A democracia caracteriza-se por ter regras que asseguram a pluralidade de opiniões. Toda tentativa de coibir a liberdade de imprensa e de expressão de modo geral acaba por tornar inviável essa pluralidade, que é sua condição mesma de existência.
O Brasil tem convivido, nestes últimos anos, com uma série de iniciativas que têm como objetivo cercear essa liberdade. O caso do Estadão é o mais notório, pois continua sob censura, decretada por decisão judicial.
O País, no entanto, tem crescido precisamente por ter uma imprensa livre, capaz de denunciar todos os desmandos e descalabros no tratamento da coisa pública.
O atual governo já mudou vários ministros e a cúpula de diversas pastas ministeriais graças à sensibilidade da opinião pública, que erigiu a moralidade na política em princípio da vida republicana. E sua condição é a liberdade de imprensa.
O caminho, contudo, não tem sido fácil. No governo anterior presenciamos diversas iniciativas, mediante audiências públicas e conferências nacionais, como as de Comunicação e Cultura, que tinham como propósito um controle do conteúdo jornalístico sob o manto de uma suposta “democratização dos meios de comunicação”.
No caso, a democratização, numa deturpação evidente do seu sentido, teria o significado de controle desses mesmos meios de comunicação. Note-se o papel desempenhado por audiências públicas e conferências nacionais para, em nome da democracia, restringir uma condição própria de sua existência, que é a liberdade de imprensa e de expressão.
Tudo indica que o atual governo está agora trilhando um novo caminho, distinguindo a modernização da legislação do setor de comunicações, uma regulação que se faz necessária pelo avanço tecnológico das últimas décadas e o controle de conteúdo.
Não esqueçamos que a legislação atual, ou melhor, as várias legislações datam dos anos 70 do século passado, quando a internet nem existia. Nossas regras do setor são anteriores à revolução digital.
Entretanto, muito menos atenção é dada a uma caracterização igualmente importante, a de que a democracia se define pela pluralidade de valores, pela coexistência, em seu seio, de várias noções do bem.
Um bem maior, apenas, se situa acima de todos os demais: o de que a pluralidade de bens é um princípio que deve ser assegurado, sob pena de que as escolhas individuais de bens se tornem inviáveis. A liberdade de escolha é um valor que não é, nem pode ser, objeto de uma decisão “democrática”.
Um dos pressupostos de uma sociedade democrática é o de que cada cidadão possa escolher livremente o que considera melhor para si, sem que o Estado lhe imponha um padrão de comportamento.
A pluralidade de bens situa-se na perspectiva da escolha individual, e não num suposto bem que seria imposto pelo Estado. A condição da cidadania é que o indivíduo não seja servo, ainda que a servidão possa ter uma aparência voluntária.
A contraposição que se estabelece aqui é entre o exercício da pluralidade de bens, pelos cidadãos que escolhem livremente, e uma forma de poder estatal que procura impor a cada um o que considera o bem coletivo. Neste último caso, o bem supostamente coletivo terminaria usurpando progressivamente o bem individual.
O terreno é muitas vezes pantanoso, as fronteiras aparecem como de difícil delimitação, pois, dependendo do que esteja em questão, se dá ou não a aquiescência dos indivíduos a um bem estatalmente imposto. Quando o governo, por exemplo, estabelece regras que ditam como deve ser o comportamento individual relativo à saúde, pode acontecer que as pessoas aceitem de bom grado tal diretriz, sem se dar conta de que ela invade o que deveria ser uma prerrogativa estritamente pessoal.
Ocorre aqui um processo semelhante com a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação, a saber: a existência de audiências públicas, ou até eventualmente de conferências, tendo como objetivo regulamentar o comportamento individual.
A iniciativa, no entanto, é mais insidiosa, pois feita em nome do bem dos indivíduos. Alguns caem na armadilha, muito frequentemente, porque compartilham algumas dessas iniciativas, como certas opções particulares relativas ao que cada um entende por bem, ou por sua saúde, mais especificamente.
A imposição estatal do bem pode ser, então, percebida como se fosse fruto de uma escolha individual. Aqui reside o perigo.
Há, por assim dizer, uma coincidência entre uma ideia individual e uma certa iniciativa governamental. A imposição surge disfarçada de moralidade. O valor moral é o seu disfarce. Acontece, porém, que essa coincidência é ilusória, pois o “bem” compartilhado tem um fundamento distinto: um provém da esfera estatal e outro, da liberdade de escolha individual.
Dito de outra maneira, uma sucessão de imposições governamentais, cada uma em acordo com certas ideias de comportamentos individuais, pode acabar tornando a pluralidade das noções de bem inviável.
O pressuposto de ambas é completamente distinto, mesmo que isso apareça sob a forma aparentemente democrática e legal da audiência pública.
A opinião pública é mais naturalmente propensa a se insurgir contra restrições à liberdade de imprensa e de expressão do que contra restrições governamentais que impõem condutas quanto ao que cada um considera o seu próprio bem. O problema, porém, é da mesma natureza.
O risco consiste precisamente em que as fronteiras entre a democracia e a moralidade começam a se apagar, com o Estado se elevando à posição daquele que sabe o que é melhor para o cidadão. E também está em que o Estado se coloque como uma potência moral, destituindo os cidadãos de sua capacidade de discriminar racionalmente o que é melhor para si.
Denis Rosenfield
O Brasil tem convivido, nestes últimos anos, com uma série de iniciativas que têm como objetivo cercear essa liberdade. O caso do Estadão é o mais notório, pois continua sob censura, decretada por decisão judicial.
O País, no entanto, tem crescido precisamente por ter uma imprensa livre, capaz de denunciar todos os desmandos e descalabros no tratamento da coisa pública.
O atual governo já mudou vários ministros e a cúpula de diversas pastas ministeriais graças à sensibilidade da opinião pública, que erigiu a moralidade na política em princípio da vida republicana. E sua condição é a liberdade de imprensa.
O caminho, contudo, não tem sido fácil. No governo anterior presenciamos diversas iniciativas, mediante audiências públicas e conferências nacionais, como as de Comunicação e Cultura, que tinham como propósito um controle do conteúdo jornalístico sob o manto de uma suposta “democratização dos meios de comunicação”.
No caso, a democratização, numa deturpação evidente do seu sentido, teria o significado de controle desses mesmos meios de comunicação. Note-se o papel desempenhado por audiências públicas e conferências nacionais para, em nome da democracia, restringir uma condição própria de sua existência, que é a liberdade de imprensa e de expressão.
Tudo indica que o atual governo está agora trilhando um novo caminho, distinguindo a modernização da legislação do setor de comunicações, uma regulação que se faz necessária pelo avanço tecnológico das últimas décadas e o controle de conteúdo.
Não esqueçamos que a legislação atual, ou melhor, as várias legislações datam dos anos 70 do século passado, quando a internet nem existia. Nossas regras do setor são anteriores à revolução digital.
Entretanto, muito menos atenção é dada a uma caracterização igualmente importante, a de que a democracia se define pela pluralidade de valores, pela coexistência, em seu seio, de várias noções do bem.
Um bem maior, apenas, se situa acima de todos os demais: o de que a pluralidade de bens é um princípio que deve ser assegurado, sob pena de que as escolhas individuais de bens se tornem inviáveis. A liberdade de escolha é um valor que não é, nem pode ser, objeto de uma decisão “democrática”.
Um dos pressupostos de uma sociedade democrática é o de que cada cidadão possa escolher livremente o que considera melhor para si, sem que o Estado lhe imponha um padrão de comportamento.
A pluralidade de bens situa-se na perspectiva da escolha individual, e não num suposto bem que seria imposto pelo Estado. A condição da cidadania é que o indivíduo não seja servo, ainda que a servidão possa ter uma aparência voluntária.
A contraposição que se estabelece aqui é entre o exercício da pluralidade de bens, pelos cidadãos que escolhem livremente, e uma forma de poder estatal que procura impor a cada um o que considera o bem coletivo. Neste último caso, o bem supostamente coletivo terminaria usurpando progressivamente o bem individual.
O terreno é muitas vezes pantanoso, as fronteiras aparecem como de difícil delimitação, pois, dependendo do que esteja em questão, se dá ou não a aquiescência dos indivíduos a um bem estatalmente imposto. Quando o governo, por exemplo, estabelece regras que ditam como deve ser o comportamento individual relativo à saúde, pode acontecer que as pessoas aceitem de bom grado tal diretriz, sem se dar conta de que ela invade o que deveria ser uma prerrogativa estritamente pessoal.
Ocorre aqui um processo semelhante com a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação, a saber: a existência de audiências públicas, ou até eventualmente de conferências, tendo como objetivo regulamentar o comportamento individual.
A iniciativa, no entanto, é mais insidiosa, pois feita em nome do bem dos indivíduos. Alguns caem na armadilha, muito frequentemente, porque compartilham algumas dessas iniciativas, como certas opções particulares relativas ao que cada um entende por bem, ou por sua saúde, mais especificamente.
A imposição estatal do bem pode ser, então, percebida como se fosse fruto de uma escolha individual. Aqui reside o perigo.
Há, por assim dizer, uma coincidência entre uma ideia individual e uma certa iniciativa governamental. A imposição surge disfarçada de moralidade. O valor moral é o seu disfarce. Acontece, porém, que essa coincidência é ilusória, pois o “bem” compartilhado tem um fundamento distinto: um provém da esfera estatal e outro, da liberdade de escolha individual.
Dito de outra maneira, uma sucessão de imposições governamentais, cada uma em acordo com certas ideias de comportamentos individuais, pode acabar tornando a pluralidade das noções de bem inviável.
O pressuposto de ambas é completamente distinto, mesmo que isso apareça sob a forma aparentemente democrática e legal da audiência pública.
A opinião pública é mais naturalmente propensa a se insurgir contra restrições à liberdade de imprensa e de expressão do que contra restrições governamentais que impõem condutas quanto ao que cada um considera o seu próprio bem. O problema, porém, é da mesma natureza.
O risco consiste precisamente em que as fronteiras entre a democracia e a moralidade começam a se apagar, com o Estado se elevando à posição daquele que sabe o que é melhor para o cidadão. E também está em que o Estado se coloque como uma potência moral, destituindo os cidadãos de sua capacidade de discriminar racionalmente o que é melhor para si.
Denis Rosenfield
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