sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

28 anos da Constituição “Cidadã” ou Carta Coragem


| Nicholas Maciel Merlone


28 anos da promulgação

28 anos atrás, o deputado Ulysses Guimarães finalizava os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte e entregava ao povo brasileiro a nova Constituição da República. “Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social, do Brasil, que Deus nos ajude, que isso se cumpra”, afirmou o presidente da assembleia incumbida de elaborar os 250 artigos do diploma constitucional.

Sessão do STF

Nesse último dia 05 de outubro, ocorreu uma sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) com destaque para os 28 anos de promulgação da Constituição de 1988. A presidente do STF, ministra Cármem Lúcia, disse na ocasião que o compromisso de todos os magistrados brasileiros, expresso ao jurar na posse do cargo, trata-se de trabalhar pela concretização da Constituição e para que a República do Brasil seja justa, livre e solidária, sem distinções de qualquer ordem. A ministra afirmou que vivemos épocas tumultuadas e difíceis, porém que se deve procurar o rumo feito pela Constituição na linha de sobrepor as desigualdades sociais e regionais e gerar dignidade humana aos mais de 200 milhões de brasileiros. 

No Senado

Os senadores, por sua vez, celebraram em Plenário, no dia 05 de outubro, os 28 anos de promulgação da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988. A Carta Magna foi criada por uma Assembleia Nacional Constituinte instalada em janeiro de 1987 e composta por 559 membros, sendo 487 deputados e 72 senadores. O diploma consolidou a democracia no Brasil depois de mais de 21 anos de Regime Militar.

Na Câmara

Enquanto isso, os deputados federais organizaram um seminário em comemoração aos 28 anos da Constituição brasileira. O evento foi promovido pela Frente Parlamentar Mista pelo Aperfeiçoamento da Justiça Brasileira, em parceria com a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público – que é coordenada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

O facho a iluminar as instituições

Marcos da Costa, presidente da OAB/SP, defende: “Nesse momento em que o país procura caminhar entre as curvas de uma das mais graves crises de sua história – reunindo fatores de ordem política, econômica, ética e moral -, a Constituição emerge como o facho a iluminar as instituições e a balizar as pautas que chegam ao STF”. Costa ainda argumenta: “O ciclo político que o país atravessa sugere a mobilização permanente de todos os que participam da vida pública”


Mudanças profundas

“As instituições, os poderes, os códigos e a Constituição, por mais que transcendam as pessoas, dependem dessas mesmas pessoas, que têm nome, endereço, interesses e sentimentos, para darem continuidade e cumprirem com seu mister. Os primeiros anos da Constituição de 1988 bem o demonstraram. A mudança constitucional mais profunda somente ocorreu (e ocorre) muitos anos depois, para o bem e/ou para o mal.”
Referência fundamental na luta

Fica claro nas palavras do autor que, mais do que um documento escrito, para se concretizar depende das ações de pessoas, focalizando o centro de atuação constituição nas pessoas que a aplicam.

“O futuro da Constituição de 1988 será escrito no confronto entre práticas constituintes e desconstituintes, nas arenas públicas e privadas de discussão e deliberação e nos processos eleitorais. É impossível antever o resultado dessas disputas. Mas é possível afirmar que a Constituição de 1988 continuará a ser referência fundamental para setores da sociedade que persistem lutando por liberdade e igualdade. Nessa perspectiva, muitos outros aniversários da Constituição poderão ser celebrados.”

Nessa perspectiva, resta evidente que a Constituição brasileira permanece como um guia, um norte para o povo brasileiro, sendo o porto de liberdade e igualdade.

Finalmente, pode-se questionar que uma Constituição criada por velhos aprisione os jovens no futuro. Todavia, seu texto é passível de interpretação, que se faz possível levando em conta os paradigmas contemporâneos, haja vista apenas como exemplos os casos da união homoafetiva e das células tronco. Nossa Constituição protege não só os direitos individuais, mas também coletivos, sociais, econômicos e culturais. Traz ainda deveres e normas de organização e funcionamento do Estado, sem mencionar as formas de aquisição e exercício do poder.


É, assim, uma Constituição analítica garantidora de direitos e deveres. E, atualmente, ganha destaque com o diálogo jurisdicional entre Cortes, o que não só ocorre na jurisprudência, mas também, presencialmente, em encontros físicos. Um exemplo disso trata-se do Informe do STF sobre as decisões judiciais dos países da América Latina. Nesse rumo, podemos dizer que uma nova tendência do constitucionalismo brasileiro trata-se da sua internacionalização, considerando-se o pluralismo jurídico. 

Encerrando, apenas gostaria de registrar: – Bom dia, boa sorte! Coragem!

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Do Estado do Bem-Estar ao Estado Mínimo




Estudo da Unicamp traça trajetória da política social brasileira de1964 a 2002

A Constituição brasileira de 1988 nasceu cercada de grande expectativa. No papel, o documento previa grandes avanços sociais para a população como a viabilização de reformas progressistas, entre as quais a da previdência social, saúde e educação. Na prática, no entanto, essas mudanças não se consolidaram desde então. Um estudo realizado pelo economista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ajuda a entender os motivos ao analisar a trajetória da política social brasileira entre 1964 e 2002.

Para a pesquisa que realizou em seu doutorado, Fagnani teve como ponto de partida a identificação do quadro geral de carências estruturais existentes no Brasil e atuação do Estado em cada setor durante os últimos quarenta anos. Segundo o economista, esse período foi marcado pelo embate de dois movimentos opostos. Enquanto o primeiro defendia uma agenda social, com as bases institucionais e financeiras – características do chamado Estado de bem-estar social –, o outro gerava uma série de reações a essas propostas.

Este primeiro grupo ganhou força a partir dos meados dos anos 1970, ao criticar a política autocrática dos militares, principalmente na área social. Para o pesquisador, o regime militar foi marcado por uma modernização conservadora: embora tenham sido criados novos mecanismos financeiros e institucionais que ampliaram a oferta de bens e serviços, essa modernização voltou-se especialmente para as classes médias e ricas, o que deixou as camadas mais pobres da sociedade de fora.

A luta por uma agenda de reformas progressista e redistributiva, ou seja, mais social, culminou na Constituição de 1988. “Desenhou-se, pela primeira vez na história do Brasil, o embrião de um efetivo Estado de bem-estar social, universal e equânime”, ressalta Fagnani. Ao mesmo tempo, ele afirma que a constituição é um instrumento frágil porque só define os princípios gerais. “É num momento hostil da política nacional que acontece a regulamentação constitucional e, portanto, as leis são desfiguradas pelos conservadores.”

Para o economista, as contramarchas receberam força a partir do governo Sarney, que de certa forma procurou esterilizar o projeto reformista, ao minar as iniciativas implementadas pelo executivo federal (1985-1986). Após outubro de 1988, as contramarchas visavam desfigurar ou retardar a vigência dos novos direitos constitucionais. “Os casos mais paradigmáticos foram a reforma agrária, com o fim deste ministério em 1989, e as políticas federais urbanas (habitação, saneamento e transporte público)”, diz o pesquisador. “Mas essa contramarcha também atingiu os setores da saúde, previdência social e educação, seguro-desemprego e suplementação alimentar.”

Com o esgotamento do Estado nacional desenvolvimentista no plano internacional, passou a prevalecer a ideologia neoliberal. A partir daí, países subdesenvolvidos com industrialização tardia, como Brasil, sofreram pressão dos países globalizados para conterem gastos em programas sociais. É justamente neste cenário que o então presidente Fernando Collor põe em prática que se segue até o fim do governo FHC.

O modelo de macroeconomia vigente no mundo passa a determinar as regras do jogo. “Se a Constituição de 1988 enaltece o Estado do bem-estar social, a agenda neoliberal defende o Estado mínimo. Ao invés dos direitos trabalhistas e políticas universais, mais flexibilidade do mercado e políticas focalizadas. Por fim, ao invés dos direitos sociais, um governo mais assistencialista”, completa o economista. “Portanto, o que seria uma ‘constituição cidadã’, segundo Ulysses Guimarães, torna-se uma ‘constituição vilã.’“

Apesar de a pesquisa não incluir o governo Lula, o cientista afirma que essa política assistencialista continua por meio de projetos sociais como Bolsa-Família e Bolsa-Escola e adquire maior expressão. “Esses projetos são fundamentais, mas não podem ser confundidos com a estratégia de enfrentamento da questão social, como pregam os conservadores”. Ao contrário, ela não pode prescindir de políticas universais.  Outra condição necessária é o crescimento econômico e a criação de emprego”, afirma Fagnani.

O economista alerta para os riscos da atual tentativa da área econômica do governo de produzir “déficit nominal zero”. Essa estratégia, segundo ele, se fundamenta no congelamento dos gastos governamentais com previdência social, saúde, educação, seguro-desemprego etc. ”Essa nova investida poderá implicar o início de uma nova etapa de desmonte do que ainda restou do projeto de Estado de bem-estar social conquistado em 1988”, adverte.

Com essas ações estatais somadas ao poder inacreditável que instituições financeiras internacionais continuam detendo sobre o país e ao conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas, Fagnani é categórico: “levam-nos a considerar crível um cenário em que a caridade volta a ser um traço marcante do sistema de proteção social no Brasil”. Diante da desconstrução do Estado social, o economista completa: “vivemos hoje mais um desdobramento de uma mesma velha história de arraigados privilégios.”



Mário Cesar Filho

sábado, 26 de novembro de 2016

Política e Constituição: mandatos para juízes de cortes constitucionais


O segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff se iniciou com a promulgação da “PEC da bengala”, emenda constitucional que, ao ampliar a idade de aposentadoria compulsória, pôs fim a expectativa de que ela nomeasse, até o fim de seu governo, mais cinco ministros do Supremo Tribunal Federal – inclusive dois dos últimos três que não foram nomeados por um presidente do PT.

Diante do impeachment, já se especula sobre a possibilidade de, apesar da postergação da aposentadoria compulsória desses ministros para depois do fim de seu mandato, algum dos atuais ministros se aposente voluntariamente, possibilitando a nomeação de um ou mais ministros pelo PMDB, que atualmente domina também a Câmara e o Senado.

O último ano do governo Barack Obama foi marcado pela morte súbita de Antonin Scalia e, consequentemente, a surpreendente possibilidade de, ao nomear um sucessor para sua vaga na Suprema Corte, garantir uma maioria de juízes liberais (nomeados por presidentes do Partido Democrata). Possibilidade obstruída pela maioria Republicana no Senado, que se recusou a sequer sabatinar e votar a nomeação de Merrick Garland, candidato indicado por Obama em março de 2016.

Com eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, antes mesmo do início de seu mandato, já se especula sobre quem ele nomeará para a vaga ainda aberta de Scalia, bem como sobre que outras vagas poderão se abrir durante o seu governo, considerando a idade avançada de alguns dos juízes liberais e o fato de o Partido Republicano controlar a Presidência, a Câmara e o Senado.

A centralidade desse tema para campanhas eleitorais, mandatos presidenciais e para a vida política dessas duas democracias constitucionais chama a atenção. Sua importância é produto, simultaneamente, do sucesso e de fracassos do direito constitucional e, por isso, requer maior reflexão.

A Constituição é produto da política. Ela estrutura a política e a política é capaz de influenciar o significado de normas constitucionais. Portanto, não surpreende que a briga pelo controle do seu significado seja uma disputa política fundamental. No entanto, o desenho específico da jurisdição constitucional, especialmente dos poderes, duração dos mandatos e forma de nomeação dos juízes de tribunais constitucionais, pode aumentar ou diminuir a sua influência e a radicalização política em torno de sua escolha.

Dependendo de certos fatores, o direito constitucional, ao estruturar os contornos do debate político pode diminuir a radicalização da política ou limitar a radicalização a certos pontos – enquanto mantém outros fora de debate. No entanto, sob certas condições, pode ocorrer o contrário: haver consenso sobre boa parte da política, mas uma disputa fundamental sobre a permanência ou sobre o significado de um dos pilares de uma ordem constitucional. Isso pode ocorrer em período de calmaria sobre outras questões políticas e econômicas e, nesse caso, o debate político pode ser dominado por esse conflito constitucional. Mas isso também pode ocorrer em períodos de intenso debate sobre questões não constitucionais, situação em que, a mistura do debate político constitucional com o debate político infraconstitucional pode impedir que a Constituição faça uma de suas funções: domesticar a disputa política.  

Funções Constitucionais

Constituições podem fazer muitas coisas, mas, independentemente das múltiplas escolhas individuais que podem ser feitas pelos constituintes, de maneira geral, constitucionalizar uma decisão política significa retirar essa questão do debate legislativo normal e, com isso, da política eleitoral ordinária.

O que isso implica na prática?

Em um sistema em que alterar o texto da constituição exige uma supermaioria, tudo aquilo que foi constitucionalizado está, até certo ponto, imune de decisões tomadas por maiorias políticas, tanto aquelas existentes no eleitorado como, em sistemas não perfeitamente proporcionais, aquelas existentes no legislativo.

Essa é, de certa maneira, a função primordial de uma Constituição.

Afinal, ao se estruturar o espaço de conflito político, a primeira garantia que deve ser assegurada é a de que as regras estabelecidas para essa disputa não serão simplesmente alteradas em benefício próprio por quem quer que tenha vencido a última eleição.

Garantir o poder de uma minoria bloquear alterações nas regras eleitorais é garantir que, perdendo ou ganhando uma eleição, a não ser que mudanças sejam em benefícios de todos, a próxima disputa se dará pelas mesmas regras.

Nesse sentido, a Constituição, por definição, protege minorias políticas ao garantir a estabilidade da disputa eleitoral.

No entanto, normalmente, Constituições não regulam apenas o jogo eleitoral. Fazem mais. Dão essa mesma garantia supermajoritária a outras escolhas políticas substantivas que tenham sido constitucionalizadas. Ou seja, garantem esse poder de veto de uma minoria política, não só em relação a mudanças das regras do jogo, mas também em relação a mudanças quanto a algumas – por vezes, muitas – escolhas políticas substantivas.

Note-se que, nesse sentido, não há nenhum julgamento de valor sobre os méritos ou deméritos dos interesses dessas minorias. “Minorias” podem ser ou não ser grupos tradicionalmente oprimidos em uma sociedade. Nesse sentido, a proteção pode ser ou não ser em benefício da sociedade como um todo e dos grupos mais desfavorecidos econômica e socialmente. Ao garantir o statu quo, o poder de veto de uma minoria pode impedir transformações radicais de uma sociedade para o bem ou para o mal.

Uma cláusula pode garantir um direito fundamental a uma minoria oprimida, mas pode também garantir um privilégio a uma minoria opressora. Em qualquer caso, a garantia impede que uma mera vitória eleitoral. Mesmo uma maioria eleitoral que tenha garantido o domínio de um mesmo projeto político sobre a Presidência, a Câmara e o Senado (em um sistema presidencialista bicameral, em que esse feito já é naturalmente mais difícil) pode ser incapaz de alterar o texto da Constituição, ou transformar radicalmente a sua interpretação por meio do judiciário.

Muitas vezes, esse pode parecer um custo muito alto a pagar. Especialmente para aqueles que acreditam em um projeto político transformador que traria grande benefício para a sociedade. Mas esse é o preço que se paga para que cada eleição não seja uma disputa de vida ou morte. Para que, ao retirar certas coisas do controle de uma maioria eleitoral, seja possível admitir uma derrota com a tranquilidade de que certas instituições e garantias são estáveis o suficiente para que se viva normalmente sob um governo com o qual se discorde (mesmo que, radicalmente), enquanto se prepara para disputar as próximas eleições.

Mais concretamente, são essas garantias que permitem que os proprietários dos meios de produção não peguem em armas ou abandonem o país diante de uma vitória de um partido comunista em uma democracia constitucional que proíba a expropriação, bem como que minorias étnicas, religiosas, sexuais ou nacionais não temam por sua vida e segurança, pegando em armas ou abandonando o país, diante de uma vitória de uma partido de direita radical, em uma democracia constitucional que lhes garanta certos direitos fundamentais.

Mais concretamente ainda, é essa função Constitucional que permite que cidadãos americanos potencialmente afetados por algumas das medidas radicais anunciadas por Donald Trump em sua campanha presidencial tenham fé de que as instituições os protegerão.

Mas, há um outro lado dessa moeda:

São também essas garantias que permitem que certos eleitores Republicanos que rejeitam completamente algumas dessas mesmas medidas radicais, confiantes na sua impossibilidade constitucional, tenham votado em Trump para a presidência.

Ou seja, para o bem e para o mal, essa fé nas instituições constitucionais, protege minorias diante da eleição de um governo radical, mas também permite que, em certa medida, em vista da possibilidade do “voto múltiplo” (que explico em seguida), eleitores não radicalizados votem em um partido e coloquem no poder um governo defensor de posições radicais, mesmo sem concordar especificamente com elas.

Há aí um grande perigo: de que mesmo sem uma maioria substantiva nesse sentido, certas opções de desenho constitucional permitam que um governo eleito sem um mandato efetivo para mudar os pilares fundamentais da ordem constitucional seja capaz de, direta ou indiretamente, fazer exatamente isso.

Discutir tais opções de desenho constitucional é fundamental, e é esse o objetivo final deste artigo.

No entanto, antes disso, é preciso ter claro o que se entende por “voto múltiplo”, bem como debater a possibilidade de que um governo seja de fato eleito para mudar os pilares da ordem constitucional.

Passo agora a esses dois pontos.

Voto Múltiplo

O que eu chamo de “voto múltiplo” é basicamente o seguinte: votar em um candidato é votar em muitas coisas ao mesmo tempo. Isso parece óbvio, no entanto, o fato de que, normalmente, o eleitor não concorda com todas as opções defendidas pelo “seu” candidato, mas o elege mesmo assim, merece destaque.

Isso pode ocorrer em maior ou menor grau dependendo do sistema eleitoral. Um sistema proporcional não distrital – ou com distritos muito grandes – pode minimizar esse fenômeno. Um sistema majoritário distrital em que o normal é ter apenas dois, ou no máximo três, candidatos competitivos para escolher, maximiza esse fenômeno.

Em qualquer caso, é possível que o eleitor tenha que votar em um candidato de quem discorde em alguns pontos, mesmo que a discordância seja intensa, e mesmo que ela seja sobre um ponto fundamental para esse mesmo eleitor.

Em certa medida, o que acabei de descrever é apenas o fato de que qualquer eleição se resume, por definição, a uma questão de escolha. Assim, diante de algumas opções, é natural que o eleitor, ao escolher, decida quais são suas prioridades, dando mais valor a uma questão do que a outra.

Mas, normal ou não, há aí um risco inerente ao sistema. Que, somando se as escolhas individuais, seja formada uma bancada com posição majoritária sobre um tema sem que, no entanto, haja apoio a ele pela maioria dos eleitores.

Um exemplo pode tornar o tema mais claro.

Imaginemos dois candidatos. O candidato A é um religioso, que se opõe a pena de morte e a diversas demandas do movimento feminista. O candidato B é um feminista, particularmente preocupado com violência contra a mulher e que defende a pena de morte para estupradores.

Como um feminista radicalmente contrário a pena de morte escolheria? Como um conservador radicalmente favorável a pena de morte escolheria? O risco está em que o primeiro, sem querer, eleja uma maioria favorável a pena de morte.

O risco é que o segundo, sem querer, eleja uma maioria radicalmente contraria a pena de morte.

Mas essas escolhas não se dão em um vácuo institucional. Eleger candidatos assim em um sistema sem uma Constituição rígida é muito diferente de o fazer em um sistema em que ela exista e, além do mais, seguindo ainda este exemplo, tenha algo substantivo a dizer sobre a pena de morte.

Talvez a Constituição já preveja a pena de morte necessariamente para alguns casos. Talvez a Constituição já a proíba terminantemente para qualquer caso. Talvez isso decorra do texto inequívoco da Constituição. Talvez isso decorra da interpretação de cláusulas abertas e princípios da Constituição. Em qualquer desses casos, a existência de uma norma constitucional que regule a questão muda completamente a situação.

Nesse caso, é possível votar em um candidato de quem se discorde completamente em alguma questão, porque se concorda profundamente com ele em outra, não simplesmente por um desses temas ser mais importante para si em abstrato, mas sabendo, em concreto, que o outro não está em jogo no momento, porque requereria uma transformação constitucional que não tem chances de acontecer naquele momento.

É esse tipo de garantia, ou melhor, de fé na efetividade de uma garantia constitucional, que permite não só que um membro de uma minoria potencialmente afetada diretamente por políticas radicais defendidas por Trump durma tranquilo (mesmo que decepcionado) com a sua vitória. É esse tipo de garantia que também permite que alguém que discorde totalmente de Trump em diversos temas, inclusive esses, possa votar nele, movido, por exemplo, puramente por estar frustrado com a política econômica Democrata e imaginando que as outras medidas, proibidas que são pela Constituição, não estão realmente em questão. 

No entanto, esse exemplo se complica quando as próprias permissões e proibições constitucionais parecem estar em jogo. Ou seja, quando além de eleitores votando por suas preferências infraconstitucionais, seguros da estabilidade de certas garantias constitucionais, há outros fazendo exatamente o oposto, votando com o objetivo de transformar certos pilares da Constituição, sem dar prioridade às preferências infraconstitucionais que possam estar em jogo numa determina eleição.

Ou seja: se o voto de alguns parte da premissa de que há certas áreas imutáveis, o de outros é orientado justamente pela insatisfação com essas áreas e a esperança de mudá-las.

Isso pode ocorrer, por exemplo, porque uma proposta de mudança constitucional está explicitamente em debate durante a eleição. Nesse caso, o eleitor tem que considerar suas preferências levando em conta a possibilidade da própria Constituição ser emendada. Assim, além de suas prioridades políticas específicas, e da existência de garantias constitucionais que imunizem algumas escolhas do poder de simples maioria, deverá considera a probabilidade de aprovação de uma emenda constitucional sobre um determinado tema. Algo que depende de uma análise política sobre o tamanho do apoio para essa medida, mas também de uma análise institucional sobre quão fácil – ou difícil – é o procedimento para se emendar o texto constitucional.

Essa situação é mais simples porque o debate político é explicito, mas também porque as regras do jogo e os riscos são claros para todos os envolvidos.

No entanto, nem só por meio de emendas se muda uma Constituição.

Uma outra forma de o fazer é alterando o seu significado – sem alterar o seu texto – por meio na nomeação para Tribunais Constitucionais de juízes que compartilhem da sua visão sobre a melhor interpretação do texto constitucional.

Nesse tipo de situação, votar para um presidente e / ou para um representante no legislativo pode ser também votar para um tipo de juiz constitucional e, com isso, votar pela mudança da própria Constituição.

Juízes Eleitos

Quando a própria interpretação constitucional se torna um tema central da política, e a possibilidade de mudar o seu significado por meio da nomeação de juízes comprometidos com uma visão transformadora do seu significado é uma possibilidade real, a capacidade de o direito constitucional garantir a estabilidade de certas decisões, independentemente do confronto eleitoral, pode ser profundamente fragilizada.

Na melhor das hipóteses, esse debate será feito às claras, e o desenho institucional garantirá que a mudança ocorrerá apenas se o governo eleito tiver o mesmo tipo de apoio substancial que uma emenda constitucional demandaria.

No entanto, nem sempre é assim. Por vezes, a falta de previsibilidade no sistema de indicações e o desenho seu institucional específico podem fazer com que um governo seja capaz de gerar mudanças substantivas, difíceis de serem revertidas por maiorias políticas subsequentes, sobre temas constitucionais fundamentais, sem que isso tenha sido adequadamente discutido durante a campanha eleitoral ou, mesmo que tenha sido, sem que os riscos de seu real acontecimento estivessem claros no momento da eleição.

O encontro do voto múltiplo, com a possibilidade de transformação constitucional por meio da nomeação de juízes, com um desenho institucional que permita a imprevisibilidade do momento e da duração dessa mudança cria uma situação particularmente preocupante.

Por isso, é fundamental discutir a contribuição de soluções de desenho constitucional para evitar, ou ao menos minimizar, esse problema.

Desenho Constitucional

Diferentes opções de desenho constitucional podem afetar profundamente a possibilidade uma vitória eleitoral majoritária significar também uma grande transformação constitucional.

Duas merecem destaque: (i) o processo para nomeação de juízes constitucionais, (ii) a existência de mandatos que permitam (a) previsibilidade quanto ao tamanho da possível transformação na composição do tribunal a cada ciclo eleitoral e (b) o tamanho da influência de uma única nomeação na composição do tribunal no decorrer do tempo.

Quanto à primeira, um processo em que o presidente nomeia e uma maioria simples do Senado confirma (como é o caso nos Estados Unidos e no Brasil) é particularmente permeável a influência de maiorias políticas ocasionais.

Nesse tipo de sistema, em que aquele que ganhou uma eleição presidencial majoritária tem completa liberdade de nomear quem quiser, e para impedir essa nomeação, não importa quão transformador o seu potencial, seja necessária uma maioria dos senadores, a influência constitucional de um presidente é particularmente acentuada.

Quanto à segunda, sistemas em que não há mandatos para juízes constitucionais (como é o caso nos Estados Unidos e no Brasil) e, portanto, não há qualquer previsibilidade sobre quantos juízes cada presidente poderá nomear, pois depende apenas da eventualidade da morte ou aposentadoria de um deles, a potencial influência constitucional de um único presidente se potencializa significativamente.

Isso se daria tanto quanto ao tamanho da transformação que pode ser realizada em um único mandato presidencial, quanto em relação à duração dessa influência pela possibilidade de cada um de seus nomeados permanecer no tribunal por tempo indeterminado.

É claro que, independentemente de mandatos, a eventualidade da morte ou de uma exoneração voluntária estaria sempre presente, no entanto, regras sobre o que fazer nessas hipóteses poderiam minimizar o impacto desse tipo de eventualidade.

Quanto ao sistema brasileiro, é importante notar que a aposentadoria compulsória dá uma previsibilidade mínima ao sistema (não deixando a abertura de vagas simplesmente nas mãos da imprevisibilidade da morte ou da decisão pessoal de um juiz negar, ou possibilitar, a nomeação de seu substituto a um determinado presidente), mas ela afeta pouco a segunda questão (da influência desproporcional de um juiz ou de outro conforme a sua idade no momento da nomeação) e, consequentemente, da influência desproporcional e aleatória de um presidente ou de outro, conforme mais ou menos ministros façam setenta e cinco anos no decorrer do seu mandato.

A somatória de (i) a possibilidade de um presidente com uma maioria simples do Senado nomear quem quiser para o tribunal e (ii) a ausência de mandatos que tornem o número e influência de cada uma dessas nomeações previsíveis e igualmente distribuídas entre todos os presidentes eleitos é, portanto, particularmente problemática.

Essa combinação gera um risco irrazoável para a estabilidade constitucional que, de duas uma, ou é despercebida pelo eleitor médio, que pode ser surpreendido por uma grande transformação constitucional ser produto de uma única eleição, ou é percebida pelo eleitor médio, tematizada na campanha, tornando toda eleição numa potencial disputa pelos pilares fundamentais da ordem constitucional.

No primeiro caso, o risco é uma transformação independentemente do apoio de uma efetiva maioria. Nessa hipótese, o sistema não protege significativamente maiorias de decisões radicais por parte de seus governantes.

No segundo, o risco é uma transformação permanente como consequência de uma única vitória eleitoral por uma simples maioria. Nessa hipótese, o direito constitucional perde o poder de estabilizar o debate político sobre certos temas constitucionais, seja por retirá-lo da discussão, seja por tornar as chances e os riscos de sua transformação claros o suficiente para que nem toda eleição seja necessariamente um plebiscito sobre pilares fundamentais da ordem constitucional.

Em qualquer dos casos, o risco é grande e os problemas substanciais.

Não há dúvida de que o significado e a permanência de compromissos constitucionais devem ser permeáveis à política. No entanto, a sua potencial transformação não pode depender simplesmente da sorte ou do azar.

Um sistema em que simples maiorias políticas podem transformar a Constituição por meio da nomeação de juízes constitucionais pode ser defensável em nome de uma maior permeabilidade do direito constitucional à política. No entanto, um sistema em que maiorias políticas têm maior ou menor influência nesse processo a depender do acaso da morte ou das escolhas pessoais de juízes é particularmente difícil de se justificar.

Nesse sentido, mandatos fixos para juízes constitucionais, que permitam que cada presidente tenha uma influência garantida, mas moderada, a cada eleição, não é simplesmente a escolha mais justa. É também uma opção por um modelo capaz de gerar maior estabilidade política para uma democracia constitucional, permitindo que o direito constitucional realize uma de suas funções fundamentais: domesticar a disputa política.


Thomaz H. Junqueira de A. Pereira é professor da FGV Direito Rio, doutorando e mestre em Direito pela Yale Law School; mestre em Direito Empresarial pela PUC-SP; mestre em Direito Processual Civil e bacharel em Direito pela USP.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

28 anos da Constituição devem ser comemorados, mas sem ingenuidade

Por Ingo Wolfgang Sarlet

Embora já transcorrido o aniversário propriamente dito da promulgação da nossa Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, ainda está em tempo de se esboçar um breve apanhado geral sobre o reconhecimento, proteção e promoção dos direitos e garantias fundamentais na atual ordem constitucional. Quanto à sua posição e significado na arquitetura constitucional, inegável que a CF representou um salto de feição quantitativo, mas especialmente qualitativo, seja no que diz com o número dos direitos e garantias, seja especialmente no tocante ao seu regime jurídico reforçado.

Com efeito, ademais de ter o Constituinte, em termos gerais, optado por concentrar os direitos fundamentais de todas as espécies (civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) no Título II do texto constitucional, logo na sequência dos Princípios Fundamentais, apontando, de tal sorte, para a relevância dos direitos e garantias fundamentais para o conjunto da ordem constitucional, o próprio termo “Direitos Fundamentais” é novo no âmbito da trajetória constitucional brasileira.

Além disso, calha sublinhar que a terminologia adotada não representou mero rótulo desacompanhado de real significado, visto que, na esteira da tradição inaugurada pela Lei Fundamental da Alemanha de 1949 e desde então amplamente difundida, a condição de direitos fundamentais, para que efetivamente mereçam ostentar tal título, é determinada essencialmente, para além da assim chamada fundamentalidade material, por um conjunto de garantias expressas e implícitas que asseguram um regime jurídico reforçado e diferenciado dos direitos fundamentais em relação a outras normas constitucionais.

Nessa esteira, igualmente sem precedentes no Brasil, a CF estabeleceu que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são: a) de aplicação imediata, sendo, portanto, diretamente vinculativas (artigo 5§ 1º); b) integram o conjunto as assim chamadas “cláusulas pétreas” (artigo 60§ 4º) e c) não correspondem a um rol de caráter taxativo, incluindo, além dos direitos expressamente enunciados, direitos decorrentes do regime e dos princípios da CF e – e aqui outra novidade! - os direitos constantes dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (artigo 5º, § 2º).

No que diz com o elenco dos direitos em espécie consagrados pela CF, incluindo-se aqui direitos positivados para além do Título II, não é demais recordar que mesmo tendo os principais tratados de direitos humanos (os dois pactos da ONU de 1966 e a Convenção Americana de 1969) sido incorporados apenas na primeira metade da Década de 1990, portanto alguns anos depois de promulgada a nossa Lei Fundamental, o texto originário de 1988 já contemplava em sua ampla maioria os direitos reconhecidos no plano internacional, demonstrando, de tal sorte, a abertura aos desenvolvimentos registrados na seara constitucional e mesmo em ordens constitucionais estrangeiras.

  
Note-se, nesse contexto, que embora o caráter analítico do catálogo constitucional de direitos e garantias possa merecer alguma crítica, em especial quanto à sua sistematização e mesmo quanto ao número de direitos em espécie consagrados, o fato é que a CF não desborda do quadro internacional, visto que já se contam centenas de direitos previstos em tratados de direitos humanos. O aspecto numérico, portanto, até pode ser causa de algumas perplexidades teóricas e práticas, mas não poderá por si só deslegitimar o papel dos direitos fundamentais na ordem constitucional.

À riqueza numérica soma-se o caráter relativamente pioneiro e mesmo inovador de alguns direitos e garantias fundamentais, como é o caso da proteção do consumidor, do mandado de injunção, do habeas data, da proteção do ambiente, do reconhecimento de direitos das minorias étnicas e culturais, dentre tantas outras. Dada a dinâmica da vida, também o poder de reforma constitucional não deixou de contribuir significativamente para o enriquecimento do catálogo, mediante a inserção do direito à razoável duração do processo, dos direitos sociais à moradia, à alimentação e ao transporte, bem como da introdução do § 3º do artigo 5º assegurando valor de emenda constitucional àqueles direitos constantes de tratados internacionais aprovados mediante procedimento legislativo qualificado.

Todavia, não fosse o labor produtivo da doutrina e da jurisprudência constitucional, que, especialmente na seara dos direitos fundamentais, alcançou — sem prejuízo de importantes aspectos carecedores de crítica — um incremento quantitativo, mas também qualitativo inimaginável quando da promulgação da CF, a generosa e avançada previsão textual dos direitos no plano constitucional poderia ter sido substancialmente esvaziada ao longo do tempo. Nesse particular, é possível adiantar que a despeito de alguns revezes, a trajetória pós-88 é essencialmente evolutiva e não regressiva.

Apenas em caráter ilustrativo, relembre-se o reconhecimento, pelo STF, de uma série de direitos fundamentais implícitos (direito ao nome, sigilo fiscal e bancário, mínimo existencial, direito à ressocialização, direito à execução da pena em condições dignas, entre outros), mas saliente-se, ademais, o caráter proativo (para alguns demasiadamente ativista!) da nossa Corte Suprema no que diz com a afirmação e mesmo aperfeiçoamento do regime jurídico dos direitos fundamentais. Nessa senda, é possível referir, ainda, a extensão aos direitos sociais da prerrogativa da imediata aplicabilidade das normas de direitos fundamentais, a interpretação extensiva das “cláusulas pétreas” nesse domínio, a exegese ampla da titularidade dos direitos fundamentais, assim como o inegável avanço – ainda que não ideal – no concernente ao valor jurídico atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos.

A atuação da jurisdição constitucional brasileira também se revela afinada com as grandes questões que dizem respeito aos desafios dos direitos fundamentais na atualidade, protagonizando, de modo geral, uma jurisprudência dinâmica e progressista, como dão conta, em caráter ilustrativo, as decisões repudiando o discurso do ódio, reforçando a liberdade de reunião e expressão, reconhecendo a união estável entre parceiros do mesmo sexo, chancelando políticas de ações afirmativas, valorizando a proibição de crueldade contra os animais (casos da farra do boi, rinha de galos e por último a polêmica vaquejada), bem como o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional em relação a situação dos presídios brasileiros, decisões que foram objeto de majoritário aplauso.

Com isso não se está, à evidência, olvidando que no seu labor o STF tem sido alvo de importantes críticas, em especial no tocante a eventual excesso de intervenção na seara da política e da economia, mas também no que diz com a falta de consideração dos limites textuais postos pelo direito constitucional positivo, como dão conta – novamente em caráter ilustrativo – a assim chamada “judicialização” das políticas públicas, assim como os casos envolvendo a fidelidade partidária, a assim chamada Lei da Ficha Limpa, o caso Raposa Serra do Sol e mesmo a discutida decisão autorizando a execução provisória da pena depois da condenação em Segundo Grau de Jurisdição à pena privativa de liberdade.

Ainda nesse contexto, é de se enfatizar que também os atores legitimados a promover a proteção dos direitos fundamentais, assim como os meios processuais para levar a efeito tal desiderato, merecerem particular atenção por parte do Constituinte, ademais de terem sido ampliados no transcurso desses 28 anos. É o caso, por exemplo, do mandado de injunção, do habeas data, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, da ampliação gradual do controle concentrado de constitucionalidade, do fortalecimento do papel do Ministério Público, na criação e fortalecimento da Defensoria Pública, entre outros.

Por outro lado, mesmo diante de diversas tentativas no sentido de relativizar direitos e garantias, não se registram mutilações de relevo no sistema de direitos fundamentais da CF, muito antes pelo contrário, os ganhos superam em muito eventuais perdas, se é que é possível, ao menos no que diz com o reconhecimento formal (textual), identificar alguma perda realmente significativa.

Até mesmo a gradual formação de uma cultura dos direitos fundamentais, cada vez mais disseminada no próprio corpo social, há de ser visualizada como um avanço, ainda que o “véu da ignorância“ (aqui evidentemente não no sentido Rawlsiano!) cubra muitas mentes.  A proliferação de Organizações Não-Governamentais dedicadas à causa dos direitos humanos e fundamentais, a disseminação de comissões de direitos humanos no setor público, a difusão de questões ligadas a direitos fundamentais nas mídias, são alguns indicadores que dão conta desse processo.

Assim, tudo somado e mesmo diante de um panorama tão esquemático, seria até mesmo desarrazoado negar que há sim muito a comemorar. Mas também há motivos suficientemente relevantes para preocupação e que no limite podem transformar, ainda que em parte, o justificado otimismo em significativa dose de frustração – que, de resto, já se verifica no corpo social - e mesmo pessimismo em relação à capacidade de a gramática política e jurídica dos direitos fundamentais assegurar de fato uma vida condigna aos brasileiros e estrangeiros que no Brasil se encontram. 

Possivelmente o principal fator a ser apontado é o índice alarmante de casos envolvendo a violação de direitos fundamentais, tanto por parte do poder público, quanto ao nível da sociedade, destacando-se aqui os agudos níveis de desigualdade, o aumento da criminalidade violenta (basta referir que dentre as 50 cidades mais violentas do Mundo quase a metade se encontram em território brasileiro), o déficit de efetividade dos direitos sociais básicos, os altos níveis de corrupção e desperdício, sem falar nos crescentes índices de intolerância de toda natureza, desnudando, no seu conjunto, uma crise que é tanto de efetividade dos direitos fundamentais, quanto de confiança no seu papel de garantes da dignidade da pessoa humana.

Dito de outro modo, é perceptível que cada vez mais pessoas se revelam céticas em relação ao discurso dos direitos fundamentais e sua real eficácia e mesmo bondade intrínseca, o que sugere a urgência de se enfrentar de modo sereno, mas firme, tais desenvolvimentos, que aprofundam o hiato entre as promessas (e esperanças) constitucionais e a realidade nua e crua do cotidiano de expressivo número de brasileiros.

Mas se não devemos quedar cegos diante de tal fenômeno, que, de resto, em maior ou menor escala, não se traduz em “privilégio” do Brasil e nem é de ser atribuído à CF, mas especialmente não aos direitos e garantias fundamentais (como infelizmente sempre há quem sugira), também é verdade que, por mais que se verifiquem problemas reais de violação de direitos, não podemos ficar engessados e deixar de acreditar no - e lutar pelo - papel emancipador e promotor da dignidade humana dos direitos fundamentais.  Afinal, os direitos fundamentais seguem sendo condição de existência e o fim de um Estado Democrático de Direito que mereça ostentar esse título e, especialmente em período marcados pela instabilidade, devem operar como pautas diretivas da ação pública e privada, deslegitimando toda sorte de arbítrios e atuando como cláusulas de barreira contra intervenções, por ação e omissão, do poder estatal e do poder privado, em particular o poder econômico exercido de modo abusivo.


Nesse contexto, é de se recordar que a CF estabelece tanto um rol atual e alentado de direitos e garantias, quanto os instrumentos (jurídicos, mas também políticos) para a sua eficácia e efetividade, cabendo a todos, Estado e sociedade, assegurar que a  distância entre os direitos nos textos e nos livros e os direitos na realidade diminua, porquanto se nem tudo são vitórias, o conjunto da obra nos diz que a causa vale a pena, pois sem direitos efetivos poderemos eventualmente não ter mais muito por que lutar.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Poder Constituinte




Eduardo Martins de Miranda

O Poder Constituinte é o fundamento de validade da Constituição e tem o poder de criar ou reformar a mesma. Embora não haja consenso o Poder Constituinte costuma ser dividido em Poder Constituinte Originário, Derivado e Decorrente.

A origem histórica do constitucionalismo remonta a Inglaterra no ano de 1215. Este processo que teria tido início com a Magna Carta, entretanto não trás presente no seu bojo a ideia de uma Assembleia Nacional Constituinte.

A elaboração geral da teoria do Poder Constituinte nasceu com o pensador e revolucionário Frances do século XVIII Sieyes em seu panfleto o que é o Terceiro Estado?

Em 1789 durante a Revolução Francesa foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem derivada do poder, afirmando a partir de então, que a nação, o povo (seja diretamente ou através de uma Assembleia Representativa), é o titular da soberania, e por isso, titular do Poder Constituinte. Passou-se a entender que a Constituição deveria ser expressão da vontade do povo, a expressão da soberania popular.

O Poder Constituinte não é fruto de qualquer outro poder. Ele é o fundamento de validade da Constituição e tem o poder de criar ou reformar (revisar ou emendar) a Constituição. Embora não haja consenso o Poder Constituinte costuma ser dividido em Poder Constituinte Originário, Derivado e Decorrente.

O Poder Constituinte Originário é o momento de passagem do poder ao Direito, é o instante maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo.

A doutrina elege como características principais deste poder originário, com pequenas variações entre os autores, a inicialidade, a incondicionalidade e a limitação. Este poder é inicial dado que sua obra - a Constituição - é a base da ordem jurídica, é limitado e autônomo, pois não está de modo algum limitado pelo direito anterior, não tendo que respeitar os limites postos pelo Direito positivo antecessor, é incondicionado, pois não tem que seguir qualquer procedimento determinado para realizar sua obra de constitucionalização.

O Poder Constituinte Derivado é uma decorrência da necessidade de previsão no texto constitucional de um processo para sua alteração. Ele é um poder limitado posto que a própria constituição coloca limites à sua modificação. As Cláusulas Pétreas constituem exemplo desse limite. É condicionado, ou seja, a alteração constitucional deve seguir a um processo determinado - processo de emenda. Ele sofre limitações jurídicas que são impostas pelo próprio Poder Constituinte Originário.

O Poder Constituinte Decorrente tem a missão de estruturar a organização do Estado Federal. Seu advento ocorreu com o pacto federativo, que permitiu as unidades federadas o poder de se auto organizarem por meio de Constituições Estaduais. Ele tem as mesmas características de limitação e condicionamento que o Poder Constituinte Derivado. Os limites do Poder Constituinte Decorrente são encontrados em vários dispositivos da Constituição Federal.

Historicamente, o sujeito do Poder Constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo. Desta forma observam-se no transcorrer da história distorções graves da teoria democrática, onde o titular é um Rei. Um ditador, uma classe, um grupo, todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta.

Isoladamente pode-se afirmar que o titular do Poder Constituinte é quem detém a soberania. Assim sendo, nos Estados democráticos a titularidade pertence ao povo, em Estados totalitários a quem detém o poder. Embora haja um consenso de que o povo é o titular do Poder Constituinte, nem sempre o seu exercício tem se realizado democraticamente, portanto é preferível atribuir à titularidade há quem detém a soberania.

Costuma-se distinguir a titularidade e o exercente do Poder Constituinte, onde nem sempre o titular é o exercente e nem sempre o exercente é o titular. Os exercentes poder ser legítimos ou ilegítimos.

São legítimos quando são eleitos para Assembleias ou Convenções constituintes, bem como quando conduzem comandos revolucionários, encarregados de instauração de uma nova ordem social querida pelo povo (consenso). Os exercentes ilegítimos seriam os líderes dos grupos de estado, agentes não de um desejo de nova ordem social, de um querer do povo, mas autores de um movimento jurídico respaldado pela força.


Assim sendo, a ideia de supremacia da constituição decorre de sua origem, alicerçada num poder instituidor de todos os outros poderes, que constitui os demais; daí sua denominação Poder Constituinte. O Poder Constituinte é a soberania que se manifesta, de modo inicial ou primário, é o poder de constituir o Estado e o poder de dar início à montagem do Ordenamento Jurídico do povo, e do Estado mesmo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O que a Noruega pode ensinar a bancada da bala



Diego Vasconcelos


O problema carcerário

Por que temos prisões? Pode parecer uma pergunta óbvia, mas muitas pessoas tendem a se esquecer da resposta. Existe em nossa sociedade, principalmente em sua fatia mais conservadora, um impulso de que a prisão deva ser o inferno na terra, a punição terrena sobre aquele pecador subjugado às leis dos homens.

Antes de mais nada, é importante esclarecer aqui que eu (assim como qualquer humanista secular) não defendo “bandidos e assassinos”. Ninguém aqui quer jogar as vítimas e suas famílias para o lado e colocar os criminosos num pódio, dando-lhes atenção e caridade. Pode parecer incrível, na mente de conservadores, que nós não estamos do lado dos fora da lei, e apenas queremos que o combate ao problema seja feito com seriedade, encarando as causas e pensando em soluções que funcionem.

Sobre as prisões. 


Quando pesquisamos a fundo, lembramos que o objetivo das prisões é muito mais simples e pragmático do que a maioria das pessoas pensam. Uma prisão serve apenas para afastar um indivíduo que não está apto (seja por uma deficiência moral ou psicológica) para viver em sociedade. Nada mais que isso. Como um “cercado” num jardim de infância, para onde as crianças malcriadas são mandadas para não incomodarem os adultos ou os colegas. A ideia é que a criança deixe de malcriações e, depois de um tempo isolada, possa voltar para conviver com os colegas.

Agora nos voltemos para as nos nossos presídios e no que as pessoas pensam sobre eles. Nossas prisões, assim como na maioria dos países, são lotadas, sujas, mal conservadas, mal guardadas e insuficientes, em todos os sentidos, para a demanda do país. Nos presídios mais afastados, os funcionários não são treinados para reagir adequadamente em cada situação. Assassinos, estupradores e psicopatas, convivem, as vezes no mesmo cubículo, com ladrões leves, jovens e pequenos traficantes. Muitas vezes, as prisões podem ser consideradas como graduações da ilegalidade, pois um jovem que cometeu um delito leve pode aprender muito sobre a vida do crime passando alguns meses com doutores no tema. Basta assistir qualquer reportagem ou documentário sobre as nossas prisões para entender que muitas podem superar o purgatório no quesito sofrimento. Até os conservadores/pessoas de bem concordariam com isso.

Muitas pessoas, ao olhar para a situação das prisões, acham correto, dizem que “tem que ser assim mesmo”, pois, segundo elas, a punição é justa e o sofrimento é um tempero que os detentos têm que experimentar. É aí, justamente aí, que eles erram. Esquecem-se do objetivo das prisões. Deixam suas emoções e sentimentos passarem por seus julgamentos. Eles não percebem que com esse pensamento, e nesse sistema carcerário, o problema só vai aumentar. Poucos que entram nos presídios vão sair de lá reabilitados, prontos para se inserir na sociedade. É por isso que, de 2004 a 2014, a taxa de presos no país (um preso para cada 100 mil habitantes) subiu de 135 para 306,2. Com 602.202 mil (sendo que 40 mil tinham entrado apenas no ano anterior a pesquisa), o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo.

O modelo nórdico

Ao olharmos para alguns países de 1º mundo, vemos que nem todos servem como  bons exemplos nesse assunto (EUA tinham mais de 2,2 milhões de presos em 2013 e 730 prisioneiros por 100 mil habitantes). Podemos, por outro lado, olhar para países que, apesar da população pequena, têm bons índices de reabilitação. Os melhores exemplos são Noruega (73/100 mil), Suécia (70/100 mil), Dinamarca (74/100 mil) e Holanda(87/100 mil).

O que esses países fazem para conseguir esses resultados? A diferença se dá muito mais na forma como os governos investem em educação e como gerem seus sistemas carcerários, do que em diferenças culturais ou predisposições étnicas. Enquanto nossa visão é de que as prisões devam ser purgatórios para onde enviamos os delinquentes, lá, são centros de reabilitação, onde os presos são reeducados e suas deficiências são reformadas, para que possam voltar a sociedade.

Vamos olhar o caso da Noruega

Neste país, a pena máxima, que qualquer um pode pegar, é de 21 anos. Eles consideram esse tempo suficiente para se reabilitar qualquer um. Dependendo do comportamento do preso, das avaliações dos psicólogos, e do crime que ele cometeu, a pena pode ser atenuada. Se, por outro lado, o criminoso for um psicopata, assassino e não se reabilitar para o convívio social, a pena pode sofrer prorrogações consecutivas de cinco anos, até que a reintegração do indivíduo seja comprovada.

Duas prisões do país, Halden e Bostoy, são consideradas de luxo, e, se não fosse a privação de liberdade, poderiam ser confundidas com lugares para se passar as férias. Nelas, os presidiários têm quartos individuais, cozinhas, TVs e geladeiras. Muitos recebem, ou compram, ingredientes e preparam suas próprias refeições. As prisões têm bibliotecas, sala de música e ginásios. Muitos considerariam suas acomodações melhores do que muitas repúblicas para estudantes. Inclusive, só se chega no presídio de Bostoy (que fica numa ilha) através de uma balsa, conduzida por presidiários. Vale ressaltar que a maioria dos presídios do país não tem a maioria dessas regalias, mas todos, de fato, são considerados humanos, pois são limpos, espaçosos e com a mesma política de correção educacional e cultural do indivíduo. Podemos dizer, na linguagem de Rachel Sheherazade, que a Noruega adota seus bandidos.

É importante dizer que, pasmem, o país nórdico não gosta de seus presos. O governo não investe nesses presídios e nesse sistema porque tem dó dos presidiários, ou quer “passar a mão na cabeça de bandidos”. Eles investem nesse sistema porque ele funciona. A Noruega segue a lógica, que mostrei no começo do texto, de que o sistema carcerário deve focar na reabilitação do criminoso. Isso, não pelo preso em si, mas por todos, principalmente pelos não-presos. Eles acreditam que a reabilitação do criminoso é um assunto de segurança pública, com consequências que refletem em toda a sociedade. A reabilitação é incentivada com um sistema progressivo de privilégios, o que mostra a preocupação do sistema em fazer com que, ao sair, o indivíduo possa voltar a trabalhar, ter uma família e viver como qualquer cidadão.

Os resultados são visíveis. 

O país tem índices baixíssimos de criminalidade e altíssimos de reinserimento de presidiários na sociedade. A taxa de reincidência é de apenas 20%, enquanto Brasil chega a 46,03%. Considerando a diferença abissal da relação de presos/habitantes entre os dois países, vemos como a nossa situação é perturbadora. Hoje a Noruega serve como exemplo com seu sistema carcerário.

Outros países como a Holanda e a Suécia também estão obtendo ótimos resultados com essa política. Inclusive, a Holanda têm recebido presos da Noruega por sobra de vagas. A Suécia fechou 4 presídios nos últimos anos, e tende a fechar ainda mais.

Conclusão



Os resultados são óbvios. Tão óbvios que nos perguntamos por que isso não acontece aqui. Os motivos são variados. Temos em nosso país, enraizado em seu sistema educacional, uma cultura da impunidade e do incentivo ao crime. Além disso, temos em vigência uma cultura conservadora e hipócrita, que condena os infortunados e os pobres enquanto despreza qualquer política que vise prevenir e solucionar a criminalidade, como a posição da bancada da bala sobre a legalização da maconha e do aborto.

A questão é, deixando a emoção e o sentimentalismo de lado, e por mais difícil que seja em alguns casos, devemos encarar os presidiários como seres humanos, passíveis de erros e acertos como qualquer um. Em sua maioria, são capazes de se reeducar, se reformar, voltar a sociedade e viver como todos nós. Assim como qualquer cidadão que passa por uma fase (com álcool ou qualquer vício lícito), muitos podem superar seus problemas, se arrepender genuinamente, e passar a frente diversas lições de vida para jovens e crianças, podendo preveni-los contra o mundo das drogas e do crime.


No momento, em nosso país, devido a essa cultura conservadora e hipócrita, estamos a anos-luz de chegar em qualquer patamar próximo aos exemplos nórdicos. Mas podemos votar em políticos com agendas mais progressistas e humanas, imaginando que um dia possamos ter uma população carcerária menor, com um sistema mais justo e coerente. Acompanhando os desfechos das últimas eleições, e o direcionamento dos políticos mais poderosos do congresso, podemos imaginar que num século, talvez consigamos esses resultados.

sábado, 1 de outubro de 2016

ONU E OS DIREITOS HUMANOS



A ONU foi fundada oficialmente em 24 de Outubro de 1945, em São Francisco, Califórnia, ao final da Segunda Guerra Mundial. Representou importante mecanismo de cooperação internacional, a fim de construir a paz no pós-Guerra, e prevenir guerras futuras. A ONU, que substituiu a Liga das Nações, voltou-se para os seguintes objetivos:

• Manter a paz e da segurança internacionais (vertente repressiva – forma de inibição da violação de direitos baseada na punição com base legal).

• Promover os direitos humanos no âmbito internacional (vertente promocional – caracteriza-se pela adoção de medidas capazes de criar o sentimento de pertencimento e um senso de identidade social para romper com o isolamento dos guetos e com a repulsa e a hostilidade da mútua exclusão entre as comunidades excluídas e a sociedade que as exclui, favorecendo o respeito à diversidade).

• Cooperar internacionalmente nas esferas social e econômica.

Esses objetivos, porém, não têm sido buscados de forma equilibrada. Tem-se concedido peso especialmente maior à manutenção da paz do que à promoção de direitos humanos e à cooperação internacional.

A ONU é formada por diversos órgãos, alguns deles com grande presença na mídia internacional: a Assembléia-Geral – que corresponderia ao poder legislativo; o Conselho de Segurança, que corresponderia ao poder executivo; a Corte Internacional de Justiça, que corresponderia ao poder judiciário e, ainda, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o Secretariado e o Conselho de Direitos Humanos.

A Assembléia-Geral é o órgão mais democrático, formada por todos os membros das Nações Unidas (Estados membros), que têm direito a um voto, com igual peso. A assembléia tem a função de discutir e fazer recomendações sobre quaisquer matérias que sejam objeto da Carta da ONU de 1945.

A Corte Internacional de Justiça, principal órgão judicial, é composta por 15 juízes. Ela dispõe tanto de jurisdição contenciosa, como de jurisdição consultiva. Apenas os estados podem entrar em disputa perante a Corte. A solução de controvérsias envolvendo indivíduos não compete à Corte, deve ser buscada por meio do Tribunal Penal Internacional (TPI), tribunal permanente capaz de investigar e julgar indivíduos acusados das mais graves violações de direito internacional humanitário, os chamados crimes de guerra, contra a humanidade ou de genocídio.

O Conselho de Segurança é o órgão mais poderoso das Nações Unidas e tem como missão manter a paz e a segurança internacionais, podendo impor sanções de caráter econômico e militar aos estados-membros. É constituído por cinco membros permanentes e dez não-permanentes. Os membros não-permanentes são eleitos pela Assembléia-Geral da ONU, para um mandato de dois anos. O Brasil foi membro não-permanente do Conselho por dois anos (janeiro de 2004 a dezembro de 2005). Durante esse período em que atuou no Conselho, o Brasil participou ativamente de missões da ONU no Timor Leste e na estabilização do Haiti (MINUSTAH).

O Brasil continua em campanha para conseguir vaga permanente assim como uma reestruturação desse órgão de forma a garantir a participação de países em desenvolvimento. Os cinco membros permanentes – França, Rússia, China, Estados Unidos e Reino Unido – foram indicados por ocasião da elaboração da Carta da ONU em 1945 e têm poder de veto nas deliberações.

O Conselho Econômico e Social (Ecosoc) é composto por 54 membros sendo que anualmente 18 são eleitos pela Assembléia Geral para um mandato de 3 anos. O Conselho Econômico e Social é o principal órgão das Nações Unidas para a coordenação e análise das políticas econômicas e sociais, dando assessoria e incentivando o diálogo sobre questões de desenvolvimento e promoção da cooperação em questões econômicas, sociais e culturais. Para a execução dessa meta, o Conselho pode criar órgãos subsidiários como comissões funcionais e comitês permanentes. A Comissão de Direitos Humanos era uma das comissões desse Conselho, mas, em15 de março de 2006, os Estados-membros, com o objetivo de reforçar a proteção e promoção dos direitos humanos em todo o mundo, substituíram a Comissão por um novo Conselho de Direitos Humanos não mais subordinado ao Ecosoc. A antiga Comissão de Direitos Humanos, que funcionava no âmbito desse Conselho desde 1946, teve papel importante na implementação dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos. Porém, nos últimos anos, ela enfrentava desgaste e críticas severas, em parte, porque países com histórico de violações de direitos humanos tinham assento nesse colegiado e não permitiam que houvesse inspeções em seus territórios.

O Conselho de Direitos Humanos é órgão subsidiário da Assembléia Geral e presta contas diretamente a todos os membros da ONU. É responsável por promover o respeito universal e a proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, podendo analisar as violações de direitos, analisar a atuação dos Estados-membros, responder a situações emergenciais e ainda suspender os direitos e privilégios de qualquer membro do Conselho, desde que considere que cometeu continuadamente violações flagrantes e sistemáticas dos direitos humanos durante o seu mandato. Este processo de suspensão exige uma maioria de dois terços dos votos da Assembléia Geral. É integrado por 47 países eleitos em votação direta, diferentemente da “eleição” que ocorria na antiga Comissão, onde os membros eram escolhidos e depois eleitos por aclamação. A distribuição dos assentos é feita de acordo com uma representação geográfica eqüitativa (13 do Grupo dos Países Africanos; 13 do Grupo dos Países Asiáticos; 7 do Grupo dos Países do Leste Europeu; 8 do Grupo dos Países da América Latina e do Caribe; e 7 do Grupo dos Países da Europa Ocidental e Outros). Os integrantes possuem um mandato de três anos, sem reeleição após dois mandatos consecutivos. O Brasil, após uma acirrada eleição, conseguiu ter assento no novo Conselho.

O Conselho de Tutela teve como principal objetivo acelerar o processo de descolonização, a fim de estimular o progresso político, econômico, social e educacional dos territórios tutelados. O Conselho guiou-se principalmente pelo princípio da auto-determinação dos povos, afirmando que eles têm como direito natural decidir a cada momento que caminho é mais adequado para o seu desenvolvimento, ou seja, autodeterminação é vontade do povo, é democracia. Entre suas funções: analisar relatórios e petições e realizar visitas aos territórios tutelados.


O Secretariado é o principal órgão administrativo das Nações Unidas. O cargo de Secretário-Geral – principal funcionário administrativo da organização, de acordo com o artigo 97 da Carta da ONU – é, desde outubro de 2006, ocupado pelo sul coreano Ban Ki-moon que sucedeu o ganense Kofi Annan.

Atualmente, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) diretamente ligado à Assembléia-Geral das Nações Unidas é o organismo responsável por coordenar todas as ações da ONU que tenham como meta a proteção dos direitos humanos.


Verônica Maria da Silva Gomes  



 O que são os direitos humanos?


Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição.

Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece as obrigações dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de grupos ou indivíduos.

Desde o estabelecimento das Nações Unidas, em 1945 – em meio ao forte lembrete sobre a barbárie da Segunda Guerra Mundial –, um de seus objetivos fundamentais tem sido promover e encorajar o respeito aos direitos humanos para todos, conforme estipulado na Carta das Nações Unidas:

“Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, … a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações…”

Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948



Contexto e definição dos direitos humanos

Os direitos humanos são comumente compreendidos como aqueles direitos inerentes ao ser humano. O conceito de Direitos Humanos reconhece que cada ser humano pode desfrutar de seus direitos humanos sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outro tipo, origem social ou nacional ou condição de nascimento ou riqueza.

Os direitos humanos são garantidos legalmente pela lei de direitos humanos, protegendo indivíduos e grupos contra ações que interferem nas liberdades fundamentais e na dignidade humana.

Estão expressos em tratados, no direito internacional consuetudinário, conjuntos de princípios e outras modalidades do Direito. A legislação de direitos humanos obriga os Estados a agir de uma determinada maneira e proíbe os Estados de se envolverem em atividades específicas. No entanto, a legislação não estabelece os direitos humanos. Os direitos humanos são direitos inerentes a cada pessoa simplesmente por ela ser um humano.

Tratados e outras modalidades do Direito costumam servir para proteger formalmente os direitos de indivíduos ou grupos contra ações ou abandono dos governos, que interferem no desfrute de seus direitos humanos.

Algumas das características mais importantes dos direitos humanos são:

Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa;
Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas;

Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em situações específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser restringido se uma pessoa é considerada culpada de um crime diante de um tribunal e com o devido processo legal;

Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros;

Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa.


Normas internacionais de direitos humanos

A expressão formal dos direitos humanos inerentes se dá através das normas internacionais de direitos humanos. Uma série de tratados internacionais dos direitos humanos e outros instrumentos surgiram a partir de 1945, conferindo uma forma legal aos direitos humanos inerentes.

A criação das Nações Unidas viabilizou um fórum ideal para o desenvolvimento e a adoção dos instrumentos internacionais de direitos humanos. Outros instrumentos foram adotados a nível regional, refletindo as preocupações sobre os direitos humanos particulares a cada região.

A maioria dos países também adotou constituições e outras leis que protegem formalmente os direitos humanos básicos. Muitas vezes, a linguagem utilizada pelos Estados vem dos instrumentos internacionais de direitos humanos.

As normas internacionais de direitos humanos consistem, principalmente, de tratados e costumes, bem como declarações, diretrizes e princípios, entre outros.



Tratados

Um tratado é um acordo entre os Estados, que se comprometem com regras específicas. Tratados internacionais têm diferentes designações, como pactos, cartas, protocolos, convenções e acordos. Um tratado é legalmente vinculativo para os Estados que tenham consentido em se comprometer com as disposições do tratado – em outras palavras, que são parte do tratado.

Um Estado pode fazer parte de um tratado através de uma ratificação, adesão ou sucessão.

A ratificação é a expressão formal do consentimento de um Estado em se comprometer com um tratado. Somente um Estado que tenha assinado o tratado anteriormente – durante o período no qual o tratado esteve aberto a assinaturas – pode ratificá-lo.

A ratificação consiste de dois atos processuais: a nível interno, requer a aprovação pelo órgão constitucional apropriado – como o Parlamento, por exemplo. A nível internacional, de acordo com as disposições do tratado em questão, o instrumento de ratificação deve ser formalmente transmitido ao depositário, que pode ser um Estado ou uma organização internacional como a ONU.

A adesão implica o consentimento de um Estado que não tenha assinado anteriormente o instrumento. Estados ratificam tratados antes e depois de este ter entrado em vigor. O mesmo se aplica à adesão.

Um Estado também pode fazer parte de um tratado por sucessão, que acontece em virtude de uma disposição específica do tratado ou de uma declaração. A maior parte dos tratados não são auto-executáveis. Em alguns Estados tratados são superiores à legislação interna, enquanto em outros Estados tratados recebem status constitucional e em outros apenas certas disposições de um tratado são incorporadas à legislação interna.

Um Estado pode, ao ratificar um tratado, formular reservas a ele, indicando que, embora consinta em se comprometer com a maior parte das disposições, não concorda com se comprometer com certas disposições. No entanto, uma reserva não pode derrotar o objeto e o propósito do tratado.

Além disso, mesmo que um Estado não faça parte de um tratado ou não tenha formulado reservas, o Estado pode ainda estar comprometido com as disposições do tratado que se tornaram direito internacional consuetudinário ou constituem normas imperativas do direito internacional, como a proibição da tortura. Todos os tratados das Nações Unidas estão reunidos em treaties.un.org



Costume

O direito internacional consuetudinário – ou simplesmente “costume” – é o termo usado para descrever uma prática geral e consistente seguida por Estados, decorrente de um sentimento de obrigação legal.

Assim, por exemplo, enquanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos não é, em si, um tratado vinculativo, algumas de suas disposições têm o caráter de direito internacional consuetudinário.



Declarações, resoluções etc. adotadas pelos órgãos das Nações Unidas

Normas gerais do direito internacional – princípios e práticas com os quais a maior parte dos Estados concordaria – constam, muitas vezes, em declarações, proclamações, regras, diretrizes, recomendações e princípios.

Apesar de não ter nenhum feito legal sobre os Estados, elas representam um consenso amplo por parte da comunidade internacional e, portanto, têm uma força moral forte e inegável em termos na prática dos Estados, em relação a sua conduta das relações internacionais.

O valor de tais instrumentos está no reconhecimento e na aceitação por um grande número de Estados e, mesmo sem o efeito vinculativo legal, podem ser vistos como uma declaração de princípios amplamente aceitos pela comunidade internacional.

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, por exemplo, recebeu o apoio dos Estados Unidos em 2010, o último dos quatro Estados-membros da ONU que se opuseram a ela.

Ao adotar a Declaração, os Estados se comprometeram a reconhecer os direitos dos povos indígenas sob a lei internacional, com o direito de serem respeitados como povos distintos e o direito de determinar seu próprio desenvolvimento de acordo com sua cultura, prioridades e leis consuetudinárias (costumes).