As constantes denúncias de corrupção de políticos e partidos
políticos no Brasil têm dado força a reflexões sobre a crise do sistema de
governo brasileiro, chamado comumente de “presidencialismo de coalizão” e
estimulado os clamores por reformas nesse sistema.
Eliardo Teles Filho
A título de exemplo, cito a coluna de Igor Gielow publicada
no jornal Folha de S.Paulo no dia 28 de junho de 2017:
“A crise quase terminal do governo de Michel Temer, e
insisto no quase porque o peemedebista não se chama Dilma Rousseff, está
levando ao epílogo do status quo implantado pela velha Nova República,
inaugurada em 1985 e plasmada na Constituição de 1988. (…)
O "silver lining" da barafunda (…) consiste na
possibilidade de que alguma coisa melhor saia da crise, seja qual for o
desfecho dela.
O que seria isso? A revisão das bases representativas da
política. A resposta mais óbvia seria a adoção do parlamentarismo, já que todo
presidente precisa compor com uma maioria estável no Congresso para governar. A
supracitada Dilma foi executada nessas condições, e Temer agora incinera sua
pinguela para manter o semiparlamentarismo tão eficaz até a primeira crise que
o atingiu diretamente.
O triste é que estamos no Brasil, e um parlamentarismo daria
no que a Itália do pós-guerra teve de pior: um gabinete caindo após o outro.
(…)
O problema é que o presidencialismo de coalizão também
morreu após 13 anos do projeto petista de poder, que instituiu uma espécie de
terrorismo de Estado nos cofres da nação.”
Sem endossar os juízos do autor sobre pessoas e partidos
políticos ou a sua análise da conjuntura política ou da situação do governo, eu
gostaria de chamar a atenção para a relação que o texto estabelece entre os elementos
criminal e constitucional da crise política que o Brasil vem vivendo desde,
pelo menos, 2015, ano em que o Brasil começou a contemplar como real a
possibilidade de que Dilma Rousseff, reconduzida à presidência da República,
não terminasse seu mandato.
O elemento criminal mencionado no texto é, sem dúvida, a
corrente incessante de acusações de que políticos podem ter se beneficiado de
enormes esquemas de corrupção. Esses esquemas seriam montados em conluio com
algumas das maiores empresas brasileiras e transfeririam recursos públicos para
empresas, seus dirigentes e familiares, partidos, políticos e familiares.
O elemento constitucional é o sistema representativo
brasileiro que, pelo que aponta o texto, estaria sendo levado à falência pelo
elemento criminal. Aqui entra o chamado “presidencialismo de coalizão”, um
conceito relativamente frouxo, mas útil para descrever a forma como funciona o
poder político eleito no Brasil.
Segundo a definição mais aceita, o “presidencialismo de
coalizão” seria o sistema de governo ou regime político adotado pela
Constituição de 1988 e reuniria duas características principais e interligadas.
A primeira é o fato de o sistema brasileiro mesclar características do sistema
parlamentarista e do sistema presidencialista, principalmente no que se refere
à taxa de êxito de aprovação de proposições legislativas de iniciativa do poder
executivo. Essa é a característica mais enfatizada pela ciência política.
A segunda é o fato de os governos não serem unipartidários,
mas sim montados por uma multidão de partidos políticos que dividem entre si os
ministérios que compõem o Poder Executivo no Brasil. Assim, ao contrário da
imagem que comumente se faz do presidencialismo norte-americano, os ministérios
não seriam todos ocupados por autoridades apoiadas pelo partido político do
presidente da República, mas sim por um conjunto de partidos que pode, a
qualquer momento, se retirar do governo.
Essa característica é destacada pelo Direito Constitucional,
mais preocupado com o tema da separação de poderes do que com a taxa de sucesso
de projetos de lei. De todo jeito, as duas características são interligadas,
de modo que podemos resumir o presidencialismo de coalizão, na definição mais
aceita, da seguinte forma: haveria uma divisão do Poder Executivo entre
diversos partidos, o que garantiria uma larga base parlamentar governista e,
por consequência, uma alta taxa de aprovação de proposições legislativas de
interesse do executivo, se não inteiramente de sua iniciativa.
As conexões que hoje se fazem entre esses dois elementos, o
criminal e o constitucional, na crise política brasileira são variadas. A do
texto transcrito acima parece ser a de que o elemento criminal levou à falência
do sistema de governo, elemento constitucional, mas outros analistas fazem a
relação contrária: seriam as distorções do elemento constitucional que teriam
levado os componentes do sistema político a recorrer a expedientes criminosos.
Em ambos os casos, no entanto, o que se defende é uma reforma política para romper
essa correlação entre o elemento constitucional e o elemento criminal no
coração do presidencialismo de coalizão.
O que eu gostaria de apontar nessa coluna é a inconveniência
de se reformar um sistema de governo tendo por horizonte apenas a luta contra a
corrupção. Ou, em outras palavras, a necessidade de se quebrar essa relação
automática entre os elementos criminal e constitucional da crise.
Em primeiro lugar porque, embora os sistemas políticos devam
ter mecanismos que impeçam sua captura pela corrupção, nenhum sistema político
importante foi feito apenas com esse objetivo, mas sim para garantir valores
mais profundos, como a liberdade, a igualdade, a propriedade, os direitos
humanos.
Esses valores se traduzem em configurações de governos moderados,
ou governos social-democratas ou socialistas, ou outros modelos. Em segundo
lugar, e é esse o principal ponto do texto, porque me parece que um dos
problemas do sistema de governo do Brasil atual é justamente a falta de sua
correspondência a um ou mais desses valores mais profundos.
Para defender a plausibilidade da minha sugestão, quero
voltar ao seminal texto de Sérgio Abranches sobre o presidencialismo de
coalizão. Aquele texto, pleno de insights sobre o processo constituinte que
levou àquela solução institucional, parece ter sido pouco explorado em vários
pontos. Gostaria de indicar um que merece a atenção dos especialistas do
Direito Constitucional interessados no problema da relação entre os elementos
criminal e constitucional na crise política brasileira.
Trata-se do problema da formação de consensos durante o
processo constituinte. Embora o ponto não tenha sido muito bem desenvolvido
ali, Abranches registra que, naquele momento de saída da ditadura para a
democracia, as forças políticas presentes à elaboração da Constituição tinham
dificuldade de chegar a consensos constitucionais substantivos, além do
compromisso com a democracia. Descrevendo o momento, Abranches afirma:
Há um claro “pluralismo de valores”, através do qual
diferentes grupos associam expectativas e valorações diversas às instituições,
produzindo avaliações acentuadamente distintas acerca da eficácia e da
legitimidade dos instrumentos de representação e participação típicos das
democracias liberais. Não se obtém, portanto, a adesão generalizada a um
determinado perfil institucional, a um modo de organização, funcionamento e
legitimação da ordem política.
E depois:
A probabilidade de acumulação de conflitos em múltiplas
dimensões, precariamente contidos pelo pacto mais genérico de transição
democrática – que foi brevemente revigorado durante o período de sucesso do
Plano Cruzado -, bem como de sucessão de ciclos de instabilidade, aumenta na
proporção em que as energias da nova direção política (no Legislativo e no
Executivo) são consumidas na administração de crises.
Esses fragmentos apontam para a existência de dificuldades,
àquela época, de se chegar a consensos principiológicos básicos, além do
compromisso “mais genérico” com a democracia, a partir dos quais aderir a um
perfil institucional coerente.
Com efeito, se olharmos com atenção para a nossa
Constituição, veremos que essa dificuldade de formulação de um consenso básico
que fosse além do compromisso com a democracia se espraia por todo o seu texto.
São mais de 350 artigos tratando de temas muitas vezes de natureza tipicamente
legislativa além de uma multiplicidade de princípios que, segundo o
constitucionalismo mais influente, entram em conflito constantemente.
O próprio poder constituinte originário previu uma regra de
revisão constitucional dentro de cinco anos da promulgação do texto. Essa
dificuldade de formação de um consenso mais profundo, que se refletiu na
profusão legislativa-constituinte, tem uma consequência prática: a necessidade
de se alterar a Constituição para governar. Desde 1992, aprovaram-se em média
4,4 emendas à Constituição por ano. No Brasil, governar é alterar a
Constituição.
A dificuldade de consenso se refletiu também na opção por um
sistema de governo no qual, parece-me, a opção principal foi por estabelecer
uma relação entre Estado e sociedade, e não um sistema de freios e contrapesos.
Já defendi em outra coluna neste Observatório que o presidencialismo de
coalizão, pelo menos na definição de Abranches, reflete muito mais o
estabelecimento de um mecanismo de legitimação do Estado graças a uma completa
abertura às demandas da sociedade, pela via da representação proporcional e do
multipartidarismo autorregulado, do que um sistema de separação de poderes no qual
um Poder Legislativo forte pudesse realmente servir de contrapeso ao Executivo.
A configuração de um conjunto de mecanismos de controle do
poder sobre o poder parece ter ficado a reboque das decisões sobre como o poder
se relacionava com a sociedade. Por outro lado, a Constituição de 1988 cumulou
o presidente da República de poderes legislativos, o que, aliás, termina
sendo uma das poucas garantias de funcionamento do mecanismo do
presidencialismo de coalizão.
Se o excesso de abertura do Congresso Nacional, com uma
previsível fragmentação partidária, impedisse o processo decisório, o
presidente da República poderia destravá-lo mantendo o governo em ação. A
impressão é que, na dúvida sobre qual separação de poderes fazer, a
Constituição parece ter querido uma superposição de poderes.
Hoje, quase 30 anos depois de promulgada a Constituição, já
se pode dizer que a sociedade brasileira foi capaz de chegar a alguns
consensos. Um deles é o de que o atendimento das demandas da sociedade não
justifica o aumento da inflação; outro é o reconhecimento de que o Estado não
pode extrair recursos da sociedade indefinidamente; outro, registrado pela
literatura econômica, é o compromisso radical com a inclusão social. Outro
consenso, ainda, é o de que os governantes devem ter responsabilidade
fiscal.
Enquanto isso, o presidencialismo de coalizão parece ser
ainda uma improvisação a completar 30 anos, sem outro objetivo que o de impedir
o país de regredir no seu compromisso com a democracia. Muito mais do que a
ideia de combater o crime de corrupção, o que deve guiar os debates sobre as
mudanças no sistema político é a atualização desse sistema para que ele seja
capaz de realizar aquelas aspirações mais profundas que a sociedade brasileira
hoje já é capaz de expressar.
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