"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Igualdade e Invisibilidade


Falar de nossa identidade significa falar de quem somos, de quais são os nossos desejos, aspirações e opiniões. A nossa identidade se constitui através da internalização e da adoção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de costumes, valores e tradições concretas. É através da linguagem, portanto, que cada um de nós se constitui como sujeito. Daí podermos afirmar que a principal característica das relações humanas é o diálogo.

A construção da nossa identidade pressupõe esse diálogo, aberto ou interno, amoroso ou conflitivo, com aqueles que nos cercam. Quando expressamos sentimentos e ações o fazemos por meio de práticas linguísticas apreendidas com os demais. Adquirimos a linguagem por intermédio de nossa relação com os outros, especialmente com aqueles que são importantes para nós. Sentimentos e ações não são, dessa forma, estabelecidos internamente, de uma maneira autônoma, nem podem ser solitariamente interpretados.
O psiquismo não é algo, portanto, construído por vontade e determinação próprias.

Assim, nos identificamos como membros de um grupo quando somos capazes de ver nossos próprios sentimentos e ações com o mesmo olhar com que os demais também veriam. Assumir o olhar do outro, no entanto, também pressupõe um ideal de reciprocidade, pois, do contrário, esse olhar passaria a representar violência e invasão. Só podemos falar de uma identidade autônoma diante de uma consciência capaz de julgar a validade das normas e instituições criadas pela sociedade.

Mas isso só é possível se formos capazes de associar identidade e reconhecimento. Afinal, como supor o exercício crítico de uma consciência que, em sua relação com os outros, não tem sua identidade reconhecida? Mais ainda, o que dizer da recusa sistemática de reconhecimento de certas identidades sociais, associando-as a signos de inferioridade?

Com efeito, se partirmos do pressuposto de que o reconhecimento configura as identidades e que, em sua ausência, indivíduos ou grupos podem ser levados a estabelecer representações aviltantes de si próprios, nada nos impede de pensar o tema da “invisibilidade”, ou seja, uma forma de ser invisível, que não envolve evidentemente uma ausência em sentido físico, mas uma não-existência no sentido social. Falamos, portanto, de “invisibilidade” naquelas situações em que os que dominam expressam sua superioridade social através da não-percepção dos que são dominados.

Quando indivíduos negros, por exemplo, internalizam signos de inferioridade porque, durante gerações, a sociedade branca lhes transmitiu imagens deprimentes de si mesmos, essa autodepreciação torna-se um dos meios mais eficazes de sua própria opressão.

Quais seriam, portanto, as estratégias válidas para liberar certos indivíduos ou grupos dos signos de inferioridade a partir dos quais a sociedade pretendeu conformar suas identidades, aprisionando-os em um mundo marcado pela subalternidade e pela humilhação?

Parece não restar dúvidas de que no âmbito das sociedades contemporâneas, o exercício democrático pressupõe tratar a todos como iguais independentemente das múltiplas identidades sexuais, raciais, étnicas ou religiosas. Na verdade, deliberação pública e reconhecimento igualitário são temas inseparáveis. É neste sentido que o ompromisso com o princípio da cidadania igualitária envolve a atribuição de iguais direitos a todos e só admite a alteração desse esquema se a distribuição desigual de direitos vier a beneficiar os mais desfavorecidos. Os direitos civis e políticos são, portanto, a todos destinados, enquanto os direitos sócio-econômicos estão associados ao processo de inclusão social daqueles que, na ausência de tais direitos, encontrariam grande dificuldade não apenas de conduzir com dignidade suas vidas, como também em atuar no cenário público.

Para muitos, no entanto, a política do igual respeito é ineficaz no sentido de assegurar as retensões de reconhecimento público reivindicadas por grupos culturais cuja identidade foi historicamente vinculada às imagens depreciativas e signos de inferioridade. O oferecimento de um mesmo conjunto de direitos e liberdades não seria suficiente para permitir o acesso dessas minorias ao cenário político. Uma política de reconhecimento igualitário demandaria, além dos direitos a todos assegurados, o reconhecimento de necessidades particulares de indivíduos ou grupos enquanto membros de culturas subjugadas.

Em outras palavras, a garantia de coexistência igualitária entre grupos culturais diversos, em alguns casos, só poderia ser assegurada por direitos coletivos que ultrapassassem os limites dos direitos fundamentais – sejam civis, políticos ou sociais – cuja referência são os cidadãos individuais. É por isso que, para muitos, as diversas formas de “ação afirmativa”, demandadas e introduzidas sob o signo de uma “política de reconhecimento”, visam assegurar direitos culturais entendidos como direitos coletivos. Resta-nos, neste momento, nos perguntar se há efetivamente uma incompatibilidade entre a afirmação de certas identidades coletivas – através de políticas de “ação afirmativa” – e a idéia de cidadania igualitária, fundamento do Estado de Direito.

Da idéia de que os cidadãos se associam por sua própria vontade para formar uma comunidade de sujeitos de direito livres e iguais resulta uma concepção de Estado de Direito que é inseparável do conceito de indivíduo como sujeito portador de direitos.

Há, portanto, na origem das Constituições modernas, uma teoria do direito formulada em termos individualistas. De outra parte, a história da universalização dos direitos – a luta por uma cidadania igualitária – foi escrita, como sabemos, no interior dos próprios procedimentos do Estado de Direito. Nem mesmo os direitos sociais – cuja função é compensar condições sociais desiguais – são incompatíveis com essa teoria dos direitos formulada em termos individualistas, pois os bens sociais podem ser ou individualmente distribuídos ou individualmente desfrutados.

Nesta perspectiva, portanto, já podemos perceber que o apelo a direitos coletivos que venham a exceder os limites de uma teoria dos direitos concebida em termos individualistas significa romper com a nossa tradicional compreensão do que seja Estado de Direito, que é liberal, pois está construída com base nos direitos individuais. De outra parte, além de ignorar as concepções sobre as quais se assenta o constitucionalismo moderno, aqueles que pretendem introduzir direitos coletivos alheios a esse sistema interpretam equivocadamente o universalismo dos direitos fundamentais como abstração das diferenças.

Senão vejamos.

A ordem jurídica das sociedades contemporâneas assegura iguais direitos para todos os cidadãos e o faz através de um procedimento legislativo democrático do qual todos devem participar. Assim, tais direitos estão intimamente conectados com a plena autonomia política dos indivíduos. Se partirmos, portanto, desse enlace interno entre autonomia privada e autonomia pública, percebemos que os cidadãos não podem nem mesmo chegar a gozar de certos direitos se eles mesmos, no exercício da soberania popular, não definem quais as normas e interesses que devem ser reconhecidos.

O resultado disso é que, em sociedades plurais, serão estabelecidas normas que irão assegurar igual tratamento para grupos homogêneos, tanto quanto um tratamento diferenciado para grupos diversos. Ou seja, nas sociedades democráticas contemporâneas, é da conexão interna entre autonomia privada e autonomia pública que decorre as normas que levam em conta tanto a desigualdade das condições ociais de vida, quanto as diferenças culturais. Neste sentido, se uma sociedade democrática é uma comunidade de cidadãos livres e iguais, o ordenamento jurídico não pode ser um mero distribuidor de liberdades de ação de tipo privado.

A distribuição dos direitos só pode ser igualitária se os cidadãos – enquanto legisladores – estabelecem um consenso acerca dos critérios através dos quais o igual vai receber um tratamento igual, enquanto que o desigual um tratamento desigual.

O princípio da igualdade de respeito – fundamento do sistema de direitos do constitucionalismo democrático – não pode, nessa perspectiva, ser visto como uma “imposição igualitária” incompatível com a necessidade de proteção diferenciada de certas identidades coletivas. Da exigência de garantir a inclusão de todos, independentemente de quão marginalizados eles tenham sido – e sabemos que a ausência de reconhecimento de identidades coletivas (ou seu falso reconhecimento) quase sempre vem acompanhada de uma situação social de desvantagem – resulta a ecessidade de assegurar a integridade de cada um nos contextos sociais e culturais nos quais a sua identidade se constitui. É isso que nos obriga a optar por uma ampliação do conceito abstrato de “sujeito de direito”. Apenas uma interpretação equivocada do princípio do igual respeito pode imaginá-lo cego e ineficaz em face da discriminação e das desigualdades sociais e culturais. O compromisso com o ideal de uma cidadania igualitária não é incompatível com a garantia de direitos culturais demandados e introduzidos sob o signo das “políticas de reconhecimento”.

Nesta perspectiva, as políticas afirmativas utilizadas para garantir a diversidade étnica e social nos mais variados setores não são contrárias ao sistema de direitos sobre o qual se baseia o constitucionalismo democrático, desde que desvinculadas de qualquer idéia de direito coletivo que represente opressão de liberdades individuais.

Com efeito, se as políticas afirmativas podem ser vistas como mecanismos capazes de colaborar com a integração de grupos subprivilegiados no cenário do debate político, isso não pode significar nenhum compromisso com uma visão de ociedade permanentemente dividida em grupos raciais, o que transformaria a raça – e não a identidade política – em fundamento da cidadania. Ao mesmo tempo, é com base nesse argumento que não podemos tomar as ações afirmativas como políticas compensatórias que, no presente, teriam a função de reparar ou compensar injustiças que, no passado, recaíram sobre os antepassados dos seus atuais beneficiários.

Em primeiro lugar, não há como, do ponto de vista estritamente jurídico, invocar o argumento compensatório sem fazer referência à existência de um dano específico e mensurável. De outra parte, a legitimidade para reivindicar a reparação é exclusivamente daquele que sofre o dano, da mesma forma que a compensação só pode ser reivindicada daquele que efetivamente pode ser responsabilizado pelo prejuízo causado. O ato discriminatório do membro de um grupo não pode transformar automaticamente todo o grupo em devedor, da mesma maneira que a injúria sofrida por um indivíduo não pode ser compensada por uma preferência, benefício ou direito exercido por um outro.

É evidente que isso não significa supor que a discriminação é um evento discreto que atinge apenas vítimas individuais. Ao contrário, quando as vítimas da discriminação pertencem a uma comunidade segregada os seus efeitos atingem todos os seus membros. Não podemos, no entanto, transformar as políticas afirmativas em uma espécie de modelo de justiça grupal. O que se está afirmando é que a segregação não pode ser vista como um efeito de um passado de discriminação, mas, ao contrário, como causa de uma injusta desigualdade racial.

As ações afirmativas, introduzidas com base na necessidade de implementação de políticas de reconhecimento, devem, portanto, ser vistas não como mecanismos de compensação, mas como medidas de integração, cuja função primordial é dissolver os obstáculos que, vinculados a uma discriminação atual, impedem a efetiva e igual participação de amplos setores da sociedade nos processos de deliberação política.

A verdade é que não se viola o princípio da igual proteção simplesmente porque um grupo social, no âmbito de uma discussão pública, deixou de ser beneficiado por uma decisão política. No entanto, quando essa perda é resultado direto de uma vulnerabilidade que decorre do preconceito, da hostilidade e da segregação não há como se falar em igualdade de respeito e consideração. Nesta perspectiva, tomar as políticas afirmativas como medidas integrativas nos permite compatibilizá-las com o sistema de direitos sobre o qual se assenta o constitucionalismo moderno.

Se estamos de acordo que nas democracias contemporâneas a cidadania – e não a raça – deve ser a base da identidade política e se também concordamos que o stado de Direito deve ser o ponto de referência inabalável para qualquer interpretação crítica, as políticas afirmativas, como medidas de integração e inclusão de grupos marginalizados no espaço público, não podem representar qualquer compromisso com a implantação de uma “política da diferença” que venha a violar o princípio do igual respeito.

O compromisso com a cidadania igualitária assegura a integridade do indivíduo nos contextos sociais e culturais nos quais a sua identidade se constitui. As políticas afirmativas, nessa perspectiva, não são intervenções administrativas normalizadoras que favorecem um grupo em detrimento de outros. São apenas uma das formas de concretizar os direitos que decorrem do princípio da igualdade de respeito.

Gisele Cittadino

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