Rodrigo de Oliveira
Kaufmann
O turbilhão de eventos políticos que vem assolando o país
nos últimos anos trouxe uma polarização ideológica entre grupos ou correntes de
pensamento que tentam se localizar no espectro político: a “direita” que,
grosso modo, abarcaria os pensamentos conservador e liberal; e a “esquerda” que
— também de forma resumida — seriam os herdeiros do pensamento marxista.
Por óbvio, essa descrição simplória não tem o condão de
amarrar — com clareza de limites — a complexidade do pensamento político,
especialmente se colocado em perspectiva histórica. Esses rótulos, com o tempo,
ganham novas significações e não se pode negar a simbiose entre eles. Há,
porém, um critério de natureza econômica que, embora também problemático,
parece ser hoje aceito razoavelmente: dizer que alguém é de “direita” —
afastados os preconceitos e as provocações — costuma descrever um pensamento mais
orientado às restrições de atuação do Estado e, portanto, à proposta de
encolhimento do chamado “espaço público” de intervenção. O pensamento de
“esquerda” — também sem considerar os exageros e as insinuações — costuma
atestar alguém que, priorizando alcançar a justiça social, destaca a
importância da ação do Estado e, portanto, a inevitabilidade de seu
intervencionismo. As deformações dessa ação estatal na esfera privada são
consideradas geralmente por essa linha de pensamento uma espécie de efeito colateral
de um remédio essencial e inevitável.
É com base nessa específica abordagem que se propõe aqui
pensar estruturalmente a atuação do STF em questões contratuais e econômicas.
De maneira mais ampla, esse debate vem sendo travado sob inúmeras perspectivas
especificamente jurídicas, muito embora o ângulo de análise não tivesse ajudado
nessa rotulação. Vejam que ponderações na linha da defesa do ativismo judicial
ou do neoconstitucionalismo poderiam significar uma leitura constitucional de
“esquerda”, uma vez que prestigiam, na linha da proteção às minorias e ao
combate à discriminação, uma atuação judicial mais incisiva, mais intromissiva
no espaço de liberdade e autonomia do cidadão e da empresa. É o Poder
Judiciário a afirmar, nas decisões que representam essa linha de pensamento,
que o particular não pode fazer tudo o que acha que pode ou a responsabilizar o
Estado legislador ou Estado Executor por omissões ou incompetência na defesa
dos direitos fundamentais, especialmente quando falha em limitar a liberdade na
esfera privada.
A famosa discussão em torno da eficácia horizontal dos
direitos fundamentais (a chamada drittwirkung na Alemanha) revelava um pouco
dessa polarização quando discutia a possibilidade de incidência direta de
direitos fundamentais nas relações privadas e nos contratos, inclusive no
próprio STF. O tema, entretanto, pode ser perfeitamente descrito de outra forma
(talvez uma forma mais fiel e correta sob a perspectiva da teoria
constitucional): é possível que direitos fundamentais ligados à justiça social
(e que sugerem a intervenção estatal na seara econômica) se sobreponham, em
tese, aos direitos fundamentais ligados à liberdade (que sugere a não
intervenção do Estado)? Ou, é possível que o direito civil e o direito
comercial sejam abstratamente rebaixados em sua importância, fragilizados
recorrentemente pela relativização de sua aplicação como garantias da livre
iniciativa?
Essa é uma pergunta que vem sendo respondida positivamente
pelo STF, contando, para tanto, com certo consenso irrefletido da doutrina.
Esse critério (justiça social X liberdade) é tão importante na forma como se
analisa o STF que é com base nele que juristas e ministros julgam o nível de
“progressismo” do Tribunal em suas diversas épocas.
Certamente, encontra-se, com certa dificuldade, julgamentos
que objetivavam o prestígio e a proteção da autonomia privada no STF. Toma-se,
nessa linha, o exemplo no pós-1988, (i) da ADI nº 2.290, um eloquente exemplo
da defesa do comércio, sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade;
(ii) do RE nº 193.749 ao se reafirmar a livre iniciativa contra leis
restritivas de instalação de farmácias; (iii) do RE nº 407.688 quando se
definiu que ao fiador de contrato de locação não beneficiava a cláusula de
proibição de penhora do bem de família; (iv) do HC nº 72.131 ao se afirmar que,
na alienação fiduciária em garantia, vigorava a sanção da prisão civil; (v) da
ADI 493 que, ao definir, o regime constitucional do princípio da proteção ao
ato jurídico perfeito, afirmou não ser possível no Brasil qualquer tipo de
retroatividade (certamente uma proteção poderosa do vínculo contratual contra a
alteração do regime jurídico); (vi) da ADI nº 1946 que, embora não trate da
livre iniciativa propriamente dita, demonstra uma compreensão raramente serena
da forma como funciona a lógica econômica desse espaço de autonomia (ao decidir
sobre a licença-gestante e o eventual tratamento discriminatório da iniciativa
privada, concluindo pela assunção integral do custo previdenciário pelo
Estado); dentre outros.
É certo, entretanto, mesmo na composição anterior do
Tribunal, encontrar a defesa sólida da intervenção do Estado na seara
privada-econômica em certos contextos, tal como se fez no famoso caso da ADI nº
319-QO.
Da mesma forma como se discute hoje a eficácia e utilidade
da intervenção do Estado (especialmente diante dos resultados conquistados nos
últimos anos), é também chegada a hora de reavaliar essa “premissa” que tem
servido de base para a definição, inclusive, da própria pauta do STF. É
discurso relativamente comum, mesmo entre Ministros, defender que a pauta
“natural” do STF são os casos de direito de minorias, combate à discriminação e
limitação da liberdade de empreender e de comerciar.
A jurisdição constitucional como “realizadora da justiça
social” paga um preço bastante caro e que até hoje era pouco percebido. Na
medida em que o Estado é vista como protagonista de todas as atividades, como
garante exclusivo da realização de todos os direitos fundamentais,
estrangula-se a iniciativa privada e se reduz à filigrana princípios
constitucionais como a livre iniciativa, a livre concorrência e a autonomia
negocial, valores essenciais da ordem econômica (art. 170 da CF).
São raras as manifestações do STF em que a interpretação
constitucional se orienta para a proteção da esfera privada nesse contexto e
baseada em uma premissa de “self-restraint”. Nesse sentido, o ativismo judicial
não apenas é perigoso sob a perspectiva política (da separação dos poderes),
mas principalmente na dimensão econômica e social, quando parte do pressuposto
de que o empresário, o produtor, o comerciante, o profissional liberal e o
empreendedor formam uma classe suspeita e perigosa que precisa ser fiscalizada
e controlada pelo Estado e que sua autonomia deve ser mínima. Esse
estrangulamento da iniciativa privada — baseado, vale dizer, em puro
preconceito ou visão distorcida —, além de matar a única força produtiva e
autônoma do país, acaba por criar uma imagem equivocada do próprio STF que,
nesse contexto, se resume a um papel de “Robin Hood” consistente em
redistribuir a riqueza por meio da ação confiscatória do Estado-juiz. O século
XX, entretanto, foi a prova viva da falência desse projeto.
Para um país que precisa se desenvolver economicamente (de
forma a garantir a criação de mais riqueza), o que se precisa, para um novo
paradigma da jurisdição constitucional, não é a criação de novos formatos de
intervenção do Estado (o que serviu enormemente para a injustificada “inflação
dos direitos”), mas sim, como podemos limitar a ação do Estado conservando a
consistência de nossa liberdade responsável. Como já defendido por Dworkin, “direitos
são trunfos”, e, por isso, — digo eu - não são eles que alicerçam o Estado
Democrático de Direito. Essa idéia fundante está baseada, em realidade, na
noção de obrigação e responsabilidade do cidadão, no dever recíproco de todos
de respeitar as liberdades fundamentais, de conviver e de compartilhar
interesses e espaços de ação autônoma.
Essa proposta de maior proteção à liberdade de empreender e
de maior prestígio da livre iniciativa denuncia duas enormes contradições que
nosso atual modelo de jurisdição constitucional “de esquerda” no Brasil está a
patrocinar: em primeiro lugar, esse modelo indica um caminho diametralmente
oposto à idéia original e histórica de direitos humanos que eram considerados
verdadeiros “pontos de resistência” contra a ação e gigantismo do Estado (o
discurso dos direitos humanos promovendo exatamente esse crescimento do Estado
é um contrassenso perverso); e, em segundo lugar, os direitos humanos que
deveria ancorar posições para a realização de uma política republicana
pacífica, passaram a servir como verdadeiras “declarações de guerra” entre
“minoria” e “maioria” ou entre “excluídos” e “incluídos”, grupos esses que,
várias vezes, são criados artificialmente para sustentar esse discurso da
inevitabilidade da ação e do controle do Estado.
A jurisdição constitucional no Brasil, para servir como
pedra angular de um regime verdadeiramente democrático e republicano, deve,
portanto, reescrever o seu papel, valorizando mais o cidadão, suas
responsabilidades e a esfera privada (onde sua individualidade se realiza) e
menos o Estado e suas prerrogativas de intervenção.
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