O modelo brasileiro de votação para a Câmara dos Deputados faz duas vítimas a cada pleito: a lógica e o eleitor.
A lógica, porque regras obtusas permitem, por exemplo, que votos dados a um candidato sejam usados para eleger outro. O eleitor, porque a ineficiência do processo faz com que, semanas depois de ir às urnas, ele mal lembre em quem votou (o que joga por terra o propósito essencial da eleição: selecionar representantes dos cidadãos no Congresso).
A fim de corrigir essas distorções, um grupo de empresários e estudantes de São Paulo está propondo a adoção do voto distrital no Brasil. O modelo parte da divisão do país em distritos (no caso do Brasil, 513 — o mesmo número de cadeiras na Câmara), que elegeriam, cada um, o seu representante. Com base num estudo coordenado pelo estatístico Orjan Olsen, um dos maiores especialistas em opinião pública do país, os organizadores do movimento “Eu voto distrital” prepararam uma série de simulações que mostram como seria o Brasil sob esse novo modelo de votação.
Uma delas revela que, se o sistema já estivesse em vigor na eleição de 2010, o partido que mais perderia com ele seria o PT — o que explica o fato de a sigla ser desde já a inimiga número 1 da proposta, como deixou claro o seu projeto de reforma apresentado no final do mês passado pelo deputado Henrique Fontana (RS), uma empulhação que cria a estrovenga chamada “proporcional misto”.
Essa barbaridade saída da cabeça de José Dirceu, o poderoso chefão, equivale a afastar ainda mais o cidadão das decisões políticas. O voto distrital é uma alternativa para romper o ciclo vicioso da política brasileira, que tem início num sistema anacrônico, passa pela apatia do eleitor em relação ao Congresso e termina na perpetuação da incompetência e da corrupção. (…)
1. Escolher fica mais fácil
Na eleição para deputado federal, analisar o perfil de cada um dos candidatos que se apresentam é uma missão quase impossível. Em São Paulo, na última eleição, havia 1 131 nomes concorrendo a uma vaga na Câmara [a representação paulista na Câmara é de setenta deputados]. Se um eleitor dedicasse uma hora para estudar o currículo de cada candidato, precisaria de 47 dias ininterruptos para concluir a análise. A miríade de políticos que surge na TV pedindo votos com a velocidade de disparos de metralhadora mais confunde do que esclarece.
No sistema de voto distrital, esse problema desaparece, já que cada partido pode apresentar apenas um candidato por distrito. Ou seja: na pior das hipóteses, o eleitor terá de comparar as propostas de 27 concorrentes – o número de legendas registradas hoje no Brasil. A tendência, no entanto, é que o número de candidatos competitivos seja ainda menor, equivalente ao de candidatos a prefeito. Com um horizonte de escolhas mais restrito, fica mais fácil para o eleitor tomar uma decisão bem pensada.
2. Quem elege fiscaliza
No ano passado, uma pesquisa encomendada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostrou que, um mês depois da eleição, 22% dos brasileiros não faziam ideia do nome do candidato em que haviam votado para deputado federal.
É um ciclo vicioso: o eleitor não se sente representado por nenhum parlamentar, por isso se esquece do nome dos políticos e, assim, abre mão do direito de fiscalizá-los.
No sistema distrital, essa situação muda radicalmente, já que cada distrito passa a ter apenas um representante. Lembrar seu nome poderá ser tão automático quanto lembrar quem é o prefeito da cidade. Com isso, a fiscalização popular sobre os parlamentares começará, enfim, a funcionar. Cada deputado terá sobre ele os olhos de todo um distrito. O que ele fizer em Brasília terá grande repercussão em sua base – para o bem ou para o mal.
“Com o voto distrital, os eleitores se sentem mais motivados para acompanhar a atuação do seu parlamentar, cobrar as suas promessas e pressioná-lo. O modelo reforça a percepção dos eleitores de que estão sendo de fato representados. Na democracia, isso não é pouca coisa”, diz o cientista político José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo.
3. A campanha fica mais barata
A vida no Brasil é cara, mas poucas coisas são tão caras por aqui quanto fazer uma campanha eleitoral. Em 2010, as 5 100 pessoas queconcorreram em todo o país a uma vaga na Câmara declararam gastos que, em conjunto, alcançaram 1 bilhão de reais (sem contar o caixa dois, claro).
Entre os que se elegeram, o custo médio das campanhas ficou em 1 milhão de reais. As campanhas brasileiras são caras, porque, pelo sistema atual, cada candidato precisa disputar votos com todos os outros candidatos e em toda a extensão de seu Estado. Há desde o custo com viagens e deslocamentos até os gastos com carros de som, bandeiras, adesivos, camisetas, cabos eleitorais e tudo o mais que possa ajudar o candidato a se destacar em meio à concorrência.
Por esse motivo, é praticamente impossível chegar ao Parlamento sem uma estrutura milionária. E quem precisa de milhões de reais para se eleger fica sujeito a ter de defender os interesses de empresas camaradas que topam financiar empreitadas tão caras.
Uma campanha milionária é o primeiro passo para corromper o eleito. No sistema distrital, os votos são disputados em um território delimitado, reduzido. Como o campo de batalha é restrito, os custos de campanha caem. E a independência dos eleitos aumenta.
4. Acaba o efeito Tiririca
A eleição de 2010 escancarou um dos maiores absurdos do sistema eleitoral brasileiro. Das 513 cadeiras da Câmara, apenas 36 foram ocupadas por políticos que chegaram lá com os próprios votos. Os outros 477 eleitos — 93% do total — conseguiram o mandato graças a votos dados a outros políticos ou às suas legendas.
Isso ocorre por causa da obtusa regra do quociente eleitoral. Ela estabelece que as cadeiras do Parlamento sejam divididas entre as siglas, e não entre os indivíduos mais votados. Por isso, um candidato pode perder a vaga para um concorrente que teve votação menor, dependendo do partido em que está. É uma confusão que desorienta o eleitor e faz com que os votos dados a um político sejam usados para eleger outro.
Para tirarem vantagem dessa distorção, os partidos buscam lançar os chamados puxadores de votos – candidatos de escassas credenciais e farto apelo popular, como o palhaço Tiririca. Na última eleição, ele teve 1,3 milhão de votos em São Paulo.
Garantiu a própria eleição e a de mais três “caronistas” que estavam em sua coligação. Com a adoção do voto distrital, essa farra acaba. Para se eleger deputado, o político terá de vencer a disputa no seu distrito sozinho, sem apelar para puxadores de votos ou coligações. Os parlamentares só serão eleitos com os próprios votos.
5. O gasto público diminui
Como uma mudança no sistema eleitoral pode ajudar a conter os gastos públicos? Simples: quando o Congresso está repleto de deputados querepresentam grupos de pressão organizados (sindicalistas, usineiros, empresários que só mamam no Estado), a tendência é que eles façam de tudo para carrear recursos públicos para esse pessoal. Uma central sindical, por exemplo, pode tornar-se um verdadeiro tragadouro de verbas se contar com uma dúzia de deputados dispostos a ajudá-la na tarefa.
É o que acontece hoje no Brasil. “Como o governo precisa de sustentação política, permite que os deputados enviem dinheiro público, por meio de emendas parlamentares, para saciar esses grupos de pressão organizados”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto.
Só neste ano, 7 bilhões de reais poderão ser repassados por esse caminho. Para os deputados, o cálculo é simples: se agradarem a um grupo restrito, terão dinheiro e votos suficientes para se reeleger, mesmo que para isso tenham de tomar atitudes que possam desagradar ao conjunto da sociedade.
Já no sistema distrital, os congressistas não precisarão se preocupar com esses grupos organizados, mas apenas com os eleitores de suas bases. A demanda do Congresso por recursos públicos diminuirá. Um estudo internacional conduzido pelos economistas Torsten Persson e Guido Tabellini constatou a validade desse raciocínio: em países que usam o voto distrital, o gasto do governo em relação ao PIB é, em média, 9 pontos porcentuais menor que nos outros.
6. Os corporativistas perdem espaço
O sistema atual é feito sob medida para beneficiar candidatos que representam interesses de categorias como a dos sindicalistas. Eles se elegem às pencas para o Congresso, porque sabem tirar proveito do corporativismo.
A ideia de que trabalhadores de determinado segmento profissional ou igreja estejam representados em Brasília é, evidentemente, legítima. O problema é a vantagem indevida que seus representantes têm sobre os demais candidatos, que não contam com o voto corporativista.
No sistema distrital, o jogo volta a se equilibrar, já que, no caso de um candidato sindicalista, seus eleitores estariam geograficamente mais espalhados (uma vez que nem todos os filiados de um sindicato vivem em um mesmo distrito), o que diminuiria o poder de fogo da candidatura. O mesmo raciocínio vale para candidatos de base religiosa, como pastores evangélicos.
“O deputado distrital tende a ser um político de maior envergadura por uma razão simples: ele precisa do apoio da maioria dos eleitores de seu distrito, e não apenas dos votos de um só segmento, cujo interesse é, por definição, estreito”, diz o cientista político Bolívar Lamounier.
Estima-se que, se o voto distrital estivesse em vigor na última eleição, 35 sindicalistas e 21 políticos de base religiosa não teriam sido eleitos.
7. As oligarquias se enfraquecem
Por motivos que vão dos mais justos aos menos republicanos, é enorme o número de políticos no Brasil que não medem esforços para fazer comque parentes – cônjuges, filhos, sobrinhos – também entrem para a política.
Na maioria dos casos, essas tentativas têm como único objetivo perpetuar oligarquias. Integrantes de velhos clãs sempre contam com sobrenomes poderosos e dinheiro farto para se eleger. Dessa forma, fazem campanhas portentosas e conseguem reunir votos suficientes para obter um passaporte para a Câmara.
No sistema distrital, eles continuariam fazendo campanhas ricas, mas teriam de disputar voto a voto com lideranças regionais [candidatos que trabalham e vivem no distrito em questão], o que tornaria suas campanhas bem mais duras. Se o sistema distrital estivesse em vigor em 2010, 28 representantes de oligarquias políticas teriam tido muito mais dificuldade para ser eleitos para a Câmara.
8. Aumenta a força das capitais
Um dos efeitos pouco conhecidos do sistema eleitoral brasileiro é que, hoje, as capitais elegem poucos, pouquíssimos, representantes para a Câmara. A maioria dos deputados mantém bases restritas ao interior. Todos eles, no entanto, fazem campanha agressiva nas capitais de seus Estados, onde vive a maior parte da população.
Assim, os votos das capitais se distribuem entre dezenas ou centenas de candidatos. “O resultado é que, com a fragmentação da votação nas maiores áreas urbanas, poucos candidatos oriundos das capitais [cidades grandes, às vezes imensas, com eleitorado que teoricamente tende a ser mais politizado] conseguem se eleger (…)”, diz o cientista político Amaury de Souza.
Apenas quinze dos 70 deputados federais eleitos pelo Estado de São Paulo em 2010 tiveram mais de 50% dos votos na capital do Estado. Se estivesse em vigor o modelo distrital, a representação da cidade de São Paulo teria de ser de 27 deputados — número de distritos que haveria na metrópole, respeitados os critérios de distribuição populacional.
Assim como São Paulo, todas as demais capitais brasileiras ganhariam mais peso político com a mudança.
9. O Congresso é fortalecido
A experiência internacional demonstra que países com voto distrital têm um Congresso forte, com um comportamento independente em relaçãoao Executivo. Isso ocorre porque os parlamentares sabem que, se apenas cumprirem ordens do governo, terão problemas para se reeleger em suas bases. “No sistema distrital, o deputado precisa fazer mais esforço para se destacar”, diz Antônio Octávio Cintra, consultor da Câmara e professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais.
De fato, como apenas um candidato é eleito por distrito, a corrida para o Legislativo repete a lógica da corrida à prefeitura: há embate eleitoral direto. Os candidatos apontarão o que consideram falhas ou fraquezas dos concorrentes.
O eleitor passa, então, a levar em conta não apenas as características do seu candidato favorito, mas também as possibilidades que este tem de derrotar o político que ele não quer ver em Brasília. “O eleitor passa a votar também contra o candidato de quem não gosta. Há uma reorientação do eleitorado”, explica Cintra.
10. A corrupção reflui
Com base no “toma lá dá cá”, estabeleceu-se que política no Brasil funciona da seguinte forma: em troca do apoio necessário para aprovar projetos de lei e medidas provisórias, o governo oferece cargos à sua base no Congresso. Assim, para ocuparem espaços na máquina pública, os partidos não procuram técnicos gabaritados, mas gente que seja obediente à cúpula – o que inclui a disposição para, se necessário, contribuir a qualquer custo para o fortalecimento da legenda e, não raro, do seu caixa.
O controle de cargos é visto como uma maneira de levantar recursos para custear campanhas, manter em alta o partido e perpetuar sua área de influência sobre o governo. O resultado, invariavelmente, é o aumento da corrupção.
No sistema distrital, os eleitos estão menos subordinados à direção do partido do que aos eleitores de sua região. Para se reelegerem, o essencial será a lealdade para com sua base, e não para com os caciques. Estudos mostram que países com voto distrital têm 20% menos casos de corrupção do que países com voto proporcional com lista fechada.
“Diferentes sistemas eleitorais têm efeitos diversos sobre o grau de corrupção. Casos como o do Brasil, com muitos candidatos apresentados em lista aberta e que competem em áreas demasiado vastas, estimulam a ilegalidade. A corrupção e a busca por um número gigantesco de votos andam de mãos dadas”, diz a cientista política Miriam Golden, da Universidade da Califórnia.
Ela analisou a relação entre corrupção e sistemas eleitorais em 42 países. “Quando a campanha eleitoral tem de ser feita em regiões muito grandes e com vários partidos, os estímulos para obter recursos ilegais são mais fortes do que o medo das denúncias de adversários”, diz.
Por último, mas não menos relevante, o voto distrital pode ser aplicado também a eleições estaduais e municipais, com todas as vantagens elencadas nesta reportagem.
De que forma funciona o voto distrital
Hoje, os candidatos a deputado federal por um mesmo Estado concorrem no sistema “todos contra todos”. O eleitor dificilmente consegue conhecer a totalidade dos candidatos. Em São Paulo, na eleição de 2010, havia 1 131 nomes disputando setenta vagas.
• No sistema distrital, o Estado seria dividido em pequenas áreas. No caso de São Paulo, haveria setenta distritos, cada um deles com 430 000 eleitores. Cada partido poderia apresentar um candidato por distrito.
• O mais votado em cada distrito ficaria com a vaga na Câmara. A vantagem é que a população local saberia exatamente quem é o representante da região e poderia fiscalizar com atenção a atuação dele em Brasília.
Um deputado pego em um escândalo de corrupção, por exemplo, teria muita dificuldade para se reeleger. [O sistema pode ser aperfeiçoado para conferir ainda mais legitimidade aos eleitos com a adoção de um segundo turno, para o caso de nenhum dos candidatos obter, no primeiro, maioria absoluta -- metade mais um dos votos válidos.]
• Existe uma variante desse sistema conhecida como “voto distrital misto”. Nela, metade dos deputados é eleita pelos distritos. A outra metade é escolhida pelo sistema de lista fechada: cada partido organiza uma relação de nomes e a apresenta aos eleitores.
Vota-se duas vezes: a primeira no candidato distrital e a segunda na lista. Quanto mais votos um partido receber, mais nomes de sua lista serão eleitos- – os que estão no topo levam vantagem. Nesse caso, as legendas têm de apresentar uma plataforma clara para atrair votos. Isso fortalece ideologicamente os partidos
Com os próprios méritos
Uma das maiores distorções do sistema de votação brasileiro é o quociente eleitoral. Por causa dele, a maioria dos deputados chega à Câmara de carona – ou seja, pela soma dos votos dados a outros candidatos de seu partido
• Em 2010, apenas 7% dos deputados federais chegaram lá com seus próprios votos.
• No sistema distrital, 100% deles teriam de ser eleitos com votos próprios.
(Fonte: Tribunal Superior Eleitoral)
Corporativismo, não
O novo sistema dificultaria a eleição de candidatos escorados apenas por um grupo com interesses muito específicos, como sindicalistas e lideranças religiosas, já que sua base eleitoral é hoje geograficamente diluída. Pelo mesmo motivo, oligarcas teriam mais dificuldade para eleger seus parentes
Se o voto distrital tivesse sido adotado em 2010, não teriam chegado à Câmara Federal:
• 35 sindicalistas
• 21 religiosos
• 28 familiares de políticos
(Fonte: Movimento “Eu voto distrital”)
Pode ser mais barato
No sistema atual, o deputado é obrigado a buscar votos em todo o território de seu estado. Com o voto distrital, ele concorreria em uma área delimitada, muito menor. Isso diminuiria os gastos com material de campanha e deslocamento
Custo médio de uma campanha vitoriosa para deputado federal (em reais)
REGIÃO NORTE – 700 000
REGIÃO CENTRO-OESTE – 1,8 milhão
REGIÃO NORDESTE – 770 000
REGIÃO SUDESTE – 1,4 milhão
REGIÃO SUL – 1 milhão
Custo médio de uma campanha se estivesse em vigor o voto distrital (em reais)
REGIÃO NORTE – 340 000
REGIÃO CENTRO-OESTE – 1,1 milhão
REGIÃO NORDESTE – 330 000
REGIÃO SUDESTE – 630 000
REGIÃO SUL – 680 000
(Fontes: Tribunal Superior Eleitoral e Movimento “Eu voto distrital”)
Fechando o cofre
Os governos de países que adotam o voto distrital gastam menos, porque o sistema estimula o deputado a esforçar-se para levar recursos do governo para o distrito que o elegeu em vez de carreá-los para grupos de pressão como sindicatos, movimentos sociais e igrejas, cujo apetite por verbas públicas é bem maior
Despesas do governo
Em países que não adotam o voto distrital – 35% do PIB.
Em países que adotam o voto distrital – 26% do PIB.
Despesas com a Previdência
Em países que não adotam o voto distrital – 13% do PIB.
Em países que adotam o voto distrital – 5,5% do PIB.
(Fonte: Constituições e Política Econômica, de Torsten Persson e Guido Tabellini)
Nenhum comentário:
Postar um comentário