O Supremo Tribunal Federal desempenhou um protagonismo nos casos de impeachment de presidente da República no
contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro. Os contextos histórico,
constitucional e institucional, ao lado das decisões do órgão de cúpula do
Poder Judiciário acerca da matéria, constitui objeto do presente trabalho.
A primeira Constituição brasileira, outorgada por Dom Pedro I em 25 de
março de 1824, trouxe a controvertida figura do Poder Moderador. Concebida por
Benjamin Constant e nunca antes — nem depois — instituída em nenhum outro texto
constitucional, esse quarto poder tinha a função principal de garantir a
harmonia entre os demais poderes, cabendo-lhe velar incessantemente “sôbre
manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”,
consoante o artigo 98 da Constituição imperial. Para tanto, poderia o
imperador, a quem o Poder Moderador fora delegado privativamente, demitir e
nomear livremente ministros, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear senadores
e vetar projetos de lei ou de resolução.
Embora a prática, para alguns, tenha contrariado o princípio
constitucional da harmonia e a separação entre os poderes, consolidou-se no
imaginário institucional brasileiro a cultura moderadora. Quando instalada
entre os poderes uma disputa com potencial para desestabilizar as instituições
e romper com o ordenamento, confia-se a uma instituição o papel de intervir
para assegurar a ordem sob o manto da neutralidade. Desde 1891, com a
Proclamação da República, essa função era cumprida pelas Forças Armadas. De
1988 em diante, dados a experiência da ditadura militar e o desenho
institucional deitado pela Constituição Federal, a prática moderadora foi
transferida ao Supremo Tribunal Federal, cuja técnica permite-lhe ultrapassar a
paixão da discussão política no enfrentamento de controvérsias constitucionais.
Nessa condição, tão logo a Presidência da República e o Congresso
Nacional chegam a um impasse, o Supremo Tribunal Federal é chamado a solucionar
o conflito a partir de uma leitura constitucional.
No advento da Constituição Federal de 1988, o primeiro cenário de forte
tensão entre os poderes deu-se no caso do presidente Fernando Collor de Melo,
eleito no ano de 1989. Após editar pacotes econômicos polêmicos, que abrangiam
medidas desde o confisco de poupança até o bloqueio de conta corrente, e
envolver-se em escândalos de corrupção, o primeiro presidente da República
eleito diretamente pelo voto popular em mais de 25 anos foi réu de processo de impeachment. Embora tenha renunciado ao mandato um dia antes
do desfecho do processo de cassação, em 29 de dezembro de 1992, o hoje senador
da República é destituído da Presidência e declarado inelegível pelo prazo de
oito anos por 76 votos a 3, assumindo seu vice, Itamar Franco.
Após a instauração de Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, foi
ofertada a denúncia contra o presidente Collor por Marcello Lavenère Machado,
então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e
Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasileira de
Imprensa. Feito juízo positivo de admissibilidade pela Câmara, o processo foi
encaminhado ao Senado Federal, que também admitiu a denúncia, assim afastando
temporariamente do exercício das suas funções o presidente, quem impetraria
junto ao Supremo Tribunal Federal diversos mandados de segurança — em
específico, 21.564, 21.623 e 21.689. Foi a partir do julgamento desses writs que o Supremo elaborou a nova disciplina do processo
de impeachment, à luz da
Constituição de 1988.
O MS 21.564/DF impugnava ato do presidente da Câmara
dos Deputados que, após a admissão da denúncia apresentada contra o presidente
da República, esclarece questões de ordem sobre o processamento doimpeachment, como a competência da Câmara para admitir ou não a acusação e a
aplicabilidade dos dispositivos da Lei 1.079/50. O writ também suscitou a instauração do processo mediante
escrutínio ostensivo, em contraste com o artigo 188 do Regimento Interno da
Câmara dos Deputados, que dispunha que a votação seria por escrutínio secreto.
No rito de impedimento fixado pela Constituição Federal de 1988, é
de responsabilidade da Câmara dos Deputados o juízo de admissibilidade da
denúncia, enquanto compete ao Senado Federal o processamento e julgamento. Com
amparo no artigo 186 do texto, é colocado em questão o juízo onde deveria a
denúncia ser apresentada. Para o ministro Octavio Gallotti, relator do
MS 21.564/DF, a Câmara teria competência para fazer o juízo prévio de
admissibilidade e acolhimento da denúncia, no que foi acompanhado pelo ministro
Carlos Veloso.
Quanto à Lei 1.079/50, a Câmara dos Deputados decidiu por sua
aplicabilidade, com exceção do pertinente aos atos do processo, devido à
competência exclusiva do Senado Federal para o processamento da denúncia.
Ainda havia o questionamento em torno da revogação ou não da Lei de Crimes
de Responsabilidade pela promulgação da Emenda 04/61, que introduziu na Constituição
Federal de 1946 o parlamentarismo. Todavia, este foi superado sob o fundamento
de que, muito embora as hipóteses de crimes funcionais não compreendam atos que
atentam contra a probidade da administração pública, cuida-se de rol tão
somente exemplificativo. Foi igualmente considerada a promulgação da EC 06, que
revogou a EC 04 para restabelecer o sistema presidencialista. Desta feita,
teria sido a Lei 1.079 repristinada.
Outra discussão levantada foi o exercício do direito à ampla defesa e ao
contraditório no processo de impeachment. O ministro
Octávio Gallotti, acompanhando entendimento do ministro Moreira Alves, votou no
sentindo da não recepção dos dispositivos da Lei 1.079/50 que versassem sobre o
tema, uma vez que determinavam ou a “pronúncia” ou a “impronúncia” — institutos
posteriormente substituídos pelo juízo de admissibilidade no texto
constitucional. No relatório, o relator decidiu pela vigência de todos os
incisos do parágrafo primeiro do artigo 217 do Regimento interno da Câmara dos
Deputados, sendo nesse ponto acompanhado pelo ministro Ilmar Galvão. Contudo,
por maioria, entendeu-se pela aplicação isolada do inciso I.
Quanto à votação secreta pleiteada no mandado de segurança, a
controvérsia decorre da divergência entre o artigo 23, da Lei 1.079/50,
que estipula a votação nominal, e o artigo 188 do Regimento Interno da Câmara,
que determina votação secreta. A Carta dispõe no parágrafo único do seu artigo
85 que os “crimes [de responsabilidade] serão definidos em Lei Especial, que
estabelecerá as normas de processo e julgamento” — em legislação
infraconstitucional, assim. Todavia, no contexto da ordem constitucional, que
preza pela publicidade dos atos públicos e accountabilitydos representantes
populares, a votação secreta é exceção e a regra, o escrutínio pelo critério
ostensivo. Dessa forma, o pedido de votação secreta foi negado, por maioria de
votos, em entendimento repisado posteriormente no ano de 2016, no bojo da ADPF
378/DF, já sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
O julgamento do MS 21.564 foi em 23/9/1992 e, por maioria do voto
dos ministros, a segurança foi parcialmente concedida, apenas mantendo a
extensão do prazo de cinco para dez sessões para a manifestação do presidente
Collor na Câmara.
Por sua vez, o writ 21.623/DF foi impetrado contra os atos do ministro Sydney Sanches, então
presidente do Supremo Tribunal Federal e do processo de impeachment conduzido no Senado, que negou o
pedido de suspeição formulado contra os senadores, que atuam como julgadores na
causa e possuem direto interesse na causa, e que recusou o pedido de nova
audiência de testemunhas antes das alegações finais. Quando ajuizado essewrit, a conjuntura já inspirava o afastamento de Fernando Collor da
Presidência.
A principal arguição era o cerceamento de direito líquido e certo, no
que tange à ampla defesa. Nesse sentido, foi requerida a reabertura de prazo
para alegações finais, uma vez que o primeiro findou antes mesmo da conclusão
da instrução probatória. Igualmente, foi reiterado o pedido de afastamento de
alguns senadores considerados pelo presidente suspeitos para julgar a ação.
Para que os argumentos trazidos pudessem ser devidamente analisados pelo
Supremo, foi requerida liminarmente a suspensão do processo. No dia 17/12/1992,
o writ foi conhecido, mas
improvido por maioria de votos.
No que concerne o devido processo legal, a maioria dos dispositivos na
Lei 1.079/50 foi recepcionada. A arguição de que o direito de defesa fora
cerceado restou rechaçada pelo tribunal, uma vez que a testemunha não foi
ouvida por estar fora do Brasil e que a falta da sua oitiva não importou
relevante prejuízo à defesa. Quanto ao impedimento de senadores, o Supremo
entendeu não fazer sentido a aplicação das regras de suspeição ao Poder
Legislativo, sobretudo por ser o impeachment um julgamento de
teor político.
O ato questionado pelo Mandado de Segurança 21.689/DF, por fim, foi a
resolução do Senado Federal que aplicou a Fernando Collor sanção de
inabilitação para exercício de função pública por oito anos, logo após sentença
do processo de impeachment. Nesse sentido,
foi arguido na defesa que a normativa seria ilegal por cercear direitos
políticos do impetrante de maneira desproporcional e abusiva.
Deveriam ser levadas em conta as preliminares de mérito levantadas no
correr do processo de impedimento, a exemplo da inépcia da petição inicial, da
ilegitimidade passiva do presidente do Senado Federal e da incompetência do
Senado Federal para prosseguimento de julgamento após renúncia do presidente. O
quórum para a votação também foi alvo de debate nos autos.
Os ministros do Supremo não conseguiram chegar a um resultado, empatando
os votos pela concessão e pela denegação da segurança. Com isso, o julgamento
foi suspenso até que três ministros do Superior Tribunal de Justiça fossem
convocados, de acordo com o Regimento Interno do STF. Aí, por maioria dos
votos, o mandado foi conhecido, mas a segurança denegada. E, assim, terminaria
o papel do Supremo Tribunal Federal no processo de impeachment do presidente Fernando Collor, já
tempos depois de este ter renunciado ao cargo e de Itamar Franco ter assumido o
Palácio do Planalto.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se posicionar
novamente sobre o tema quando protocolado pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, na data
de 21 de outubro de 2015. Subscrita pelos advogados Miguel Reale Jr., Janaína
Paschoal e Hélio Bicudo, a denúncia de violação à lei fiscal foi aceita pelo
presidente da Câmara dos Deputados em 2 de dezembro de 2015.
Tão logo foi admitido e processado o pedido, surgiram controvérsias
legais em torno da sua tramitação, a exemplo da votação secreta para a Comissão
Especial e a possibilidade de candidaturas avulsas. Até então limitadas ao
Parlamento, as disputas políticas seriam deslocadas ao Supremo em virtude da
interposição da arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo Partido
Comunista do Brasil. Tombada sob o número 348, a ação foi distribuída ao
ministro Edson Fachin, que deferiu a medida liminar pleiteada para
suspender o processo de impeachment até o julgamento de
mérito pelo Pleno.
Nessa ocasião, o Supremo pôde manifestar-se a respeito do rito
indispensável para que o rito de impedimento não descuidasse da ampla defesa e
do contraditório, esclarecendo até mesmo pontos que não foram suscitados na
exordial, como o foro competente para a determinação do afastamento da
presidente, em antecipação a discussões que poderiam ser judicializadas
posteriormente. Acenava-se com possível mudança da jurisprudência firmada à
época do impeachment do presidente
Fernando Collor.
Colocado em julgamento a arguição, o ministro relator decidiu pela
improcedência de praticamente todos os pedidos formulados pelo PCdoB.
Entretanto, restou parcialmente vencido pelo voto do ministro Roberto Barroso,
seguido pela maioria dos integrantes do tribunal.
Seguindo o relator, decidiu-se pela impossibilidade de aplicação
subsidiária das hipóteses de impedimento e de suspeição do presidente da
Câmara, a inexistência de direito de defesa prévia da presidente, a instrução e
julgamento pelo Senado, a aplicação subsidiária dos regimentos internos para
disciplinar questão interna corporis e a atenção à
proporcionalidade nos blocos parlamentares. Em outros aspectos, o voto do
ministro Barroso terminou vencedor, sendo acompanhado pela maioria dos demais
membros do tribunal em divergência frente ao relato no que diz respeito às
funções da Câmara e do Senado no processo de impeachment, mantendo-se o
decidido no MS 21.564/DF, à impossibilidade de chapas avulsas, devendo ser
os membros das chapas indicados por líderes e à votação por voto aberto da
Comissão Especial, entendendo ser o voto secreto exceção prevista no próprio
texto constitucional.
Sendo instado a arbitrar um processo eminentemente político, mas de
conteúdo jurídico, fez o Supremo Tribunal Federal valer sua função moderadora
no sistema constitucional. No Estado Democrático de Direito, compete ao
tribunal constitucional intervir quando ameaçada a própria Constituição, sob
pena de nada valerem os direitos fundamentais e a segurança jurídica. Contudo,
esse papel moderador é tão somente parcial, pois falta ao Supremo Tribunal
Federal competência para arbitrar assuntos eminentemente políticos. Daí a
importância da discussão sobre o semipresidencialismo, regime em que a figura
do presidente da República cuida da "alta" política, por assim dizer,
exercendo funções de Estado e relegando ao primeiro-ministro as funções de
governo.
O impeachment, previsto na
Constituição brasileira, disciplinado por lei e interpretado pelo Supremo, que
definiu suas balizas, encontra-se presente na tradição jurídica do
presidencialismo brasileiro e, quando presente crime de responsabilidade, pode
ser deflagrado a fim de sancionar quem atentou contra a Constituição Federal.
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