"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

terça-feira, 26 de abril de 2016

A necessidade e as limitações da reforma política


Há consenso na sociedade, no governo e no Parlamento sobre o esgotamento do atual sistema de representação brasileiro e que, sem uma ampla reforma política, não existe condições de governabilidade. Todos desejam uma reforma que: 

a) fortaleça os partidos, dando-lhes consistência ideológica e programática, 
b) combata a corrupção, 
c) promova o equilíbrio na disputa eleitoral, 
d) aproxime os representantes dos representados, 
e) institua cotas raciais e/ou de gênero; e
 f) amplie os mecanismos de participação e consulta popular.

Entretanto, não existe nenhum acordo a respeito do conteúdo ou do melhor arranjo para o sistema representativo, cada parlamentar tem um modelo próprio. O tema realmente é complexo e polêmica e afeta interesses políticos, partidários e pessoais, que podem comprometer o projeto de reeleição de muitos parlamentares. Qualquer reforma estrutural no sistema político terá ganhadores e perdedores. É uma questão de escolha. Isso explica porque os defensores de reforma política com esse escopo não conseguiram ainda reunir votos suficientes para aprová-la, nem mesmo em nível infraconstitucional.

Outro aspecto relevante é que, além da mudança no sistema representativo, é fundamental que haja mudança cultural nas direções partidárias, no comportamento dos parlamentares e gestores e até entre os eleitores. Os partidos, como regra, não têm nitidez ideológica e programática; não possuem uma clivagem social clara; apresentam programas para ganhar eleição e não para governar; permitem o uso de caixa dois nas campanhas eleitorais, ou seja, tem conduta moralmente rejeitada.

Enquanto os partidos recrutarem seus candidatos e fizerem as coligações apenas para aumentar seu espaço no horário eleitoral gratuito e ampliar sua fatia no fundo partidário, não haverá uma representação autêntica. Os agentes políticos precisam ter consciência de que o eleitor é titular do poder. Quando ele delega para que alguém em seu nome legisle, fiscalize, aloque recursos no orçamento ou administre um município, um estado ou a própria União, o faz com base em um programa, com exigência de prestação de contas e alternância no poder. E nenhum representante tem correspondido a essa expectativa, levando à descrença do eleitor nos agentes públicos e nos políticos de modo geral.

Um dos principais problemas do nosso sistema político é o excessivo número de partidos – e com as características mencionadas – com representação no Parlamento, algo próximo de 30, o que dificulta sobremaneira a formação de coalizões de apoio ao governo federal. Os governantes, por sua vez, precisam formar maioria para governar e o fazem com base no toma lá dá cá. Os recursos de poder para formar a maioria, invariavelmente, incluem a distribuição de cargos, a liberação de recursos do orçamento, mediante emenda ou convênio, e a negociação do conteúdo das políticas públicas.

A forma mais eficaz de reduzir o número de partidos, sem retirar-lhes autonomia e independência, tem sido a instituição de cláusula de barreira e o fim das coligações nas eleições proporcionais, o que requer mudança constitucional com exigência de três quintos dos votos em dois turnos em cada casa do Congresso. Outros temas, para cuja aprovação exige-se apenas maioria simples, o grau de polêmica é grande, como no caso do financiamento público exclusivo de campanha, a substituição do voto aberto pelo voto em lista e a mudança no quociente eleitoral.

Para aperfeiçoar as regras sobre disputa eleitoral, a formação e o exercício do poder, a reforma política precisaria tratar de alguns dos temas a seguir: 

1) a substituição do voto proporcional pelo majoritário; 

2) a adoção do voto distrital ou distrital misto; 

3) o fim das coligações nas eleições proporcionais; 

4) a adoção da cláusula de barreira; 

5) a instituição de voto facultativo; 

6) a destituição de mandato (recall);

7) a previsão de candidaturas avulsas; 

8) o fim da reeleição; 

9) a eleição para suplente de senador; 

10) o financiamento cidadão ou o financiamento exclusivamente público; 

11) a coincidência de mandatos; 

12) as cotas raciais e de gênero; 

13) a eliminação de foro privilegiado; 

14) a ampliação da democracia direta e da participação popular; e 

15) a adoção da federação de partidos, dentre outros. 


Antônio Augusto de Queiroz  - Texto publicado originalmente no Correio Braziliense em 19/4/2016 na página de opinião.


Impeachment: Julgamento Político com Balizas Jurídicas


O processo de impeachment está previsto constitucionalmente para que se responsabilize, com a perda do mandato mais inabilitação para exercer função pública por oito anos, o Presidente da República, assim como outras altas autoridades políticas e judiciais, em face do cometimento de algum ato caracterizado como “crime de responsabilidade”, assim definido em lei.

Trata-se de um juízo exarado pelo Congresso Nacional sobre a responsabilidade política do Presidente da República. Bem por isso o Ministro Celso de Mello ressalta que, mesmo comprovada a “culpa jurídica”, ainda assim pode haver um juízo político de absolvição no Congresso.

Isso não quer dizer, contudo, que esse julgamento político não tenha que observar balizas jurídicas, notadamente aquelas definidas na Constituição. Isso fica claro, por exemplo, com a obediência obrigatória às regras processuais constitucionais que exigem dois terços dos votos tanto para a admissão da acusação pela Câmara (caput do art. 86), como para o julgamento pelo Senado (parágrafo único do art. 52). Outras regras constitucionais já exigiram pronunciamentos do Supremo sobre a sua mais adequada aplicação, como aquelas relativas ao papel de cada Casa do Congresso no processo de impeachment (julgamento da ADPF 378).

Desse modo, fica claro que os artigos constitucionais sobre o processo de impeachment possuem carga normativa suficiente para pautar a atuação dos parlamentares, servindo-lhes como limite, inclusive; ao tempo que tornam sindicáveis judicialmente os atos legislativos na questão. 

Assim, surge uma questão central colocada no caso presente: para que seja juridicamente possível do ponto de vista constitucional, o julgamento político feito pelo Congresso deve ser precedido de comprovação da prática e da ocorrência de um ato ilegal que se caracterize como crime de responsabilidade, conforme definido na Constituição (art. 85) e na Lei (Lei nº 1.079/50).

Esse comando constitucional é explícito no art. 85. Pela sua importância cabe a transcrição:

“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único. “Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.”

Essa é a advertência da Constituição: o Presidente da República, eleito diretamente pelo voto popular (cláusula pétrea), poderá ser submetido ao processo de impeachment, o que poderá inclusive resultar na perda de seu cargo, se, e somente se, cometerem ato tipificado como crime de responsabilidade, assim definidos na lei ordinária especial.

A prática do crime de responsabilidade, pressuposto para o julgamento político que cabe ao Senado Federal (art. 86 da CF), não ficou demonstrada no relatório da comissão especial instaurada para apurar se a denúncia aceita pelo Presidente da Câmara dos Deputados contra a Presidente da República poderia prosseguir.

Essa é a ressalva que está sendo feita para evidenciar a natureza antijurídica da acusação e do relatório apresentado pelo relator na Comissão especial, mesmo sem considerar aquilo que ilegalmente foi acrescentado pelo Relator em seu relatório, conforme decidiu na data de ontem o Supremo Tribunal Federal em julgamento de mandados de segurança (34.130 e 34.131).

Os fatos admitidos para embasar a acusação – as chamadas pedaladas fiscais referentes a subvenções referentes ao Plano  Safra e a edição de decretos de crédito suplementares – não configuram crime de responsabilidade. Essa tipificação não restou demonstrada. Pelo contrário, tem sido afastada em diversos pareceres e posicionamentos de juristas.

Em verdade, a abertura dos créditos suplementares ocorreu em estrita observância às regras que disciplinam a matéria, notadamente o art. 167, inciso V, da Constituição e o art. 4º da Lei nº 13.115/2005.

Advirta-se, ainda, que a edição dos decretos se sustenta em pareceres técnicos e jurídicos que os recomendavam, bem como configuram prática consolidada da Administração em governos anteriores e em outros Estados da federação, além de encontrar guarida também na jurisprudência do Tribunal de Contas da União que vigorou até o entendimento firmado em outubro de 2015, pois a mudança da interpretação do TCU se deu apenas no Acórdão 2.461, posteriormente à edição dos decretos em julho e agosto de 2015.

Uma questão nesse ponto é central. A existência do fato típico e a formação da culpa jurídica, ou pelo menos a indicação clara da ocorrência desses pressupostos constitucionais, deveriam estar pelo menos evidenciadas na admissibilidade da acusação. Sem essas evidências, a abertura do procedimento, como ocorreu no caso, caracteriza desvio de finalidade e abuso de poder pela explícita falta de justa causa.

Cabe relembrar que no caso do impeachment do Collor a autorização do processo pela Câmara e o julgamento do processo pelo Senado foram precedidos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou e colheu provas: cheques fantasmas do esquema PC Farias pagavam despesas pessoais do Presidente da República. No presente, não há sequer procedimento administrativo, parlamentar ou judicial que evidencie ou indique a prática e a ocorrência do necessário crime de responsabilidade, o que torna ainda mais difícil qualquer discussão sobre o dolo da Presidente.

Ao contrário, as contas de 2015 sequer foram julgadas pelo órgão competente – o TCU. E como se disse, os atos foram aprovados e recomendados por diversos pareceres administrativos que gozam da presunção de legitimidade. Pergunta-se: e se esses atos forem aprovados? Restitui-se um mandato porventura inconstitucionalmente cassado?

Daí decorre a temeridade de se permitir um julgamento político sobre fatos que juridicamente não restaram caracterizados como crime de responsabilidade. Isso, obviamente, macula e vicia o processo, tornando-o arbitrário do ponto de vista constitucional.


Jean Keiji Uema  –  Analista Jurídica do Supremo Tribunal Federal, Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP.