"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Por que o Brasil não se desenvolve?



Eis a resposta (e como você pode mudar isso)

No Brasil, segundo o Dieese, o salário-mínimo necessário à reprodução normal da força de trabalho seria de R$ 4.016,27. Contudo, 85% dos trabalhadores ganha menos ou muito menos do que isso. E por que isso acontece? Porque num país dependente como o Brasil, o normal para os trabalhadores é a superexploração da força de trabalho. E o que seria a tal superexploração da força de trabalho? 

Simples: todo trabalhador, segundo as regras do sistema, deveria poder vender sua força de trabalho pelo preço necessário a sua própria reprodução normal, ou seja, o trabalhador poderia ser capaz de vender sua força de trabalho pelo mínimo necessário à sua própria sobrevivência biológica e social. O que uma pessoa numa determinada região do mundo precisa para ter uma vida normal, tanto biologicamente quanto socialmente? Precisa de celular? Está acostumado a comer que tipo de comida? 

Precisa de qual tipo de atendimento médico? Precisa pagar pela educação? São essas perguntas que devem ser feitas para se descobrir o que um trabalhador sob condições normais precisa para reproduzir sua vida de forma normal. Infelizmente, no Brasil, isso não acontece. O trabalhador médio geralmente ganha muito menos do que precisa para sua vida diária. O que acontece no Brasil, para 80% da população, é a superexploração da força de trabalho exatamente porque não ganha o suficiente para reproduzir sua vida diária de maneira normal.

Para a chamada classe média tradicional – aquela que sai às ruas de cara pintada de verde e amarelo, mas queria mesmo é viver em Miami – isso é ótimo, pois pode contratar gente desesperada para fazer serviços que ela mesma nunca faria por um salário que ela mesma nunca aceitaria. Porque o sistema funciona assim: se você não aceita fazer um trabalho indigno por um salário mais indigno ainda, o chamam de vagabundo – e antes que os apologistas do “bom-mocismo” venham dizer que não existe trabalho indigno, gostaria de convidá-los a limpar a privada alheia por 700 reais mensais.


“O segundo pilar do Plano Real é a superexploração dos trabalhadores, agora devidamente ocultada pela ideologia da emergência da “nova classe média” e as “teorias” do “precariado”, entre outras. A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República divulgou há poucas semanas a metodologia que terminou por criar uma poderosa classe média em nosso país. Agora, a classe média alta está definida pela renda per capita entre R$ 741 e R$ 1.019! Não é um luxo?” (OURIQUES, 2014)

Claro que quem se dá bem com isso é a parte do país que se encontra entre os 15% do andar de cima, pois podem desfrutar de serviços mais baratos por conta dos salários menores. Uma das causas da revolta da classe média com camiseta da CBF contra o governo anterior foi exatamente por conta do crescimento dos salários da “ralé”. Com salários maiores e mais direitos, os trabalhadores do andar de baixo pararam de aceitar qualquer serviço por qualquer valor. E isso irritou a classe média tradicional admiradora dos Estados Unidos – que disfarçam seu ódio ao pobre com conversa sobre “liberalismo” e combate à corrupção.

Mas mesmo no governo do PT, a maioria esmagadora da população continuou ganhando menos do que o necessário à sua reprodução normal. Por isso o programa Bolsa Família foi colocado em prática. Foi uma forma de melhorar a vida das pessoas mais pobres sem precisar exigir dos mais ricos uma melhora significativa dos salários. No entanto, o capitalismo nacional de qualquer região mais desenvolvida só funciona com bons salários, pois bons salários permitem um aumento do consumo o que estimula os investimentos em meios de produção, tornando assim as mercadorias mais baratas.

Salário Alto ⇒ Mais Consumo ⇒ Maiores Poderes de Capitalização pelas Empresas ⇒ Mais Investimentos em Máquinas e Tecnologia Produtiva ⇒ Mercadorias Mais Baratas.

Infelizmente, a elite brasileira está pouco se importando para o desenvolvimento do país. Se diz a defensora do capitalismo, mas não se interessa pelo estímulo ao funcionamento do capitalismo nacional. Na verdade, essa elite se opôs com todas as forças à industrialização e modernização do Brasil durante a República. Por essa razão, a modernização econômica teve de ser feita à força por Getúlio Vargas.

Lembremos. Quando a república brasileira foi proclamada, havia basicamente duas facções lutando entre si, tentando impor seu projeto de nação: as elites agrícolas, principalmente do Sudeste, defensoras do liberalismo econômico e da continuidade do Brasil como mero exportador de matérias-primas, principalmente o café. Essa elite fundiária liberal era basicamente um reflexo da elite fundiária liberal e escravista do Sul dos Estados Unidos, que perdeu a guerra civil em 1865. Basicamente, na história das Américas, o liberalismo econômico esteve associado à escravidão e ao atraso econômico. Sorte do EUA que esses liberais escravistas foram derrotados na guerra, pois, caso contrário, seria tão pobre quanto qualquer país latino-americano.

Havia, por outro lado, um projeto político defendido pelos positivistas cujo objetivo era a modernização econômica e social do Brasil. Esse projeto era defensor do protecionismo econômico e do estímulo do Estado à industrialização e à modernização da nação. Assim como as elites do Norte dos EUA que ganharam a guerra, esse projeto de modernização do Brasil desejava criar um mercado consumidor interno por meio da proteção da economia e da melhora do poder de consumo dos trabalhadores. O projeto desse grupo nacionalista inimigo dos latifundiários liberais era o de construir um governo centralizado, o qual pudesse estimular a modernização econômica, a alfabetização das massas populares, reformas sociais e proteção aos trabalhadores. O Estado deveria ser o estimulador do nacionalismo e servir como mediador dos conflitos sociais, protegendo as indústrias e os trabalhadores, mas também combatendo os “subversivos”.

Havia também um terceiro grupo, o grupo radical, que defendia reformas sociais ainda mais profundas do que os protecionistas, como grande distribuição de renda e forte engajamento das massas na vida política. Porém, esse grupo não tinha forças dentro do cenário político da República Velha.

Então, basicamente, tínhamos dois projetos de Brasil em disputa: 

1) aquele que defendia liberalismo econômico e a continuidade do Brasil como mero exportador de matérias-primas, herdeiro do escravismo e representado principalmente pelos paulistas; 

2) aquele que defendia um papel ativo do Estado na modernização econômica da nação, com estímulo à indústria e proteção aos trabalhadores.

Ao contrário dos EUA, onde o projeto desenvolvimentista foi o vitorioso, no Brasil o projeto dos paulistas liberais e defensores do latifúndio e do atraso econômico foi o que dominou a vida nacional até a subida de Vargas ao poder. Contudo, Vargas não fez a reforma mais importante para criar um mercado consumidor interno forte: a reforma agrária. Com a guerra civil de 1932, em que os paulistas liberais e defensores do atraso econômico se revoltaram contra a perda do poder político, Vargas foi obrigado a ceder aos revoltosos e não fazer a reforma agrária. Quer dizer, ao contrário de outro modernizador econômico, Abraham Lincoln, Vargas não ousou se opor aos latifundiários defensores do atraso e do liberalismo econômico, representados à época pela UDN e hoje principalmente representados pelos partidos DEM (antigo PFL, o qual sucedeu a Arena) e NOVO (o qual, pelo que vimos,  de “novo” só tem o nome).

Apesar dos esforços de Vargas, com a abertura econômica promovida por Collor e o projeto Real de FHC, o Brasil novamente se encaminha a se tornar um mero exportador de matérias-primas e produtos processados de baixo valor. E, como todos sabemos, o capitalismo funciona por meio da concorrência. Entretanto, as indústrias brasileiras nunca conseguiram atingir um nível técnico necessário à competição contra as fortes economias dos EUA, Japão e Alemanha. 

Ao abrir o mercado na década de 90, Collor condenou a indústria nacional. Dessa forma, condenou toda uma cadeia produtiva, a qual gerava empregos, melhores salários e estimulava a criação de serviços mais complexos. Segundo a FIESP, tanto a produção de manufaturados quanto a produtividade da indústria de transformação brasileira, caíram pela metade desde a década de 90. O Brasil, que já teve 22% do seu PIB oriundo da indústria de transformação (a que vale) hoje tem menos de 10% do PIB oriundo dessa indústria.

Outro golpe fatal à indústria nacional veio com o Plano Real. Ao artificialmente tornar o Real tão valioso quanto o Dólar, FHC destruiu ainda mais as indústrias do Brasil. Mas por que artificialmente? Porque país com fraca produtividade industrial não pode ter moeda forte, simples. Ao contrário do que neoclássicos pensam, o dinheiro não é apenas um instrumento neutro para facilitar as trocas. O dinheiro tem de representar produtividade real, poder de produção de mercadorias real. E por que isso? Porque o dinheiro é uma dívida e esta só pode ser paga com criação de valor, a qual vem da produção de mercadorias. Por isso as três únicas moedas conversíveis do mundo são as moedas das três potências industriais de alta produção de valor agregado: EUA – Dólar, Japão – Yene, Alemanha – Euro.


“O terceiro pilar do Plano Real é o reforço do país numa posição adversa na divisão internacional do trabalho, ou seja, como mero exportador de produtos agrícolas e minerais. 

Esse processo aparece sob a forma de uma denúncia genérica contra a “desindustrialização”, cuja solução poderia ser – como indicam os tucanos – a redução ainda mais radical dos custos industriais via abertura industrial mais profunda destinada a importar peças, máquinas e equipamentos de países como a China. 

O governo descarta o nacionalismo econômico (política industrial) na pretensão de que com renúncia fiscal destinada a manter o consumo de geladeiras ou carros fosse possível constituir um projeto nacional e manter o pacto entre o capital transnacional e as frações perdedoras do agonizante capital nacional.” (Ouriques, 2014)

País industrialmente fraco que tenta usar moeda forte não se dá muito bem. Por exemplo, a utilização do Euro aumentou o poder de consumo de espanhóis e portugueses. Mas ao mesmo tempo fez o que o Real fez ao Brasil: aumentou o endividamento desses países. Com moeda forte, espanhóis e portugueses priorizaram as importações, principalmente da Alemanha, o que foi fatal para sua produtividade industrial. Ao priorizar as importações, um país precisa criar valor para pagar essas importações, e como fazer isso se sua indústria é fraca? Se endividando, pegando crédito de banqueiro privado. Hoje a posição de investimento internacional [créditos externos] – [dívidas externas] da Espanha é de 95% negativos. A de Portugal é de 111% negativos. Já a da Alemanha é de 40% positivos, da Suíça 120% positivos, da Holanda 65% positivos e a do Japão 75% positivos. A exceção entre os países de alta produtividade, por conta de diversos fatores, como gastos militares e diminuição considerável da proporção da indústria transformadora no PIB, são os EUA, com 40% negativos.

E por que isso? Porque são países com alta produtividade industrial, a qual permite a utilização de moeda forte. Por isso o Sul da Europa se deteriorou com o Euro (a Itália, por exemplo, perdeu 5% de sua produtividade dos fatores desde o começo dos anos 2000 enquanto a Alemanha viu sua produtividade crescer 10%), enquanto o Norte da Europa se fortaleceu. Dinheiro forte só com alta produtividade industrial, alta produtividade na produção de mercadorias, pois a dívida representada pela moeda deve estar lastreada em produção de mercadorias. País sem isso não pode se meter a usar moeda forte. A única salvação do Sul da Europa é se separar do Norte e criar uma moeda única que represente sua fraqueza industrial.


“O Plano Real, o pacto de classe que paralisa o Brasil, sustenta-se sobre três pilares. O primeiro deles – tanto na fase da estabilização (FHC) quanto na do suposto crescimento (Lula/Dilma) – é o gigantismo do endividamento estatal (interno e externo). 

Em junho de 1994, a dívida interna não superava R$ 64 bilhões e FHC concluiu seu segundo governo com R$ 700 bilhões. Lula não ficou atrás: após oito anos, a dívida interna alcançou R$ 1,5 trilhão e Dilma tampouco vacilou em superar os R$ 3 trilhões. 

Na mesma direção, o endividamento privado externo voltou a crescer e contribui de maneira direta para manter o automatismo da dívida segundo o qual quanto mais o país “paga”, mais a dívida cresce! A consequência necessária dessa opção é que em nenhum ano o Estado brasileiro destinou menos de 44% do orçamento para o pagamento dos juros e dividendos da dívida. 

O superendividamento estatal trouxe duas consequências nefastas: por um lado, inibiu severamente a taxa de investimento estatal, variável indispensável para impulsionar o investimento privado que a política desenvolvimentista requer e, por outro, naturalizou o princípio neoliberal de austeridade fiscal, permitindo somente em termos marginais programas sociais consistentes e a melhoria da infraestrutura que os neoliberais exigem.” (OURIQUES, 2014)

Para a elite e para a classe média alta, que representam apenas 15% da população, não importa se o Brasil seja mero exportador de matérias-primas e produtos processados de baixo valor. Eles possuem negócios e boa formação para poderem usufruir de uma riqueza criada num país subdesenvolvido, o atraso do Brasil não os prejudica, pelo contrário, esse atraso garante seus privilégios. Eles podem, por seu poder de consumo, continuar comprando importados de alto valor. Quem se dá mal com o liberalismo econômico não é a classe média alta, é o pobre. 

O Brasil é negativo em mais de 120 bilhões no que diz respeito ao comércio de manufaturados. E com a Lava Jato, que é mais um ataque ao que sobrou da indústria nacional, do que um real combate à corrupção, a situação vai piorar. Mas piorar para os pobres, para a massa brasileira, e não para quem sempre pôde viver como se estivesse na Dinamarca.

A BRAVURA INDÔMITA DE MICHEL TEMER

Por: João Filho

MICHEL TEMER É UM GOVERNANTE que não teve a chancela das urnas e não se sente amarrado a este importante contrato democrático com a população. Com apoio maciço do Congresso e da grande imprensa, o não eleito parece bastante à vontade para tomar medidas impopulares e cruéis como a PEC do Apocalipse e a reforma da Previdência. O discurso de que essas medidas são um mal necessário para recuperar a economia escamoteia a opção política de botar a crise no lombo da maioria da população que depende do Estado – e esta não é uma questão de opinião, mas um fato. Uma ex-diretora de Educação do Banco Mundial, analistas alemães e até o aliado Geraldo Alckmin (PSDB) observam a gravidade que é o congelamento de gastos nos serviços públicos.

Temer tem se apresentado como o médico da nação que está tendo peito para enfiar goela abaixo do povo um remédio amargo. Ele não estaria preocupado com sua popularidade, mas com o futuro do Brasil, tanto que tem feito questão de ressaltar sua própria coragem em discursos públicos:

“Hoje, no Brasil, se você não tiver coragem, você não consegue governar. Se você não tiver coragem, para que eu vou restringir os gastos num governo de dois anos e pouco? Nenhum sentido teria essa restrição.”

“Nós precisamos reformar a Previdência hoje para garantir a Previdência amanhã. E por isso nós temos coragem. Coragem para fazer coisas aparentemente impopulares, mas que gerarão popularidade logo ali adiante.”

“Se não tivéssemos coragem, para que eu vou mexer na questão da Previdência?”

É sobre essa coragem de quem ostenta o verbo “temer” no sobrenome que vamos nos debruçar. Ela pode ser facilmente comprovada através de manchetes dos grandes jornais. Apreciemos a bravura indômita do não eleito:

Não bastou o temor das vaias nas Olimpíadas, o não eleito se tremeu todo até mesmo com a possibilidade de ser vaiado em velórios. Essa semana, Temer evitou a cerimônia fúnebre de Dom Paulo Evaristo Arns por medo de vaias, mas o caso mais emblemático foi o das vítimas da tragédia da Chapecoense, quando Temer anunciou que não iria, mas acabou mudando de ideia depois que o pai de uma das vítimas afirmou que ele “deveria ter vergonha na cara”. 

Diante do desastre que comoveu o mundo, este brasileiro que se julga destemido, que diz não ter medo de tomar medidas impopulares, fez cálculos para saber o que seria mais danoso para a sua imagem. Quando Temer diz que “hoje, no Brasil, se você não tiver coragem, você não consegue governar””, fica até parecendo um pedido implícito de renúncia, já que os fatos comprovam que este atributo inexiste em sua personalidade.

Em seu primeiro ano de governo, Dilma demitiu sete ministros envolvidos em casos de corrupção. Michel Temer, em pouco mais de seis meses, perdeu seis ministros pelo mesmo motivo, mas não teve coragem de demitir oficialmente nenhum. Coragem que lhe sobrou na hora de demitir 61 garçons, copeiros, encarregados e auxiliares de serviços gerais do Palácio do Planalto.

Antes de colocar sua turma para aprovar a PEC do Apocalipse e impulsionar a reforma da Previdência, Temer aumentou salário do Judiciário, as verbas para as Forças Armadas e as verbas para a imprensa — não é à toa que alguns veículos o considerem o Brasileiro do Ano. 

O Maquiavel de Tietê (falo da sua cidade natal, não do rio) afagou muito bem essas elites antes de mandar a conta da crise para os mais pobres pagarem — o que me parece muito mais um ato de covardia do que de coragem.

Com um presidente fraco, decorativo, ilegítimo, rejeitado pela maioria da população e sem perspectivas de melhora na economia, cresce a possibilidade de Temer não conseguir terminar o governo. Até um importante aliado como Ronaldo Caiado (DEM) já anda pedindo “um gesto maior” do presidente: a sua renúncia e “antecipação do processo eleitoral”.

Eleições diretas parecem ser o único caminho possível para tirar a democracia brasileira do buraco e lhe dar legitimidade, mas o núcleo político de Temer já se apressou para barrar a possibilidade do povo escolher o seu presidente caso haja renúncia. Eles querem, na pior das hipóteses, eleições indiretas. Aí, meus amigos, é só aguardar qual será o próximo homem branco, rico e de fibra que será escolhido pelo congresso mais conservador desde 1964.


domingo, 18 de dezembro de 2016

O Livre Mercado é a chave para a prosperidade? A Noruega prova que não.


A Noruega é um país gelado localizado no extremo norte da Europa e considerado por alguns o mais próspero do mundo.

Esse título é comumente atribuído a essa nação devido aos diversos indicadores econômicos invejáveis, estando sistematicamente entre os melhores do mundo em itens como PIB per capita (indicador de geração de riqueza, maior = melhor), IDH (indicador de desenvolvimento social, maior = melhor), índice GINI (indicador de desigualdade social, menor = melhor), índice de homicídios (menor = melhor), desemprego, dentre diversos outros (praticamente qualquer indicador de desenvolvimento tem a Noruega entre as primeiras posições).

Um país com tamanho sucesso em áreas tão distintas é um caso importante a ser estudado por aqueles que desejam o sucesso econômico e social de sua própria nação e este texto se propõe a compreender o que tornou e mantém a Noruega numa posição destacada entre todos os países do mundo.

Serão levantados os principais pontos que tornaram a Noruega um caso de sucesso, dentre tantos outros países que encontraram grandes reservas de recursos naturais, dado que muitos acabam permanecendo no atraso dependendo unicamente da extração da matéria prima encontrada.

A Noruega se tornou um país independente da Coroa Sueca em 1905 e permaneceu com pouco destaque na economia europeia até o início da exploração de petróleo no Mar do Norte, na década de 60, cujo período deve ser resumido antes de se aprofundar em outros aspectos da economia norueguesa.

Isso se faz necessário pelo fato desse país, apesar de possuir uma pequena população,  de apenas 5 milhões de habitantes, ter se tornado o 13º maior produtor de petróleo do mundo, com uma produção de 2 milhões de barris por dia, além de ser a origem de diversas companhias relevantes em nível mundial do setor (como a Statoil, a Aker Solutions, a Subsea 7, a Seadrill e a DOF). Essa relevância é visível na composição das exportações do país, na qual produtos relacionados ao petróleo chegam a quase 65% do valor exportado.

Alguns poderiam dizer que isso é consequência do petróleo fácil, como o do Oriente Médio, mas isso não é verdade. O petróleo norueguês está em alto mar e sempre precisou de tecnologia de ponta para ser devidamente extraído. Sua situação se aproxima muito mais com a do Brasil, do México, da Nigéria, da Guiné Equatorial e da Namíbia do que dos países do Oriente Médio que possuem óleo de altíssima qualidade e extremamente acessível logo abaixo de seus desertos. Não é necessário se estender para concluir que o ouro negro não trouxe prosperidade similar para os outros países em situação análoga à norueguesa.


O Modelo Norueguês de Exploração de Petróleo

Durante a década de 60, a exploração de petróleo na Noruega era quase completamente feita por empresas privadas estrangeiras. No governo de Trygve Bratteli (do Partido Trabalhista Norueguês, que governou nos períodos de 1971-1972 e 1973-1976), foram tomadas decisões que muito influenciaram no destino da Noruega: A criação da Statoil (petrolífera 100% estatal), a definição de que o governo norueguês teria no mínimo 50% de todos os campos explorados a serem licenciados no país e a obrigatoriedade dos estrangeiros desenvolverem fornecedores locais (chegando ao ponto de forçar a contratação de fornecedores específicos para que sua operação fosse autorizada).

A partir da 4ª rodada de licenciamento (1978-1979) foi introduzida a obrigatoriedade de investimento em pesquisa e desenvolvimento pelas empresas interessadas. 

Desse investimento, 50% obrigatoriamente teria que ser feito em instituições norueguesas.

Em 1985, houve alteração no sistema: O Estado Norueguês passou a ter uma participação variável em cada projeto, definida para cada licença, sendo essa participação do Estado executada através da Statoil (ou seja, a todos os campos a serem licitados teriam a Statoil como sócia, com essa porcentagem variando em cada projeto).

No ano de 1990, foi criado o atual fundo soberano norueguês: o Government Pension Fund Global. Fundo esse que se tornaria o maior fundo soberano do planeta, responsável por investir a receita do governo norueguês como consequência de sua participação na exploração de petróleo do país.

As políticas de conteúdo local foram abolidas em 1994, como consequência de um acordo de livre comércio com a União Européia.

Em 2001, foram vendidas parte das ações da Statoil, que se tornou uma empresa de economia mista, mas tendo como maior acionista o Estado norueguês (que permaneceu como único controlador da empresa). Com essa venda, a participação estatal nos campos passou a ser administrada através da recém fundada Petoro (100% estatal), a qual, porém, não opera nenhum campo.



Pode-se dizer que o regime de partilha que tentou se estabelecer para o pré-sal brasileiro foi inspirado no regime norueguês em diversas de suas fases, como:

1- Possuir uma participação estatal variável para cada campo licitado, administrada por uma empresa 100% estatal (Pré-Sal Petróleo S/A), com participação obrigatória da operadora de economia mista (Petrobras), de uma forma que também varia em cada projeto;

2- Criação de um fundo soberano para a investimento das receitas do Estado provenientes da extração petrolífera;

3- Obrigatoriedade de conteúdo local para os empreendimentos.



O Fundo Soberano e o Estado Empresário Norueguês

Pode-se dizer que a principal herança do modelo de exploração de petróleo norueguês é o seu fundo soberano, o Government Pension Fund Global que por si só é uma demonstração do gigantismo do Estado norueguês.

O valor de mercado do fundo soberano no dia de elaboração desse artigo ultrapassava 7 trilhões de coroas norueguesas (mais de 800 bilhões de dólares), sendo que todo o mercado de ações da Noruega estava avaliado em pouco mais de 2 trilhões de coroas norueguesas (menos de 1/3 do tamanho do fundo soberano do país). A dívida pública norueguesa se encontrava em um pouco mais de 1 trilhão de coroas norueguesas, o que significa que o fundo soberano poderia comprar todas as ações e toda a dívida pública norueguesa 2 vezes que ainda assim sobraria dinheiro.

Como o PIB da Noruega está um pouco acima de 3 trilhões de coroas norueguesas (menos de 400 bilhões de dólares), isso significa que toda a riqueza produzida no país em dois anos é menor que o valor de mercado do fundo soberano norueguês.

No entanto, mesmo sem considerar o Government Pension Fund Global, o governo é o principal player econômico do país, controlador de todas as 5 maiores empresas da Noruega em valor de mercado (já excluindo dessa lista as empresas totalmente estatais, que não possuem valor de mercado bem definido para serem avaliadas), que estão listadas abaixo:

Statoil ASA (67% diretamente do Estado, 3% do Estado via fundos. Controlada pelo Estado)

Telenor ASA (54% diretamente do Estado. Controlada pelo Estado)

DNB ASA (34% diretamente do Estado, 10% de fundos do próprio banco. Controlada pelo Estado)

Yara International ASA (36% diretamente do Estado, 5% do Estado via fundos. Controlada pelo Estado)

Norsk Hydro ASA (35% do Estado, 1% dela mesma. Controlada pelo Estado)

Dentre essas empresas se encontram a maior petrolífera do país (Statoil), a maior empresa de telecomunicações (Telenor), o maior banco (DNB), além da maior empresa de alumínio (Norsk Hydro), mas a participação do governo em setores estratégicos não se resume a essas companhias.

No setor de energia elétrica, por exemplo, praticamente não há espaço para a inciativa privada. Toda a transmissão e distribuição de energia elétrica em alta tensão é controlada por uma empresa 100% estatal chamada Statnett, que também é a operadora do sistema.

Na geração de energia, além da Norsk Hydro (segunda maior geradora de energia do país) o Estado está presente através da Statkraft (maior geradora de energia do país) e da TrønderEnergi, dentre outras empresas públicas.

Com geração quase totalmente estatal, a Noruega é um dos líderes mundiais no uso de energia limpa e renovável, com mais de 99% de suas necessidades energéticas geradas através de usinas hidrelétricas. Também lidera no uso de carros elétricos e se destaca mundialmente com planos agressivos de redução das emissões de gases poluentes (o que parece irônico vindo de um país que tem nos derivados de petróleo o principal produto de exportação).

Antes da criação da Statnett e Statkraft, a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica era tratada diretamente pelo Norges vassdrags- og energiverk, que é algo como um Ministério das águas e energia. O que significa que o modelo estatal na área de energia elétrica é bastante antigo.

Outro ponto que deve ser destacado é o baixíssimo nível de corrupção (entre os menores do mundo), tanto no serviço público quanto no privado, que está fortemente ligado à transparência quase irrestrita. Diferentemente de outros países, onde o sigilo fiscal é inviolável e um valor defendido de forma apaixonada, na Noruega a renda e os impostos pagos por qualquer cidadão está disponível a quem estiver interessado desde o ano de 1814 (época em que era unida com a Suécia), quando essas informações já podiam ser obtidas nas prefeituras. Hoje, com a internet, os habitantes da Noruega conseguem facilmente descobrir quanto ganham e os impostos que pagam cada um de seus compatriotas, o que simplifica enormemente o combate à sonegação fiscal e enriquecimento ilícito.


Carta Tributária e o Estado de Bem-Estar Social Norueguês

Outro ponto em que a Noruega se destaca é quanto a seus altos impostos. O sistema de taxação norueguês é todo construído de acordo com a ideia de que cada um deve pagar impostos de acordo com suas capacidades, ou seja, o imposto é progressivo: quem ganha mais, paga mais. Pode-se dizer que os impostos noruegueses são altos porque, desde 1970, o peso dos mesmos está entre 35% e 45% do PIB, com pequenas variações no período, sempre figurando entre as maiores entre os países membros da OCDE.

Sobre o Estado de Bem-Estar Social, pode-se dizer que a Noruega é referência no mundo, sendo utilizada como exemplo clássico de Estado que propicia tudo que um cidadão pode desejar de um governo, o que um (neo)liberal consideraria um entrave para o desenvolvimento de uma nação.

Os direitos trabalhistas são muito extensos. A lei permite trabalho até 40h semanais, mas todos os acordos coletivos vigentes são de até 37,5h semanais. Além disso, funcionários tem direito a redução de carga horária por motivos sociais, de saúde ou bem-estar. Os que não possuem cargo de chefia devem receber no mínimo 40% de adicional em caso de horas extras.

Todos os funcionários tem direito a 5 semanas de férias, sendo que aqueles com mais de 60 anos possuem o direito de uma semana adicional (totalizando 6 semanas). 3 dessas semanas devem ser tiradas de forma consecutiva, enquanto as outras 2 semanas podem ser divididas em dias ou semanas separadas.

Um funcionário tem direito a 10 dias por ano para cuidar de seus filhos doentes, aumentando para 15 no caso de ter mais de um filho. Pais (ou mães) solteiros tem esse benefício dobrado (20 dias no caso de um filho e 30 no caso de mais de um). Em caso de gravidez, são disponibilizadas 43 semanas (algo próximo de 10 meses) de folga a serem compartilhadas pelo pai e mãe (sendo que as primeiras 6 semanas necessariamente devem ser da mãe e 14 dessas semanas necessariamente do pai).

O seguro-desemprego é bastante generoso. O desempregado recebe 62,4% de sua renda bruta por até 1 ou 2 anos, dependendo de sua faixa de renda. Caso você não tenha dinheiro o suficiente para sua subsistência, o governo irá complementar sua renda no valor que considerar necessário (o valor depende do município).

O sistema de saúde norueguês é universal, gratuito, descentralizado e financiado pelos impostos. A maior parte dos hospitais é estatal, com uma quantidade muito pequena de hospitais privados. Além disso, mesmo os hospitais privados normalmente recebem dinheiro do Estado.

A Noruega possui um sistema educacional público bem estruturado, que abrange desde a infância até a universidade. Apenas o jardim de infância é pago, mas o governo tem como objetivo torna-lo acessível para todos que tenham interesse em colocar seus filhos no jardim de infância. Quanto ao tamanho do sistema público em relação ao privado, se encontram fora do sistema estatal de educação 45% das crianças no jardim de infância, 2,2% dos usuários da educação primária e secundária baixa (10 primeiras séries, dos 6 aos 16 anos), 6% dos alunos da educação secundária superior (16-19 anos) e 13% dos alunos universitários.

Levando em consideração todos os fatores apresentados no texto, pode-se concluir que a chave do crescimento do país mais próspero do mundo não foi o livre-mercado, mas a presença massiva do Estado nos setores chave da economia (extração de matéria prima, serviços básicos, saúde, educação, sistema bancário, sistema elétrico, entre outros), o oferecimento de amplo sistema de bem-estar social e o estímulo ao desenvolvimento de empresas e tecnologias locais.

Também salta aos olhos que a corrupção não é combatida com retórica simplista que responsabiliza o Estado e ignora a corrupção privada. Na Noruega as contas dos indivíduos são expostas e isso é utilizado para inibir a corrupção pública e privada simultaneamente.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Temer entra para a História



Presidente será lembrado por seu papel fundamental na desestabilização do frágil alicerce em que se assenta a jovem democracia brasileira

Não sei se era esse o propósito do presidente não eleito, Michel Temer, mas ele certamente fará jus, no futuro, a mais que uma mera nota de pé de página nos compêndios de História do Brasil, por seu papel fundamental na desestabilização do frágil alicerce em que se assenta a jovem democracia brasileira. 

Eleito vice-presidente, Temer conspirou, desde o primeiro dia, pela queda da presidente Dilma Rousseff, objetivo alcançado um ano e meio após a posse de seu segundo mandato, com o auxílio de um Legislativo corrupto e de um Judiciário acovardado, e apoiado no egoísmo de uma classe média branca ressentida. Temer contou ainda com a apatia atávica da maior parte da população e com a inexistência de uma oposição organizada em movimentos sociais e partidos políticos, desmoralizados, esses, esvaziados e instrumentalizados pelo PT, aqueles.

Em seis meses, vimos Temer, cinicamente alçado à condição de liderança anticorrupção, perder seis ministros por envolvimento em denúncias de corrupção, além de ele mesmo ter sido acusado por Marcelo Odebrecht, ex-presidente e herdeiro da empreiteira, de ter intermediado o recebimento de R$ 10 milhões destinados ao PMDB, segundo A Folha de São Paulo. 

Temer foi citado 43 vezes na delação premiada feita pelo ex-vice-presidente de Relações Institucionais da Odebrecht, Claudio Melo Filho. O executivo mencionou outras 45 vezes o nome do ministro Eliseu Padilha, da Casa Civil, considerado por ele “preposto de Temer”: “Padilha concentra as arrecadações financeiras do núcleo político do PMDB para posteriores repasses”, explicou. Recentemente, em uma das fazendas do ministro, em Mato Grosso, alvo de duas ações do Ministério Público por degradação ambiental, foram encontradas 18 espingardas... Melo Filho ainda arrola em seu depoimento o secretário de Parceria e Investimentos, Moreira Franco, e o líder do governo no Senado, Romero Jucá. 

Aliás, Padilha, Moreira Franco e Jucá já foram ministros anteriormente: Padilha nos governos Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff; Moreira Franco no governo Dilma Rousseff; e Jucá no governo Lula...

Também em seis meses, vimos Temer, autoritariamente, propor mudanças significativas em setores essenciais como educação e saúde, visando o estabelecimento de um Estado mínimo, como o preconizado pelo PSDB, derrotado nas eleições de 2014. A intenção de Temer, de preparar o terreno para um possível governo tucano em 2018, esbarra, no entanto, no envolvimento das principais lideranças do partido em denúncias de corrupção. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, depoimentos de executivos e diretores da Odebrecht citam o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, codinome Santo, como beneficiário nas planilhas da empreiteira. 

O senador Aécio Neves e o ministro das Relações Exteriores, José Serra, já estão sob investigação da Operação Lava Jato. E até hoje o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não esclareceu a denúncia da jornalista Miriam Dutra, que o acusou de usar de um contrato fictício para enviar dinheiro para ela e seu filho no exterior, e ele agora precisa explicar as doações ao instituto que leva seu nome feitas pela Odebrecht.

Vamos terminar o ano com um crescimento negativo do Produto Interno Bruto (PIB) estimado em 3,5%, ou seja, completaremos dois anos consecutivos de recessão, algo inédito desde a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, quando a economia do Brasil, em 1930 e 1931, encurtou 2,1% e 3,3%, respectivamente. Esse fator, aliado à instabilidade política, provocada pelos sucessivos escândalos envolvendo o governo Temer, levou o senador tucano, Tasso Jereissati, um dos grandes empresários brasileiros, a afirmar que “gigantes do mercado estão se perguntando se não é hora de deixar o Brasil”. 

Ao invés de elucidar as denúncias que pesam contra ele, Temer pensa em anular as declarações que o incriminam...

Michel Temer logrou ainda um grau de impopularidade crescente em seus poucos meses à frente do Executivo. Realizada ainda antes do depoimento de Melo Filho, pesquisa do Instituto Datafolha mostra que o governo Temer é avaliado como ruim ou péssimo por 51% dos entrevistados, regular por 34% e ótimo ou bom por 10% – números que em julho estavam em 31%, 42% e 14%, respectivamente. Nem os mais argutos futurólogos são capazes de prever o que irá acontecer com o Brasil: renúncia de Temer até 31 de dezembro, como querem 63% dos ouvidos na mesma pesquisa pela Datafolha, com exigência de eleição direta para o cargo?; impeachment ou renúncia no ano que vem, com eleição indireta pelo Congresso Nacional (neste caso, pergunta-se, com que legitimidade?)?; ou ainda renúncia no ano que vem, com mudança constitucional para possibilitar novas eleições, como quer o ex-presidente Fernando Henrique?


Enquanto isso, o país desmorona.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Suposta insuficiência de recursos da Seguridade Social é insustentável




Gustavo Garcia

São diversas as propostas de reforma previdenciária apresentadas pelo governo, tendo como traço comum tornar mais difícil o direito e o acesso às prestações previdenciárias.

A principal justificativa para tornar mais rigorosos os requisitos de recebimento dos benefícios previdenciários decorre da necessidade de equilíbrio financeiro da Previdência Social, objetivando reduzir o seu suposto déficit.

Na verdade, qualquer reforma da Previdência Social precisa considerar, primeiramente, a sua necessária inserção no âmbito mais amplo da Seguridade Social, como sistema que também abrange a Saúde e a Assistência Social, conforme determinação constitucional (artigo 194).

A manutenção da Previdência Social, assim, faz parte do custeio da Seguridade Social, o qual ocorre não só de forma direta, ou seja, por meio de contribuições sociais, mas também indireta, isto é, com a utilização de recursos dos orçamentos fiscais dos entes políticos (artigo 195 da Constituição da República).

Nesse sentido, o princípio da diversidade da base de financiamento da Seguridade Social (artigo 194, parágrafo único, inciso VI, da Constituição Federal de 1988) impõe que o seu custeio, inclusive quanto à esfera previdenciária, ocorra por meio de diversas formas, bases e sujeitos.

Portanto, as contribuições previdenciárias, destinadas exclusivamente ao pagamento de prestações do Regime Geral de Previdência Social (artigo 195, incisos I, a, II e art. 167, inciso IX, da Constituição da República), não constituem a única fonte de custeio do sistema previdenciário. Além de diversas outras contribuições para a Seguridade Social, há previsão constitucional de seu financiamento por toda a sociedade.

As contribuições para a Seguridade Social do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada não se resumem àquela incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados à pessoa física que lhe preste serviço (mesmo sem vínculo empregatício), mas também abrangem as contribuições sobre a receita ou o faturamento (Cofins), inclusive do PIS/PASEP (artigo 239 da Constituição Federal de 1988), bem como sobre o lucro (CSLL).

Além disso, há contribuições para a Seguridade Social do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, bem como sobre a receita de concursos de prognósticos e do importador de bens ou serviços do exterior (ou de quem a lei a ele equiparar).

Justamente por isso, torna-se frágil a alegação de déficit da Previdência Social quando sabemos que esta faz parte da Seguridade Social, tendo contribuições sociais que deveriam ser vertidas ao orçamento próprio (artigo 165, § 5º, inciso III, da Constituição Federal de 1988) e utilizadas apenas para o custeio das respectivas prestações.

Revela-se insustentável a suposta insuficiência de recursos da Seguridade Social se o que existe, na realidade, é a desvinculação de contribuições da Seguridade Social, fazendo com que parte de seus valores deixem de ser utilizados em suas finalidades específicas, relativas à concessão das prestações previdenciárias, de saúde e de assistência social.

Aliás, de modo manifestamente contraditório com o discurso de déficit da Previdência Social, a Emenda Constitucional 93, de 08 de setembro de 2016, ao modificar o artigo 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ampliou o percentual de desvinculação de recursos da União (DRU), passando a prever que são desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% da arrecadação da União relativa às contribuições sociais.

Isso significa a existência de permissão ao poder público para utilizar recursos inerentes à Seguridade Social com finalidades diversas, tornando incongruente qualquer alegação de que o seu custeio atual da Previdência não é suficiente para manter o necessário equilíbrio financeiro.


Como se pode notar, a legitimidade da reforma previdenciária exige amplo debate com a sociedade, com a apresentação de dados reais e completos sobre os recursos públicos e a sua forma de utilização, sem se deixar levar por discursos inconsistentes e padronizados.

A saga do direito à saúde: 28 anos de construção e desconstrução

 Lenir Santos

Garantir direitos e não efetivá-los parece ser a história de países de tardia democratização e sentimento de cidadania. No Brasil, no caso da saúde, vive-se o permanente paradoxo de se ter bases jurídicas avançadas, compatíveis com o Estado de bem-estar social e padecer do mal de sua não efetividade ante políticas orçamentárias incompatíveis com sua sustentabilidade. Podemos afirmar, sem medo de errar, que, em 28 anos, a saúde dos brasileiros nunca foi uma prioridade dos governos.

O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição em 1988, sempre teve orçamentos aquém de suas necessidades. Um sistema que se implantou e sobrevive à duras penas, e mesmo que possamos dizer que, apesar dos pesares e da má vontade dos governantes, conseguiu ser mais vitorioso do que fracassado quando comparado ao que existia anteriormente. Na atual crise brasileira, as pessoas mais combativas e conscientes sentem-se mais vulneráveis e pessimistas pela trágica escolha governamental de asfixiar todos os direitos sociais pela via fiscal, o que levará a saúde a enfrentar seu pior embate.

Os grandes problemas enfrentados pelo SUS como o baixo financiamento; a gestão pública insatisfatória; a falta de parâmetros orientadores do padrão de integralidade; a relação entre o poder público e o setor privado, desregulada; a formação de profissionais da saúde para o setor privado e não para o SUS; as lacunas legislativas quanto a aspectos relevantes e o mais problemático de todos, a falta de sentimento de pertencimento da população com o direito à saúde. Outras dificuldades, como a judicialização da saúde, decorrem dessas macrocausas, como a inadequação dos serviços às necessidades de saúde das pessoas.

O que ocorreu no Brasil a partir de 1988 foi a negação prática do que a Constituição tutelou: direito à saúde de acesso universal, igualitário e integral, financiado com recursos públicos. Essa negação se deu pela via do orçamento durante 28 anos. A forma adotada pelos governantes foi a procrastinação da garantia de recursos suficientes, afora o descaso com os vazios legislativos que ainda existem. Enquanto países, como a Espanha, já discutem projeto de lei sobre o direito de morrer dignamente, não conseguimos nem mesmo ter regiões de saúde efetivas, disciplinar a integralidade da assistência à saúde, respeitar a autonomia dos entes federativos quanto ao rateio dos recursos da saúde.

Ao longo do tempo, o efeito deletério foi tornar o SUS um sistema pobre para pessoas pobres, onde aos poucos o capital privado nacional (e agora internacional) atinge seu intento que é conquistar uma população com pouco sentimento de pertencimento aos seus direitos, cooptada pela mídia, pelo glamour do consumo e da propaganda que vende a vida eterna, levando as pessoas a desejarem comprar no mercado o que é direito.

No presente, a crise fiscal e política que se abateu sobre o país foi motivação e, por que não dizer, subterfúgio para propor tornar o piso da saúde teto congelado, lembrando que esse piso hoje é insuficiente em ao menos 40% das reais necessidades sanitárias. Diante da crise fiscal, estabeleceu-se que a contenção dos gastos públicos é a única solução e que chegou o momento do “remédio amargo”: cortar o gasto com saúde e educação, sob o manto de que, melhorando as condições econômicas do país, todos ganham (e como disse o presidente da Câmara dos Deputados, os cidadãos poderão comprar planos de saúde...).

Nenhuma medida de mudança quanto a desonerações fiscais, criação de imposto sobre grandes fortunas, sonegação fiscal, reforma tributária que enfrente a injustiça distributiva, federalismo distorcido que canibaliza os municípios, juros altos e swaps cambiais, entre outros. Disso não se falou como proposta de reforma necessária, justa e democrática.

Uma das motivações da PEC 55, aprovada em 30 de novembro, no Senado Federal, é comer de vez o que sempre foi feito pelas beiradas, que é a insurgência contra a saúde universal e igualitária e a vinculação de receitas para seu financiamento. Isso está na exposição de motivos da PEC 241 (encaminhada à Câmara dos Deputados) de modo claro. Os gastos com despesas sociais serão congelados por 20 anos, sem menção às despesas com o pagamento da dívida, que abocanha metade das receitas da União; o gasto com saúde é de 1,7% do orçamento da União e não será esse gasto o responsável pelo desequilíbrio das contas públicas. Os juros que incidem sobre a dívida pública de 14% poderão asfixiar a economia do país; os 1,7% do orçamento público com saúde, não.

A PEC 55 é uma forma camuflada de se dizer que a efetividade do direito à saúde jamais se realizará porque, se os recursos são insuficientes, daqui a 20 anos, com supressão de por volta de R$ 600 bilhões, o SUS não será um sistema nem universal, nem integral e nem igualitário. Pode-se dizer que esse congelamento é um estado de exceção na garantia de direitos sociais, o que afronta o artigo 60, parágrafo 4º da CF. No dia da promulgação da referida emenda constitucional estaremos enterrando o SUS.

Para ilustrar o desinteresse governamental com o SUS, traçamos abaixo brevíssimo relato histórico, por datas, dos ataques orçamentários desde seu nascimento (1988), com o golpe final da PEC 55:

1989/1992: 30% dos recursos do Orçamento da Seguridade Social (OSS) deveriam financiar a saúde (LDO-LOA); 10% desse valor foram destinados ao pagamento de serviços que não eram do setor saúde, como alimentação, inativos, saneamento, assistência social;

1993/1994: grave convulsão no financiamento pelo não repasse de recursos do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) para a saúde. Resultado: empréstimo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) de R$ 2 bilhões, pagos pelo Ministério da Saúde, que não foi o autor da dívida;

1994: Fundo de Emergência Social, precursor da DRU, retira 20% dos recursos da saúde;

1994: conversão da URV para o Real: perda de 30% dos recursos da saúde, enquanto as demais áreas do governo tiveram a conversão equivalente ao gasto do momento, a saúde foi prejudicada com valores menores;

1997: CPMF: redução de seu valor para a saúde. O que foi dado com uma mão foi retirado com outra. O orçamento da saúde com a CPMF deveria ser acrescido de R$ 6,9 bilhões, saindo de R$ 14,3 bilhões para R$ 21,2 bilhões; ficou em R$ 17,6 bilhões;

1998: reforma constitucional de 1995 destinou grande parte das contribuições sociais do orçamento da Seguridade Social para a Previdência Social, sem correspondente compensação de recursos para a saúde. Essa reforma levou o nosso saudoso jurista Geraldo Ataliba a dizer que não havia necessidade de se fazer essa reforma que prejudicaria a saúde: “A Constituição tem minúcias, diz algumas coisas que a rigor seriam puramente uma questão de lei e não de constituição...porque as forças políticas brasileiras representam a elite que teoricamente aceitam gastar dinheiro com os pobres, quer promover o cidadão, mas na hora de tomar decisão a escolha é sempre outra”;

2000: EC 29: vinculação do valor do ano anterior, acrescido da variação nominal do PIB. Isso se constituiu numa medida do Congresso Nacional na contramão do governo. Contudo, o governo à época tentou implantar a tese de que o ano de 1999 seria base permanente para o cálculo (base fixa), e não o valor de cada ano. Mas o governo foi vencido em sua tese, felizmente, ao menos uma vez;

2007: extinção da CPMF com grande perda para a saúde, sem reposição;

2015: EC 86, com fixação de 15% da RCL de modo progressivo: 13,2% de 2016 a 2020 (15%), com perdas de por volta de R$ 9 bilhões em 2016. Além do mais, houve no mesmo ano a abertura do capital estrangeiro para a saúde, ao arrepio da Constituição, estando sub judice no STF;

2016: aumento da DRU de 25% para 30%;

2016: votação pela Câmara dos Deputados da PEC 241 e no Senado da PEC 55 que definitivamente congelará os recursos da saúde por 20 anos, com perdas de mais ou menos R$ 600 bilhões no período, o que significa dizer uma forma de acabar com o direito à saúde sob o manto da responsabilidade fiscal.

A intensão é colocar fim à vinculação dos recursos da saúde e, por consequência, ao SUS universal, igualitário e integral. Nunca o país conviveu com um planejamento de longo prazo que previsse o acréscimo progressivo de recursos para uma saúde nos padrões de países europeus que aplicam por volta de 7% de seu PIB.

A judicialização é uma demonstração da ausência desse compromisso; tanto que em 2014 foram por volta de 859 mil ações e, se suas causas não forem enfrentadas, ela continuará crescente, exceto se o Poder Judiciário entender que o congelamento do gasto público pode colocar limite à efetividade do direito à saúde. Como congelar o que é insuficiente sob o argumento de que o gasto é excessivo? Se é insuficiente, não pode ser excessivo. Uma contradição em termos.

A falta de confiança, credibilidade do cidadão em relação ao seu país, tanto quanto dos investidores nacionais e internacionais em razão da alarmante corrupção no meio político, com quebra de segurança jurídica contratual, também são causas da crise brasileira. Tanto é fato que autoridades governamentais vêm repetindo à exaustão que é necessário dar segurança jurídica aos investidores nacionais e internacionais, só se esquecendo de incluir a segurança do cidadão. Nessa linha de raciocínio, impõe-se garantir também segurança ao povo no tocante à efetividade de seus direitos sociais, os quais devem estar resguardados em tempos de crises, como medida de boa governança e justiça social.

O Estado não vive para si mesmo, mas para o seu povo e, por isso, se fundamenta em suas leis e na garantia de seu cumprimento. Seu guia é a Constituição, que não pode ser emendada de modo a alterar sua essência. O novo constitucionalismo tem, dentre seus princípios, a segurança jurídica, os direitos adquiridos, a não retroatividade, a boa-fé, a confiança recíproca e o respeito a valores éticos e morais.

Seria importante firmar minimamente alguns valores que os governantes, sob nenhum pretexto, podem transgredir:

Respeito à Constituição, seus princípios e valores sociais: o governante tem que respeitar os princípios e normas constitucionais que não podem ser violados sob nenhuma forma ou pretexto;

Vedação de retrocesso à efetividade dos direitos fundamentais: o governo deve garantir políticas públicas e orçamento adequado ao alcance da efetividade dos direitos constitucionais, com programas que visem à diminuição das desigualdades sociais, com políticas de equidade social;

Limites às mudanças constitucionais: vedação à proposta de emenda à Constituição que imponha retrocesso a direitos e garantias sociais, sem tergiversação ou subterfúgio. Em caso de crise fiscal é dever discutir com a sociedade a alocação dos recursos públicos.

Esses standards, se cumpridos, garantiriam à população e a investidores nacionais e internacionais estabilidade e confiança necessárias. A população não pode viver de “soluços” em seus direitos. As escolhas em relação ao gasto público não podem retroceder na garantia dos direitos sociais.

A Constituição não pode ser um repositório inconsequente de normas, sem materialidade na vida real. Seu cumprimento tem que ser efetivo, com planejamento público quanto à diminuição das desigualdades, erradicação da pobreza e outros elementos de desenvolvimento social. Os direitos fundamentais não podem ficar relegados a um plano inferior, sujeitando seus cidadãos à insegurança quanto ao futuro de seu país. Como diz Norberto Bobbio, chega de falar em direitos; é hora de garanti-los.

Infelizmente a PEC 55 descumpre os standards acima mencionados. O legislador constitucional, ao vincular recursos mínimos para a garantia da saúde e educação, o fez como medida de segurança, exatamente para proteger esses direitos contra as omissões públicas recorrentes pela rota do financiamento.

Dados de diversas entidades e órgãos vêm demonstrando que a saúde não se sustentará sem o necessário aumento de serviço a cobrir déficits que se acumulam desde 1988; nem estamos a falar dos necessários acréscimos que deem conta do crescimento demográfico, envelhecimento da sociedade, inovações farmacologias e tecnológicas e inflação estrutural da área.


O grave é que se está invertendo a política pública, com imposição de perdas em vez dos acréscimos devidos, que não são luxos nem abusos, mas direitos fundamentais. A pergunta que fica é qual o sentido de uma nação? 

Um Estado Democrático de Direito não pode conviver com o descumprimento de preceitos essenciais à justiça social. A saúde é uma das condições de vida digna da pessoa e do exercício das liberdades humanas.