Mais de 20 anos depois da Constituição de 1988, é possível afirmar que, ao menos do ponto de vista teórico, a maior parte dos brasileiros concorda que todo ser humano é dotado de dignidade.
A realidade nem sempre reflete essa convicção, mas o assentimento teórico com o axioma não é desimportante. E o que Leon Tolstói, um dos maiores romancistas russos, e seu livro “Guerra e paz” têm a ver com isso?
Vivemos um tempo estranho no Brasil. Os dramas descritos por Tolstoi se desenrolavam em um tempo ainda mais estranho: a invasão da Rússia por Napoleão.
O nosso tempo é estranho porque, do pacote da dignidade, parece que só queremos uma parte: a dos direitos.
Aquela outra parte, nem sempre agradável, que diz que, como seres dignos, temos liberdade para escolher, mas somos responsáveis por essas escolhas e por suas consequências, essa parte do pacote preferimos deixar para os outros. Exagero?
Somos contra a corrupção e queremos os corruptos na cadeia. Mas é que eu preciso muito chegar em casa cedo, e o que são 50 reais para o guarda diante de tanta corrupção que existe por aí? Achamos um absurdo as pessoas venderem seus votos.
Mas o meu filho precisa muito de um emprego e aquele moço, candidato, prometeu uma vaga para ele no gabinete, caso eleito.
Achamos um absurdo esses pais que não acompanham a educação dos filhos. Mas eu trabalho tanto que, quando chego em casa, mereço ficar esparramado no sofá relaxando, enquanto meu filho se ocupa com alguma outra coisa que eu não sei o que é.
Achamos um absurdo a pirataria e o contrabando (achamos?). Mas eu preciso muito daquele jogo, daquela camisa ou daquela bolsa e eles são tão caros… Eu tenho que comprar pirata.
Cada um tem a sua desculpa e explicação. Os consumidores podem agir de má-fé e não sofrer qualquer consequência por conta disso. Afinal, as empresas são malvadas: cobram caro, fornecem serviços e produtos ruins e ainda atendem mal os clientes. Os trabalhadores podem agir de má-fé e não ser responsabilizados: afinal, eles são explorados.
Os empregadores podem não pagar o que devem a seus empregados porque, afinal, a Justiça do Trabalho vai condená-los de qualquer jeito. Os contribuintes podem agir de má-fé e sonegar impostos: afinal, o Estado cobra tributos demais.
Por fim, o Estado pode agir de má-fé com os cidadãos em geral e com contribuintes em particular porque, afinal, ninguém cumpre as regras mesmo! Cada um tem a sua situação especial que o “dispensa” de cumprir as regras. Somos uma sociedade toda de “altos”, aquele truque infantil pelo qual a gente não precisava obedecer as regras da brincadeira por algum tempo.
Não há dúvida de que a corrupção envolvendo agentes públicos tem, como regra, uma repercussão material e simbólica maior: há mais dinheiro envolvido e o exemplo dos líderes tem um peso especial.
O ponto, porém, é outro. Várias pesquisas revelam o que não gostamos de encarar no dia a dia: somos uma sociedade majoritariamente corrupta ou, ao menos, leniente com a corrupção.
Pior: as pesquisas indicam que a maior parte de nós faria a mesma coisa que os políticos corruptos, caso estivéssemos no lugar deles. Por vezes é apenas uma questão de falta de oportunidade.
A capacidade do direito de coibir os ilícitos em uma sociedade é limitada, e é natural que seja assim. A maior parte das pessoas precisa concordar e cumprir as regras: a sanção deve lidar apenas com uma minoria que descumpre o que os demais cumprem. Essa é a estrutura na qual o direito é capaz de cumprir a sua função.
Se, ao contrário, a maior parte das pessoas não cumpre as regras, é inviável utilizar a sanção para obrigá-las a isso. A razão é singela: simplesmente não é possível colocar um guarda atrás de cada pessoa (e outro guarda atrás de cada guarda) para garantir que as regras sejam cumpridas.
O problema da corrupção no Brasil não é (apenas) um problema das autoridades e nem (apenas) um problema do direito: é um problema de cada indivíduo.
Tolstói escreveu as mais de 1000 páginas de Guerra e Paz para demonstrar que, na guerra, embora Napoleão e os Generais fossem importantes, a conduta de cada combatente fazia diferença para o resultado final. Não é diferente em tempos de paz.
Ana Paula de Barcellos
A realidade nem sempre reflete essa convicção, mas o assentimento teórico com o axioma não é desimportante. E o que Leon Tolstói, um dos maiores romancistas russos, e seu livro “Guerra e paz” têm a ver com isso?
Vivemos um tempo estranho no Brasil. Os dramas descritos por Tolstoi se desenrolavam em um tempo ainda mais estranho: a invasão da Rússia por Napoleão.
O nosso tempo é estranho porque, do pacote da dignidade, parece que só queremos uma parte: a dos direitos.
Aquela outra parte, nem sempre agradável, que diz que, como seres dignos, temos liberdade para escolher, mas somos responsáveis por essas escolhas e por suas consequências, essa parte do pacote preferimos deixar para os outros. Exagero?
Somos contra a corrupção e queremos os corruptos na cadeia. Mas é que eu preciso muito chegar em casa cedo, e o que são 50 reais para o guarda diante de tanta corrupção que existe por aí? Achamos um absurdo as pessoas venderem seus votos.
Mas o meu filho precisa muito de um emprego e aquele moço, candidato, prometeu uma vaga para ele no gabinete, caso eleito.
Achamos um absurdo esses pais que não acompanham a educação dos filhos. Mas eu trabalho tanto que, quando chego em casa, mereço ficar esparramado no sofá relaxando, enquanto meu filho se ocupa com alguma outra coisa que eu não sei o que é.
Achamos um absurdo a pirataria e o contrabando (achamos?). Mas eu preciso muito daquele jogo, daquela camisa ou daquela bolsa e eles são tão caros… Eu tenho que comprar pirata.
Cada um tem a sua desculpa e explicação. Os consumidores podem agir de má-fé e não sofrer qualquer consequência por conta disso. Afinal, as empresas são malvadas: cobram caro, fornecem serviços e produtos ruins e ainda atendem mal os clientes. Os trabalhadores podem agir de má-fé e não ser responsabilizados: afinal, eles são explorados.
Os empregadores podem não pagar o que devem a seus empregados porque, afinal, a Justiça do Trabalho vai condená-los de qualquer jeito. Os contribuintes podem agir de má-fé e sonegar impostos: afinal, o Estado cobra tributos demais.
Por fim, o Estado pode agir de má-fé com os cidadãos em geral e com contribuintes em particular porque, afinal, ninguém cumpre as regras mesmo! Cada um tem a sua situação especial que o “dispensa” de cumprir as regras. Somos uma sociedade toda de “altos”, aquele truque infantil pelo qual a gente não precisava obedecer as regras da brincadeira por algum tempo.
Não há dúvida de que a corrupção envolvendo agentes públicos tem, como regra, uma repercussão material e simbólica maior: há mais dinheiro envolvido e o exemplo dos líderes tem um peso especial.
O ponto, porém, é outro. Várias pesquisas revelam o que não gostamos de encarar no dia a dia: somos uma sociedade majoritariamente corrupta ou, ao menos, leniente com a corrupção.
Pior: as pesquisas indicam que a maior parte de nós faria a mesma coisa que os políticos corruptos, caso estivéssemos no lugar deles. Por vezes é apenas uma questão de falta de oportunidade.
A capacidade do direito de coibir os ilícitos em uma sociedade é limitada, e é natural que seja assim. A maior parte das pessoas precisa concordar e cumprir as regras: a sanção deve lidar apenas com uma minoria que descumpre o que os demais cumprem. Essa é a estrutura na qual o direito é capaz de cumprir a sua função.
Se, ao contrário, a maior parte das pessoas não cumpre as regras, é inviável utilizar a sanção para obrigá-las a isso. A razão é singela: simplesmente não é possível colocar um guarda atrás de cada pessoa (e outro guarda atrás de cada guarda) para garantir que as regras sejam cumpridas.
O problema da corrupção no Brasil não é (apenas) um problema das autoridades e nem (apenas) um problema do direito: é um problema de cada indivíduo.
Tolstói escreveu as mais de 1000 páginas de Guerra e Paz para demonstrar que, na guerra, embora Napoleão e os Generais fossem importantes, a conduta de cada combatente fazia diferença para o resultado final. Não é diferente em tempos de paz.
Ana Paula de Barcellos
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