"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Elogio ao sociólogo que virou tese


Fernando Henrique Cardoso era um militante celebrado e respeitado cientista social quando entrou na vida pública como assessor direto do representante máximo da resistência civil à ditadura militar, Ulysses Guimarães, presidente nacional do MDB e, depois, do PMDB. 


Candidatou-se ao Senado por uma sublegenda, apoiado pelos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, liderados por Luiz Inácio da Silva, o Lula. Aproveitou-se da renúncia de Franco Montoro, eleito governador de São Paulo, para ocupar a vaga deste no Senado. 


Consta que só não foi ministro de Fernando Collor de Mello porque o ranzinza Mário Covas, líder da dissidência que se tornou PSDB, não o permitiu. Um observador realista duvidaria de sua eleição até para a Câmara dos Deputados quando Collor caiu. 


Mas, tendo sido o principal artífice da tentativa de impedimento que deu em renúncia, e passado pela Chancelaria e pelo Ministério da Fazenda no mandato-tampão de Itamar Franco, do qual foi um dos articuladores mais notórios e importantes, venceu a eleição presidencial.


A alavanca de Arquimedes que o levou de uma cadeira incerta no Congresso ao principal gabinete do Palácio do Planalto foi o Plano Real. Na chefia de Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha e Gustavo Franco, ele desistiu de pôr o ovo de Colombo de pé e, em vez disso, fritou uma suculenta omelete. Hoje tudo isso parece óbvio. 


Mas, à época, não o era. 


O confronto entre desenvolvimentistas e heterodoxos (mais tarde satanizados como "neoliberais") atiçava o fogo que tecia a cortina de fumaça que impedia a visão do óbvio: a redenção do assalariado passava forçosamente pelo fim da febre inflacionária, causa da doença econômica que enriquecia os ricos e empobrecia os pobres com a perda do valor de compra da moeda. 


A familiaridade do professor Aloizio Mercadante Oliva com a teoria econômica não evitou que ele cometesse uma das mais célebres batatadas da política econômica no Brasil: garantiu a seu líder e candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva que a moeda forte era um estelionato eleitoral. 


E, no Ministério da Fazenda de Itamar, seu colega professor promoveu a maior revolução social da História do Brasil. Com isso, tornou-se o caso raro de sociólogo que virou tese e político que saiu do zero para o infinito num átimo.


Da mesma forma, contudo, que disparou do anonimato para a glória, mergulhou no ostracismo em idêntica velocidade com que escalou até o topo. Patrono da reeleição, instituto incomum e renegado na política brasileira, aposentou-se como o alvo preferencial dos adversários e a companhia mais indesejável dos companheiros de jornada. 


De posse do sucesso da estabilidade monetária, que antes rejeitavam, os petistas apedrejaram sua herança, dada como maldita, e com esse refrão Luiz Inácio Lula da Silva se elegeu duas vezes consecutivas e fez sucessora uma candidata improvável, tirada da cartola de mágico, Dilma Rousseff, provando, na prática, que na política, ao contrário do que reza o bom senso comum, nem sempre fatos se impõem a argumentos enganosos.


Se os fados são caprichosos com qualquer um, mostraram sê-lo mais no que se refere ao filho de general que se tornou figadal inimigo do regime militar e ao mero assessor que chegou ao posto que caciques como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes e Leonel Brizola almejaram, mas nunca alcançaram. 


Agora, ao atingir, serelepe, o oitavo decênio de existência, viu-se subitamente reconhecido pela adversária da qual menos podia esperar um gesto amistoso. E esse inesperado reconhecimento foi lavrado em documento em papel timbrado da Presidência na elogiosa carta que Dilma Rousseff lhe enviou cumprimentando-o pela efeméride. 


No texto, reproduzido no site do ex-presidente e nos jornais, Dilma elogiou o "acadêmico inovador", "político habilidoso" e "presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica", jogando no lixo o discurso da "herança maldita", repetido ad nauseam nos próprios palanques.


Dilma constatou que o antecessor apostou no "diálogo como força motriz da política" e "foi essencial para a consolidação da democracia brasileira". 


E acrescentou: "Não escondo que nos últimos anos tivemos e mantemos opiniões diferentes, mas justamente por isso maior é a minha admiração por sua abertura ao confronto franco e respeitoso de ideias". 


Os correligionários do elogiado comemoraram o fato como se fosse um triunfo eleitoral, esquecendo-se de que nunca nenhum deles teve humildade e tirocínio para reconhecer os feitos de Fernando Henrique como a adversária o fez.


O oportuno reconhecimento, antecipando o registro histórico desapaixonado que resgatará o papel do acadêmico no exercício da Presidência, está obviamente acima das querelas do cotidiano do poder e da política. 


Embora tenha sido divulgado dias depois da ida de Lula a Brasília, onde ele foi buscar lã e saiu tosquiado no episódio que terminou com a defenestração de dois protegidos do ex-presidente, Antônio Palocci e Luiz Sérgio, o documento não deve ser reduzido a um movimento do minueto da relação entre padrinho e afilhada. 


Demonstrando que até pode ter perdido o pelo, mas nunca a manha, o lobo de Garanhuns arreganhou os dentes, exigindo da companheirada fidelidade à sucessora que elegeu, dando a entender que não saiu da sintonia da presidente.


De qualquer maneira, Dilma saiu bem na foto ao perceber que o poder, mesmo quando conquistado com as notórias falsificações do marketing político, permite a quem o conquista tornar-se maior ao reconhecer o mérito alheio. 


Com isso, mesmo que essa não tenha sido sua intenção, ministrou uma lição a seu professor, que perdeu uma oportunidade de se mostrar à altura da veneração popular que conquistou, e a seus opositores, incapazes de perceber o óbvio até quando este vem se manifestar ao alcance do nariz. 



por: José Nêumanne

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