O governo interino enviou ao Congresso Nacional um projeto
central para sua ação política: uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
para limitar a expansão das despesas orçamentárias. Na fachada, a PEC 241/2016
cria um novo regime fiscal, que abrange as despesas de todos os poderes da União
e dos órgãos com autonomia administrativa e financeira.
A cada um deles será fixado um limite anual e
individualizado para a despesa. Na realidade, a proposta de mudança
constitucional desconstitui as bases do modelo de cidadania criado em 1988 e
limita a capacidade estatal de agir em prol da construção de um modelo de
desenvolvimento, com distribuição de renda.
Para cada ano, esses limites serão as despesas do ano
anterior corrigidas pelo IPCA, do IBGE. Há algumas exceções previstas, mas
fundamentalmente esse modelo impõe um extremado grau de limitação dos governos
nos próximos vinte anos. Se aprovado, não há como manter os direitos sociais
existentes; não há como atender às demandas pela ampliação ou melhoria dos
serviços públicos; não há como prover infraestrutura. Cria-se uma reserva de
mercado: somente o setor privado poderá atender a todas as necessidades que não
forem cobertas dentro dos rasos limites.
Hoje, por exemplo, as despesas com saúde e educação possuem
critérios específicos de proteção, mas perderão as garantias atuais e apenas a
correção inflacionária sobreviverá. E, como o limite é total, qualquer recurso
a mais que for direcionado para essas áreas implicará cortes em outros
programas. Esse modelo inverte a lógica constitucional: onde há obrigação de
gastos mínimos haverá um teto, um máximo de gasto.
Esses limites, até 2037, restringirão os programas de
governo e a vontade do povo, expressa nas ruas e nas urnas, pelos próximos
cinco mandatos presidenciais. Mesmo que a economia cresça e permita, e o Estado
tenha capacidade para melhorar as condições de vida da sociedade, o teto vai
impedir esse avanço social. Além de atentar contra os direitos sociais e a
prestação dos serviços públicos, o modelo inviabiliza saídas ou a construção de
um projeto de desenvolvimento pautados na política fiscal ou na econômica, sem
importar os custos orçamentários.
Para que se possa acompanhar o tamanho dessa restrição,
entre 2005 e 2015, as receitas do governo federal cresceram 155%, e o PIB,
172%. Nesse mesmo intervalo, se as despesas estivessem limitadas pela inflação,
elas teriam sido corrigidas em 77%. Para onde teria sido dirigida toda essa
diferença? Impedido de ser utilizado em saúde, educação, segurança, defesa,
agricultura, desenvolvimento, infraestrutura, o montante seria destinado ou
para os gastos financeiros ou para aumentar o lucro das empresas, pela
diminuição dos tributos.
Adeus, educação pública
Hoje devem ser aplicados pelo menos 18% da receita líquida
de impostos em manutenção e desenvolvimento da educação. E há ainda outras
obrigações em relação à educação básica (no Fundeb, no mínimo 10% do que é
aplicado pelo conjunto dos fundos estaduais). Tendo como limite a inflação,
será impossível cumprir esses mandamentos e menos ainda o compromisso do Plano
Nacional de Educação (PNE) de aplicar 10% do PIB nos programas educacionais.
Hoje investimos pouco mais de 6,6%.
A meta do PNE é ousada, mas corresponde ao papel idealizado
para a educação no projeto de desenvolvimento nacional. E, como fonte
complementar de recursos, a legislação do petróleo foi alterada para determinar
a aplicação de 75% dos recursos de royalties, participação especial e em
receitas públicas dos contratos realizados posteriormente a dezembro de 2012. E
ainda, até que se cumpram essas metas do PNE, a educação deve receber 50% dos
recursos do Fundo Social, vinculado à exploração do pré-sal. No modelo atual,
parte da riqueza pública do pré-sal precisa ser aplicada na educação,
construindo um novo futuro. Pois não é que esse governo quer mudar as regras do
pré-sal e diminuir os gastos com educação? Que Brasil esse governo quer
construir?
O levantamento avalia o que teria ocorrido com as verbas da
educação – sem considerar os orçamentos estaduais e municipais – se esses
limites vigorassem desde 2005. As perdas teriam sido astronômicas! Depois
dessas restrições aplicadas por apenas uma década, a educação, em 2015,
receberia menos de R$ 25 bilhões. Isso é aproximadamente um quarto do orçamento
real efetivamente realizado no ano passado. Ao longo dessa década, o setor
teria perdido R$ 350 bilhões. Impossível pensar no conjunto das consequências
para a sociedade, mas podemos perceber que teria sido negada toda a expansão da
rede de ensino e das vagas que se verificou, da creche à pós-graduação.
Efeitos para a Seguridade: involução
A Constituição prevê que a seguridade social é um “conjunto
integrado de ações [...] destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde,
à previdência e à assistência social”. A PEC 241 quer transformar a seguridade
em um sistema para garantir superávits primários. Além de uma inversão total do
mandamento do constituinte, é uma involução civilizatória.
Na Previdência Social, limitar o reajuste apenas à correção
da inflação exigirá a adoção de muitas medidas redutoras de direitos. Uma delas
é a garantia da correção inflacionária para manter o valor de compra dos benefícios.
Manter esse direito já representaria esgotar o limite de expansão dessa
despesa. Então, ou os reajustes serão menores do que a inflação, ou será
necessário ampliar carências e exigências para diminuir drasticamente o acesso
a novos benefícios, fazendo que o quantitativo destes fique equivalente ao de
cessados por falecimento ou outras causas de encerramento do direito.
A população brasileira cresce e o número de idosos também.
Nas próximas duas décadas, a quantidade de pessoas com mais de 60 anos crescerá
de 23,9 milhões para 47,6 milhões (3,5% ao ano). Nenhuma reforma justa
permitirá manter inalterado o número de beneficiários. Estabelecer idade mínima
ou aumentar o tempo de contribuição será insuficiente para esse resultado.
Somente uma reforma que torne inalcançável o direito poderia satisfazer essa
estabilidade. As novas exigências precisarão, na prática, quase que excluir do
trabalhador seu direito previdenciário. Pode-se esquecer o modelo atual, que
reduz a maior parte da miséria para a população de idade mais avançada.
E não é só. A garantia do salário mínimo como piso do valor
dos benefícios combinado com as valorizações reais do mínimo ampliam os gastos
previdenciários. Esses aumentos reais custam R$ 2,1 bilhões para cada R$ 10
concedidos (pelos parâmetros de 2016). Assim, limitar as despesas à inflação
significa o fim a política de valorização do salário mínimo ou de sua
vinculação como piso de valor de benefícios. A julgar pela natureza da reforma,
será o fim de ambas as garantias. O mesmo deve ocorrer em relação aos
benefícios do FAT (seguro-desemprego e abono salarial). Não por outro motivo,
uma proposta já anunciada pelo governo é acabar com o abono salarial, um
benefício distribuído aos trabalhadores de menor renda em nosso país.
Na saúde, limitar os recursos à reposição inflacionária
agravará o quadro de subfinanciamento. Se o valor é, do ponto de vista real,
constante e há aumento populacional, o montante per capita aplicado no setor
será cada vez menor.
Muitas das transferências da saúde realizadas do governo
federal para estados e municípios têm a população como critério direto; para
outras, essa referência é indireta. Nos próximos vinte anos, a população
aumentará de 206,1 milhões para 226,9 milhões, segundo estimativas do IBGE. São
10,1% de crescimento. Como o gasto total estará limitado ao aumento de preços,
será preciso escolher entre garantir a correção da inflação ou ajustar as
despesas de acordo com o crescimento populacional.
Além disso, a proposta revoga duas medidas que determinam o
crescimento do volume de recursos a ser aplicado em saúde. O primeiro é a
vinculação dos gastos mínimos à receita corrente, que deverá crescer até
atingir o percentual de 15%. O segundo é a aplicação de recursos dos royalties
de exploração das riquezas do pré-sal. São medidas adotadas para diminuir o
subfinanciamento do setor. Se aprovada a emenda de limitação das despesas, nem
a recuperação da economia nem as riquezas produzidas com a exploração do
pré-sal ampliarão os recursos para a saúde.
Essa redução é a negação da saúde como direito de todos e
dever do Estado. Representa uma rápida precarização dos serviços de saúde, uma
afronta a princípios como o da universalidade da cobertura e do atendimento. Se
a cobertura e o atendimento do SUS serão inferiores às exigências e aos
patamares reclamados pela sociedade, essa PEC realiza o sonho das operadoras de
planos de saúde complementar. Negar o atendimento público em um serviço
incontornável é criar uma reserva de mercado para o setor privado de saúde.
Em um exercício similar ao realizado para a educação, a PEC,
aplicada nos últimos dez anos, teria reduzido o orçamento da saúde em 2015 em
quase 40%. Em vez dos R$ 100 bilhões aplicados, teriam sido gastos menos de R$
60 bilhões.
Na assistência social não será diferente – as mudanças
também desconstroem a cidadania. O teto de gastos, e não a necessidade das
pessoas, será o parâmetro definidor da ação estatal. E, da mesma forma que na
Previdência, os benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) não
poderão continuar referenciados no salário mínimo. Nos últimos dez anos, o
volume de pessoas que recebem esses benefícios cresceu de 2,8 milhões para 4,4
milhões – 58% a mais. As regras não mudaram nem a população cresceu nessa
proporção. No entanto, mais de 2 milhões de famílias alcançaram melhores
patamares de cidadania porque esse direito não lhes foi negado.
Com a limitação de despesas, como serão tratadas as famílias
com crianças com microcefalia? Esse é apenas um dos múltiplos eventos que podem
expandir o público-alvo desses programas, mesmo sem nenhuma mudança nas regras.
Elas têm direito à cobertura do benefício da Loas para famílias com pessoas com
deficiência. Como proceder diante da limitação de despesas? O caminho será
impor restrições ao acesso.
Outra inversão se dará no Bolsa Família. Hoje os governos
praticam a busca ativa, procurando os segmentos sociais que têm direito aos
benefícios. Com o limite, é muito provável que o governo federal recompense os
municípios que diminuírem os beneficiados, não que os busquem.
Assim, a aprovação desse limite de despesas exige muitas
outras reformas. O governo golpista está apenas iniciando mais uma perversa
jornada de desestruturação dos direitos sociais e de desconstrução da
capacidade de o Estado intervir na economia.
Em gráfico fizemos uma simulação para os próximos anos para
o conjunto dos gastos federais. Reproduzindo a proposta, à saúde e à educação
fica assegurada a correção das despesas pela inflação. Em relação à
Previdência, o cenário é de que haja uma reforma tão dura que consiga manter os
gastos em relação ao PIB.
Se tudo der certo e a economia voltar a crescer em uma média
anual de 2%, os gastos com saúde e educação cairão de 1,7% de hoje para 1,1%,
em vinte anos. Mas o que ocorre com as demais despesas públicas, para as quais
não há nenhuma garantia, é uma grande redução. Dos atuais 8,5% do PIB, restarão
apenas 3,5%. Compõem esse conjunto despesas com agricultura, assistência
social, trabalho, poderes, administração e despesas de pessoal, todos os
subsídios do transporte, energia, segurança e defesa, reforma agrária,
saneamento e gestão ambiental, habitação, urbanização e mobilidade urbana,
cultura, ciência e tecnologia, direitos de cidadania, entre outros.
A título de conclusão, pelo menos outros três pontos
precisam ser ressaltados.
Primeiro, o governo golpista insiste em fazer os ajustes
pela redução de direitos e pela restrição dos serviços públicos prestados à
sociedade. Esses gastos representam a maior parte das despesas primárias, que
estão sendo todas limitadas. Por sua vez, os gastos financeiros não sofrem
nenhuma restrição. Essa opção condena os segmentos sociais mais desprotegidos.
São os que mais vão perder direitos e os maiores prejudicados pelas restrições
impostas às políticas públicas.
Segundo, o governo ignora medidas que poderiam resultar em
maior justiça social, especialmente no campo tributário. Foram afastadas as
soluções como a taxação de grandes fortunas ou das maiores heranças. Perde-se a
oportunidade de acertar as contas com segmentos sociais e econômicos que ganham
muito, sempre, mesmo com a crise, e estão submetidos à menor carga tributária
direta, aquela que incide sobre patrimônio e rendas.
Terceiro, os gastos financeiros – e não os direitos das
pessoas – representam o maior gargalo das contas públicas. A dívida pública
brasileira não é grande comparada com a dos demais países, mas a conta de juros
é desproporcional. O Brasil paga as maiores taxas de juros do mundo. Somente
nessa conta, em 2013, foram R$ 248,9 bilhões; em 2014, R$ 311,4 bilhões; e, em
2015, ela cresceu 61%, para R$ 501,8 bilhões. Mesmo em relação ao PIB, esses
números passaram de 4,83%, em 2013, para 8,50%, em 2015. No ano passado, a
despesa com juros superou aquelas com benefícios previdenciários, por exemplo,
que foi de R$ 436,1 bilhões. Esse governo, porém, elege como prioridade cortar
os direitos dos trabalhadores para manter intocável a felicidade dos rentistas.
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