Adalberto Piotto
“Não sei se por
omissão, preguiça ou esperteza, querem a todo custo manter a versão jocosa de
que o Brasil deu errado. Pura conveniência. Assim, não precisam mudar o
discurso, arregaçar as mangas e pensar pra valer sobre o novo”
Recentemente, convidado a falar sobre realidade brasileira,
por convicção de forma e conteúdo, coloquei o rame-rame político dos jornais
para o lado de fora da sala e me dediquei a uma análise aprofundada de nossa
sociedade.
Os convites vieram de um grupo de executivos de entidades
setoriais e estudantes e outro de um grupo de jovens liberais. Ambos de
movimentos sociais legítimos que pretendem aumentar o debate sobre este país. É
salutar que haja essa exposição de ideias e que as pessoas se exponham.
Aliás, é muito bom que a discussão sobre nós se alastre por
todos os cantos sociais. Não há ideia se não for exposta, discutida, assim como
não há debatedor oculto. Mas é necessário que seja real, com honestidade
intelectual, pra brasileiro ver, entendendo que somos vários e diversos.
Por isso, a essência de minha tese, que abordei com os dois
grupos e a descrevo aqui, é que temos um grande problema que se sobrepõe a
todos os outros quando pretendemos falar de presente e de futuro no Brasil.
Somos divorciados de nosso passado. Vejo isso desde os meus
primeiros anos escolares e continuo a presenciar esse desapreço no pouco ou
nenhum interesse da maioria por datas cívicas, históricas, bustos e monumentos
espalhados pelas cidades.
Sofro a cada vez que falo dos soldados brasileiros que
lutaram na Segunda Guerra. É tanta desinformação e desejo de diminuir o esforço
e a coragem deles que tenho que aumentar o tom ao perguntar ao público: “Você
já foi à guerra? Sabe a dor de uma guerra e os traumas que ela traz?”.
Normalmente, ganho o silêncio envergonhado como resposta.
O cético do presente não resiste à verdade da história.
Por isso, insisto: divorciar-se do passado não dá certo.
Lógica e semanticamente não teríamos chegado aqui sem ele. Simples e
eloquentemente assim.
E como o divórcio brasileiro é litigioso, põe-se a culpa no
outro. A média dos brasileiros, independentemente da classe social, portanto a
maioria equilibrada de nós, põe a culpa no passado para justificar as omissões
presentes dos contemporâneos, de falhas nossas, ausências, omissões,
incompetências. Uma mania de nenhuma nobreza que consegue levar nada a lugar
nenhum, apenas reafirmar o marasmo que justifica a inação dos pouco corajosos
de agora.
E o fato de termos problemas com nosso passado não nos
permite que criemos heróis, que os exaltemos na posteridade, que seus exemplos
nos inspirem. Nossa admiração é efêmera. Raramente passa por gerações.
Desconfiamos de nossa história e duvidamos das intenções de
seus protagonistas. O “Descobrimento” foi por acaso ou uma armação, a
“Independência”, um acordão caro, a “República” veio atrasada e por isso teria
menor valor. E é nessa toada que vamos diminuindo a importância e o trabalho de
quem nos antecedeu e nos trouxe até aqui.
Não demorará até que alguém questione o mérito até dos
medalhistas brasileiros nos Jogos do Rio, sobretudo os do futebol e os de
modalidades da “elite”. Dirão que a Alemanha não era tudo isso, que os
jogadores brasileiros são milionários – e pelo sucesso deles se distanciam do biótipo
social do que essa gente medíocre chama de “o real povo brasileiro”-, ou ainda
que certas modalidades não têm inserção da maioria, que são esporte de “rico”,
reproduzindo esse indigente argumento da luta de classes.
E haverá críticas aos que se tornaram militares, como se
atletas brasileiros não fossem ou fossem algo menor. Há ainda entre muitos
pensadores e jornalistas deste país, que enfrentaram a letal ditadura dos anos
60, 70, e que tiveram comportamento heroico ao lutar pela liberdade, um preconceito
com as Forças Armadas do presente. Renegam sua importância social, a
modernização de sua conduta, seu comprometimento e sua inalienável importância,
inclusive social, ao país. O divórcio não deveria significar desejo que o outro
seja infeliz ou não possa melhorar.
Precisamos de ambos.
A se manter esse modo de pensar, não haverá no futuro uma
palavra sobre uma gota de suor dos que protagonizaram vitórias para e pelo
Brasil. Reconhecer méritos e heróis tirar-lhes-ia o comodismo pseudointelectual
de que nascemos para dar errado. Dar certo faria essa gente ter de pensar,
trabalhar. Deve provocar calafrios neles.
Volto aos fatos históricos para deixar claro que não
questiono o bravo trabalho de historiadores que buscam algo além das versões
oficiais. Por isso mesmo, questiono, por razões semânticas e de mérito, de
realidade, a versão quase hegemônica de alguns historiadores que não reconhecem
o mérito do avanço que esses acontecimentos nos trouxeram, por não se colocarem
na pele do outro no tempo em que protagonizaram as mudanças e relativizarem as
condições da época dos fatos. Com isso, deixam de reconhecer o talento, o
trabalho, o esforço, com erros e acertos, de todos os povos que fizeram este
país. Comprometem o orgulho que deveríamos sentir ao macular cada capítulo de
nossa história diminuindo seus feitos.
Não se pode ignorar que fomos vitoriosos. A se levar em
conta as barreiras que outros superaram pra que chegássemos até aqui,
convenhamos, fomos vitoriosos. E as vitórias, mesmo as de guerra, deixam
sequelas e muito por reconstruir, mas nos dão a soberania da decisão de como
fazer.
Houve lutadores, muitos hercúleos, muitos heróis anônimos
que não poderemos reverenciar. Outros conhecidos que teimamos em não reconhecer
porque a média da gente deste país tem um bloqueio beligerante contra o sucesso
do outro, o sucesso de seu país, o ato de reconhecer que houve avanços, que se
deu certo também nesta Terra de Santa Cruz.
Não sei se por omissão, preguiça ou esperteza, querem a todo
custo manter a versão jocosa de que o Brasil deu errado. Pura conveniência.
Assim, não precisam mudar o discurso, arregaçar as mangas e pensar pra valer
sobre o novo. Perder o discurso deve doer. Mas não vou lhes ofertar morfina. A
história real não oferece tal benefício.
E há problemas ainda por resolver neste país? Certo que há.
E muitos. A turbulência do contemporâneo sempre parece maior, daí essa sensação
de desalento, de males intransponíveis que, tenha certeza, os do passado também
sentiram e não sucumbiram.
A dor do passado só parece menor porque passou e não foi em
você.
Esses problemas que temos são os do presente, os nossos
desafios, os de agora.
Muitos, sim, doloridos, que só ficarão maiores e mais
latejantes se não os enfrentarmos, sob o risco de gerações futuras colocarem a
culpa no passado.
E, na lógica semântica, o passado do futuro é você.
Presente?
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