Como era a vida nos tempos da ditadura? Minhas lembranças pessoais são confusas. Recordo-me de que os mais antigos nos diziam que o Brasil era governado por um general, de nome Médici. Que cuidava para que o País e a gente pudéssemos todos crescer em segurança.
Nós, adolescentes, exultávamos com ele e cantávamos, arrebatados, as alegres músicas de Dom e Ravel. “Ninguém segura este país” – e disso não tínhamos a menor dúvida. O governo alcançou, na época, 80% de aprovação popular.
Na faculdade vim a conhecer uma visão diferente. Os professores diziam-nos que os militares eram verdadeiros monstros. Eles torturavam e assassinavam sem a menor piedade. Quanto à economia, o que teria ocorrido, de fato, fora uma injusta política que visava a fazer dos ricos mais ricos e dos pobres, ainda mais pobres. Meus pais também, a essa altura, já não mostravam o mesmo entusiasmo de antes pelo regime. Corrupção demais e liberdade de menos, queixavam-se eles.
Na dúvida, entrei de corpo e alma no movimento estudantil. Cheguei até a ser detido. Durante uma passeata de protesto, fui apanhado pela polícia. E após levar alguns pontapés fui transportado de camburão para o Deops – a “masmorra da ditadura”, como se dizia. Passei a noite toda em claro, respondendo a intermináveis interrogatórios. Fui libertado ao amanhecer. Senti-me, então, um herói.
Mas isso tudo são reminiscências. Um relato subjetivo de impressões.
Em termos de História, ninguém é capaz de interpretar os fatos mais recentes com a necessária isenção. Ainda há muita paixão envolvida neles.
São três as principais versões.
Da parte dos militares, a intervenção se deu em razão dos desmandos dos políticos dessa época. E a decisão de permanecerem no poder foi apenas uma consequência do fato de não haver, na visão deles, nenhum civil com autoridade e austeridade suficientes para levar adiante a “revolução” que estava em curso.
Da parte dos civis que apoiaram o novo regime, a maioria afirma ter-se desiludido com ele logo depois, quando a democracia foi eliminada e ficou constatado que os militares não pretendiam sair do poder. A “revolução” ter-se-ia desvirtuado, no seu entender. Resumiu-se a um mero contragolpe. A desordem, então, era imensa. Quem queria dar um golpe, na verdade, era o presidente João Goulart.
Na opinião dos que se opuseram desde o início, o que teria ocorrido, de fato, fora a implantação de uma ditadura de direita, com o objetivo de massacrar os movimentos populares e concentrar a renda nacional na mão de alguns poucos. E, dentre esses opositores, houve alguns que foram além: optaram pela luta armada. Não pela volta da democracia, mas sim por outra ditadura, de sinal oposto. Eles se entendiam como guerrilheiros. Mas, para o governo, não passavam de “terroristas”. E, a pretexto de combatê-los, o regime foi endurecido. Sucederam-se os tais “anos de chumbo”.
Mas, algum tempo depois, o regime foi obrigado a se abrir.
O fato é que a tolerância geral ao sistema autoritário se lastreava em seu alegadamente superior desempenho na administração da coisa pública. Os políticos, diziam, só servem para atrapalhar. Ainda hoje, não são poucos os que pensam assim.
Quando os índices de crescimento econômico começaram a declinar, não havia mais por que manter o regime. E ele terminou desmoralizado, em 1985, quando o general Figueiredo – e os seus equídeos – deixaram o Planalto Central.
O regime militar deixou o País nas mesmas condições em que o encontrou: inflação e descontentamento em alta, crescimento e popularidade em baixa.
Veio a democracia e com ela, a nova Constituição. Alguém, então, apresentou um projeto prevendo uma eventual reparação financeira para quem tivesse sido prejudicado pelos sucessivos governos, desde Dutra até Sarney. O projeto passou batido e transformou-se em disposição constitucional. E esta foi regulamentada por lei, no final de 2001. Assim nasceu a polêmica Comissão de Anistia.
E é neste ponto que cabem algumas considerações.
O que era provisório se tornou permanente. A referida comissão está comemorando o seu décimo aniversário de vida e não pretende morrer tão cedo. Milhares e milhares de indivíduos já foram anistiados. E a sua ideia, agora, é sair em caravana pelo País, à cata de outros tantos. Cada um passa a receber um salário mensal – cujos valores chegam a até R$ 24 mil – pelo resto da vida. Além de uma bolada inicial, a título de retroatividade.
A Comissão de Anistia tem sido muito generosa e seletiva em seus pareceres. Criou custos para o erário de cerca de R$ 4 bilhões a cada ano e, ao que parece, contempla somente os militantes da esquerda. Criou-se no País uma nova profissão: a de vítima.
Segundo se afirmou na época em que a lei foi sancionada, essa comissão era necessária para reparar injustiças e pacificar de vez a Nação.
Haja injustiçados! E também, pelo visto, não houve pacificação alguma. O que se cogita, agora, é de instaurar uma nova comissão – a da “verdade”.
Para que serviria ela?, pergunta-se. Ora, para apurar, em detalhes, todas as violações dos direitos humanos ocorridas durante o regime de exceção.
Até aí, tudo bem. Só que a ideia é que apenas uma das partes interessadas seja ouvida.
Ninguém pretende ouvir, também, as famílias daqueles que morreram em decorrência da ação dos guerrilheiros? O número total passa de uma centena. E muitos eram meros transeuntes. Não tinham nada que ver com o embate.
Por que meus filhos – e mais dois terços da população brasileira – terão de arcar com os custos de tudo isso? Eles todos – no tempo da ditadura – nem sequer haviam nascido!
Fonte: O Estado de S. Paulo, 15/06/2011
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