"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Saiba o que mudou com a Constituição de 1988



AMBIENTE

Como era

Até 1988, o ambiente era considerado um bem econômico e nem era citado na Constituição. Era possível a apropriação para fins particulares de áreas como lagos e açudes, por exemplo, e indústrias não precisavam ter grandes cuidados com seu impacto na natureza.

Como ficou

Pela primeira vez, a Carta Magna trouxe um capítulo inteiro tratando do tema, o VI - no total, são mais de 40 artigos espalhados pelo documento. O artigo 225 determinou que o ambiente é um bem público, cujos titulares são as presentes e futuras gerações, e a preservação da natureza, um direito fundamental do cidadão.

- A Constituição determinou que as pessoas não podem usar, gozar, dispor, fruir, alterar o ambiente como se fosse um bem particular - explica o promotor Alexandre Saltz, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público, órgão que passou a ser responsável pela defesa ambiental.



REPARAÇÃO AOS ANISTIADOS

Como era

Não existia.

Como ficou

O Artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previu a reparação aos anistiados. Isso foi regulamentado pela Lei 10.559, de 2002. Até abril deste ano, a Comissão de Anistia analisou 37.321 requerimentos. Desses, 25.013 foram deferidos total ou  parcialmente. Para os familiares dos mortes e desaparecidos, as reparações estão previstas segundo a Lei 9.140, de 1995. Até o momento, 356 famílias receberam indenização.



VOTO AOS 16 ANOS

Como era

A Constituição Brasileira de 1934 estabeleceu o voto secreto e obrigatório para maiores de 18 anos. A partir do início do regime do Estado Novo, em 1937, o direto ao voto foi vetado.

Como ficou

Com a Constituição de 1988, foram determinada as eleições diretas para a presidente, governador, deputado estadual e federal, senador e vereador. E o direito ao voto facultativo foi dado aos jovens a partir dos 16 anos.


FIM DA DIFERENÇA ENTRE IRMÃOS

Como era

Filhos concebidos fora do casamento eram discriminados, com menos direitos do que os irmãos "legítimos". Com a lei do Divórcio de 1977, houve um avanço estendendo o direito de herança a filhos ilegítimos, mas o filho só podia exigir a Investigação de Paternidade se o pai não estivesse casado com outra mulher. Dependia do reconhecimento voluntário do pai. Com isso, o filho passava a ser "legitimado", o que era diferente do "legítimo" (fruto do casamento)

Como ficou

A lei assegurou a igualdade entre os irmãos, independentemente de terem sido concebidos dentro ou fora do casamento, e proibiu qualquer tipo de discriminação.


APOSENTADORIA RURAL

Como era

Lei Complementar 11/71

- Quem era segurado: somente o chefe da família, em geral o homem
- Contribuição: os agricultores repassavam ao governo 2% sobre a produção rural que era comercializada. Além disso, todas as empresas urbanas do país contribuíam com 2,4% por mês sobre a folha de pagamento
- Benefícios: aposentadoria por idade aos 65 anos, pensão por morte, aposentadoria por invalidez e auxílio funeral
- Valor do benefício: meio salário mínimo
- Idade para aposentadoria: 65 anos

Como ficou

Lei 8.213/91

- Quem era segurado: todos os membros do grupo familiar. Não só o chefe da família, mas homem e mulher estão inseridos na previdência
- Contribuição: os agricultores contribuem com 2,1% sobre a produção comercializada
- Benefícios: aposentadoria por idade, auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-acidente, salário maternidade, pensão por morte e auxílio reclusão. Os empregados rurais têm direito também a aposentadoria por tempo de contribuição
- Valor do benefício: pelo menos um salário mínimo. O valor varia conforme a contribuição adicional, que é facultativa
- Idade para aposentadoria: 55 anos para mulher e 60 anos para homem



SALÁRIO MÍNIMO PARA IDOSOS

Como era


A lei 6.179, de 1974, criou o benefício chamado de renda mensal vitalícia para pessoas com mais de 70 anos que não tivessem como se sustentar. Para se habilitar, havia exigências como ter sido filiado à Previdência Social por pelo menos 12 meses e ter exercido atividade remunerada abrangida pela Previdência. O benefício era de meio salário mínimo.

Como ficou

Para garantir condições mínimas de vida digna aos idosos, a Constituição de 1988 estipulou o pagamento de um salário mínimo mensal àqueles que não tivessem condições de se manter, mesmo que nunca houvessem contribuído para a Previdência. O benefício passou a ser concedido a partir dos 67 anos. Em 2003, o Estatuto do Idoso reduziu a idade para 65 anos. Para ter direito a ele, a renda familiar per capita deve ser inferior a um quarto do salário mínimo.


SUS

Como era

Pela Lei 6.439, de 1º de setembro de 1977, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) se obrigava de atender somente os brasileiros contribuintes da previdência e seus dependentes. Os demais, na maior parte das vezes, acabavam dependendo da disponibilidade de vagas em instituições filantrópicas como as Santas Casas, que se dedicavam a atender pobres e indigentes.

Como ficou

O artigo 196 da Constituição estabeleceu que "a saúde é um direito de todos e um dever do Estado". A partir disso, estava aberto o caminho para que todo cidadão, independentemente de estar trabalhando ou de contribuir para a previdência, tivesse direito de acesso ao sistema público de saúde por meio do SUS. O antigo Inamps acabou oficialmente extinto em 1993.


INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

Como era

Um delegado de polícia podia assinar o próprio mandado, ou seja, autorizar a si mesmo a entrada na casa do suspeito. Era comum, também, a prisão para averiguação. Policiais prendiam primeiro e informavam ao juiz depois. Era o equivalente à atual prisão temporária, só que sem ordem judicial, como é exigido agora.

Como ficou

O Artigo 5º da Constituição diz que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.




RACISMO

Como era

Conhecida como Lei Afonso Arinos, em homenagem ao ex-deputado federal mineiro autor da norma, a lei 1.390, de 1951, dava o grau de contravenção penal aos atos de preconceito racial, ou seja, não era considerado crime e estava no mesmo nível de punição, por exemplo, para o jogo do bicho. Em 1985, houve uma nova redação para a legislação, mas que manteve a discriminação racial como contravenção e a pena máxima para quem os cometia era de no máximo um ano de prisão.

Como ficou

A Constituição Federal tornou a prática do racismo crime inafiançável, sujeito à pena de reclusão. Para garantir a aplicabilidade desse dispositivo que se encontra no artigo 5º da Carta Magna, em 1997, foi promulgada a lei 9.459, que inclui o delito no Código Penal. Dessa forma, se a injúria cometida contra outra pessoa consistir na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia ou etnia, a pena é de um a três anos de prisão. Caso a ocorra o crime de divulgação de material ou símbolos nazista, seja por intermédio dos meios de comunicação social ou qualquer outro tipo de publicação, a pena pode chegar a cinco anos de reclusão.




SALÁRIO MÍNIMO PARA DEFICIENTES

Como era

Não havia benefícios para quem não contribuía com a Previdência. Se uma pessoa se tornasse deficiente física ou mental, a lei 6.179, de 1974, que criou a pensão mensal vitalícia lhe assegurava meio salário mínimo. Para se habilitar, era preciso ter sido filiado à Previdência Social por pelo menos um ano ou exercido atividade remunerada abrangida pela Previdência. O inválido também precisava provar que não tinha mais condições de exercer uma atividade remunerada, não era sustentado por ninguém nem mantinha outros meios para garantir sua sobrevivência.

Como ficou

A Constituição de 1988 criou o Benefício da Prestação Continuada (BPC) para deficientes físicos e mentais carentes. Pela primeira vez, era concedido um salário mínimo para pessoas que nunca haviam contribuído com a Previdência. Para se habilitar, é preciso ser incapacitado para o trabalho remunerado e ter renda familiar per capital inferior a um salário mínimo. Recentemente, uma mudança na regulamentação permite que mais de uma pessoa da mesma família recebam o BPC.


UNIÃO ESTÁVEL

Como era

Até a Constituição de 1988, só eram legalmente reconhecidas as uniões oriundas do casamento. As demais relações, sem comprovação legal, não tinham direitos, como, por exemplo, à herança ou à pensão alimentícia. A Justiça, no entanto, garantia a divisão do patrimônio amealhado durante a união desde que ambos tivessem contribuído diretamente para a aquisição de bens: os termos utilizados eram "concubinato" e "sociedade de fato". Esta concepção prejudicava especialmente as donas de casa que não tinham como comprovar sua participação para aumentar o patrimônio do casal e não tinham direito à divisão dos bens na separação.

Como ficou

A Constituição de 1988 ampliou a noção de família. O artigo 226 assegura proteção do Estado também para as entidades familiares formadas por união estável (um termo novo, na época) e por um pai ou uma mãe e seus filhos. Com alguma resistência, os processos de união estável foram migrando das varas cíveis para as varas de família. Na divisão dos bens adquiridos durante o relacionamento, não havia mais necessidade de provar a contribuição para construir o patrimônio. Em 1994, a Lei 8.971 estendeu o direito à pensão alimentícia e à herança, desde que comprovados cinco anos de vida em comum ou contanto que o casal tivesse filhos. Em 1996, a Lei 9.278, exigia apenas a comprovação de coexistência pública, garantindo praticamente os mesmos direitos do casamento, o que foi ratificado no Novo Código Civil de 2003. Somente com relação ao direito à herança é que o Código Civil acabou retrocedendo e deferindo menos direitos ao companheiro da união estável do que ao cônjuge.

Hoje, os casais que vivem em união estável têm a opção de fazer um contrato de convivência por escritura pública ou junto a advogados. Mas, com ou sem esta documentação, podem usufruir de direitos, como juntar o FGTS de ambos para comprar um imóvel ou indicar o(a) companheiro(a) como dependente na declaração do imposto de renda - o que pode ser viabilizado mediante comprovantes de residência comum, por exemplo. Em caso de separação, na falta de um contrato de convivência, será preciso provar quanto tempo durou a união - não é obrigatório que o casal more junto, mas será preciso justificar por que viviam uma união estável em casas separadas. Não há mais tempo determinado para caracterizar uma união estável, mas os juízes, em geral, compreendem pelo menos o período de um ano.


CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Como era

Antes de 1988, questões envolvendo crianças e adolescentes eram tratadas pelo Juizado de Menores. Os ''menores" como eram chamados, que, por desestruturação familiar, cometiam algum delito ou viviam em situação de risco, eram muitas vezes recolhidos a abrigos, sem avaliação profunda do contexto familiar e social.

Como ficou

Pela Constituição, crianças e adolescentes têm prioridade absoluta de direito à alimentação, educação, saúde e a todas as formas de proteção da família, do Estado e da sociedade. Essa prioridade foi especificada, ponto a ponto, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. O ECA deixa claro o que é questão infracional e o que é abandono. A questão social ganha relevância. Programas e projetos de acolhimento, antes assistencialistas, assumem o caráter de promoção da cidadania. Surgem as ONGs, os conselhos tutelares. Família, Estado e sociedade são obrigados a assumir responsabilidades.


FIM DA CENSURA

Como era

Uma série de leis e dispositivos diversos eram usados para estabelecer os critérios da censura prévia a programas de TV, jornais, e produtos culturais como filmes, livros, músicas e espetáculos de teatro. A lei nº 5.536, de 21 de novembro de 1968, criou o Conselho Nacional de Censura, que deveria determinar a censura dos programas por faixas etárias. A maioria dos vetos efetivados durante a ditadura militar, contudo, amparava-se em uma lei mais antiga, os 13 capítulos do Decreto 20.493/46: o regulamento do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), que regulava da censura prévia ao direito autoral e determinava, dentre outros assuntos, que nenhum filme poderia ser exibido ao público sem censura prévia e sem um certificado de aprovação fornecido pelo SCDP, com validade de cinco anos.

Como ficou

O artigo 5º Inciso IX da Constituição tornou a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação um direito individual fundamental, independentemente de licença ou censura. Mais adiante, o artigo 220 garantia a mesma manifestação de pensamento, criação, expressão e informação livre de restrições, e era ainda mais explícito em seu parágrafo 2º: "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". A Censura Federal foi extinta e seus agentes reaproveitados em outras funções na Polícia Federal, por determinação do artigo 23 das Disposições Transitórias.


VOTO DOS ANALFABETOS

Como era antes

Antes de 1988, os analfabetos eram impedidos de fazer alistamento eleitoral no Brasil. A definição de um conceito preciso de analfabetismo, porém, sempre foi um problema. A emenda constitucional de 1969, por exemplo, não permitia o voto do analfabeto. Em 1985, uma nova emenda constitucional de reformulou o conceito: estavam impedidos de votar aqueles que não soubesse "exprimir-se na língua nacional". Por conta da incerteza, surgiam interpretações diferentes dentro da Justiça Eleitoral. Em alguns momentos, por exemplo, o fato de a pessoa assinar o próprio nome seria como prova de alfabetização.

Como ficou

A Constituição reconheceu o voto dos analfabetos, até então impedidos de fazer alistamento eleitoral.


VAGAS PARA PORTADORES DE DEFICIÊNCIA

Como era

Não havia regulamentação.

Como ficou

O Artigo 37º estabeleceu a reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência. Os critérios foram definidos posteriormente.


DEMOCRACIA DIRETA

Como era

A Constituição de 1967 estabeleceu: "Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido". Não havia referência a representantes eleitos, muito menos à participação direta. O presidente da República, por exemplo, era escolhido pelo Congresso ou por uma Junta Militar.

Como ficou

Em parágrafo único, o Artigo 1º estabeleceu: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente".
A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular.


EMPREGADOS DOMÉSTICOS

Como era

Os empregados domésticos não dispunham de direitos trabalhistas. Como autônomos, no entanto, podiam se aposentar caso contribuíssem espontaneamente para a Previdência.

Como ficou

A Carta estendeu nove benefícios para os domésticos. O pacote é apenas parte dos direitos dos demais trabalhadores com carteira assinada:
- Salário mínimo
- Irredutibilidade salarial
- Décimo terceiro salário
- Descanso semanal remunerado
- Férias, com acréscimo de um terço no salário
- Licença maternidade e licença paternidade
- Aviso prévio de 30 dias em caso de demissão
- Aposentadoria


OBRIGATORIEDADE DE CONCURSOS PÚBLICOS

Como era

Havia brechas para ingresso no concurso público, não estavam claros os limites para nomeações de cargos de confiança.

Somente a primeira contratação deveria ser feita por concurso público. Uma vez contratado, o servidor podia ser promovido com concursos internos, sem a concorrência de candidatos de fora. As contratações temporárias não tinham limite de tempo definido. Não havia prazo para manutenção da lista de aprovados nos concursos públicos. Se o candidato preferido não ficasse entre os primeiros, o administrador poderia lançar uma nova prova.

Como ficou

As novas regras ajudaram a tornar o processo de seleção mais justo e transparente. Funções de confiança foram limitadas a cargos de chefia, direção e assessoramento. Para trocar de carreira dentro da administração pública, o servidor precisa fazer um novo concurso. Temporários podem ficar somente um ano no cargo. Depois, o órgão precisa abrir concurso. Concursos têm prazo de validade de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período.


CRIAÇÃO DO STJ

Como era

Antes da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) acumulava a análise das questões constitucionais e também das infraconstitucionais, como questões administrativas e de direito do consumidor. À época, o Supremo passava por uma crise, devido ao volume de processos.

Como ficou

Com o novo tribunal, o STF transformou-se em uma corte predominantemente constitucional, deixando para o STJ as demais causas da justiça comum. O STJ seria o órgão de cúpula da justiça comum, com a missão de uniformizar o entendimento sobre a legislação federal.


MUDANÇA NO PERFIL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Como era

Antes, pela Constituição Federal de 1967/69, o Ministério Público era apenas referido, no capítulo do Poder Executivo, e suas funções não eram previstas - apenas se remetia a uma lei que poderia ser modificada a qualquer momento. Sua atuação se concentrava na área criminal.

Como ficou

A instituição passou a defender interesses difusos e coletivos - meio ambiente, patrimônio cultural, direito do consumidor, entre outros, e a lutar em favor da constitucionalidade e do controle da probidade administrativa. Deixou de ser vinculada ao Poder Executivo,  adquirindo status de uma instituição ao lado dos demais poderes do Estado, e com garantias fundamentais para fiscalizar esses mesmos poderes.

Do Estado do Bem-Estar ao Estado Mínimo




Estudo da Unicamp traça trajetória da política social brasileira de1964 a 2002

A Constituição brasileira de 1988 nasceu cercada de grande expectativa. No papel, o documento previa grandes avanços sociais para a população como a viabilização de reformas progressistas, entre as quais a da previdência social, saúde e educação. Na prática, no entanto, essas mudanças não se consolidaram desde então. Um estudo realizado pelo economista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ajuda a entender os motivos ao analisar a trajetória da política social brasileira entre 1964 e 2002.

Para a pesquisa que realizou em seu doutorado, Fagnani teve como ponto de partida a identificação do quadro geral de carências estruturais existentes no Brasil e atuação do Estado em cada setor durante os últimos quarenta anos. Segundo o economista, esse período foi marcado pelo embate de dois movimentos opostos. Enquanto o primeiro defendia uma agenda social, com as bases institucionais e financeiras – características do chamado Estado de bem-estar social –, o outro gerava uma série de reações a essas propostas.

Este primeiro grupo ganhou força a partir dos meados dos anos 1970, ao criticar a política autocrática dos militares, principalmente na área social. Para o pesquisador, o regime militar foi marcado por uma modernização conservadora: embora tenham sido criados novos mecanismos financeiros e institucionais que ampliaram a oferta de bens e serviços, essa modernização voltou-se especialmente para as classes médias e ricas, o que deixou as camadas mais pobres da sociedade de fora.

A luta por uma agenda de reformas progressista e redistributiva, ou seja, mais social, culminou na Constituição de 1988. “Desenhou-se, pela primeira vez na história do Brasil, o embrião de um efetivo Estado de bem-estar social, universal e equânime”, ressalta Fagnani. Ao mesmo tempo, ele afirma que a constituição é um instrumento frágil porque só define os princípios gerais. “É num momento hostil da política nacional que acontece a regulamentação constitucional e, portanto, as leis são desfiguradas pelos conservadores.”

Para o economista, as contramarchas receberam força a partir do governo Sarney, que de certa forma procurou esterilizar o projeto reformista, ao minar as iniciativas implementadas pelo executivo federal (1985-1986). Após outubro de 1988, as contramarchas visavam desfigurar ou retardar a vigência dos novos direitos constitucionais. “Os casos mais paradigmáticos foram a reforma agrária, com o fim deste ministério em 1989, e as políticas federais urbanas (habitação, saneamento e transporte público)”, diz o pesquisador. “Mas essa contramarcha também atingiu os setores da saúde, previdência social e educação, seguro-desemprego e suplementação alimentar.”

Com o esgotamento do Estado nacional desenvolvimentista no plano internacional, passou a prevalecer a ideologia neoliberal. A partir daí, países subdesenvolvidos com industrialização tardia, como Brasil, sofreram pressão dos países globalizados para conterem gastos em programas sociais. É justamente neste cenário que o então presidente Fernando Collor põe em prática que se segue até o fim do governo FHC.

O modelo de macroeconomia vigente no mundo passa a determinar as regras do jogo. “Se a Constituição de 1988 enaltece o Estado do bem-estar social, a agenda neoliberal defende o Estado mínimo. Ao invés dos direitos trabalhistas e políticas universais, mais flexibilidade do mercado e políticas focalizadas. Por fim, ao invés dos direitos sociais, um governo mais assistencialista”, completa o economista. “Portanto, o que seria uma ‘constituição cidadã’, segundo Ulysses Guimarães, torna-se uma ‘constituição vilã.’“

Apesar de a pesquisa não incluir o governo Lula, o cientista afirma que essa política assistencialista continua por meio de projetos sociais como Bolsa-Família e Bolsa-Escola e adquire maior expressão. “Esses projetos são fundamentais, mas não podem ser confundidos com a estratégia de enfrentamento da questão social, como pregam os conservadores”. Ao contrário, ela não pode prescindir de políticas universais.  Outra condição necessária é o crescimento econômico e a criação de emprego”, afirma Fagnani.

O economista alerta para os riscos da atual tentativa da área econômica do governo de produzir “déficit nominal zero”. Essa estratégia, segundo ele, se fundamenta no congelamento dos gastos governamentais com previdência social, saúde, educação, seguro-desemprego etc. ”Essa nova investida poderá implicar o início de uma nova etapa de desmonte do que ainda restou do projeto de Estado de bem-estar social conquistado em 1988”, adverte.

Com essas ações estatais somadas ao poder inacreditável que instituições financeiras internacionais continuam detendo sobre o país e ao conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas, Fagnani é categórico: “levam-nos a considerar crível um cenário em que a caridade volta a ser um traço marcante do sistema de proteção social no Brasil”. Diante da desconstrução do Estado social, o economista completa: “vivemos hoje mais um desdobramento de uma mesma velha história de arraigados privilégios.”



Mário Cesar Filho

sábado, 26 de novembro de 2016

Política e Constituição: mandatos para juízes de cortes constitucionais


O segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff se iniciou com a promulgação da “PEC da bengala”, emenda constitucional que, ao ampliar a idade de aposentadoria compulsória, pôs fim a expectativa de que ela nomeasse, até o fim de seu governo, mais cinco ministros do Supremo Tribunal Federal – inclusive dois dos últimos três que não foram nomeados por um presidente do PT.

Diante do impeachment, já se especula sobre a possibilidade de, apesar da postergação da aposentadoria compulsória desses ministros para depois do fim de seu mandato, algum dos atuais ministros se aposente voluntariamente, possibilitando a nomeação de um ou mais ministros pelo PMDB, que atualmente domina também a Câmara e o Senado.

O último ano do governo Barack Obama foi marcado pela morte súbita de Antonin Scalia e, consequentemente, a surpreendente possibilidade de, ao nomear um sucessor para sua vaga na Suprema Corte, garantir uma maioria de juízes liberais (nomeados por presidentes do Partido Democrata). Possibilidade obstruída pela maioria Republicana no Senado, que se recusou a sequer sabatinar e votar a nomeação de Merrick Garland, candidato indicado por Obama em março de 2016.

Com eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, antes mesmo do início de seu mandato, já se especula sobre quem ele nomeará para a vaga ainda aberta de Scalia, bem como sobre que outras vagas poderão se abrir durante o seu governo, considerando a idade avançada de alguns dos juízes liberais e o fato de o Partido Republicano controlar a Presidência, a Câmara e o Senado.

A centralidade desse tema para campanhas eleitorais, mandatos presidenciais e para a vida política dessas duas democracias constitucionais chama a atenção. Sua importância é produto, simultaneamente, do sucesso e de fracassos do direito constitucional e, por isso, requer maior reflexão.

A Constituição é produto da política. Ela estrutura a política e a política é capaz de influenciar o significado de normas constitucionais. Portanto, não surpreende que a briga pelo controle do seu significado seja uma disputa política fundamental. No entanto, o desenho específico da jurisdição constitucional, especialmente dos poderes, duração dos mandatos e forma de nomeação dos juízes de tribunais constitucionais, pode aumentar ou diminuir a sua influência e a radicalização política em torno de sua escolha.

Dependendo de certos fatores, o direito constitucional, ao estruturar os contornos do debate político pode diminuir a radicalização da política ou limitar a radicalização a certos pontos – enquanto mantém outros fora de debate. No entanto, sob certas condições, pode ocorrer o contrário: haver consenso sobre boa parte da política, mas uma disputa fundamental sobre a permanência ou sobre o significado de um dos pilares de uma ordem constitucional. Isso pode ocorrer em período de calmaria sobre outras questões políticas e econômicas e, nesse caso, o debate político pode ser dominado por esse conflito constitucional. Mas isso também pode ocorrer em períodos de intenso debate sobre questões não constitucionais, situação em que, a mistura do debate político constitucional com o debate político infraconstitucional pode impedir que a Constituição faça uma de suas funções: domesticar a disputa política.  

Funções Constitucionais

Constituições podem fazer muitas coisas, mas, independentemente das múltiplas escolhas individuais que podem ser feitas pelos constituintes, de maneira geral, constitucionalizar uma decisão política significa retirar essa questão do debate legislativo normal e, com isso, da política eleitoral ordinária.

O que isso implica na prática?

Em um sistema em que alterar o texto da constituição exige uma supermaioria, tudo aquilo que foi constitucionalizado está, até certo ponto, imune de decisões tomadas por maiorias políticas, tanto aquelas existentes no eleitorado como, em sistemas não perfeitamente proporcionais, aquelas existentes no legislativo.

Essa é, de certa maneira, a função primordial de uma Constituição.

Afinal, ao se estruturar o espaço de conflito político, a primeira garantia que deve ser assegurada é a de que as regras estabelecidas para essa disputa não serão simplesmente alteradas em benefício próprio por quem quer que tenha vencido a última eleição.

Garantir o poder de uma minoria bloquear alterações nas regras eleitorais é garantir que, perdendo ou ganhando uma eleição, a não ser que mudanças sejam em benefícios de todos, a próxima disputa se dará pelas mesmas regras.

Nesse sentido, a Constituição, por definição, protege minorias políticas ao garantir a estabilidade da disputa eleitoral.

No entanto, normalmente, Constituições não regulam apenas o jogo eleitoral. Fazem mais. Dão essa mesma garantia supermajoritária a outras escolhas políticas substantivas que tenham sido constitucionalizadas. Ou seja, garantem esse poder de veto de uma minoria política, não só em relação a mudanças das regras do jogo, mas também em relação a mudanças quanto a algumas – por vezes, muitas – escolhas políticas substantivas.

Note-se que, nesse sentido, não há nenhum julgamento de valor sobre os méritos ou deméritos dos interesses dessas minorias. “Minorias” podem ser ou não ser grupos tradicionalmente oprimidos em uma sociedade. Nesse sentido, a proteção pode ser ou não ser em benefício da sociedade como um todo e dos grupos mais desfavorecidos econômica e socialmente. Ao garantir o statu quo, o poder de veto de uma minoria pode impedir transformações radicais de uma sociedade para o bem ou para o mal.

Uma cláusula pode garantir um direito fundamental a uma minoria oprimida, mas pode também garantir um privilégio a uma minoria opressora. Em qualquer caso, a garantia impede que uma mera vitória eleitoral. Mesmo uma maioria eleitoral que tenha garantido o domínio de um mesmo projeto político sobre a Presidência, a Câmara e o Senado (em um sistema presidencialista bicameral, em que esse feito já é naturalmente mais difícil) pode ser incapaz de alterar o texto da Constituição, ou transformar radicalmente a sua interpretação por meio do judiciário.

Muitas vezes, esse pode parecer um custo muito alto a pagar. Especialmente para aqueles que acreditam em um projeto político transformador que traria grande benefício para a sociedade. Mas esse é o preço que se paga para que cada eleição não seja uma disputa de vida ou morte. Para que, ao retirar certas coisas do controle de uma maioria eleitoral, seja possível admitir uma derrota com a tranquilidade de que certas instituições e garantias são estáveis o suficiente para que se viva normalmente sob um governo com o qual se discorde (mesmo que, radicalmente), enquanto se prepara para disputar as próximas eleições.

Mais concretamente, são essas garantias que permitem que os proprietários dos meios de produção não peguem em armas ou abandonem o país diante de uma vitória de um partido comunista em uma democracia constitucional que proíba a expropriação, bem como que minorias étnicas, religiosas, sexuais ou nacionais não temam por sua vida e segurança, pegando em armas ou abandonando o país, diante de uma vitória de uma partido de direita radical, em uma democracia constitucional que lhes garanta certos direitos fundamentais.

Mais concretamente ainda, é essa função Constitucional que permite que cidadãos americanos potencialmente afetados por algumas das medidas radicais anunciadas por Donald Trump em sua campanha presidencial tenham fé de que as instituições os protegerão.

Mas, há um outro lado dessa moeda:

São também essas garantias que permitem que certos eleitores Republicanos que rejeitam completamente algumas dessas mesmas medidas radicais, confiantes na sua impossibilidade constitucional, tenham votado em Trump para a presidência.

Ou seja, para o bem e para o mal, essa fé nas instituições constitucionais, protege minorias diante da eleição de um governo radical, mas também permite que, em certa medida, em vista da possibilidade do “voto múltiplo” (que explico em seguida), eleitores não radicalizados votem em um partido e coloquem no poder um governo defensor de posições radicais, mesmo sem concordar especificamente com elas.

Há aí um grande perigo: de que mesmo sem uma maioria substantiva nesse sentido, certas opções de desenho constitucional permitam que um governo eleito sem um mandato efetivo para mudar os pilares fundamentais da ordem constitucional seja capaz de, direta ou indiretamente, fazer exatamente isso.

Discutir tais opções de desenho constitucional é fundamental, e é esse o objetivo final deste artigo.

No entanto, antes disso, é preciso ter claro o que se entende por “voto múltiplo”, bem como debater a possibilidade de que um governo seja de fato eleito para mudar os pilares da ordem constitucional.

Passo agora a esses dois pontos.

Voto Múltiplo

O que eu chamo de “voto múltiplo” é basicamente o seguinte: votar em um candidato é votar em muitas coisas ao mesmo tempo. Isso parece óbvio, no entanto, o fato de que, normalmente, o eleitor não concorda com todas as opções defendidas pelo “seu” candidato, mas o elege mesmo assim, merece destaque.

Isso pode ocorrer em maior ou menor grau dependendo do sistema eleitoral. Um sistema proporcional não distrital – ou com distritos muito grandes – pode minimizar esse fenômeno. Um sistema majoritário distrital em que o normal é ter apenas dois, ou no máximo três, candidatos competitivos para escolher, maximiza esse fenômeno.

Em qualquer caso, é possível que o eleitor tenha que votar em um candidato de quem discorde em alguns pontos, mesmo que a discordância seja intensa, e mesmo que ela seja sobre um ponto fundamental para esse mesmo eleitor.

Em certa medida, o que acabei de descrever é apenas o fato de que qualquer eleição se resume, por definição, a uma questão de escolha. Assim, diante de algumas opções, é natural que o eleitor, ao escolher, decida quais são suas prioridades, dando mais valor a uma questão do que a outra.

Mas, normal ou não, há aí um risco inerente ao sistema. Que, somando se as escolhas individuais, seja formada uma bancada com posição majoritária sobre um tema sem que, no entanto, haja apoio a ele pela maioria dos eleitores.

Um exemplo pode tornar o tema mais claro.

Imaginemos dois candidatos. O candidato A é um religioso, que se opõe a pena de morte e a diversas demandas do movimento feminista. O candidato B é um feminista, particularmente preocupado com violência contra a mulher e que defende a pena de morte para estupradores.

Como um feminista radicalmente contrário a pena de morte escolheria? Como um conservador radicalmente favorável a pena de morte escolheria? O risco está em que o primeiro, sem querer, eleja uma maioria favorável a pena de morte.

O risco é que o segundo, sem querer, eleja uma maioria radicalmente contraria a pena de morte.

Mas essas escolhas não se dão em um vácuo institucional. Eleger candidatos assim em um sistema sem uma Constituição rígida é muito diferente de o fazer em um sistema em que ela exista e, além do mais, seguindo ainda este exemplo, tenha algo substantivo a dizer sobre a pena de morte.

Talvez a Constituição já preveja a pena de morte necessariamente para alguns casos. Talvez a Constituição já a proíba terminantemente para qualquer caso. Talvez isso decorra do texto inequívoco da Constituição. Talvez isso decorra da interpretação de cláusulas abertas e princípios da Constituição. Em qualquer desses casos, a existência de uma norma constitucional que regule a questão muda completamente a situação.

Nesse caso, é possível votar em um candidato de quem se discorde completamente em alguma questão, porque se concorda profundamente com ele em outra, não simplesmente por um desses temas ser mais importante para si em abstrato, mas sabendo, em concreto, que o outro não está em jogo no momento, porque requereria uma transformação constitucional que não tem chances de acontecer naquele momento.

É esse tipo de garantia, ou melhor, de fé na efetividade de uma garantia constitucional, que permite não só que um membro de uma minoria potencialmente afetada diretamente por políticas radicais defendidas por Trump durma tranquilo (mesmo que decepcionado) com a sua vitória. É esse tipo de garantia que também permite que alguém que discorde totalmente de Trump em diversos temas, inclusive esses, possa votar nele, movido, por exemplo, puramente por estar frustrado com a política econômica Democrata e imaginando que as outras medidas, proibidas que são pela Constituição, não estão realmente em questão. 

No entanto, esse exemplo se complica quando as próprias permissões e proibições constitucionais parecem estar em jogo. Ou seja, quando além de eleitores votando por suas preferências infraconstitucionais, seguros da estabilidade de certas garantias constitucionais, há outros fazendo exatamente o oposto, votando com o objetivo de transformar certos pilares da Constituição, sem dar prioridade às preferências infraconstitucionais que possam estar em jogo numa determina eleição.

Ou seja: se o voto de alguns parte da premissa de que há certas áreas imutáveis, o de outros é orientado justamente pela insatisfação com essas áreas e a esperança de mudá-las.

Isso pode ocorrer, por exemplo, porque uma proposta de mudança constitucional está explicitamente em debate durante a eleição. Nesse caso, o eleitor tem que considerar suas preferências levando em conta a possibilidade da própria Constituição ser emendada. Assim, além de suas prioridades políticas específicas, e da existência de garantias constitucionais que imunizem algumas escolhas do poder de simples maioria, deverá considera a probabilidade de aprovação de uma emenda constitucional sobre um determinado tema. Algo que depende de uma análise política sobre o tamanho do apoio para essa medida, mas também de uma análise institucional sobre quão fácil – ou difícil – é o procedimento para se emendar o texto constitucional.

Essa situação é mais simples porque o debate político é explicito, mas também porque as regras do jogo e os riscos são claros para todos os envolvidos.

No entanto, nem só por meio de emendas se muda uma Constituição.

Uma outra forma de o fazer é alterando o seu significado – sem alterar o seu texto – por meio na nomeação para Tribunais Constitucionais de juízes que compartilhem da sua visão sobre a melhor interpretação do texto constitucional.

Nesse tipo de situação, votar para um presidente e / ou para um representante no legislativo pode ser também votar para um tipo de juiz constitucional e, com isso, votar pela mudança da própria Constituição.

Juízes Eleitos

Quando a própria interpretação constitucional se torna um tema central da política, e a possibilidade de mudar o seu significado por meio da nomeação de juízes comprometidos com uma visão transformadora do seu significado é uma possibilidade real, a capacidade de o direito constitucional garantir a estabilidade de certas decisões, independentemente do confronto eleitoral, pode ser profundamente fragilizada.

Na melhor das hipóteses, esse debate será feito às claras, e o desenho institucional garantirá que a mudança ocorrerá apenas se o governo eleito tiver o mesmo tipo de apoio substancial que uma emenda constitucional demandaria.

No entanto, nem sempre é assim. Por vezes, a falta de previsibilidade no sistema de indicações e o desenho seu institucional específico podem fazer com que um governo seja capaz de gerar mudanças substantivas, difíceis de serem revertidas por maiorias políticas subsequentes, sobre temas constitucionais fundamentais, sem que isso tenha sido adequadamente discutido durante a campanha eleitoral ou, mesmo que tenha sido, sem que os riscos de seu real acontecimento estivessem claros no momento da eleição.

O encontro do voto múltiplo, com a possibilidade de transformação constitucional por meio da nomeação de juízes, com um desenho institucional que permita a imprevisibilidade do momento e da duração dessa mudança cria uma situação particularmente preocupante.

Por isso, é fundamental discutir a contribuição de soluções de desenho constitucional para evitar, ou ao menos minimizar, esse problema.

Desenho Constitucional

Diferentes opções de desenho constitucional podem afetar profundamente a possibilidade uma vitória eleitoral majoritária significar também uma grande transformação constitucional.

Duas merecem destaque: (i) o processo para nomeação de juízes constitucionais, (ii) a existência de mandatos que permitam (a) previsibilidade quanto ao tamanho da possível transformação na composição do tribunal a cada ciclo eleitoral e (b) o tamanho da influência de uma única nomeação na composição do tribunal no decorrer do tempo.

Quanto à primeira, um processo em que o presidente nomeia e uma maioria simples do Senado confirma (como é o caso nos Estados Unidos e no Brasil) é particularmente permeável a influência de maiorias políticas ocasionais.

Nesse tipo de sistema, em que aquele que ganhou uma eleição presidencial majoritária tem completa liberdade de nomear quem quiser, e para impedir essa nomeação, não importa quão transformador o seu potencial, seja necessária uma maioria dos senadores, a influência constitucional de um presidente é particularmente acentuada.

Quanto à segunda, sistemas em que não há mandatos para juízes constitucionais (como é o caso nos Estados Unidos e no Brasil) e, portanto, não há qualquer previsibilidade sobre quantos juízes cada presidente poderá nomear, pois depende apenas da eventualidade da morte ou aposentadoria de um deles, a potencial influência constitucional de um único presidente se potencializa significativamente.

Isso se daria tanto quanto ao tamanho da transformação que pode ser realizada em um único mandato presidencial, quanto em relação à duração dessa influência pela possibilidade de cada um de seus nomeados permanecer no tribunal por tempo indeterminado.

É claro que, independentemente de mandatos, a eventualidade da morte ou de uma exoneração voluntária estaria sempre presente, no entanto, regras sobre o que fazer nessas hipóteses poderiam minimizar o impacto desse tipo de eventualidade.

Quanto ao sistema brasileiro, é importante notar que a aposentadoria compulsória dá uma previsibilidade mínima ao sistema (não deixando a abertura de vagas simplesmente nas mãos da imprevisibilidade da morte ou da decisão pessoal de um juiz negar, ou possibilitar, a nomeação de seu substituto a um determinado presidente), mas ela afeta pouco a segunda questão (da influência desproporcional de um juiz ou de outro conforme a sua idade no momento da nomeação) e, consequentemente, da influência desproporcional e aleatória de um presidente ou de outro, conforme mais ou menos ministros façam setenta e cinco anos no decorrer do seu mandato.

A somatória de (i) a possibilidade de um presidente com uma maioria simples do Senado nomear quem quiser para o tribunal e (ii) a ausência de mandatos que tornem o número e influência de cada uma dessas nomeações previsíveis e igualmente distribuídas entre todos os presidentes eleitos é, portanto, particularmente problemática.

Essa combinação gera um risco irrazoável para a estabilidade constitucional que, de duas uma, ou é despercebida pelo eleitor médio, que pode ser surpreendido por uma grande transformação constitucional ser produto de uma única eleição, ou é percebida pelo eleitor médio, tematizada na campanha, tornando toda eleição numa potencial disputa pelos pilares fundamentais da ordem constitucional.

No primeiro caso, o risco é uma transformação independentemente do apoio de uma efetiva maioria. Nessa hipótese, o sistema não protege significativamente maiorias de decisões radicais por parte de seus governantes.

No segundo, o risco é uma transformação permanente como consequência de uma única vitória eleitoral por uma simples maioria. Nessa hipótese, o direito constitucional perde o poder de estabilizar o debate político sobre certos temas constitucionais, seja por retirá-lo da discussão, seja por tornar as chances e os riscos de sua transformação claros o suficiente para que nem toda eleição seja necessariamente um plebiscito sobre pilares fundamentais da ordem constitucional.

Em qualquer dos casos, o risco é grande e os problemas substanciais.

Não há dúvida de que o significado e a permanência de compromissos constitucionais devem ser permeáveis à política. No entanto, a sua potencial transformação não pode depender simplesmente da sorte ou do azar.

Um sistema em que simples maiorias políticas podem transformar a Constituição por meio da nomeação de juízes constitucionais pode ser defensável em nome de uma maior permeabilidade do direito constitucional à política. No entanto, um sistema em que maiorias políticas têm maior ou menor influência nesse processo a depender do acaso da morte ou das escolhas pessoais de juízes é particularmente difícil de se justificar.

Nesse sentido, mandatos fixos para juízes constitucionais, que permitam que cada presidente tenha uma influência garantida, mas moderada, a cada eleição, não é simplesmente a escolha mais justa. É também uma opção por um modelo capaz de gerar maior estabilidade política para uma democracia constitucional, permitindo que o direito constitucional realize uma de suas funções fundamentais: domesticar a disputa política.


Thomaz H. Junqueira de A. Pereira é professor da FGV Direito Rio, doutorando e mestre em Direito pela Yale Law School; mestre em Direito Empresarial pela PUC-SP; mestre em Direito Processual Civil e bacharel em Direito pela USP.