até agora os organismos pertinentes da União parecem desconsiderar.

Ainda não se tem percebido que a matéria constitucional e infra-constitucional, ao disporem sobre essa matéria, criaram implicitamente o sistema nacional de ensino superior composto dos sistemas federal e estadual. É a percepção e a conseqüente aplicação desse sistema nacional que poderá definitivamente emprestar validade nacional aos diplomas expedidos pelos programas de mestrado e doutorado devidamente credenciados pelo sistema de ensino competente para fazê-lo.

Finalmente, há que considerar ser o Federalismo, muito mais que uma técnica de organização do Estado: é, pelo menos no caso brasileiro, um princípio constitucional que tem a ver com os direitos de cidadania e com as aspirações democráticas da Nação. Respeitá-lo e fortalecê-lo é um dever dos Governos, das instituições e de todos os cidadãos conscientes.

Cremos assim, que, a partir de estudos como os realizados pelos conselhos estaduais de Santa Catarina e de São Paulo, venha o Ministério da Educação acordar para o problema, não mais permitindo que suas agências confundam as regras de competência do sistema federal de ensino com a construção do sistema nacional de educação superior.

Osvaldo Ferreira de Melo

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