sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Seguridade Social: Políticas Públicas de Direito à Cidadania


Jacy Afonso de Melo

Desenhamos, no Brasil, um modelo de proteção social baseado no Estado de Bem-Estar Social implantado na Europa no pós-guerra. A Constituição de 1988 representou etapa fundamental da viabilização do projeto das reformas socialmente progressistas que residem nos princípios da universalidade, da seguridade social e da compreensão de direitos sociais como componentes para a construção da cidadania.

Uma das inovações constitucionais mais expressivas foi a instituição da Seguridade Social (previdência urbana e rural, saúde, assistência social e seguro-desemprego), cujo financiamento está baseado na contribuição tripartite de empregados, empregadores e governo.

O Orçamento da Seguridade Social vinculou um conjunto de fontes baseadas em contribuições (folha de salários e Pis-Pasep) e impostos criados para esse fim: a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS. A seguridade social é definida na Constituição Federal como um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

SAÚDE: DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO

A saúde, segmento autônomo da Seguridade Social, tem a finalidade mais ampla de todos os ramos protetivos porque não possui restrição de beneficiários e de acesso. As ações na saúde são instrumentalizadas pelo Sistema Único de Saúde – SUS, constituído por órgãos federais, estaduais e municipais, para executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica, de saúde do trabalhador, participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico, colaborar na proteção do meio ambiente (nele incluído o do trabalho), fiscalizar e inspecionar alimentos, bebidas e águas, supervisionar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde.

ASSISTÊNCIA SOCIAL: GARANTIA DE ATENÇÃO ÀS NECESSIDADES BÁSICAS

Como diretrizes de organização da assistência social, a Constituição Federal estabeleceu a descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal. Esta organização foi disposta na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, sob a forma de sistema descentralizado e participativo: o Sistema Único de Assistência Social – SUAS.

Ao atingir o status de política pública, a assistência social perde seu caráter assistencialista e passa a garantir/promover direitos sociais, com os objetivos de proteger a família, maternidade, infância, adolescência e velhice; amparar crianças e adolescentes carentes; promover a integração ao mercado de trabalho; reabilitar pessoas portadoras de deficiência com reinserção na vida comunitária; garantir salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e à pessoa idosa que não possuem meios de prover sua subsistência.

PREVIDÊNCIA SOCIAL: DIREITO DOS TRABALHADORES

Segmento autônomo da seguridade social, a previdência se preocupa com os trabalhadores e seus dependentes econômicos, enquanto técnica de proteção destinada a afastar necessidades decorrentes de contingências sociais que reduzem ou eliminam a capacidade de auto-sustento dos trabalhadores e/ou de seus dependentes.

Com natureza de seguro social, exige contribuição dos seus segurados. Não obstante a previdência social ser restrita aos que contribuem para seu financiamento, encontra na inclusão social os mesmos fins delineados para a saúde e a assistência social.

SEGURIDADE SOCIAL: GARANTIR E AVANÇAR

O atual momento exige vigilância e atuação efetiva. Direitos estão ameaçados. A resistência se organiza a partir do município, com a população pressionando o poder público para manter políticas públicas importantes para os munícipes.

A inclusão social traz igualdade de oportunidades por meio de programas como Bolsa Família, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, Saúde da Família, Territórios da Cidadania, Luz para Todos, valorização do salário mínimo. A construção de creches, casas abrigo para idosos e crianças em situação de rua são aspectos fundamentais de respeito aos direitos e de desenvolvimento sustentável e inclusivo.

Os programas de saúde a assistência otimizam recursos financeiros e humanos. Programas de saúde incluindo os relacionados à saúde do trabalhador são fundamentais. Organizar no município equipes de agentes comunitários de saúde e de combate às endemias, além de conectar a comunidade ao poder público, os profissionais das áreas efetivam ações essenciais à população.

Os primeiros acompanham as famílias, cadastrando suas necessidades de assistência e saúde, desenvolvem ações de educação e vigilância com ênfase na prevenção de doenças, identificam indivíduos e famílias em situações de risco, orientando-as no acesso aos serviços de que necessitam.

O grupo de combate às endemias realiza vistoria em residências, depósitos, terrenos baldios e estabelecimentos comerciais para buscar focos de doenças, orientando quanto à prevenção e ao tratamento de doenças infecciosas, atividade fundamental para prevenir e controlar doenças como dengue, Chikungunya,  zika, leishmaniose, malária.

Os programas de saúde do trabalhador devem adotar práticas sistemáticas para a promoção da saúde e do bem-estar no local de trabalho e da melhoria da qualidade de vida. Os órgãos municipais devem acompanhar empresas urbanas e rurais, avaliando ambientes de trabalho e promovendo a superação de descumprimento de normas. Os custos emocional, social e econômico dos acidentes de trabalho à sociedade em termos de saúde e previdência são altos, sendo muito mais eficiente a prevenção.

A Seguridade Social como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social, exige a criação de espaços de debate, sugestões e encaminhamentos de ações que envolvam as diferentes secretarias municipais envolvidas no tema e representantes da comunidade.  Novamente os Conselhos se apresentam como organismos eficazes de valorização de saberes e coparticipação na vida comunitária.

A Seguridade Social efetivamente se configura em inclusão social, uma vez que oportuniza a inserção e reinserção no mundo do trabalho, possibilita a interação social, promove a cidadania consciente. Configura-se em instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, constituindo-se em paradigma para o desenvolvimento à medida que garante aos cidadãos um mínimo existencial que se situe dentro dos parâmetros da dignidade humana. Preservá-la, portanto, é imprescindível.


Mudar o mundo a partir da aldeia. A cidade é da cidadania!

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Até que ponto o Estado de Direito poderá ainda assim ser chamado?


 Ingo Wolfgang Sarlet

O Brasil, já de alguns anos para cá, especialmente desde a visibilidade que o combate à corrupção, a fraude e o desvio de recursos, obteve com os processos do “Mensalão”, mas ainda mais com os escândalos e processos da operação “Lava Jato”, ainda em curso e longe de ter esgotado o seu alcance, está vivenciando um processo de transformação sem precedentes no que diz respeito ao necessário combate da criminalidade do assim chamado “colarinho branco”, abarcando tanto ações de agentes públicos quanto de atores privados.

A despeito dos eventuais e pontuais excessos, inclusive e especialmente midiáticos, não se questiona o quanto a redução da impunidade que reinava nesse domínio (o que não significa que a criminalidade convencional esteja imune a tal fenômeno) deverá, em sendo consequentemente levada adiante, resgatar e fortalecer não apenas a nossa tão combalida moralidade pública e privada na esfera econômica, mas reduzir drasticamente o desvio de bilhões e bilhões em recursos públicos que deveriam ser destinados não ao financiamento paralelo de campanhas de quem quer que seja e muito menos para encher os bolsos de alguns tubarões da política e da economia, mas sim, para investimentos na educação (inclusive para uma cidadania responsável, não clientelista), na saúde, segurança, moradia e outras áreas onde tanto se fazem necessárias políticas de Estado e não apenas de governo.

Mais do que isso, não apenas é o caso de se saudar e incentivar tais esforços em andamento, como se trata de gradualmente ampliar tais estratégias para dar conta de outros bolsões de corrupção e desvio de recursos, alguns dos quais já em andamento (veja-se o caso dos fundos de pensão). Com isso, aliás, se estará resgatando também a confiança tanto interna quanto externa nas nossas instituições públicas e privadas, na nossa política, na economia e mesmo na credibilidade de nosso povo (e aqui incluídos todos os segmentos sociais), em sua imensa maioria trabalhador e honesto.

Note-se que outro efeito perverso ao longo dos anos, vinculado ao da credibilidade e da confiança nas instituições, é o da nefasta tendência de se criminalizar ou pelo menos enxovalhar as instituições estatais (mas não só!) que são em si imprescindíveis para qualquer Estado Democrático de Direito que assim mereça ser designado, quais sejam, a representação democrática em todos os níveis da Federação, o Poder Executivo como o principal realizador das políticas de estado, o Poder Judiciário e as funções essenciais à Justiça, sem prejuízo de outros alvos dos discursos maniqueístas, não faltando mesmo aqueles que, possivelmente por falta de memória, manifestam inclusive um saudosismo autoritário.

Nesse mesmo contexto, assim como se tem percebido no combate ao terrorismo, por ora ainda não tão relevante para o Brasil (mas também nós não estamos imunizados, como se verificou com a detenção recente de vários suspeitos de envolvimento em atos de terror em nosso território) em diversos países, também a em si – e reitere-se isso! – benfazeja luta contra a corrupção, a improbidade e a criminalidade econômica, ademais do crime organizado de um modo geral, não pode ser levada a efeito com desconsideração pela idoneidade jurídico-constitucional dos meios, pena de estimular uma espécie de “maquiavelismo jurídico” às avessas, caracterizado não pela busca e manutenção do poder a qualquer preço (como na versão original do Príncipe de Maquiavel), mas pela possível utilização de métodos e instrumentos no mínimo polêmicos quanto a sua legalidade e constitucionalidade para alcançar fins em si mais do que legítimos, inclusive do ponto de vista constitucional.

Não se poderá olvidar, nessa quadra, que o Estado de Direito é, antes de tudo, um Estado Constitucional que tem na dignidade da pessoa humana e na promoção e proteção dos direitos fundamentais o seu esteio e o seu fim por excelência. Além disso, o Estado de Direito é um Estado avesso ao arbítrio e, por via de consequência, amigo da justa medida, ou, dito de outro modo, da temperança, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Já por tal razão a manutenção de um necessário equilíbrio e a regulação de todo e qualquer extremismo se tornam tão difíceis e complexos em meio a tantos ataques diretos e tantos riscos, dentre os quais a criminalidade organizada, como é o caso do tráfico, a criminalidade econômica e o terrorismo, que justamente desafiam as instituições do Estado de Direito e testam constantemente e de modo cada vez mais intenso os seus limites.

Não é à toa que há anos toneladas de papel e rios de tinta são gastos discutindo a respeito da difícil equação entre Segurança e Liberdade, bem como de uma transição do Estado de Direito para um assim chamado Estado da Prevenção, especialmente de modo a não desnaturar e mesmo perverter as premissas que balizam a Democracia e o Estado de Direito.

Embora não faltem os que, num caso para garantir a paz e a estabilidade em face do terror, noutro caso para combater crime organizado e corrupção, busquem justificar meios convencionalmente tidos como manifestamente ilegítimos do ponto de vista da constitucionalidade e da legalidade, entendendo que situações extremas somente podem ser enfrentadas com medidas extremas e excepcionais, também não faltam (ainda!) os que se preocupam em travar tal combate (em si necessário e urgente) de modo a manter o mínimo equilíbrio e otimizar – por mais difícil que seja - tanto a liberdade quanto a segurança.

É precisamente nesse contexto mais alargado que se insere cada vez mais a realidade brasileira, palco de crescente sectarismo em diversos planos, ademais de posturas maniqueístas que ora endeusam determinados atores, por mais que de fato estejam cumprindo de modo respeitável e eficaz os seus respectivos papeis e sequer queiram ostentar tais “títulos”, ora demonizam outros e mesmo os próprios deuses e heróis quando eventualmente em algum ponto não mais parecem estar alinhados com a fúria sectária que avança (em parte por razões compreensíveis, considerado o acúmulo de mazelas no nosso país) no corpo social em geral e frequentemente nas opiniões publicadas.

O pior é que nesse ambiente aqueles que buscam manter o equilíbrio e manter uma pauta prudencial e proporcional acabam por ser objeto de ataque das duas frentes, os sequiosos pela punição e repressão a praticamente qualquer custo, bem como os que seguem presos a uma lógica formalista e uma leitura garantista (pois o garantismo oferece várias possibilidades de leitura) unilateral e praticamente impeditiva de qualquer meio eficaz para alcançar a punição, ainda que com o respeito ao devido processo constitucional, mas normalmente apenas dos atores mais privilegiados da nossa sociedade, ou seja, os detentores do poder econômico e político, valendo-se do discurso do caráter absoluto de determinados direitos e garantias, que, por mais valiosos e irrenunciáveis que sejam (e o são!) não são também absolutamente isentos a algum tipo de limite.

Tal cenário e sem que aqui se vá (ainda) discutir aspectos específicos de situações já em andamento ou propostas de reforma constitucional e legislativa sendo apresentadas (como o caso das assim chamadas dez medidas para o combate da corrupção), foi também objeto de referência enfática por ocasião dos discursos proferidos por ocasião da posse na Presidência do STF dos ilustres Ministros Cármen Lúcia e Dias Toffoli.

Ainda que os locais de fala tenham sido evidentemente distintos, assim como parte do conteúdo das narrativas, o que chamou a atenção foi o fato de que em boa parte, ressalvadas as ênfases, um elo substancial comum foi justamente o de que o combate da corrupção e da criminalidade econômica e organizada há de se fazer de modo rigoroso, mas respeitando os direitos e garantias individuais, o que foi especialmente lembrado na fala do Decano Celso de Mello.

O presidente do Conselho Federal da OAB, Cláudio Lamachia, por sua vez, destacou que não se pode tolerar justiça sumária típica de um estado de exceção apenas em função do clamor público, mas sim, que a justiça deve ser feita com serenidade, cumprindo-se os postulados constitucionais, enfatizando que o cenário exige temperança e equilíbrio.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ao sustentar a necessidade de medidas efetivas para conter e reprimir a corrupção, referiu que o envio do projeto de iniciativa popular legislativa designado de dez medidas contra a corrupção, representa uma proposta que deverá passar pelo contraditório democrático e, portanto, acabará sendo lapidada e poderá mesmo atrair propostas alternativas.

Por derradeiro, a Presidente empossada do STF, Ministra Cármen Lúcia, iniciou bem o seu discurso ao saudar em primeiro lugar, antes das autoridades presentes, o povo, a cidadania brasileira, destinatária das ações dos poderes públicos e cuja fome de justiça e dignidade deve ser saciada, salientando que carecemos mais do que reformas, de transformações e que a travessia rumo a um cenário mais calmo exige coragem e prudência.


A depender da fala das autoridades referidas, de alto cunho simbólico, mas também carregadas de um tom compromissário e propositivo, resulta claro que a manutenção e fortalecimento das estruturas e instrumentos do Estado Democrático de Direito não são compatíveis com um ambiente de extremismos, intolerância e que flerta com estados de exceção, submetendo-se a uma lógica do tudo ou nada. Ademais disso, o Estado de Direito, e isso há de ser repisado, jamais poderá ser um Estado onde mesmo o mais nobre dos fins possa justificar qualquer meio.

domingo, 25 de setembro de 2016

STF agora tem como papel atuar contra maiorias opostas à Constituição


Oscar Vilhena Vieira


Há uma percepção generalizada de que o Supremo Tribunal Federal passou a ocupar uma posição de vanguarda na proteção dos direitos fundamentais na última década. Essa percepção decorre do fato de que o tribunal declarou constitucionais questões controvertidas como ação afirmativa, pesquisas com células-tronco, o controle de armas, além de ter se demonstrado simpático a diversas políticas distributivistas relacionadas à saúde e educação.

O fato, porém, é que na grande maioria desses casos o papel do Supremo foi o de ratificar constitucionalmente políticas majoritárias, gestadas pelo Executivo e aprovadas pelo Legislativo. Esses casos apenas chegaram ao tribunal porque minorias inconformadas com suas derrotas no campo político buscaram revertê-las na Justiça.

Há que se reconhecer também as situações em que o Supremo supriu a omissão do legislador, como no caso da regulamentação do direito de greve dos funcionários públicos ou no caso da união homoafetiva, em que reconheceu direitos de uma minoria insular e discriminada, que não teve suas pretensões acolhidas por um Congresso e um Executivo pouco dispostos a se contrapor às suas bases eleitorais.

Com a consolidação do poder de bancadas no Congresso que representam sobretudo o atraso, e, agora, a assunção ao Executivo de um gabinete claramente conservador, há fortes indícios de que os avanços conquistados ao longo das duas últimas décadas podem ser colocados em risco.

Recentemente a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto de emenda constitucional, de relatoria do então senador Blairo Maggi (agora ministro), que simplesmente substitui a necessidade de licenciamento ambiental por um mero estudo de impacto ambiental. Também com o objetivo de atender aos interesses da bancada ruralista, encontram-se na pauta do Congresso projetos voltados a paralisar as demarcações das terras indígenas e a responsabilização dos que mantêm pessoas em condições análogas à escravidão.

No campo moral, em atendimento aos interesses da bancada de orientação religiosa, ganham força as discussões sobre o Estatuto da Família, que essencialmente busca reverter a decisão do Supremo que reconheceu a união homoafetiva, e o Estatuto do Nascituro, que tem por objetivo restringir ainda mais as hipóteses de aborto legal, hoje previstas no Código Penal. A mesma bancada apresentou uma emenda que, se aprovada, conferirá legitimidade às entidades religiosas para propor ações diretas de constitucionalidade perante o STF.

Por fim, a bancada da bala já se encontra engatilhada para fazer avançar a erosão do Estatuto do Desarmamento e mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente, em especial no que se refere à redução da idade penal. Isso sem falar num sem número de medidas que terão um forte impacto sobre o crescimento da população carcerária.

Nesse contexto de claro retrocesso da agenda emancipatória estabelecida pela Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal será certamente convocado para ocupar um novo papel na arena político-institucional brasileira: o de instância contramajoritária.


Ou seja, de uma instituição voltada a proteger os direitos fundamentais do ímpeto de maiorias de ocasião de fraudar nosso pacto constitucional.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Reequilíbrio de poder no Estado brasileiro: um novo pacto político


Federalismo de regiões e Executivo dualista

            A Constituição de 1988 previu a realização de plebiscito em 1993, para que o povo se manifestasse entre os sistemas de governo parlamentarista ou presidencialista, sendo largamente vencedora a opção pelo presidencialismo. Embora esta decisão resultante do plebiscito, o tema tem voltado a tona com freqüência no debate político, sendo, portanto, um tema atual para o constitucionalismo brasileiro. No entanto, as doutrinas ficam na superficialidade do debate, apontando vantagens e desvantagens dos sistemas clássicos, sem uma maioria vinculação com a realidade brasileira. Por isto a necessidade de estudos mais concretos, com o que desejamos contribuir.

            Em relação ao federalismo adotado no Brasil, a doutrina em geral é unanime em apontar as deficiências históricas da sua implantação na nossa realidade. É uma forma de Estado acentuadamente centralizada, apesar dos avanços ocorridos com a Constituição de 1988.

            Deste modo, este artigo se propõe a fazer uma analise da distribuição do poder estatal brasileiro, tanto a nível vertical, entre os membros da Federação, como a nível horizontal, entre os três Poderes da União, fazendo o emprego do principio de subsidiariedade na redistribuição do poder. Deste modo, queremos de um lado indicar elementos para um novo sistema de governo que torne o poder Executivo mais democrático e eficaz. De outra parte, queremos indicar elementos para uma nova redistribuição do poder a nível territorial, reforçando o poder regional e local. Mais especificamente desejamos apontar alguns elementos para uma maior redistribuirão do poder a nível estatal, tanto na relação entre os poderes centrais quanto destes com as esferas regionais e locais. Esta nova reengenharia do poder envolve a questão da origem do poder estatal, e, portanto, repensar a delegação do poder popular e um maior controle popular sobre o Estado. Um instrumento fundamental nesta reflexão é o principio da subsidiariedade, constituído essencialmente por dois elementos: liberdade e solidariedade.

            Este estudo abrange, portanto, dois grandes pontos do Direito Constitucional, a forma de Estado e o sistema de governo. O objetivo é apontar para o sistema de governo e a forma federativa de Estado que julgamos mais adequados para a realidade brasileira, analisando as suas diversas particularidades, e indicando as vantagens e desvantagens de adotar um modelo e não outro.

            Num primeiro momento vamos tratar de um novo pacto político, que organize a distribuição do poder. Num segundo momento trataremos do federalismo baseado em regiões. Finalmente, na parte final, de um Poder executivo dualista, mais racional e menos concentrador de poder.

 Um novo pacto político

            Desejamos dar um maior equilíbrio na distribuição do poder, tanto a nível central como regional. Neste aspecto é fundamental a noção de subsidiriariedade. Segundo este principio o poder deve estar mais próximo possível dos cidadãos, ou seja, das instâncias de poder de proximidade. Este princípio nos permitirá verificar quais poderes podem ser delegados ao Estado, e, qual o melhor modo do exercício do poder estatal que permite um maior controle popular.

            De maneira geral, segundo a doutrina, a horizontalidade é a técnica para permitir a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, enquanto que a verticalidade é para permitir a distribuição de competências entre os membros da Federação.

            O poder de Estado é uno e indivisível, de acordo com o principio da soberania, então se torna fundamental pensar o poder estatal como um sistema central e descentralizado, de maneira estruturante e não simplesmente funcional. Apesar da abrangência do tema, queremos analisar o poder estatal como um todo, pois os estudos segmentados, no nosso entender, pecam por não levar em consideração o poder enquanto sistema, onde a alteração de uma estrutura pode ter conseqüências sobre outra.

             O pacto federativo

            O modo empregado para a distribuição do poder entre os integrantes da Federação é o pacto federativo. O pacto federativo vai criar uma nova Constituição, ou como sustenta André HAURIOU, o pacto federativo deve estar dentro da Constituição. Desta forma, o pacto federativo se dá através da distribuição das competências que constam dentro da Constituição federal.

            Mesmo que a idéia de pacto federativo não é presente na cultura política brasileira, as constituições federais sucessivas tiveram teóricamente o papel, inicialmente de elaborar o pacto fundador, e sucessivamente, de reafirmar os pactos federativos.

            Os pactos federativos no caso brasileiro não passam de uma ficção constitucional, porque inicialmente não houve pacto entre os Estados soberanos para constituir um novo Estado. Na realidade, seria mais correto afirmar que no início, de 1889 até 1930, existiram pactos políticos entre as oligarquias, e mais tarde, à partir dos anos 30, pactos políticos entre as elites políticas e econômicas, durante o processo de edificação do Estado nacional. Deste modo, o que são chamados de « pactos federativos » são em realidade alianças, na maioria das vezes pouco explícitas, constituidas normalmente em torno de recursos públicos, No caso brasileiro, os recursos têm uma importância fundamental na distribuição do poder, devido a assimetria econômica e social entre os Estados e as regiões. Os recursos públicos são constituidos de receitas fiscais ( próprias e transferidas, constitucionais ou negociadas), de receitas disponíveis da União (a maior parte é gasta nos Estados e nos Municípios), das despesas das empresas estatais federais, dos incentivos fiscais regionais, setorais e de empréstimos junto ao sistema financeiro público.

             Um pacto diferente

            Nós propomos um "pacto político" da totalidade do povo brasileiro através de seus delegados, constituintes, ratificado tanto através de referendo nacional por todo o povo, como pelo povo, via seus delegados, em ao menos 2/3 dos Estados, o que é chamado de "democracia consociativa". Nós pensamos que um pacto desta natureza pode assegurar uma democracia ao mesmo tempo majoritária e respeitosa das minorias territoriais.

            Para nós, o Brasil não é uma Federação, mas mais precisamente um Estado federal. Neste caso, o poder é distribuído entre a União e as coletividades territoriais (regionais, estaduais e municipais). A União (todo o povo) deve ser a representação de todas as coletividades (os grupos de indivíduos). A distribuição do poder deve obedecer ao principio de subsidiariedade. O poder deve ficar o mais próximo possível dos cidadãos. No início todo o poder deve ficar mantido ao nível do Município, e passa em seguida para as outras coletividades, e enfim, para a União. A União deve ter apenas os poderes necessários para assegurar a unidade nacional. Todavia, o essencial em um novo pacto é a tomada de consciência das autoridades centrais a respeito da obediência ao principio de subsidiariedade. Na verdade, é preciso criar uma cultura da subsidiariedade na sociedade.

            Para manter o pacto é necessário criar organismos encarregados da coordenação permanente em vários domínios, entre os representantes do governo central e dos governos regionais e dos governos regionais entre si, a começar pelas conferências permanentes entre o Presidente da República e os governadores, e isto, dentro de uma relação igualitária e de respeito e não de subordinação e de desprezo como é possível se verificar nos dias de hoje. Da mesma maneira, devem ocorrer conferências entre os ministros federais e os secretários das coletividades regionais. A procura de consenso deve guiar as relações entre os organismos centrais e regionais.

            O Senado pode exercer o papel de responsável da suspensão de atos normativos e administrativos da União e dos Estados, que possa ir além das limitações de cada um. O Supremo Tribunal tem também um papel fundamental através da jurisprudência.

            Para pensar o "pacto político" não se deve dissociá-lo da busca de um novo papel do Estado na sociedade. Neste contexto, o principio de subsidiariedade adquiriu uma grande importância, porque segundo este princípio não se deve transferir para a sociedade tudo aquilo que o cidadão pode fazer por ele mesmo, e essa não deve transferir ao Estado aquilo que a sociedade pode fazer por ela mesma.

            Refazer o "pacto político", no nosso entender, é uma passagem obrigatória para o Estado brasileiro, porque dentro do contexto atual, ele não assegura nem a unidade e nem a diversidade territorial. O pacto deve vir de baixo em direção ao alto, o povo deve se sentir parte integrante e fundamental na construção de um novo Estado. O Estado deve claramente ficar no seu lugar, ele deve ser um instrumento da sociedade, e em conseqüência a seu serviço e sob o seu controle permanente.




Federalismo de regiões

            A Região seria um espaço político, econômico, social, cultural, geográfico e histórico, portadora de uma certa homogeneidade.

            A região se impõe como uma necessidade para preencher a assimetria entre as coletividades brasileiras. Na "primeira República", os Estados mais fortes dominaram a política nacional. A "revolução 1930" criou um Estado unitário nacional. Desde 1946, o poder político deslocou-se para o Nordeste. Hoje, o poder político está nas mãos do Nordeste e o poder econômico situa-se em São Paulo. Autores compartilham da opinião de que no Brasil, o Estado federal é irreal. Deste modo, as Regiões podem restabelecer o equilíbrio do poder no sentido vertical e voltar a dar a legitimidade às coletividades, tornando o Estado mais eficaz e mais próximo dos cidadãos. Quanto aos meios para criar as Regiões, já existem hoje Regiões administrativas de desenvolvimento. Elas são formadas por Estados federados mais ou menos homogêneos aos níveis político, econômico, social, cultural, histórico e geográfico. Assim, seria necessário dar a autonomia político-constitucional para estas Regiões. Mantendo certas competências atuais dos Estados federados e dos Municípios, poderia ser destinado para as Regiões certas matérias que pertencem hoje a competência exclusiva da União e matérias da competência concorrente entre a União e os Estados federados.

            A criação e a organização das Regiões

            A Constituição federal de 1988 não fez muito progresso a respeito da questão regional. Ela trata apenas das políticas regionais federais ou das ajudas financeiras às Regiões menos desenvolvidas. Pelo menos foi a Constituição federal de 1988 que pela primeira vez deu um estatuto constitucional às Regiões. A Constituição reservou uma seção especial, "Das Regiões", para tratar da ação administrativa da União a nível regional.

            Nina RANIERI observa que a Constituição de 1988 trouxe certas inovações ao nível do federalismo, como a supremacia da nação sobre o Estado e a descentralização fiscal, administrativa e legislativa, tudo isto com o objetivo de atingir um novo pacto federativo, mas a fisionomia do federalismo brasileiro não alterou. De acordo com ela, a criação das Regiões administrativas constitui uma verdadeira inovação.

       A noção de regionalismo no Brasil

            No Brasil, a Constituição de 1946 foi a primeira a dar mais atenção para a questão regional. Neste contexto, foram criados grandes organismos federais de desenvolvimento regional, como : SUVALE, CODEVASF, SUDAM, SUDENE, SUDESUL et SUDECO.

            Nos anos 70 e 80, apareceram estudos de publicistas brasileiros que tratavam da divisão do país em Regiões. Paulo BONAVIDES é o publicista mais conhecido nesses estudos. Ele tem uma visão muito crítica no que diz respeito ao federalismo cooperativo. No lugar do "federalismo cooperativo", ou do "Estado Leviatã", BONAVIDES propõe um "federalismo das regiões", uma quarta esfera autônoma de governo, acima dos Estados federados e dos Municípios. Isto, no seu entender, pode constituir um "verdadeiro instrumento renovador e estimulante da reorganização político-econômica do sistema, em termos mais realista". Ele observa ainda o carácter ilusório de um federalismo de Estados federados em níveis desiguais de desenvolvimento econômico. De acordo com BONAVIDES, a politização das atuais Regiões deve ser conduzida no sentido de uma reforma federativa. Esta institucionalização política deve vir completar a institucionalização econômica já em curso. Ele indica também os benefícios fiscais destinados às Regiões como um bom método para incentivar o desenvolvimento.

            O constitucionalista Manoel GONÇALVES FERREIRA FILHO admite igualmente que no futuro poderá ocorrer « uma reorganização regionalista do federalismo brasileiro », aproveitando-se da experiência das regiões de desenvolvimento que já existem.

            Organização das futuras Regiões autônomas

            As Regiões devem ser constituídas por Estados federados homogêneos do ponto de vista histórico, geográfico, econômico, social e político.

            Paulo BONAVIDES propõe a distribuição geográfica do Brasil em cinco Regiões, como sendo a base do federalismo regional: o Norte, o Nordeste, o Sudeste, Centro-Oeste e o Centro-Sul, como existem hoje. Assim, de acordo com ele, haveria o Estado regional, o Estado-Membro e o Estado Federal. Nesta nova divisão das coletividades, BONAVIDES não concentra a sua atenção sobre os Estados federados, e menos ainda sobre os Municípios. Ele fala da criação de um estatuto de autonomia das Regiões. Na sua proposta, inicialmente só uma Região seria criada, a Região Nordeste, porque constituiria, de acordo com ele, a experiência mais sólida de regionalização que existe no Brasil. Não compartilhamos com esta proposta de criação de uma só Região no início, porque isto geraria uma grande assimetria ao nível da distribuição do poder no Estado brasileiro. Além disso, organizações regionais existem atualmente em outras partes do país. Por exemplo, existe projeto de lei tramitando no Congresso Nacional, que propõe a criação de um Parlamento da Região Amazônica (que agruparia os Estados do Norte), formado pelos representantes das Assembléias Legislativas dos Estados federados que pertencem a esta Região. Uma das principais atribuições deste Parlamento seria a elaboração de uma legislação sobre o desenvolvimento e o meio ambiente. Ou ainda, existe ao Sul do Brasil, um Conselho intergovernamental chamado CODESUL (Conselho de desenvolvimento dos Estados do Sul), ao qual participam os governos dos Estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná e do Mato Grosso do Sul. Estes Estados estão na fronteira com os países do MERCOSUL.

            No nosso entender, uma reorganização regional no Brasil deve conservar mais ou menos a divisão regional existente atualmente, o que é aceitável para uma grande parte dos políticos e intelectuais. Contudo, os Estados da Região Centro-Oeste podem integrar outras Regiões. Por exemplo, o Mato Grosso integraria a Região Norte; o Mato Grosso do Sul pertenceria a Região Sul, e Goiás para a Região Centro. Nesta reorganização, nós propomos cinco Regiões políticas (Norte, Nordeste, Centro, Centro-Sul e Sul), ou seja, as Regiões Amazônica, Nordestina, Central, Paulista e Sulina), no lugar das cinco Regiões administrativas existentes hoje (Norte, Nordeste, Centre-Oeste, Sul. Estas novas Regiões, para nós, seriam homogêneos aos níveis históricos, culturais e geográficos, como do ponto de vista econômico, social e político.

            Por conseguinte, a Região Amazônica poderia reunir os Estados de Rondônia, do Amazonas, do Acre, do Mato Grosso, do Pará, do Amapá, de Tocantins e de Roraima; a Região Nordestina permaneceria com os Estados da Bahia, de Sergipe, de Alagoas, de Pernambuco, da Paraiba, de Rio Grande do Norte, do Ceará, do Piauí e de Maranhão; a Região Central seria composta pelos Estados de Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de Goiás, do Espirito Santo e pelo Distrito Federal (Brasília); a Região Sulina poderia reunir os Estados de Rio de Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná e do Mato Grosso do Sul; e a Região Paulista seria constituída unicamente pelo Estado de São Paulo. Neste último caso, São Paulo seria ao mesmo tempo Região e Estado federado.

            Para Jean BEAUFAYS, o número de Estados não resulta habitualmente de uma escolha racional, "pois se deve levar em conta um número determinado pela geografia, pela história, pela língua, pois convem encontrar as instituições que se adaptam melhor." Um segundo princípio mostra-nos que mais a homogeneidade é grande na federação menos este problema apresenta importância. Uma grande heterogeneidade sentida por um só pode ser suficiente para causar graves dificuldades ao conjunto (Quebec).

            No que diz respeito aos órgãos da Região, no nosso entender poderia haver um Executivo, um Conselho e uma Assembléia Regional. O Executivo seria conduzido por um Presidente da Região eleito pelo sufrágio direto e universal. O Conselho Regional seria constituído por delegados designados pelos Governadores dos Estados e um número igual de representantes designados pelos Prefeitos dos Municipios de cada Estado federado. A Assembléia Regional seria constituída por Deputados regionais eleitos pelo sufrágio direto e universal.

            A Região não deve vir para enfraquecer ainda mais os Estados federados, pelo contrário, ela deve ser um órgão a serviço dos Estados federados e dos Municipios. No caso da União Européia, por exemplo, constata-se que a União procura se impor através do enfraquecimento do poder dos Estados nacionais. O desejo de alguns é transformar os cidadãos nacionais em cidadãos europeus, falando antes de uma Europa das regiões do que de uma Europa dos Estados-nações. Deste modo, Jean-Louis CLERGERIE se interroga se "o reconhecimento do papel das regiões na construção européia, que levou os editores do Tratado de Maastricht a instituir um Comité das Regiões de carácter consultivo, composto de representantes das coletividades regionais e locais (art.198 A a 198 C), não é igualmente com a intenção de diminuir progressivamente a influência dos Estados". Além disso, no Parlamento Europeu, os seus membros são eleitos nas regiões européias.

            No interior dos Estados federados, entendemos ser necessário a criação de órgãos que agrupem os Municípios, a fim de preencher certas necessidades que excedam as capacidades dos Municípios tratarem sozinhos. Mas neste caso estes órgãos teriam apenas um carácter administrativo. Já existe atualmente Associações de Municípios em Estados federados; como é o caso do Estado de Rio Grande do Sul. No entanto, essas associações têm antes um caráter revendicatório, sem contar com estrutura e meios para intervir. Neste Estado também é possível de ser encontrado Conselhos de desenvolvimento regional, constituídos por várias organizações da sociedade civil e dos órgãos municipais. O agrupamento dos Municípios é observado em países como a Alemanha, onde as associações constituem um distrito (Landkreise). Estes distritos têm, como os Municípios, uma personalidade moral própria e órgãos eleitos diretamente pela população. Eles preenchem as atribuições próprias dos Municípios, sobretudo dos pequenos Municípios situados no meio rural. Em contrapartida, as grandes metrópoles constituem sozinhas distritos. No caso brasileiro, as Regiões metropolitanas, constituídas pelas capitais dos Estados federados e pelos Municipios vizinhos, poderiam ter um estatuto mais importante que o têm hoje, com uma estrutura administrativa mais forte, que lhes permitiria intervir mais eficazmente na resolução dos graves problemas metropolitanos.

            Os poderes atribuidos para as regiões autônomas

            Os poderes podem ser atribuídos para as Regiões através de competências próprias  e da participação no Senado.

             As competências das Regiões

            Numa forma de Estado federal, a distribuição das competências aparece como um elemento central no sistema, porque é a divisão das competências que deve determinar se um Estado é centralizado ou descentralizado. Este opinião é compartilhada por autores como Karl LOEWENSTEIN que qualifica a distribuição das competências como "a chave da estrutura do poder central"; ou ainda conforme Claude- Sophie DOUIN, que define a distribuição de comepetências como "o elemento essencial da construção federal".

            As competências de todas as instâncias de poderes devem estar previstas na Constituição federal. Consequentemente, a Região pode ter o seu próprio estatuto, elaborado pela Assembléia Regional e sujeito ao Conselho Regional.

            As competências das Regiões poderiam vir de certas matérias, como a educação, a saúde, a cultura, a segurança interna, o processo administrativo, o direito eleitoral, agrário, penitenciário e do meio ambiente, a agricultura, o comércio regional, o transporte, e outros ainda, que pertencem hoje às competências exclusivas da União e às competências concorrentes da União e dos Estados federados.

            A participação no Senado Federal

            A regra da participação dos Estados federados no Congresso Nacional é, sem sombra de dúvida, um dos critérios mais importantes para a caracterização do Estado federal e para diferenciá-lo das outras formas de Estado. Neste contexto, nós queremos transformar o Senado brasileiro numa Câmara de representação das Regiões, dos Estados e dos Municiípios, ou seja, uma Câmara das coletividades e não somente dos Estados federados.

            Cada Região seria representada ao Senado federal por cinco senadores designados pelo Presidente da Região. Assim, as Regiões teriam uma representação de 25 senadores ao Senado federal. Propomos também uma representação de 25 senadores aos Estados federados e 25 senadores aos Municípios. Todavia, deixaremos para outro se aprofundar no trato do Senado Federal.

            Os senadores cessariam ser eleitos diretamente pelo povo para serem designados pelos chefes dos Poderes Executivos das coletividades territoriais. Isto para permitir ao Senado representar mais eficazmente as coletividades, porque o senador eleito pelo povo, teria o mesmo status que um deputado. Além disso, é comum os senadores serem de partidos de oposição aos governadores dos Estados, neste caso a representação dos Estados desaparece quase completamente, pois os senadores ficam mais ligados aos seus partidos políticos. Em contrapartida, o fato a ser designado pelo chefe do Poder Executivo retira uma grande parte da legitimidade dos senadores, como podemos ver por exemplo no Bundesrat (Senado alemão). É por isto que nós propomos que a escolha do chefe do Poder Executivo seja feita entre pessoas que possuem um mandato popular, e no caso da Região, tratar-se-ia dos deputados regionais, dos ex-deputados regionais ou ainda dos ex-presidentes da Região.

            Por sua parte, Paulo BONAVIDES propõe a criação de uma representação regional composta, no mínimo, do dobro de senadores por Estado, ou seja de seis senadores por Região. Todos os senadores seriam eleitos pelo voto direto e pelo sufrágio universal. Ele fala também de uma Assembléia regional composta por membros eleitos por este mesmo processo. A competência desta Assembléia seria constituída pelas matérias sobre planejamento e de todas as matérias que representam o interesse especial das Regiões.



 Executivo dualista

            Na relação entre os três Poderes, ressalta-se a importância do Poder Executivo em razão dos recursos políticos, técnicos e principalmente financeiro, que são muito fortes, o que lhe permite ter uma intervenção em todo o território nacional. A concentração de poderes no Executivo lhe permite ter superioridade, seja em relação aos demais Poderes da União, como em relação aos demais membros da federação. Esta concentração de poderes, portanto, é responsável pelo desequilíbrio do poder estatal no Brasil.

            O Congresso Nacional sempre deu maioria ao Presidente da República, uma maioria de centro-direita, e isto não permitiu a independência do Congresso Nacional. Além disso, os instrumentos utilizados pelo Presidente da República para assegurar a sua maioria não pertenciam sempre à boa moral política, as relações de clientelismo sempre foi um elemento presente. Podemos dizer que a sociedade política está mais próxima do Estado que da sociedade civil, o que retira uma grande parte da sua legitimidade. O Senado federal não representa fielmente os Estados federados e a Câmara dos deputados também não representa devidamente o povo. O STF raramente cumpre com o seu papel de árbitro entre a União (Executivo) e os Estados federados (Executivo) e entre a presidência da República e o Congresso Nacional, porque os contenciosos constitucionais de grande importância não ocorrem, e a grande parte das suas decisões vai no sentido de reforçar o poder da presidência da República.

             A força do poder presidencial no Brasil

            Inicialmente apresentaremos o Poder Executivo federal no Brasil. O Executivo é único, o Presidente da República é ao mesmo tempo chefe de Estado e chefe do governo. Neste presidencialismo, o Presidente é eleito diretamente pelo povo, em eleição nacional, a cada 4 anos. O presidente não é politicamente responsável frente ao Parlamento, e este não pode ser disolvido por aquele. O impeachment é um procedimento que está nas mãos do Congresso Nacional, através do qual o Presidente da República pode ser afastado do seu cargo, devido a prática de crime de responsabilidade. No Brasil, como em outros países, a presidência da República é uma instituição muito forte, podemos dizer que ela está na primeira fila, na frente das outras instituições.

            A dicotomia entre o presidencialismo majoritário e excludente, de um lado, e o federalismo consensual e integrador, por outro lado, faz parte da realidade brasileira. O federalismo, ou a descentralização do poder, apareceu como uma alternativa possível à transição democrática na América Latina nos anos 80. No entanto, o presidencialismo constitui um obstáculo ao federalismo, porque o poder é centralizado excessivamente na figura presidencial, tanto no que se refere a distribuição horizontal como vertical do poder.

            De acordo com Paulo BONAVIDES, no Brasil sempre houve um Estado muito forte, porque o Estado veio antes da nação e ele fez a independência do país. A existência deste Executivo forte, de acordo com o autor, vem reforçar a tese de que "nunca tivemos um federalismo autêntico e original, nem na doutrina, nem nas instituições...". Também, ao nível dos Estados federados, a mínima autonomia destes últimos é em proveito dos Poderes Executivos. Por último, BONAVIDES assinala que "o Decreto-lei, a tecnocracia, a planificação autoritária e o presidencialismo" são os fatores mais antifederativos no Brasil. Quando BONAVIDES nos fala de Estado forte queremos entender que esteja falando de um Estado autoritário, o que historicamente, no nosso entender, impediu o surgimento de uma sociedade civil fortemente organizada.

            No mesmo sentido, José Afonso da SILVA declara que "a verdade histórica é que no Brasil o presidencialismo deformou-se na prática do federalismo". O presidencialismo e o federalismo deformam-se entre si devido ao contexto sóciopolítico em que se constituíram ao mesmo momento".

            A figura da reeleição do presidente da República foi possibilitada através da alteração da Constituição federal pela Emenda constitucional n. 16, de 04.06.97. É a primeira vez que uma Constituição brasileira prevê a reeleição dos chefes dos Poderes Executivos (Presidente da República, governadores, e prefeitos, e respectivos vices). A reeleição não fazia parte do constitutionalismo latino-americano. Ela foi introduzida nos anos 90, após um fenômeno que Olivier DABÈNE qualifica de contágio. O primeiro país a adotar a nova modalidade foi o Peru em 1993, com a reeleição de Alberto FUJIMORI, quando era Presidente e efetuou um golpe de Estado, fazendo passar uma alteração à Constituição que lhe permitiu a reeleição. Logo após, em 1994, o Presidente Carlos MENEM, da Argentina, impôs uma alteração à Constituição que permitiu a sua reeleição. Por último, em 1997, o Presidente Fernando Henrique CARDOSO, no Brasil, apoiou a proposta parlamentar de alteração à Constituição que autorizou a reeleição dos chefes de Poder Executivo. A experiência da reeleição no caso brasileiro pode demonstrar a inadequação deste novo instrumento que permite ao chefe do Poder Executivo de manter-se no poder. A reeleição, no nosso entender, é associada a dois problemas principais: por um lado os candidatos não disputam em condições de igualdade, porque um dos candidatos exerce o poder com mais possibilidades de visibilidade perante os meios de comunicação social; além disso o fato de ter a máquina pública nas mãos permite ao candidato chefe do Poder Executivo exercer muita influência sobre os eleitores, embora também haja a possibilidade de desgaste por ser governo. Além disso, no caso da reeleição, seria difícil um controle quanto ao uso da máquina pública pelo chefe de Poder Executivo.

            A reforma constitucional expõe a presidência da República a todas as formas de negociações políticas. Por esta razão, a revisão da Constituição que durou 7 mês, de 6 de outubro de 1993 a 31 de maio de 1994, teve como resultado a reforma de 6 dos 245 artigos da Constituição. Depois deste fracasso, o Executivo, que era o principal interessado nas reformas constitucionais, escolheu a via ordinária de alteração da Constituição. Nesta nova fase de mudança da Constituição, pode-se ver claramente as negociações correntemente clientelistas entre o Executivo e os parlamentares, tomados mesmo nas suas individualidades. Nesta última situação, o voto do deputado é dado em troca da liberação de recursos para a base eleitoral do deputado. Além disso, as novas Constituições elaboradas na América Latina nos anos 80, são bem complexas e detalhadas o que torna difícil a sua reforma.

            O Presidente da República dispunha, antes da Constituição de 1988, do poder de legislar através do Decreto-lei. Isto sempre foi um instrumento forte nas mãos do Presidente. O Decreto-lei dos regimes precedentes foi substituído pelas "medidas provisórias". Elas se transformaram em instrumento autoritário nas mãos do Presidente da República. O grande problema das medidas provisórias era a sua sucessiva reedição, sem que o Congresso Nacional pudesse apreciar a matéria. Em 11/09/1999 foi promulgada a Emenda Constitucional n. 32 que limitou a reedição de medidas provisórias por uma única vez. O Presidente da República Fernando Henrique CARDOSO, no poder desde 1994, utilizou abusivamente o instrumento das "medidas provisórias", usando do expediente da reedição. O que significa governar sem a participação do Congresso Nacional.

            A relação entre o Presidente da República e os governadores tem sido geralmente de superioridade do primeiro em relação aos segundos. O Presidente trata os governadores como se eles fossem seus subordinados, não existindo relações de igual para igual. O Presidente da República convida muito raramente os governadores à "visitarem Brasília", e assim mesmo para tratar de assuntos gerais, o que normalmente não tem uma aplicação concreta.

             Um novo Executivo federal

            O fato de concentrar o poder na figura de um único chefe do Poder Executivo torna muito difícil o bom exercício do poder, porque o Presidente da República possui as atribuições de chefe de Estado e de chefe do governo, e esta situação ainda é agravada pelo fato do Brasil ter uma dimensão continental.

            No referendo constitucional de 21 de abril de 1993, sobre a natureza do regime, o presidencialismo chegou na frente, apesar da abstenção de 25,7% dos eleitores. Para Olivier DABENE "o debate sobre a forma do regime no Brasil é também o reflexo de um sentimento generalizado de descontentamento em relação a personalização do poder e as derivações presidencialista. O parlementarismo é frequentemente apresentado como sendo de natureza a favorecer a consolidação democrática".

            No nosso entender, apesar dos problemas do presidencialismo, o parlementarismo no Brasil não é o regime mais adequado. Este regime teve um grande progresso na Europa, mas a sua adaptação em certas realidades é ainda difícil. No caso brasileiro, no nosso entender, dois obstáculos principais se apresentam: a escolha dos deputados e o regionalismo.

            No que diz respeito a escolha dos deputados, ela não é feita da mesma maneira que nos países desenvolvidos. O Brasil é o país com maior desequilíbrio social no mundo, onde uma minoria concentra a maior parte das riquezas. Os partidos de direita e centro-direita têm sempre a maioria no Parlamento, porque para ser eleito depende-se em grande parte de recursos financeiros. Além disso, grande parte dos eleitores tem um baixo nível de escolaridade, uma parcela está na pobreza, aliado ao fato da ausência de uma cultura democrática ao Brasil. Nestas circunstâncias, o parlamentarismo iria institucionalizar a direita e centro-direita no poder, porque o Brasil não conhece alternância ao poder entre a direita e a esquerda. Além disso, na presidencial as possibilidades para os partidos de centro-esquerda e de esquerda são mais evidentes.

            Desde o início do segundo mandato do Presidente CARDOSO (em janeiro de 1999), políticos próximos a ele começaram a discutir uma proposta de alteração da Constituição para a introdução do parlementarismo, mas isto foi percebido pelos partidos de esquerda como uma tentativa de "golpe", para impedir a esquerda chegar ao poder pela eleição presidencial.

            Quanto ao regionalismo, ele oferece inicialmente um problema de sub-representação de certos Estados na Câmara dos deputados, uma situação que é favorável as Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (as Regiões menos desenvolvidas) e desfavorável as Regiões Sudeste e Sul (as Regiões mais desenvolvidas). Esta sub-representação assegura uma maioria parlamentar às Regiões que são menos povoadas. Devido a esta sub-representação, estas Regiões poderiam impôr de maneira duradoura o chefe de governo, porque os fatos demonstram que elas se reunem sempre quando os seus interesses estão em jogo.

            Em contrapartida, tentamos apresentar algumas propostas de um modelo que, no nosso entender, é mais adequado à realidade brasileira. O Poder Executivo poderia dividir-se em dois: um chefe de Estado e um chefe do governo. O Chefe de Estado poderia ser eleito diretamente pelo povo, o Primeiro-ministro seria designado livremente e destituido pelo Presidente da República. O cargo de Vice-Presidente da República, existente hoje, poderia ser extinto. O primeiro-ministro poderia ser destituído pela maioria do Parlamento após o primeiro ano de governo, ou em qualquer momento por crime de responsabilidade. O Presidente da República poderia livremente designar um novo chefe de governo. Após um ano do segundo governo, poderia haver a destituição do primeiro-ministro pela maioria do Parlamento. No caso de uma segunda destituição do primeiro-ministro, o Presidente da República teria a seguinte escolha, ou ele aceita que o Parlamento designa o novo primeiro-ministro, ou ele dissolve o Parlamento e convoca novas eleições legislativas. Caso o Presidente da República não puder adquirir a maioria no Parlamento haveria uma nova eleição presidencial.

            Para garantir a governabilidade, a metade dos deputados poderiam ser eleitos segundo a proporção de votos obtidos pelos partidos ou coligações na eleição presidencial, pois pode ocorrer do Presidente ser eleito e ter uma minoria considerável, o que iria afetar o equilíbrio governamental. No caso, os candidatos à presidência da República que não fossem eleitos poderiam ter assegurado cadeiras no Parlamento, sob a condição de que seus partidos ou coligações tivessem obtido o percentual mínimo de votos necessários.

            Neste novo modelo, o chefe de Estado poderia adquirir novos papéis, como realizar conversações com os governos das coletividades territoriais, ser o garantidor do respeito da Constituição e das instituições, e igualmente o garantidor do pacto político e social. O Presidente da República poderia se ocupar com mais atenção das coletividades territoriais e o primeiro-ministro dos partidos políticos, tendo em vista que os partidos políticos são com freqüência acusados de serem responsáveis pelo enfraquecimento do poder dos Estados federados.


Considerações Finais

            Procuramos ao longo deste trabalho fazer uma reflexão a respeito de tema da maior relevância, que é a distribuição do poder estatal, tanto do ponto de vista horizontal, entre os três Poderes da União, como do ponto de vista vertical, entre os membros da Federação.

            Primeiramente abordamos o pacto político, construído de baixo para cima, envolvendo o povo e as coletividades territoriais, indo além da ficção histórica da figura do pacto federativo, como se o Estado brasileiro tivesse se originado a partir da união de Estados soberanos, como foi o caso dos Estados Unidos. Neste novo pacto é importante a noção de subsidiariedade, ficando o poder o mais próximo possível dos interessados.

            O federalismo de regiões é uma tentativa de reestruturar o Estado federal, dando um maior equilíbrio entre os entes federativos. As Regiões iriam assumir papéis que hoje são da União, e teriam uma atuação mais em acordo com as particularidades regionais em um país continental como é o Brasil. Portanto, com as Regiões teríamos um Estado federal com quatro níveis: União, Regiões, Estados e Municípios. As Regiões viriam para fortalecer os Estados e Municípios e não ao contrário.

            Um Poder Executivo dualista é a procura em tornar o Executivo mais racional e eficaz, e ao mesmo tempo possibilitar uma certa responsabilidade política do Executivo frente ao Parlamento. Todavia, este dualismo seria distinto daquele que encontramos no parlamentarismo, pois aqui o governo seria ainda conduzido pelo Presidente da República, através de um primeiro-ministro de sua livre escolha, sem contar inicialmente com o referendo do Parlamento, mas onde o primeiro-ministro teria parcela de responsabilidade junto ao Parlamento. Procuramos então, estabelecer um equilíbrio entre a influência do Presidente da República e do Parlamento sobre a condução do governo. Com isto esperamos assegurar que o Presidente da República, eleito diretamente pelo povo, e com forte legitimidade popular, governe, mas não governe só, concentrando muito poder numa única figura.

Paulo Vargas Groff

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Não há necessidade de constituinte para implantar o parlamentarismo



 Luiz Antonio Sampaio Gouveia



Deve-se bem refletir sobre o parlamentarismo como solução possível para a nossa permanente crise de governança e governabilidade.

Atribuir o parlamentarismo no Brasil à Constituição do Império, de 1824, pode não ser correto. Muito menos dizer que fosse o Poder Moderador — como se dizia nela, a chave de toda nossa organização política — a expressão de um sistema parlamentarista.

O Poder Moderador era um poder de sobreposição, para arbitrar conflitos políticos comumente e sociais e jurídicos, mais raramente, no âmbito do Estado, posto na pessoa do imperador, que não poderia ser responsabilizado em sua ação pela cidadania.

O parlamentarismo surgiu no império como instrumento para aperfeiçoar e facilitar a operatividade do Conselho de Ministros, após a grande concertação de Honório Hermeto Carneiro Leão, que construiu as bases para a estabilidade do Império, mas não se punha como um governo parlamentar por excelência, porque era o imperador quem derrubava os ministérios inoperantes convocando novas eleições a cada vez que liberais e conservadores não se entendiam na Câmara — contexto no qual apenas os deputados eram eleitos e os senadores eram vitalícios e nomeados por sua majestade.

Contudo, não se pode falar em eleições autênticas naquele império de dez milhões de habitantes, em que o voto não era universal e, mais ainda, censitário, com boa parte da população sob o regime da escravidão, em sua maioria.

Nos estertores da monarquia, seria Gaspar Silveira Martins o último primeiro ministro imperial. Entretanto, já há quem diga tenha sido a República consequência de disputa amorosa entre ele e o Marechal Deodoro, daí não tivesse ele logrado aquele cargo.

Entretanto, o nome de Gaspar vem à baila porque a continuidade de sua luta política tem a ver com o parlamentarismo no Brasil.

Exilado no Uruguai após a proclamação da República, tornado, então, um caudilho, Gaspar foi líder, com Gumercindo Saraiva da Revolução Federalista, de 1893, cujas tropas quase depuseram a República, tendo chegado a São Paulo, pouco além das margens do Paranapanema.

O confronto deu-se a partir das divisões políticas gaúchas. As gentes de Gumercindo Saraiva chamavam-se Maragatos (defendiam o Parlamentarismo); seus adversários, Ximangos, tinham por líder Júlio de Castilhos, positivista, que defendia um sistema de governo, para não dizer presidencialista, porque sustentado na pessoa de um chefe de estado e de governo, ditatorial.

Em 1923, com o Tratado das Pedras Altas, pacificou-se a política gaúcha, cuja ruptura datara-se da Revolução Federalista, entre Maragatos e Ximangos. Contudo, a partir daí, preponderou o castilhismo, de Júlio de Castilho, cujo mais conhecido discípulo, o doutor Getúlio Dorneles Vargas, nos outorgou a Carta ditatorial de 1937, de um presidencialismo ditatorial.

Apesar de unidos na Revolução de 30, os Maragatos continuaram parlamentaristas, fundando, a partir de 1946, o Partido Liberal, cuja principal figura fora Raul Pila e seu último presidente em São Paulo, o jurista Ives Gandra da Silva Martins.

Não se precisa dizer que passando os Ximangos — com Vargas e Goulart — a preponderar na política brasileira de 1937, quase até 1964, que o presidencialismo sempre foi exaltado, com a pichação do parlamentarismo.

Em 1961, como solução para a crise decorrente da renúncia de Jânio Quadros, enquanto parcela majoritária das Forças Armadas não aceitava o vice-presidente João Goulart empossado presidente e porque o alegavam comunista, buscou-se inspiração nesse Parlamentarismo de Raul Pila para implantar o parlamentarismo, fazendo de Goulart, em tese, mero chefe de Estado, enquanto presidente, sem poderes de governo efetivo. Entrementes, esse parlamentarismo foi derrubado por plebiscito em 1963, mas não se pode culpar essa experiência equívoca do sistema parlamentarista, por sua inoperância no Brasil, porque desde a sua implantação em 1961, esse sistema foi deturpado por todos e até por seus primeiros ministros, principais agentes de sua desmoralização entre nós.

Finalmente, a Constituição de 1988 construiu-se sob um viés parlamentarista, promulgando-se presidencialista. Esta solução “frankenstein”, resultou nesse presidencialismo de coalização que deságua na crise atual.

Certo, entretanto, que se previra nas disposições transitórias de nossa Constituição a opção entre os dois sistemas, por plebiscito que se deu em 1992, afinal com a escolha do presidencialismo para fazer operante uma Constituição preponderantemente valorizante do parlamento.

Também esse plebiscito foi objeto de alguma incompreensão, porque realizado concomitantemente com opção plebiscitária entre república ou monarquia. Confundiu-se o parlamentarismo com monarquia, possivelmente. Mas tanto em 1963, como em 1992, houve um vício de invalidade na origem e porque não se dera o necessário esclarecimento aos eleitores. Na primeira hipótese, ocorreu forte pressão governista para reprovação do parlamentarismo, com recursos maciços e de propaganda massiva em favor da espécie presidencialista; na segunda, confusão entre parlamentarismo e monarquia e inegável deturpação do sistema parlamentar, que restou pejorado pelo paradigma impróprio do regime de 1961.

Hoje, em que pese a licitude do impeachment da presidente Dilma Rousseff — posto que o controle de verbas públicas esteja na causa quase que originária do constitucionalismo e ser evidente que quem protela os credores, pedala tanto na vida pública quanto na privada, em desobediência ao orçamento —, há um certo viés de moção de desconfiança neste apear da senhora Rousseff.

Entretanto, em um sistema parlamentarista poderiam não ter acontecido os acintes aos preceitos regulatórios perpetrados pelo governo Dilma nas áreas de energia ou as barbadas com os juros, pela instrumentalização do Banco Central. Sequer teriam sido esvaziadas as agências reguladoras aparelhadas pelo PT, haja vista que essas questões de governança estariam subordinadas ao parlamento.

Esses temas não seriam uma questão de Estado, à responsabilidade do presidente, desgastável em cada frustração operacional deles; seriam questões de governo, que se trocaria quando evidente não se ter conseguido o escopo de sua propositura. Nesta hipótese, cairia o gabinete que não conseguira o ótimo ou o razoável de seu programa.

Assim, no binômio parlamentarismo e agências reguladoras, pode estar uma governança que tire do presidente da República esse atributo caciquista de um quase monarca.

Dizer que o parlamentarismo nunca deu certo no Brasil, não dá! Porque ele nunca vigeu em essência por aqui!

Todavia, não há necessidade de Constituinte para implantar o parlamentarismo porque o presidencialismo não está amparado por cláusula pétrea constitucional.


A questão está em melhor estudar-se o parlamentarismo. Um sistema de governo de responsabilidade a prazo certo, mais coadunado com a democracia, que, afinal, não é apenas o voto universal e direto.