Toda filosofia política que se preze parte de um contraste
entre dois extremos da conduta humana. De um lado, o altruísmo generalizado,
que leva ao ideal do bem comum postulado por Aristóteles e Santo Tomás de
Aquino; do outro, a figura do “homem lobo do homem”, que leva à luta de todos
contra todos, ponto de partida da filosofia de Thomas Hobbes.
Na vida real, exemplos do polo altruísta são raros e
efêmeros: o que mais se aproxima é o sentimento de unidade nacional que se
configurou em função da guerra; a Grã-Bretanha de Winston Churchill talvez seja
o melhor exemplo. No polo hobbesiano, os exemplos abundam. O extremo do extremo
é o pretorianismo – aquela situação em que a ordem é precária e só se mantém
graças à ação de uma guarda assassina e mercenária, ligada diretamente ao
soberano. Descontados os elementos de ficção, é o que vemos no filme O
Gladiador, esplêndida reconstrução da época do imperador romano Cômodo, 180-192
d.C. Retratando de forma oblíqua a situação que se prenunciava na Itália, o
cineasta Federico Fellini focalizou o mesmo fenômeno por um prisma poético em
seu belíssimo Ensaio de Orquestra, de 1978.
Descrever os dois extremos é uma tarefa relativamente fácil.
Bem mais difícil é tentar entender os deslocamentos num sentido ou noutro que
podem acontecer em qualquer país: o que ofereço em seguida é apenas um
exercício com vista a tal objetivo. Não me atrevo a especular sobre a extensão
do fenômeno, mas dou por assentado que, em certa medida, o Brasil se deslocou
para o polo hobbesiano nos últimos 15 ou 20 anos.
Primeiro, ao liberar as forças sociais represadas desde o
rápido crescimento econômico dos anos 1970, as elites políticas vivenciaram o
que se pode apropriadamente denominar um embalo de sábado à noite. Imaginaram
que a redemocratização e a convocação da Constituinte, resultando numa Carta
generosa no que tocava à criação de direitos, reforçadas pelo eventual controle
da inflação e a retomada do crescimento, confeririam ao sistema político um
alto grau de legitimidade, facilitando a formação de coalizões governativas
eficazes.
Mas a realidade subjacente a essa fantasia era bem outra: as
instituições eram débeis; a classe política, impedida de se renovar durante os
21 anos do ciclo militar, perdera o pouco de organicidade que tivera em outros
tempos; e a sociedade, sacudida por mudanças estruturais aceleradas, tornara-se
muito mais difícil de governar. Tornou-se muito mais plebiscitária, quero
dizer, atomística e sem identidades grupais estáveis.
Em segundo lugar, ao consumar-se o retorno ao regime civil,
era fácil prever que a estrutura partidária dualista (Arena versus MDB) se iria
esfacelar, deixando o caminho aberto para uma intensa fragmentação. A reforma
partidária de 1979 já dera sinais nesse sentido. Mas a Constituinte e os demais
dirigentes políticos relevantes daquele período, em vez de acionar engrenagens
institucionais cautelares, “anticíclicas”, fizeram o oposto. Deixaram o
processo correr solto e em vários aspectos até o incentivaram. Dessa forma, o
“centro”, que em tese poderia reforçar a estabilidade do sistema político,
rapidamente se liquefez. Esse quadro deveria ter causado preocupação, mas o que
se viu foi outro equívoco.
Tomando a nuvem por Juno, as elites e grande parte das
classes médias avaliaram que Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) caminhavam
para o centro, com potencial para substituir o centro que se desfizera. Não
compreenderam que a ideologia petista não favorecia tal mudança de perfil, ou
seja, que o PT permaneceria numa faixa semidemocrática, com um pezinho dentro e
outro fora do sistema – ora mais para dentro e ora mais para fora, conforme
suas conveniências político-eleitorais.
Contra esse pano de fundo, o governo Fernando Henrique
Cardoso deve ser entendido como um interregno de estabilidade e racionalidade.
Bem ou mal, conseguiu-se, então, implementar algumas reformas dificilmente
reversíveis, por meio do saneamento do sistema financeiro, da privatização de
algumas empresas públicas que representavam um peso morto, ou pelo menos não
realizavam seu potencial, e o estabelecimento de um regime de política
econômica baseado no câmbio flutuante e nas metas de inflação.
Mas tais reformas não foram suficientes para sobrestar a
recidiva populista que se iria materializar a partir da ascensão de Lula e,
como hoje sabemos, na nuvem de gafanhotos que se abateria sobre o Estado e a
economia, devorando implacavelmente os ganhos realizados na gestão das contas
públicas e na concepção dos principais serviços sociais, como a educação e a
saúde.
Arrastando-se por treze e meio longos anos, a dinâmica acima
descrita ganhou velocidade, como um processo de fissão nuclear. Atritou entre
si os três ramos do governo e dividiu cada um deles num grau jamais visto no
País. Atomizada e desprovida de representação partidária adequada do ponto de
vista eleitoral, os diferentes setores da sociedade não obstante se organizaram
para a defesa de seus interesses, acentuando até o limite o espírito
corporativista existente desde havia muito no País.
O resultado está aí, à vista de todos; nada garante que seja
uma danse sur place, um país que se mantém num equilíbrio precário, mas sempre
no mesmo lugar. Pode ser um país que pouco a pouco desliza para um equilíbrio
cada vez pior. E o pior dessa hipótese pessimista é que ao cidadão comum
restará apenas o consolo de dizer – com Fellini, mais uma vez – que “la nave
và”, mesmo não sabendo para onde vai essa nave tresloucada.
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