Angela Alonso, Bernardo Kucinski, Fábio Henrique Pereira, Francisco Alambert, Marcelo Ridenti, Maria Aparecida de Aquino, Maria Helena Capelato, Michelle Prazeres, Paulo Pereira Lima e Sílvia Miskulin discutem a questão
A partitura é desafiante, rica em vozes dissonantes e solistas virtuoses. Na pauta, a intelectualidade sob a batuta de dez “maestros” das ideias. Resumo da ópera: Onde estão os intelectuais brasileiros?
No Brasil do século XIX, não havia espaços “próprios” para a intelectualidade. Já durante o Império, uma alternativa dos pensadores de então era a carreira na diplomacia, posto público que garantia ganho financeiro, permitindo atividade intelectual paralela.
Só no século XX se dá a consolidação de instituições “propriamente intelectuais”, como as universidades, abrindo “carreiras” autônomas e, a partir disso, a “profissionalização” do mister. Por fim, no século XXI, a diversidade de funções desempenhadas pelos intelectuais abre espaço para novas e diferentes compreensões, o que pode confundir a sociedade no que diz respeito aos papéis representados por eles na atualidade.
O papel dos intelectuais – ou intelectuais de papel
O Caso Dreyfus é emblemático para se buscar as raízes da expressão “intelectual”.
Nascida na França no início do século XX, a ideia de intelectual é do indivíduo que sai ocasionalmente da sua esfera de competências para se engajar no espaço público a favor de causas universais, como foi o caso de Émile Zola em favor de Dreyfus, de Jean-Paul Sartre pela libertação da Argélia e de Michel Foucault sobre as condições de vida nas prisões francesas.
Na perspectiva de Edward Said, deve-se “insistir no fato de o intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto”.
Em Representações do Intelectual, Said diz que o intelectual deve articular um ponto de vista, uma atitude e uma opinião para e por um público: “E esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja raison d’être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete”.
Para a socióloga Angela Alonso (USP), há duas interpretações possíveis para o papel dos intelectuais no Brasil contemporâneo: há os “profissionais do conhecimento”, vinculados à universidade “da porta para dentro”; e há “intelectuais públicos”, empenhados na enunciação e posicionamento político.
Muitos entendem que a universidade passou por um processo de burocratização, tornando-se um lócus de habilitações, mais instrumental do que especulativo.
É o que pondera o jornalista Bernardo Kucinski, para quem a fase da grande sociologia se foi. “Não é mais a ciência dos gênios, é a ciência das carreiras”, argumenta.
O status da carreira passa a se nortear por requisitos da universidade, como a “produtividade” mediante publicações, títulos, orientações. “Se quer ter uma trajetória bem-sucedida na academia, há pouco tempo e espaço para organizar manifestações a favor dos países do Terceiro Mundo”, provoca o jornalista Fábio Henrique Pereira (UnB).
“No Brasil, infelizmente, há intelectuais que simplesmente fazem seu trabalho acadêmico. Eles estão pensando, produzindo novas ideias, livros, teses, mas não se envolvem em questões amplas, não estão preocupados com engajamento.
Contudo, um outro setor assume a disposição de responder às inquietações muitas vezes causadas pela sua própria realidade, pelo tempo presente, com atitudes políticas mais explícitas”, sustenta a historiadora Sílvia Miskulin (USP).
A pluralidade de papéis também ecoa na linha política. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, construiu uma carreira intelectual, mas passou aos cânones da carreira política.
De acordo com o historiador Francisco Alambert (USP), os intelectuais desta geração se dividem: os que se despolitizam, impregnados pela ideia-mestra de que “não há mais utopias”, dedicando-se unicamente à academia – onde, “a rigor, não há diferença entre um filósofo e um engenheiro, trata-se de técnica” –, e os que assumem novos ideais.
Há também intelectuais de esquerda que içaram iniciativas históricas. “A ficha número 1 de fundação do PT é do Mário Pedrosa, a número 2 é do Antonio Candido, a 3 é do Sérgio Buarque de Hollanda”, exemplifica Alambert.
A historiadora Maria Helena Capelato (USP) corrobora essas considerações e faz uma distinção entre os pensadores comprometidos com a vida política. “Há intelectuais ligados ao PSDB e ao PT; há os engajados, mas sem vinculação partidária, e há os que apenas produzem conhecimento mantendo a velha postura, típica do século XIX do ‘sábio’ pensando na torre de marfim e falando para si mesmo”, pondera.
Bons tempos
Para quem se lembra dos “bons tempos” da intelectualidade brasileira – expressão que mereceria várias aspas –, a efervescência cultural durante a ditadura militar brasileira aglutinou artistas, jornalistas e intelectuais contra os sufocantes ares ditatoriais, arbitrariedades, repressão, censura, isto é, por uma causa comum.
As manifestações culturais dessa época evidenciam disparidades entre o passado dos intelectuais acossados e o presente.
“Os intelectuais tiveram papel político muito importante na redemocratização do país; tanto os de esquerda como os de direita tomaram parte ativa na luta política, orientando-se por objetivos opostos, mas a partir de tentativas de intervenção direta nos rumos da História”, analisa Capelato.
“Neste caso, participaram do debate político em prol de uma causa: a ditadura ou a sua derrubada.
Mas nem sempre o intelectual tem esse papel e, no momento atual, acredito que vivemos uma fase de carência de ideias novas e reflexões aprofundadas sobre as questões mais importantes do Brasil e do mundo.
Não poderia dizer quem são os nossos intelectuais hoje porque poucos têm contribuído por meio de debates, publicações ou interferências relevantes para a melhor compreensão dos problemas que vivemos e para apontar soluções novas.
No momento, há um vazio de ideias”.
A historiadora Maria Aparecida de Aquino (USP) concorda que “os intelectuais já tiveram uma posição mais proeminente” no debate político do Brasil. Entre as décadas de 1930 e 70, ela nota que havia uma postura mais incisiva.
“Poderíamos ter uma atuação maior. Não é que sairíamos aí pela rua, fazendo passeata; não é isso, e sim ter uma presença mais forte”, reflete.
Alambert destaca que é preciso pensar no contexto sociopolítico em que os intelectuais da nova geração começaram a atuar. Aos 44 anos, ele narra que sua geração basicamente nasceu na ditadura, tendo passado os primeiros 18 anos de sua vida convivendo com o Estado autoritário.
Os intelectuais da geração passada, por sua vez, nasceram durante o Estado Novo e alcançaram a vida adulta com a ditadura militar e, talvez por isso, tenham tido um comprometimento maior, por terem mais motivos “reais” para tanto. “Afinal, a ditadura é eminentemente anti-intelectual”, sustenta.
Mas, ainda que baqueados com as consequências do golpe principalmente após o AI-5, uma expressiva trupe de artistas e intelectuais, engajados e eufóricos, buscou novos caminhos e vias alternativas de expressão.
Entretanto, Alambert adverte que “vulgarmente tendemos a identificar os intelectuais com a oposição e com a esquerda. Não era, nem nunca foi assim. Inclusive, há intelectuais que apoiaram o golpe; eram de direita e ultraconservadores; fizeram os jornais tais quais eles são no Brasil”, pondera. “Mas, sobretudo naquele momento, os intelectuais de esquerda – e isso é um evento único na história do Brasil – tiveram quase hegemonia no processo cultural, nas universidades, nos museus.”
Na década de 1980, marcada pela crise da China maoísta, da União Soviética stalinista e de Cuba, a esquerda aviltada viu-se à beira de um colapso. Nesse contexto, Alambert analisa que “o marxismo como forma essencial de crítica à sociedade capitalista quase cai, substituído por uma série de novas modas importadas, no prêt-à-porter internacional das ideias, de pós-estruturalismo, pós-modernismos, o retorno do discurso liberal, neoliberal, culturalismos”.
Nos últimos anos, principalmente com Lula no poder, ele identifica um novo modismo: a ascensão de uma intelectualidade de direita, com pensadores ultraconservadores conquistando espaços, inclusive com um expressivo veículo próprio, a revista Veja, alfineta Alambert.
Todavia, ele vê uma tendência alternativa de jovens intelectuais propondo uma nova esquerda, um novo papel, buscando “construir uma nova coisa”.
Os intelectuais e a mídia
Pode-se esperar dos intelectuais a crítica constante à realidade, especialmente com a ideia de Edward Said sobre o intelectual como “um perturbador do status quo”. Contudo, Alonso afirma que “da mesma maneira como há os que criticam o status quo, há intelectuais que o legitimam, construindo as justificativas da ordem existente”.
Para a jornalista Michelle Prazeres (PUC), a intelectualidade deve estar a serviço da construção de uma coisa nova, da produção do conhecimento para a sociedade e – no limite – a serviço da política. Gramsciana, a jornalista se ancora no teórico, que “diz que o intelectual não seria afastado do mundo produtivo ou mergulhado na retórica abstrata, mas seria ao mesmo tempo especialista e político”.
Ela acredita que os intelectuais seriam engrenagens do motor de transformação, ao lado de partidos, movimentos, ONGs.
“O papel dos intelectuais é o de provocar, criar cenários, ensaiar, discutir, refletir, historicizar, recuperar experiências e histórias, contextualizar vivências, promover a reflexão a partir da teoria. Articulados com as demais engrenagens, eles podem provocar transformação. Mas nunca sozinhos”, diz.
O filósofo e jornalista Paulo Pereira Lima caminha na mesma direção. “Antonio Gramsci falava de um intelectual orgânico, que tem pé no chão, contato direto com a realidade e não só com os livros empoeirados”. Para ele, é preciso aproximar a academia e a comunidade, mediante a sociedade civil organizada como movimentos sociais ou ONGs, cabendo ao intelectual a reflexão crítica da prática dos movimentos para consolidá-los como pauta política.
“Por outro lado, o movimento social está criando seus próprios intelectuais”, diz, citando a Escola Nacional Florestan Fernandes – a “universidade popular” do MST – e a internacional Via Campesina. Exemplo maior seria o Fórum Social Mundial, “encontro de intelectuais engajados que acreditam na força de um movimento social, de uma mídia alternativa, de uma mídia livre.
O Fórum é um momento de protesto e proposta”, acredita. Lima destaca que não se trata de os intelectuais se acostarem dos movimentos, usando-os como baluarte, mas seria necessário estabelecer uma relação dialética, casando prática e pensamento teórico, sob constante diálogo para trilhar caminhos melhores.
Na mídia, paira sobre o intelectual uma aura erudita que ora potencializa sua voz por seu prestígio como fontes de informação legítimas, ora o afasta por seu discurso demasiadamente teórico. “A imprensa é um grande espaço para os intelectuais, para o bem e para o mal”, avalia Alonso.
Já Aquino critica que, “principalmente nas instituições públicas mais tradicionais, às vezes há uma tendência de achar que a mídia é muito ligeira, que não é conhecimento com fundamentação teórica.
Por isso, não há um namoro entre os intelectuais e a mídia”. Inspirados na Teoria Crítica dos frankfurtianos, há intelectuais que demonizam a mídia, acreditando que “o seu conhecimento será morto a partir do momento que for consumido pela indústria cultural”, esclarece.
No entanto, alicerçando-se na teoria de Michel de Certeau, Aquino discorda desse ponto de vista. “Devemos transformar em bom tudo aquilo que eventualmente poderia ser mal. Evidentemente devemos ser críticos em relação à mídia; não devemos viver um grande amor, mas dar à mídia a possibilidade de transformação, com a nossa opinião”, analisa.
“Não adianta ficarmos nos intramuros de nossos prédios, com uma produção que é lida pelas bancas de nossas dissertações e teses.
Quem mais lê nossos trabalhos? Para quem se divulga conhecimento? Se a relação com a mídia fosse melhor, mais articulada, com certeza nós teríamos realizado um pouco mais do nosso trabalho e de fato cumprido com nosso papel com a sociedade”.
Mas o sociólogo Marcelo Ridenti (Unicamp) diferencia que “uma coisa é a participação dos intelectuais na mídia, outra coisa é a visibilidade”. Para ele, as duas coisas são paralelas, mas não coincidem, pois “a lógica da mídia é a pauta que vende mais”. Afinada com essa posição, Prazeres afirma que “a mídia hoje é um espaço de disputa de valores.
O que acontece é que esta disputa é extremamente desigual, porque a liberdade de expressão no nosso país é para poucos, para aqueles que detêm o monopólio da comunicação. Em tese, a mídia seria o espaço de um debate plural e diverso, mas sabemos que não é isso que acontece”.
Não raro, a mídia tradicional, fincada em valores predominantemente liberais e neoliberais, dá voz apenas a quem condiz com seu ideário.
Nessa disputa desigual, poucos intelectuais mais críticos furam o cerco com sua opinião, “mas nada se compara àqueles a quem diariamente são oferecidas páginas e mais páginas para defender suas ideias. O estrago que um intelectual pode fazer é potencialmente maior, já que a mídia costuma alçá-lo à condição de especialista.
O especialista fala, é lei. O ‘doutor’ fala, é a verdade”, critica Prazeres. A conquista de legitimidade pelos intelectuais na mídia, portanto, implica muitos lados de muitas moedas. “Se todos fossem intelectuais, como afirma Gramsci, talvez os intelectuais não fossem tão escutados”, pondera Pereira.
Alambert sustenta que as relações estremecidas entre jornalistas e intelectuais não é de hoje. “Historicamente, há uma oposição marcante, principalmente no final do século XIX e início do século XX, entre o intelectual acadêmico, erudito, culto, e o intelectual boêmio, cujo grande representante sempre foi o jornalista.
Nos melhores momentos da história das ideias, essas duas figuras se cruzam”. Ele critica ainda a ideia de que a imprensa tradicional se constitui no único meio para o intelectual se aproximar da sociedade.
“Não é”, dispara, questionando quem realmente lê jornais e revistas nesse país, quem está do outro lado. “Você está comunicando o quê? Para quem? Isso demanda uma outra busca de diálogo, e ele tem que passar forçosamente pela mídia? Intelectual não é guru, não ensina a verdade aos ignorantes, ao contrário, aprende com a realidade”.
Ainda que o intelectual não seja o “dono da verdade”, há mentes pulsantes discutindo o Brasil e, por mais tímidas e descompassadas que às vezes possam aparentar, suas vozes são tudo, menos inexpressivas.
* JULIANA SAYURI é jornalista, mestre e doutoranda em História Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Publicado originalmente na Revista Fórum, em maio de 2009.
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