Gilmar Mendes
A grave crise político-institucional que hoje atormenta o
país, reforçada pelos cotidianos escândalos que revelam a capilaridade da
corrupção na estrutura administrativa brasileira, não deixa dúvida de que é
primordial repensar as formas pelas quais o Estado brasileiro é regido.
Coloquemos em foco o Poder Executivo Federal. Desde a
promulgação da Constituição Federal de 1988 — fato que simboliza
categoricamente a redemocratização do Brasil após os penosos anos de regime
militar — elegeram-se quatro presidentes da República: Fernando Collor de
Mello, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana
Rousseff. Dos quatro presidentes eleitos, apenas dois conseguiram terminar os
mandatos sem serem destituídos compulsoriamente do cargo. Ou seja, em quase 30
anos de democracia, apenas a metade dos presidentes eleitos para governar o
país não perdeu o seu mandato.
O quadro é deveras grave e a busca por solução deve ser,
inquestionavelmente, prioridade para os atuais governantes. A resposta para
essa questão passa certamente pela revisão do nosso sistema de governo.
Para Jorge Reis Novais, prestigiado constitucionalista
português e professor da Faculdade de Direito de Lisboa, a expressão sistema de
governo consistiria, em linhas gerais, no “relacionamento institucional entre
os vários órgãos de exercício do poder político”.
O Brasil atualmente é regido sob o sistema de governo
presidencialista. Nesse sistema, a partir de eleições populares, designa-se um
presidente da República, o qual acumula as funções de chefe de Estado e de
chefe de governo. Enquanto chefe de Estado, o presidente é quem representa o
país nos países estrangeiros, é quem comanda as Forças Armadas e quem define
políticas externas, por exemplo. Enquanto chefe de governo, por outro lado, o
presidente é incumbido de exercer as funções executivas, de fato, como a de
impor as políticas públicas e a de nomear os ministros de Estado, a título de
exemplo.
Já se tornou evidente que, em nosso país, o acúmulo das
funções de chefe de Estado e de governo não gera bons resultados, mas, na
verdade, resulta em sérios desacertos nas relações institucionais entre o Poder
Executivo e o Legislativo. Basta, para tanto, analisar a dificuldade para
governar a nação enfrentada por um presidente da República que não tenha boa
aprovação no Congresso Nacional.
Vê-se, assim, que o presidencialismo brasileiro, ao
concentrar a chefia de Estado e a chefia de governo na pessoa do presidente da
República, não distingue nitidamente os limites de cada atribuição, fazendo com
que problemas de governo se tornem problemas de Estado.
Por outro lado, a adoção de um sistema de governo parlamentarista
no Brasil também não seria oportuna. Isso porque, no parlamentarismo, o chefe
de Estado possui atribuições meramente formais e representativas, motivo pelo
qual a adoção do sistema ocasionaria um enfraquecimento drástico dos poderes
conferidos ao chefe de Estado brasileiro.
Em vista disso, a melhor solução para o impasse parece ser a
adoção de um sistema de governo semipresidencialista, um modelo situado entre o
presidencialismo e o parlamentarismo.
O semipresidencialismo diz respeito a modelo intermediário,
no qual o exercício do Poder Executivo é compartilhado entre um presidente da
República — que desempenha a função precípua de chefe de Estado — e um
primeiro-ministro — que desempenha a função de chefe de governo.
Nesse sistema, o presidente da República é escolhido por
eleição popular — assim como ocorre no presidencialismo — e desempenha papel
mais relevante do que o desempenhado pelo chefe de Estado no modelo
parlamentarista. A depender das regras estabelecidas, o presidente da República,
no semipresidencialismo, poderia indicar o primeiro-ministro, controlar a
política externa do país, solicitar referendos, propor leis e, inclusive,
dissolver o parlamento.
De outro lado, quem exerce a chefia de governo no sistema
semipresidencialista é o primeiro-ministro. Nessa circunstância, a ele compete,
por exemplo, a escolha dos ministros de Estado, a elaboração de políticas
econômicas, bem como toda a articulação política com os membros do Poder
Legislativo.
Como se vê, a adoção do sistema semipresidencialista
resultaria na introdução de novas particularidades próprias do sistema
parlamentarista — como o aumento da responsabilidade do processo decisório
congressional —, sem abolir, no entanto, a inteireza das funções relevantes
conferidas ao presidente da República.
Além disso, o sistema semipresidencialista permitiria a
criação de mecanismos de destituição dos primeiros-ministros que porventura
viessem a perder apoio político, sem, todavia, prejudicar a chefia de Estado e
sem a necessidade de cometimento de crime de responsabilidade — que é hoje o
que autoriza o processo de impeachment.
Há dois modelos de sistema semipresidencialista que merecem
destaque: o modelo português e o modelo francês. Esses dois modelos possuem
diferenças marcantes entre si, principalmente no que concerne às atribuições do
presidente da República.
O semipresidencialismo francês guarda raízes na Revolução
Francesa e nos ideais do general Charles de Gaulle, no pós-Segunda Guerra
Mundial. A forte tradição parlamentarista foi herdada da revolução, com as
competências centrais atribuídas à Assembleia Nacional. Já o pensamento de De
Gaulle, por sua vez, possibilitou emergir uma nova ideia de participação no
sistema político francês, apresentando, assim, a figura de um presidente que,
além de exercer a chefia de Estado, participava ativamente da política.
Com a promulgação da Constituição Francesa de 1958,
firmou-se um sistema político que conferia destaque às atribuições do chefe de
Estado. De Gaulle coordenava diretamente a política externa do país, comandava
as Forças Armadas e ainda tinha o poder de dissolver a Assembleia Nacional, em
caso de crises políticas. O firmamento desses poderes fez com que o sistema de
governo francês tornasse um híbrido entre parlamentarismo e presidencialismo.
Já no que diz respeito ao modelo semipresidencialista
português, concebido na década de 1970, uma importante dessemelhança pode ser
facilmente notada. Isso porque, apesar de antever eleições gerais para a
escolha do presidente — tal qual ocorre no modelo francês — o sistema português
se diferencia do sistema francês por não atribuir à Presidência o exercício de
competências executivas relevantes, de modo que o presidente eleito
apresenta-se como figura politicamente neutra, que arbitra, intervém e
aconselha.
Ambos os modelos possuem suas virtudes, e uma eventual
adoção do sistema de governo semipresidencialista no Brasil aconselharia a
análise dos modelos já empregados em outras democracias, bem como o estudo do
cenário político brasileiro, para se avaliar o modelo ao qual o Brasil melhor
se adaptaria.
A adequação de mecanismos presidencialistas e
parlamentaristas permitiria uma relação mais harmoniosa e amoldável às
vicissitudes das instabilidades políticas que acometem o país. Contudo, tais
premissas somente são válidas se, concomitantemente, todo o sistema político
brasileiro acompanhar essa superação.
Com efeito, o engajamento também na remodelação do sistema
partidário e eleitoral brasileiro, por exemplo, seria fundamental. É necessário
que haja uma reforma política integral que acompanhe essa sistemática, para que
se supere por inteiro a crise política. Por óbvio, a pura adoção do sistema
semipresidencialista não seria, se individualmente considerada, capaz de
extirpar a crise político-institucional brasileira. No entanto, se combinada a
outros elementos, a implementação da medida guiaria a construção de novas
práticas institucionais aptas a amenizar alguns dos problemas estruturais
apresentados pelo país.
O Brasil tem enfrentado inúmeras digressões no andamento de
seu sistema político e isso parece ocorrer de maneira cíclica. As sucessivas
crises políticas que se alastram parecem conferir a ideia de que a
instabilidade é algo intrínseco ao nosso sistema de governo.
Contudo, é importante destacar que tais períodos
tormentosos, ao passo que desgastam os pilares democráticos, também fazem
emergir a necessidade de mudanças.
Dessa forma, a instabilidade se mostra como uma importante e
necessária fase do desenvolvimento de qualquer sistema. As crises políticas
demonstram que o bom funcionamento do governo está sendo solapado e evidenciam
a necessidade de mudança. Não se trata de acreditar que a simples mudança do
sistema irá solver a crise política hoje vivenciada, mas sim de buscar atrelar,
junto às mudanças em todo o cenário político, um sistema que confira maior
segurança e eficácia à democracia brasileira.
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