"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Constituição de 1891 e o presidencilismo brasileiro


No início da República, com a Constituição de 1891, como condições (denominadas então de essenciais) para eleição do Presidente, exigia-se que o candidato fosse brasileiro nato, que estivesse no exercício de seus direitos políticos e que fosse maior de 35 anos. A regra mantém-se até hoje.

Previa-se nova eleição, na hipótese de vacância do cargo, por qualquer razão, antes de cumpridos dois anos do mandato; De outra forma, o Vice-Presidente assumiria e concluíra o mandato para o qual também fora eleito. O mandato presidencial previsto era de quatro anos; vedava-se a reeleição, para o período subsequente imediato. O debate ainda é atual.

A Constituição dispunha também sobre o juramento do Presidente no ato de posse (que denominava de afirmação) ante o STF. O Presidente e o Vice-Presidente estavam proibidos de sair do território nacional, sem permissão do Congresso, sob pena de perderem o cargo. A regra vai perdurar.

As eleições seriam porsufrágio direto da Nação e por maioria absoluta de votos. Dispunha-se também que se nenhum dos candidatos conseguisse alcançar maioria absoluta dos votos, o Congresso elegeria, por maioria dos votos presentes, um deles, dentre os que tiverem alcançado as duas votações mais elevadas na eleição direta. Previa-se também que em caso de empate considerar-se-ia eleito o mais velho dos candidatos.

Havia alguma proteção contra os malefícios do nepotismo, no sentido de que a Constituição de 1891 declarava como inelegíveis, para os cargos de Presidente e Vice-Presidente os parentes consanguíneos e afins, nos 1º e 2º graus, do Presidente ou Vice-Presidente, que se encontrassem em exercício no momento da eleição ou que o tivesse deixado até seis meses antes do referido pleito.

As competências presidenciais eram minudentemente definidas na Constituição, disposições que, em linhas gerais, persistem até o modelo contemporâneo. Competia privativamente ao Presidente, de acordo com nossa primeira Constituição republicana, no contexto das atribuições do Poder Executivo, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções do Congresso; bem como expedir decretos, instruções e regulamentos para sua fiel execução. Ainda não se cogitava de medidas provisórias, que copiamos da Itália, na Constituição de 1988.

Quanto à organização de seu Governo, o Presidente detinha competência para nomear e demitir livremente os Ministros de Estado; para exercer ou designar o comandante supremo das forças de terra e mar, em caso de guerra; e também para administrar o exército e a armada, distribuindo as respectivas forças. O Presidente era competente para declarar a guerra e fazer a paz (com autorização do Congresso) ou, nos caos de invasão ou agressão estrangeira, tomar providências sem oitiva do Legislativo.

Ao presidente também incumbia convocar o Congresso para reunião extraordinária. Era o Presidente quem nomeava juízes federais mediante proposta do Supremo Tribunal. Era o Presidente quem nomeava os membros do Supremo Tribunal Federal e os Ministros diplomáticos, sujeitando essas nomeações à aprovação do Senado. Também era o Presidente quem conduzia a política internacional. A declaração de estado de sítio, em qualquer ponto do território nacional, nas hipóteses de agressão estrangeira ou guerra civil (“comoção intestina”, na expressão da própria Constituição de 1891) era mais uma das prerrogativas do Presidente.

Quanto aos Ministros de Estado, a Constituição consignava que eram “agentes da confiança do Presidente” que lhes subscreviam os atos. Os Ministros eram auxiliares do Presidente, com prerrogativa para presidir os respectivos ministérios, nos quais se dividia a Administração Federal.

A Constituição de 1891 dispunha também sobre crimes de responsabilidade do Presidente, que seria processado e julgado pelo STF, nos crimes comuns, depois que a Câmara declarasse procedente a acusação, e pelo Senado, nos casos de crimes de responsabilidade.

Rui Barbosa colaborou intensamente na redação dos dispositivos referentes às competências e responsabilidades do Presidente da República. Uma comissão de juristas nomeada pelo Governo Provisório de Deodoro da Fonseca, por intermédio do Decreto nº 29, de 3 de dezembro de 1889, e composta por Saldanha Marinho, Américo Brasiliense, Santos Werneck, Rangel Pestana e Magalhães Castro, apresentou texto inicial, que foi emendado por Rui, e posteriormente encaminhado pelo Governo Provisório (com algumas outras pequenas alterações) para a Assembleia, que fixou o texto definitivo.

Pode-se verificar - e se comprovar - esse trânsito conceitual e redacional, na definição da relação do Presidente, com seus Ministros. Lê-se primeiramente, no projeto da Comissão de Juristas formado pelo Governo Provisório:

“Como seus auxiliares no exercício do Poder Executivo, o Presidente da República nomeará para as diversas secretarias em que for dividida a administração, conforme lei do Congresso, cidadãos de sua confiança”.

Rui Barbosa alterou a redação e propôs a seguinte formulação:

O Presidente é auxiliado pelos Ministros de Estado, agentes de sua confiança, que referendam os seus atos, e presidem cada um a uma das secretarias, em que se divide a administração federal”.

O Governo Provisório acatou a sugestão de Rui Barbosa e a encaminhou para o Congresso, como redigida pelo advogado baiano, com duas pequeníssimas alterações de redação:

“O Presidente da República é auxiliado pelos Ministros de Estado, agentes de sua confiança, que lhe referendam os atos, e presidem cada um a uma das secretarias, em que se divide a administração federal”.

Por fim, o Congresso adotou e promulgou a versão seguinte:

“O Presidente da República é auxiliado pelos Ministros de Estado, agentes de sua confiança que lhe subscrevem os atos, e cada um deles presidirá a um dos Ministérios em que se dividir a Administração federal”.

Outro comentarista da Constituição de 1891, Carlos Maximiliano, acentuou as prerrogativas de mando, inerentes ao mandato presidencial:

“(...) o Presidente não se limita a executar o que o Congresso delibera: resolve, impulsiona, sugere. Representa o poder que age, tanto por alvedrio próprio como por alheia indicação (...) Cumpre as lei; porém toma, em mensagem ou por meio das Comissões Permanentes, a iniciativa de projetos, conclui tratados, fomenta indústria e a agricultura, assegura a ordem. Não é o braço apenas; é antes o cérebro diretor do país a rumo de seus altos destinos. Executa as deliberações do Legislativo e ordens do Judiciário; porém, por sua vez, prevê e provê, vigilante e ativo, evitando males e propinando remédios. O Congresso resolve de modo geral, fixando normas ou regras jurídicas; os tribunais agem provocados por uma ação concreta, determinando o que corresponde aos termos da lei e o que os transgride; o Presidente ordena, em casos isolados, que se faça ou que deixe de fazer. A sua atividade é complexa e multiforme; porque descobre e emprega meios apropriados para atingir os fins de publica utilidade e necessidade, conforme o Direito determina ou permite. Governa e administra, resiste e agride, faz diplomacia e mantém a federação”.

A unidade governamental é o registro mais recorrente na compreensão da autoridade presidencial, e na hierarquia que dela decorre, ainda segundo Carlos Maximiliano, para quem a divisão do trabalho seria necessária, inclusive como fundamento último da autoridade do presidente:

“A direção suprema é forte, eficaz, decisiva, quando unipessoal (...) O princípio dominante em quase todos os países cultos não constitui obstáculo à divisão do trabalho. O Presidente é apenas o chefe do Poder Executivo, o supremo coordenador de esforços e energias. Há sete ministérios, previstos pelo art. 49; portanto, abaixo da autoridade única existe multiplicidade, complexidade, variedade de empregos e funções confiadas a milhares de cidadãos, hierarquicamente subordinados a autoridades centrais”.

É outro autor clássico, Annibal Freire da Fonseca, que em monografia na qual estudou o Poder Executivo, insistiu na necessidade da unidade da ação, como instrumento de plasticidade para enfrentamento das múltiplas tarefas inerentes à Chefia do Governo e do Estado:

“(...) O executivo funciona permanentemente. Destinado a impulsionar e dirigir a ação administrativa, não é possível negar-lhe a plasticidade indispensável ao mecanismo governamental. Por isso mesmo todas as organizações políticas modernas timbraram em adotar, na formação deste poder, as regras, que o tornem forte sem o fazer absorvente, um propulsor de energia sem degenerar em instrumento de opressão. Nas democracias, assoberbadas pelos conflitos das paixões populares e pela erupção de instintos de revolta, avulta a necessidade de resguardar os interesses supremos do Estado, pela constituição de um governo capaz de resistir à pressão de elementos dissolventes”.

Foi sob a vigência da Constituição de 1891 que Deodoro da Fonseca renunciou, num contexto de instabilidade política, marcado pela dissolução do Congresso e pela decretação do sítio. Foi sucedido por Floriano Peixoto, também de Alagoas, cognominado de O Marechal de Ferro. Em seu discurso de posse, proferido em 23 de novembro de 1891, o novo presidente comprometia-se em combater a crise financeira, que agonizara durante o período em Rui Barbosa fora Ministro da Fazenda, a chamada crise inflacionária do encilhamento:

“A administração da fazenda pública com a mais severa economia e a maior fiscalização no emprego da renda do Estado será uma das minhas preocupações. Povos novos e onerados de dívidas nunca foram povos felizes, e nada aumenta mais as dívidas dos estados do que as despesas sem proporção com os recursos econômicos da nação, com as forças vivas do trabalho, da indústria e do comércio, o que produz o desequilíbrio dos orçamentos, o mal estar social, a miséria. Espero que, fiscalizada e economizada a fazenda pública, mantida a ordem no País, a paz com as nações estrangeiras sem quebra de nossa honra e dos nossos direitos, animado o trabalho agrícola e industrial e reorganizado o regime bancário, os abundantes recursos do nosso solo vaporizarão progressivamente o nosso meio circulante, depreciado com as permutas internacionais, e fortificarão o nosso crédito no interior e no exterior”.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

A República Velha e o presidencialismo brasileiro


O governo Floriano Peixoto foi marcado por muita oposição, especialmente no sul do país, a exemplo da Revolução Federalista, que se iniciou no Rio Grande do Sul. Foi o escritor Lima Barreto, que não tinha razões para apreciar Floriano, e que do marechal não gostava, quem nos fornece prosaico retrato, na memorável cena do Policarpo Quaresma, quando o anti-herói encontra-se com o presidente:

“Era vulgar e desoladora [a aparência do Presidente]. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande ‘mosca’; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, cheio de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos”.

Os civis retornaram com Prudente de Moraes, paulista e republicano histórico. Com Prudente, “a oligarquia consegue subir ao poder (...) o predomínio desta nos Estados e a absorção de novos grupos, por meio de alianças, levam-na a lutar pela legalidade”, o que teria justificado, inclusive, a violenta repressão a Canudos, que se conhece em primeira mão pelos relatos de Euclides da Cunha.

A expansão da produção agrária brasileira, e sua inserção no comércio internacional, no início do século XX, tiveram também como resultado a concentração de poder nos Estados produtores dos gêneros de exportação; um paulista sucedeu a Prudente de Moraes. Começou a política do café com leite.

Campos Salles tomou posse em 1898. Em seu primeiro pronunciamento, explicou como entendia a relação entre os três poderes, e como inseria a função que exerceria nesse conjunto de instituições políticas:

“Defendendo intransigentemente e com o mais apurado zelo as prerrogativas conferidas ao poder que vou exercer em nome do sufrágio direto da Nação, afirmo aqui, desde já, o meu mais profundo respeito ante a conduta dos demais poderes, na órbita de sua soberania. Esta atitude, que será rigorosamente observada, dará forças ao depositário do Executivo para, de seu lado, opor obstinada resistência a todas as tentativas invasoras. O papel do Judiciário no jogo das funções constitucionais torna mais remotas as suas relações com os outros poderes.

É um poder que não luta; não ataca; não se defende: julga. Sem a iniciativa que aos outros cabe, a sua ação não se manifesta senão quando provocada. Fora desta região de paz e pureza, a única em que reina a justiça, o seu prestígio moral desfaz-se ao sopro das paixões. São mais diretas e mais frequentes as relações entre o Executivo e o Legislativo. Estes são os poderes que colaboram com estreita aliança na dupla esfera do governo e da administração; a eles, pois, compete manter, no desdobramento de sua comum atividade, uma contínua e harmônica convergência de esforços para o bem da República. É indiscutível – pois que é da natureza do próprio regime – que ao Executivo cabe a iniciativa de medidas legislativas, de caráter administrativo. É claro, porém, que de nada serviria a ação conjunta dos demais poderes, se o Legislativo recusasse o seu acordo, tomando orientação diversa ou contrária”.

Campos Salles enfrentou a crise financeira, negociando com os banqueiros ingleses, o chamado Funding Loan, o que fizera, na visão de um estudioso desse período, com “prudência e extraordinário critério”. Outro paulista sucedeu a Campos Salles, o também bacharel Rodrigues Alves, lavrador de café, interessado na alta dos preços do produto, mas que contra esse lucro fácil teria se insurgido, traduzindo, em sua ação, uma virtuose política que parece marcar os presidentes do período.

Um representante das oligarquias de Minas Gerais sucedeu a Rodrigues Alves; trata-se de Afonso Pena que, logo após eleito, excursionou pelo país, em pequena comitiva, o que entusiasticamente divulgado pelos jornais do país. Na capital pontificava também o gaúcho Pinheiro Machado, cuja obsessão republicana e presidencialista vinha deste o manifesto de 1870, mas que muito fez pela instabilidade do regime, o que decorre de seus modos idiossincráticos de caudilho, e de sua política de propósitos pessoais.

Numa percepção negativa, o presidencialismo da República Velha se realizou no coronelismo, este centrado na figura do coronel, denominação “outorgada espontaneamente pela população àqueles que pareciam deter em suas mãos grandes parcelas do poder econômico e político”. Mantinha-se a autoridade central na figura do presidente, que simboliza a escolha nacional, mediada por seu partido, como deixa claro Hermes da Fonseca (que era militar) em excerto de seu discurso de posse:

“O presidente no nosso regime, especialmente nas circunstâncias em que se encontra o país, não se deve arvorar em diretor da política nacional: é a nação e não ele quem faz política. Mas, como nenhum governo pode fugir à necessidade de apoiar-se em forças políticas organizadas, governarei com o partido que amparou a minha candidatura e que com as minhas idéias de administração se identificou; com ele desenvolverei as teses anunciadas no meu manifesto eleitoral e com ele procurarei corresponder à expectativa de quantos, não filiados ao partido, confiaram no meu patriotismo”.

Tinha-se um “(...) sistema baseado na dominação de uma minoria e na exclusão de uma maioria do processo de participação política (...) Coronelismo, oligarquia e política dos governadores fazem parte do vocabulário político republicano em análise”. O coronel comandava as bases locais, municipais, controlando sua gente, e representando na instância imediata o governador que, por sua vez, se aproximava do Executivo central, que apoiava, e de quem recebia favores.

Uma linhagem política informal — mas com estruturas gerais fixadas no sistema de direito público então vigente — ligava o coronel ao presidente. As bases últimas de nosso presidencialismo fincavam-se nos modelos de dominação local, que também se mantinham pelo voto de cabresto.

A década de 1920 conheceu intensa movimentação política marcada por um ideal de salvação nacional, mediado pelo tenentismo, movimento militar que protagonizou a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana e que redundou na Coluna Prestes. Um pensamento político autoritário que se desenvolveu na Primeira República, e que canalizou alguma convergência de interesse com os grupos dominados, na imagem do “Leviatã benevolente”, não resistiu à formação de novas alianças, que derrubaram Washington Luís em 1930, inaugurando-se uma nova fase de concepção e de ação de nosso presidencialismo.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Proclamação da República e o presidencialismo brasileiro


No imaginário brasileiro, o chefe do Executivo é o depositário de todas as esperanças, responsável por todos os erros e frustrações, fonte de todas as iniciativas de sucesso. A propaganda presidencialista foi muito forte no estado de São Paulo, especialmente na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, de onde saíram presidentes da República, a exemplo de Prudente de Moraes e Campos Salles.

Houve baixíssima participação política durante o Império, e entende-se a proclamação da República e a implantação do presidencialismo como arranjo de classes dominantes. Insiste-se na ambiguidade para com a experiência norte-americana; apologética em Rui Barbosa, demasiadamente cética em Eduardo Prado. Este último era um crítico da influência norte-americana no Brasil.

O presidencialismo é o sistema de governo que adotamos no Brasil com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. A queda do Império teria ocorrido basicamente por causa da perda de apoio da dinastia Bragança, o que ocorreu a partir dos episódios da Questão Social — abolição da escravidão —, da Questão Religiosa — uma querela entre o Imperador e a Igreja, entre outros, sobre a validade dos decretos papais no Brasil —, e da Questão Militar — uma disputa entre o Imperador e alguns oficiais do Exército sobre a punição de militares que se pronunciaram publicamente sobre um projeto de lei que tratava do montepio nas Forças Armadas.

A crise do Segundo Reinado se alastrou de 1870 a 1880; tem-se “(...) o início do movimento republicano e os atritos do governo imperial com o Exército e a Igreja (...) além disso, o encaminhamento do problema da escravidão provocou desgastes nas relações entre o Estado e suas bases sociais de apoio”. Militares, clérigos, fazendeiros e bacharéis derrubaram um regime que durou 77 anos. O Brasil era a única Monarquia na América.

Baixíssima participação popular marcou o movimento, circunstância narrada de modo irônico por Machado de Assis, testemunha ocular dos fatos, na expressiva cena da tabuleta da Confeitaria do Custódio, cume da sátira política machadiana em Esaú e Jacó.

Resumidamente, Machado de Assis nos conta a estória do dono de uma confeitaria, Custódio, para a qual fizera uma tabuleta, com os dizeres Confeitaria do Império. Porém, a partir de 15 de novembro de 1889, o mais prudente seria Confeitaria da República. Para evitar que a turba se pegasse em frente ao estabelecimento, o mais adequado mesmo foi a indicação Confeitaria do Custódio.

Forte foi também a influência do pensamento positivista, que mais tarde ficará gravado em nossa bandeira republicana, com fragmento de premissa de Augusto Comte, “ordem e progresso”. O positivismo cativou os militares. Um de seus maiores seguidores, Benjamim Constant, era professor da Escola Militar; mais tarde foi ministro da Guerra, e posteriormente foi ministro da Instrução Pública. Muito influente, foi o grande propagandista do positivismo no meio militar.

A questão abolicionista se arrastava desde a Proclamação da Independência, sempre marcada por intensa pressão inglesa. Internamente foi o núcleo de debate a propósito da modernização do Brasil, além, naturalmente, da pregação humanista, que marcou a trajetória de Joaquim Nabuco, para quem a escravidão era uma ilegalidade flagrante, eleita como eixo de um projeto de reforma social. Estávamos entre os últimos a abolir a escravidão no continente americano. Joaquim Nabuco associa seu nome a essa luta.

No Império (1822-1889) a cidadania era restrita, exclusiva e excludente. E, de cima para baixo, os protagonistas daquela pantomima de democracia desconheciam as razões pelas quais muitas vezes eram candidatos, ou eleitos. A propaganda republicana questionava nosso atraso institucional; nessa estratégia, militares e ascendente camada urbana se aproximaram; o impulso modernizador foi fortíssimo componente de uma revolução burguesa brasileira.

Primeira das intervenções militares na política brasileira, a Proclamação da República decorreu de movimento que contou também com o apoio de uma pequena burguesia urbana, canalizada por uma obsessão do Exército, que fez nosso primeiro presidente, o alagoano Manoel Deodoro da Fonseca


O presidencialismo é ligado ao movimento republicano, do qual é uma das mais emblemáticas expressões. É vinculado à pregação dos republicanos históricos, em São Paulo, a exemplo de Rangel Pestana, Américo de Campos, Francisco Glicério e Bernardino de Campos. A propaganda republicana foi muito forte na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde estudaram Silva Jardim, Rui Barbosa, Prudente de Moraes, Campos Salles, bem como a um grupo de gaúchos ligados ao positivismo que em São Paulo foram estudar, a exemplo de Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, Silveira Martins e Assis Brasil.

Foi intensa a ligação do bacharelismo liberal brasileiro com a onda republicana, em momentos que oscilavam entre a euforia e o desencanto, este último sintetizado na frase “não era essa a República dos meus sonhos”, de Saldanha Marinho, que era bacharel em Direito pela Faculdade de Recife.

O federalismo e o presidencialismo cativavam os bacharéis; no entanto, não havia — efetivamente — programa educacional definido que não transcendesse ao cientificismo do ideal positivista o que, do ponto de vista de um projeto de cultura, fazia do republicanismo uma utopia que mais valia pelo antimonarquismo. O bacharelismo vai significar um modo de profissionalização da política, protagonizando uma “culturologia do Estado”. O bacharel liberal via-se na República, como sugere a seguinte passagem de Rui Barbosa:

“Impor a República pela sua forma, em lugar de recomendá-la pelo valor das suas utilidades, seria entronizar na política a superstição. As formas, que não correspondem ao espírito, à ação viva, à existência interior, são máscaras de impostura. A república é a democracia e a liberdade na lei. Logo que a forma viola a justiça, oprime o indivíduo, ou falseia o voto da nação, a república está em contradição consigo mesma. O culto, que lhe reclamam, seria então o dos falsos deuses. E idolatria senhores, não quer dizer outra coisa: religião da mentira, idiotice do religionário. Só as más repúblicas a podem ter. A república verdadeira não quer fanatismos: contenta-se com a devoção refletida, e o entusiasmo inteligente de servidores austeros, francos, intementes no remédio e na censura. Dessa espécie sou eu republicano. Quero a república justa, a república livre, a república popular. Não sacrifico a substância à forma: faço questão de harmonizar uma com a outra”.

Uma série de manifestos republicanos antecedeu o golpe de 1889. Colhe-se desses textos síntese doutrinária marcada por ética absoluta — qualificada por uma intransigente defesa da honra —, por certo despotismo esclarecido — do qual o presidencialismo pode ser herdeiro direto —, por crítica radical à Monarquia e às instituições monárquicas, por um federalismo também radical — seu mais expressivo elemento, do ponto de vista da ciência política —, pela pregação de imaginária fraternidade americana, além de comprovada e intensa inspiração liberal, que remonta à obra de Thomas Paine.

O golpe na Monarquia foi dado pelos militares que, “(...) liderados por Deodoro e Benjamin Constant, sentiam os tempos maduros para a purificação do corpo político”. O Imperador deixou o Brasil; sua ausência deprimiu seus amigos mais próximos; a proclamação de Deodoro, que vale como um discurso de posse, assinalou uma nova formulação que a República pretende fixar — a cidadania —, bem como a expectativa de que os novos tempos seriam conduzidos por autoridade ungida pela vontade popular, o que é a marca ideológica mais recorrente no presidencialismo brasileiro:

“Concidadãos- O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita comunhão d sentimentos com nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e consequentemente a extinção do sistema monárquico representativo. Como resultado imediato desta revolução nacional, de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser instituído um governo provisório, cuja principal missão é garantir, com a ordem pública, a liberdade e o direito dos cidadãos (...) O governo provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem. 

No uso das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido para a defesa da integridade da Pátria e da ordem pública, o governo provisório, por todos os meios a seu alcance, permite e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros: a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as limitações exigidas pelo bem da Pátria, e pela legítima defesa do governo proclamado pelo povo, pelo exército, pela armada nacional (...) O governo provisório reconhece e acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a dívida pública externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente constituídas”.

A atração pelos Estados Unidos logo se revelou. É nítida na ação e na influência de Rui Barbosa. O advogado discutia a opção constitucional de realizarmos eleições diretas para presidente, ao contrário do que ocorria nos Estados Unidos. A opção revelava algum excepcionalismo, ainda que decorrente de nossas características peculiares. Copiamos, mas adaptamos. É o que se alcança na pregação de Rui nos jornais da época:

“(...) A convenção americana de 1787, na constituição com que dotou os Estados Unidos, e os membros do Governo Provisório em 1890, no plano constitucional de que é resultado a constituição brasileira de 1891, punham timbre em zelar a pureza do corpo legislativo, e assegurar realmente à nação a escolha de seu primeiro magistrado, excluindo os membros da legislatura dos comícios destinados a Elegê-los. No sistema da constituição americana o eleitorado presidencial compõe-se de tantas unidades, em cada estado, quantos a soma dos seus representantes junto à soma dos seus senadores nas câmaras federais (...) 

Compreendemos, louvamos e queremos que se acompanhe a América do Norte nos seus princípios, nas suas virtudes, nas suas instituições. Mas ir exumar à patologia das suas moléstias extintas uma enfermidade cuja cura os americanos celebram com desvanecimento, para a converter em modelo de adaptação constitucional, injetar-se um vírus perigoso com o capricho de quem se inoculasse uma vacina preservadora, pode ser grande coisa: mas o senso comum, ou, pelo menos, o nosso, não lhe alcança a transcendência”.

Contra o filoamericanismo que tomava conta dos organizadores da República, e do presidencialismo, insurgia-se Eduardo Prado, aristocrata saudosista, que protestava contra suposta fraternidade americana:

“Pensamos que é tempo de reagir contra a insanidade da absoluta confraternização que se pretende impor entre o Brasil e a grande república anglo-saxônica, de que nos achamos separados, na só pela grande distância, como pela raça, pela religião, pela índole, pela língua, pela história e pelas tradições do nosso povo. O fato de o Brasil e de os Estados Unidos se acharem no mesmo continente é um acidente geográfico ao qual seria pueril atribuir uma exagerada importância. Onde é que se foi descobrir na história que todas as nações de um mesmo continente devem ter o mesmo governo? E onde é que a história nos mostrou que essas nações têm por força de ser irmãs? (...) A fraternidade americana é uma mentira (...)”.

Manteve-se, no entanto, comportamento apologético para com o modelo norte-americano, de onde copiamos nosso sistema de governo presidencialista. As instituições monárquicas foram abominadas. 

A organização da República fez-se concomitantemente com a secularização do Estado; o modelo presidencialista foi discutido e desenhado nesse contexto, que marcou nossa primeira constituinte republicana.

Na redação finalmente aprovada da Constituição de 24 de fevereiro de 1891 o presidencialismo foi tratado em seção própria, reservada ao Poder Executivo. É uma característica que nos marca desde então. Como chefe eletivo da Nação, indicou-se o presidente da República da então denominada República dos Estados Unidos do Brasil.

 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

sábado, 15 de fevereiro de 2014

A democracia na Copa das Copas


“Precisamos de um legado simbólico, de atitudes, de valores, e a tipificação de manifestações públicas como terrorismo nos remete a um legado fúnebre”, critica cientista político

Logo na primeira aula sobre democracia aprendemos que ela nos protege dos arbítrios do Estado. O mais celerado ditador pode impedir conflitos privados e manter a paz entre os cidadãos comuns, mas apenas a democracia nos garante que este Estado, todo poderoso, cheio de instrumentos e poder, não vai sufocar e destruir o indivíduo isolado.

Como uma criação humana voltada ao atingimento de alguns fins, a carga de expectativas e funções que a democracia tem de fazer frente é enorme: paz social, garantia de direitos, desenvolvimento econômico e social, dignidade humana, etc. Este instrumento inventado e reinventado pelo homem nos últimos 2500 anos carrega em si uma grande dose de utopia, é a forma de acesso das sociedades aos patamares mais elevados, sempre sonhados, muitas vezes perseguido e apenas às vezes atingido.

Pois bem, nossa “Copa das Copas” parece estar entrando em choque com a democracia que insistimos em que nos acompanhe nesta terra tropical. Nas ruas o povo brasileiro, desde junho último, vem manifestando de formas diversas sua visão do Estado brasileiro, a avaliação que faz de nossa sociedade e do nosso grau de desenvolvimento. Manifestações diversas ─ oscilando entre belos espetáculos de civismo até deploráveis ataques violentos (que causaram nossa triste primeira morte esta semana) ─ demonstram o grau de avanço cívico do povo brasileiro. E na outra ponta do processo está o Estado, também a demonstrar o quanto é familiar (ou não) com os valores democráticos.

Vínhamos assistindo “no varejo” às manifestações (anti)democráticas de autoridades e forças públicas. É uma grande mistura, alguns eminentemente democratas, buscando compreender e canalizar as manifestações e ações públicas para atos de civismo e avanço, e outros escorregando, sem consciência ou com a boca já salivando de excitação, para as posições autoritárias. Deste fenômeno desconcentrado cultivamos a esperança de que ações e visões pulverizadas entrem em diálogo e consigam evoluir para uma sociedade mais inclusiva, tolerante, plural e consciente do que lhe exige e o que lhe propicia a democracia.

Contudo, temos agora um grande movimento “no atacado”, como um blindado que avança sobre a turba, confiante na força de seu motor a diesel e em suas paredes de aço. Trata-se do projeto de lei que tipifica como ato terrorista manifestar-se contra a Copa. O objetivo parece claro, tão mais transparente para quem comemora em março 50 anos do golpe militar de 1964. O poder público não quer saber de críticas, sua Copa deve ser também registrada em cartório como a melhor na “história deste país” e de todos os países.

Não vêm ao caso todos os fracassos que já pavimentam nosso caminho até a “grande festa do futebol”. Faltam-nos planejamento, transparência, capacidade gerencial, espírito empreendedor e acima de tudo honestidade na comunicação pública. Mas tudo isto não vem ao caso, podendo sempre rotular alguém crítico assim como um derrotista, talvez um elitista derrotista, e ridicularizá-lo como alguém que não quer ver o novo Brasil que surge das trevas para a luz. O que vem ao caso agora é ver como emerge um passado funesto, passado de 500 anos e não só 50, que nos mostra o alheamento das elites, sua confiança na força e na desinformação do cidadão brasileiro.

Precisamos de um legado simbólico, de atitudes, de valores, e a tipificação de manifestações públicas como terrorismo nos remete a um legado fúnebre. Se houver uma reflexão responsável sobre a democracia brasileira, teríamos a avaliar o grau de organização e conscientização cívica do povo brasileiro, a forma como as forças de segurança compreendem e interagem com os movimentos populares e agora, a última surpresa, como a classe política ainda é alheia a valores de tolerância, igualdade e pluralismo.

Alguns ainda querem administrar o Brasil como um empreendimento de amigos, alheio ao seu povo. Contudo, parece que nosso legado de infraestrutura e de experiência democrática nos remete ao ilustre Odorico Paraguaçu. Se ele não conseguiu construir seu cemitério, agora alguns avançam para consegui-lo, ao menos como legado simbólico da “Copa das Copas”.

Ricardo de João Braga 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A aplicabilidade das normas constitucionais


É inegável que o mandamento normativo deve ser vigente e eficaz. Contudo, nem sempre isto é possível, podem ocorrer casos em que o regramento precise de uma complementação para ser aplicável ou para melhorar sua concreção. Daí a existência de diferentes tipos de normas constitucionais.

A Constituição foi idealizada pelos juristas para ser a norma mais importante do Estado, a qual todos devem obediência, inclusive os governantes. Por esta razão, sua aplicabilidade é muito estudada, visto que, teoricamente, esta só atingirá sua finalidade quando todos a respeitarem, ou em outras palavras, a cumprirem.

Neste ponto, cabe esclarecer que este tema também envolve uma de suas classificações, quanto à estabilidade. Segundo critérios de estabilidade das Constituições, dividem-se em: Rígidas – aquelas que seu processo de mutação é extremamente rigoroso, tendo procedimento específico para sua elaboração e alteração, o qual difere dos demais processos legislativos; Flexíveis – as que não possuem este procedimento, podendo ser alteradas de forma simplificada, até mesmo pela edição de uma nova lei e Semi-Rígidas – que possuem parte de seu texto tratado de forma rígida e outra de maneira flexível.

Sendo assim, só é possível falar da aplicabilidade das normas constitucionais quando se tratar das Constituições rígidas, posto que as normas inferiores devam obedecer aos parâmetros estabelecidos por aquela. Em verdade, esta espécie é extremamente formal, posto que as exigências de sua alteração sejam muito rigorosas, dificultando sua mutação.

 A doutrina jurídica ensina que a análise de qualquer norma envolve vários aspectos, dentre eles destacam-se: vigência e eficácia. Aqui é onde se aprofundará a discussão deste capítulo, posto que o Direito Constitucional estabelecesse regras para o tratamento das normas constitucionais, regulamentando uma matéria por demais tormentosa: a sua aplicabilidade.

É inegável que o mandamento normativo deve ser vigente e eficaz. Contudo, nem sempre isto é possível, podem ocorrer casos em que o regramento precise de uma complementação para ser aplicável ou para melhorar sua concreção. Daí a existência de diferentes tipos de normas constitucionais.

O constituinte, sabendo das dificuldades desta atividade, previu um remédio constitucional para auxiliar neste ponto: o Mandado de Injunção. Esta espécie processual restringe sua atuação a auxiliar a aplicação da norma constitucional ao caso concreto, mais especificamente quando este procedimento depender da existência de normas infraconstitucionais.

Em regra, toda norma deve ser vigente e eficaz, posto que as normas sejam criadas para que a Sociedade as aplique nos fatos do cotidiano a fim de propiciar a continuidade da convivência entre os “homens”. Partindo dessa premissa, é que se originaram as teorias que classificam as normas constitucionais quanto a sua aplicabilidade.

Quando se fala em eficácia, faz-se necessário diferenciar a eficácia jurídica da eficácia social. Na visão de Luís Roberto Barroso, a eficácia jurídica está relacionada à produção dos efeitos jurídicos, ou seja, esta conectada a satisfação de todos os seus elementos: regulação do cotidiano da sociedade, regular os atos que podem ocorrer entre os indivíduos, entre estes e o Estado e vice-versa. Por esta visão, a eficácia jurídica está ligada à aplicabilidade, executoriedade e exigibilidade das normas. Conclui-se, então, que a norma poderá ter eficácia jurídica sem ter a eficácia social ou o contrário, pois os sentidos estão apartados.

De fato, a principal diferença entre ambas é que a eficácia social só é alcançada quando a maioria da comunidade a quem esta norma é dirigida a cumpre, enquanto que a outra basta cumprir com exigências formais para sua satisfação.

Ao estudar esta matéria, contata-se que existem várias teorias a este respeito, pois que a regulação de um Estado não é tarefa fácil, por englobar vários fatores, exigindo do legislador a adoção de diversas posturas ao tratar dos mais diversos temas. A verdade é que ainda não há um consenso doutrinário sobre o que vem a ser a eficácia das normas.

Por isso, serviu de inspiração para vários doutrinadores criarem propostas de classificação dessas tendo em vista as suas características. Ao chegar a este ponto, precisa-se esclarecer que ainda não é possível afirmar que uma classificação é correta em detrimento das outras, mas apenas que algumas delas já foram superadas e outras estão mais bem enquadradas no pensamento do constitucionalismo contemporâneo.

Sobre as normas constitucionais, admite-se que todas gozam de eficácia, pelo menos a jurídica, porém diferenciando-se quanto à social, haja vista algumas delas dependerem de regulamentação infraconstitucional para só então atingirem a sua finalidade: a efetivação.

Marcelo Alexandrino e Vicente de Paulo (2010, p. 59) abordam em sua obra a visão de Ruy Barbosa sobre as normas constitucionais:

Da constatação dessas diferenças, Ruy Babosa, inspirado na doutrina norte-americana, já enquadrava as normas constitucionais em dois grupos:

a) Normas “autoexecutáveis” (self-executing; self-enforcing; self-acting) preceitos constitucionais completos, que produzem seus plenos efeitos com a simples entrada em vigor da Constituição; e

b) normas “não autoexecutáveis” (not self-executing; not self-enforcing provisions ou not self-acting), indicadoras de princípios, que necessitam de atuação legislativa posterior, que lhes dê plena aplicação.

Além dessa classificação, existe a do Professor José Afonso da Silva, a qual a maioria da doutrina e da jurisprudência pátria adotou no que pertence à forma de encarar as normas constitucionais quanto a sua eficácia e aplicabilidade.

Classificação Tricotômica.

Na obra de Alexandre Moraes este doutrinador, de acordo com o critério de José Afonso da Silva, que separou as normas constitucionais em três espécies: normas de eficácia plena, contida e limitada. Por esta divisão, tal entendimento é conhecido como teoria tricotômica.

Normas de Eficácia Plena.

A primeira espécie é composta por aqueles dispositivos normativos que necessitam apenas da sua publicação para adquirirem vigência e eficácia, posto que já estejam aptos a produzirem os seus efeitos. Alexandre de Moraes (2007, p. 7) ensina que este tipo é composto por: quelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte direta e normativamente, quis regular. (por exemplo: os remédios constitucionais).

Essas normas não possuem a necessidade de regulamentação posterior, por não dependerem de complementação, ou algo que defina o seu conteúdo. Isto só é possível devido à característica de exprimirem a finalidade que querem alcançar de forma direta e clara, sem obstáculos. Observa-se que tais normas não deixam lacunas para questionamentos. Com isso, podem ser consideradas normas de aplicabilidade direta, imediata e integral.

A Constituição Federal de 1988 possui alguns exemplos, como é o caso dos artigos 18 e 25:

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.  

Neste caso, a forma mais simples de interpretação, a literal, já é suficiente para demonstrar que estes regramentos não dependem de mais nada para serem aplicados.

Normas de Eficácia Contida.

Outro tipo desta classificação são as normas constitucionais de eficácia contida, que embora possuam também aplicabilidade com a publicação da norma, caracterizam-se pela necessidade de regulamentação por norma infraconstitucional posterior a fim de equilibrarem a sua eficácia. Portanto, são aquelas que geram efeitos imediatos, mas com o decorrer do tempo podem sofrer restrições.

O ínclito doutrinador José Afonso da Silva (apud, Moraes, 2007, p. 7) as define como: aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos à determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas anunciados.

Nestes termos, podem ser consideradas como normas constitucionais dotadas de aplicabilidade direta, imediata, porém não integral, pois estão submetidas a limitações que restringem a sua eficácia e aplicabilidade. Estas limitações podem ser determinadas tanto pelo legislador infraconstitucional como por outras normas constitucionais, devido o decurso de sua utilização.

Este jurista ainda destaca as suas peculiaridades, de acordo com José Afonso da Silva (apud Paulo; Alexandrino. 2010. ps. 60,61):

a) são normas que, em regra, solicitam a intervenção do legislador ordinário, fazendo expressa remissão a uma legislação futura; mas o apelo ao legislador ordinário visa a restringir-lhes a plenitude da eficácia, regulamentando os direitos subjetivos que delas decorrem para os cidadãos, indivíduos ou grupos;

b) enquanto o legislador ordinário não expedir a normação restritiva, sua eficácia será plena; nisso também diferem das normas de eficácia limitada, de vez que a interferência do legislador ordinário, em relação a estas, tem o escopo de lhes conferir plena eficácia e aplicabilidade concreta e positiva;

c) são de aplicabilidade direta e indireta, visto que o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que cogitem;

d) algumas dessas normas já contêm um conceito ético juridicizado (bons costumes, ordem pública etc.) com valor societário ou político a preservar, que implica a limitação de sua eficácia;

e) sua eficácia pode ainda ser afastada pela incidência de outras normas constitucionais, se ocorrerem certos pressupostos de fato (estado de sítio, por exemplo).

As normas de eficácia contida exigem, em regra, a atuação do legislador ordinário reclamando uma legislação futura. Mas, essa atuação não será para tornar a norma exercitável, mas apenas para restringir sua atuação no exercício do direito.

Um bom exemplo de norma constitucional de eficácia contida é o artigo 5º, inciso XII da Magna Carta:

Art. 5, XII – é livre o exercício e qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Neste dispositivo a postura adotada pelo constituinte foi diferente, pois deixa claro que o direito ali tratado pode ser exercido de imediato, salvo nos casos em que já existir lei para o caso, ocasião em que esta deverá ser aplicada para tratar dos casos nela previstos.

Normas de Eficácia Limitada.

Esta espécie diferencia-se das outras pelo fato de que a simples publicação do texto normativo não é capaz de produzir qualquer efeito, necessitando da atuação do legislador, a fim de que elabore norma que estabeleça parâmetros para o seu conteúdo.

Então, pode-se dizer que são normas que o legislador constituinte não dotou de normatividade suficiente. Para melhor compreensão, o mestre José Afonso da Silva (apud, Moraes, 2007, p. 7) explica com maior clareza: “aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidente totalmente sobre esses interesses, após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a aplicabilidade”

Destaque-se que o renomado professor ainda classifica estas normas em: as definidoras de princípio institutivo ou organizativo e as definidoras de princípio programático. O traço distintivo daquelas é que são utilizadas pelo constituinte para estabelecer estruturas ou atribuições de órgãos, instituições ou entidades, para que futuramente possam ser definidas mediante lei. No que tange às programáticas, sabe-se que não dependem apenas da elaboração da norma posterior, mas, principalmente, do adimplemento das condições necessárias para sua efetivação. Para facilitar a compreensão, é como se o Estado tivesse o planejamento de executar uma ação, mas para isto deveria desenvolver várias etapas, onde todas elas estariam previstas em lei e o início da posterior dependesse da execução total da anterior.

O ínclito Jorge Miranda (apud, Moraes, 2007, p. 7) explica as normas programáticas da seguinte forma: são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras, explicitam comando-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial – embora não único – o legislador a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que o cidadão as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjetivos; aparecem, muitas vezes, acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados.

A Constituição Federal de 1988 também possui este tipo de norma, em seus artigos 7°, XX e 173, §4°:

Art. 7, XX - Proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, no termos da lei.

Art. 173,§4° - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Este estudo também rendeu outra classificação: impositivas ou facultativas. As facultativas são caracterizadas por não imporem uma obrigação, mas permitirem que o legislador ordinário pudesse instituir ou regular as situações nelas previstas. São impositivas aquelas normas que trazem uma imposição ao legislador, no sentido de terem que elaborar, obrigatoriamente, uma legislação integrativa.

As normas de eficácia limitada de princípio institutivo ou organizativo estão prescritas na Lei Maior em seus artigos 33; 92, §2° e 93:

Art. 33. A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios.

Art. 92, §2º - A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho da República.

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

Neste caso, estas normas fazem a previsão de que, posteriormente, serão necessários regulares atribuições de instituições ou agentes públicos a fim de aprimorar o funcionamento da máquina administrativa.

Classificação quanto à intangibilidade e os efeitos das Normas.

Ainda encontrou-se a classificação proposta pela Professora Maria Helena Diniz frisada por Alexandre de Moraes, que trata de dois critérios: da intangibilidade e da produção de efeitos concretos pelas normas. De acordo com esta teoria, os dispositivos se subdividem em: eficácia absoluta, eficácia plena, eficácia restringível e eficácia dependente de complementação legislativa.

As regras de eficácia absoluta são aquelas imutáveis, em que nem mesmo as emendas constitucionais podem modificá-las. Como exemplo destas pode-se citar as cláusulas pétreas, encontradas no artigo 60, §4° da Magna Carta.

Normas de eficácia plena são as que produzem seus efeitos desde a sua entrada em vigor, pois possuem todos os elementos necessários para a produção imediata dos efeitos nelas previstos. Diferencia-se das posteriores no que diz respeito à possibilidade de modificação por emendas constitucionais, porque podem ser alteradas.

A Professora Maria Helena Diniz não se distancia da opinião do Mestre José Afonso da Silva quando trata das normas de eficácia restringível, as quais se aprecem com as de eficácia contida concebidas pelo outro doutrinador. Nestes termos, pode-se afirmar que possuem aplicação imediata, tendo a sua eficácia restringida pela edição de lei posterior.

Já as normas de eficácia dependente de complementação legislativa, como o nome descreve, são aquelas que precisam da elaboração de lei posterior, as quais terão a tarefa de regulamentar o direito que aquelas prevêem, para o pleno exercício de seus dispositivos, não possuindo aplicação imediata. Assim só poderão produzir efeitos no momento em que for promulgada a legislação regulamentadora.

 Carlos Ércimo Uchoa Sales Gomes

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Progressistas e conservadores


A antiga e superada esquerda costumava chamar os liberais de conservadores. Em uma época de lutas de classes, na qual o comunismo socialista defendia, supostamente, o interesse dos pobres, caia bem acusar os empresários de exploradores e defensores inveterados do status quo.

Enquanto essa mentira foi contada e recontada com funestos ares de verdade, foi possível manter um regime político autoritário e estatizante que, através da demonização dos setores produtivos, arbitrariamente se apropriava das riquezas sociais para festa e deleite de uma gananciosa elite oficial. Além da ganância, era uma elite de ódio porque usava o medo como a arma de dominação do povo, tratando adversários políticos como inimigos de Estado a serem exterminados por métodos de sangue.

Aliás, toda ditadura, seja ela qual for, é um mal que só a democracia, bem exercida, pode salvar.

Com a queda do Muro de Berlim, a mentira socialista virou pó, marcando o triunfo definitivo do liberalismo econômico. No entanto, talvez por um certo êxtase da vitória da liberdade sobre a opressão, os liberais falharam no aspecto político.

Objetivamente, os liberais ficaram obcecados pelo potencial de desenvolvimento e progresso que a liberdade econômica proporciona, mas deixaram de lado a defesa de um perene e inegociável avanço institucional através da elaboração de uma doutrina política capaz de explicar que, sem liberdade, não há dignidade nem possibilidade de aperfeiçoamento humano.

E somente seres humanos dignos são capazes de olhar para o outro, criando vínculos sociais como a família e estruturas políticas como as cidades, os estados e a nação. Enfim, a liberdade é um elemento nuclear do processo civilizatório.

No vácuo teórico do liberalismo político, a cena pública brasileira e mundial tem sido inundada por retrógadas pautas socializantes que, novamente levantando velhas bandeiras populistas, acabam por cavar valas de dominação estatal e, ato contínuo, canais de silenciosa castração da liberdade individual. É hora, portanto, de reagir com a simplicidade do saber irrefutável.

Por exemplo, é preciso lembrar que não existe emprego sem empresa, ou seja, todos aqueles que atacam o empresariado e o empreendedorismo são inimigos do povo e de sua possibilidade de crescimento humano e social. Indo adiante, temos que mostrar os avanços estruturais e sociais que o liberalismo ocasionou na Alemanha Ocidental e o atraso que foi gerado no lado socialista Oriental. Temos que mostrar as duas Coreias; uma próspera e desenvolvida, a outra pobre e fechada. Em síntese, temos que falar de liberdade e dos sucessos que as pessoas podem ter sendo livres, desimpedidas e politicamente instruídas.

Antigamente, fazia sentido a divisão esquerda e direita. No entanto, no mundo líquido moderno, as correntes políticas se fundiram em uma amorfa luta de poder pelo poder, tornando o jogo político confuso e desencontrado. Nessa babel democrática, é imperativo o surgimento de uma doutrina política que converse e explique ao povo o valor central da liberdade no regime democrático.

Aí, você poderá escolher entre ser um progressista do atraso ou um conservador do progresso. Alternativamente, poderá, ainda, ser uma progressista do vício ou um conservador da virtude. A escolha é e sempre será sua. É tempo de fazer escolhas e falar verdades que o Brasil precisa escutar.

Então, de qual lado o senhor e a senhora querem estar no trem da história que passa para não mais voltar?

 Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr

Hobbes e a justificação do estado soberano


Apesar da variação nas definições, a soberania sempre se relaciona à autoridade suprema. Propor uma soberania que permita competição de poder, jurisdição ou domínio é cair em contradição. No entanto, parece intuitivo que a ideia de monopólios baseados na força precisa ser justificada. Assim como com qualquer outro monopólio, não é do interesse dos consumidores a existência de um único provedor de um serviço.

A não ser que os membros de uma sociedade se enxerguem como pessoas essencialmente desiguais perante a lei e a moral, a primeira questão que se levanta é: por que uma pessoa ou um grupo deve ter tamanho privilégio? Bem se sabe que monopólios abrem a possibilidade de abuso de poder pelos seus detentores. Em segundo lugar, um bem ou serviço oferecido por um monopólio provavelmente terá um preço e um custo maiores e uma qualidade inferior aos daquele oferecido sob um sistema de competição.

O propósito de O Leviatã é construir uma justificativa para a soberania tanto em alicerces morais quanto consequencialistas. O argumento de Hobbes em favor da soberania deve ser um dos mais intuitivos e, por consequência, um dos mais poderosos e duradouros. Seu impacto atravessou os séculos como círculos concêntricos através da fábrica da história. Mesmo que a formulação do argumento tenha mudado desde o século XVII, sua lógica continua a mesma.

Atualmente, economistas e cientistas políticos subjugaram o texto de Hobbes aos números da teoria de jogos, para adaptá-lo à moda atual. A essência do argumento, no entanto, continua a ser facilmente detectável nas palavras originais do livro que John Rawls considerava “a maior obra de filosofia política da língua inglesa”:

Se um pacto for feito no qual nenhuma das partes aja presentemente, mas confiem uma na outra; na condição de mera Natureza, (…) é Vazio; mas ser houver um Poder comum estabelecido sobre ambas, com direito e força suficientes para obrigar à ação; não é Vazio. Pois aquele que age antes não tem segurança de que o outro agirá depois; porque os laços das palavras são fracos demais (…) sem o temor de algum Poder coercitivo. (…) E portanto aquele que age primeiro não faz senão se trair diante do inimigo (Hobbes 1909, p. 105).

Tirando os excessos e adicionando alguma sobriedade contemporânea, encontra-se o mesmo argumento na base da obra mais popular de filosofia política do século passado . Em Uma Teoria de Justiça, John Rawls escreve que “a ideia mais fundamental nessa concepção de justiça é a ideia de uma sociedade como um sistema justo de cooperação social no tempo de uma geração para a outra.”

Esse sistema de cooperação social, tão central à filosofia política de Ralws se assenta, em última instância, na presunção que fundamenta do conceito de soberania hobbesiano. O “medo de algum poder coercitivo” ainda é condição necessária para a “confiança mútua”:

É razoável presumir que mesmo em uma sociedade bem-ordenada os poderes coercitivos do governo são de algum modo necessários para a estabilidade da cooperação social. Pois embora os homens saibam que compartilham de um senso comum de justiça e que cada um quer aderir as arranjos existentes, eles podem apesar disso não ter total confiança uns nos outros. Eles podem suspeitar que alguns não estão fazendo sua parte, e então podem ser tentados a não fazer a sua. A consciência geral dessas tentações pode eventualmente fazer com que o esquema todo desmorone. (Rawls, 1999, p. 240)

O fato de que a contenção de Rawls se dirige à cooperação enquanto que a de Hobbes tenta escapar do medo não passa de um detalhe menos – revela visões de mundo distintas unidas pelo mesmo raciocínio. As sociedades que cada autor imagina apenas podem ser concebidas sob a ameaça de coerção, o que faz que seja do interesse de cada membro da sociedade alienar aos governantes o poder necessário para governar. Tão logo se aceita esse elemento vital ao plano mestre de Hobbes, uma premissa menos pode ser alocada dentro do silogismo que permeia o Leviatã:

1) O que quer que se faça a um homem, que se conforme à sua Vontade transmitida àquele que o faz não é Agressão a ele;

2) Todo o Poder Soberano é originalmente dado pelo consentimento de cada um dos Súditos;

3) Segue-se que o quer quer que [o Soberano Instituído] faz não pode ser Agressão contra nenhum de seus Súditos; nem pode ele ser por estes acusado de qualquer Injustiça.

Platão já insinuava que os cidadãos firmavam um contrato com o estado. Sócrates entendia que, porque ele não havia deixado Atenas antes de seu julgamento, ele havia “entrado em um contrato implícito de que fará como [as Leis] ordenarem”.

Na época de Hobbes, no entanto, era a explicação orgânica do estado soberano que prevalecia, e não a justificativa contratual.

Quando O Leviatã foi escrito, as concepções aristotélicas clássicas da natureza das entidades, revitalizadas com a escolástica, estavam em declínio. A obediência à autoridade política não conseguiria se sustentar como algo tão natural quando os comandos da mente para o resto do corpo. A obrigação moral dos indivíduos para com o estado, a instituição social por excelência, não era algo tão intuitivo para a Europa do século XVII.

Em geral, o espírito do contratualismo estava alinhado com a ética da reforma. Se a autoridade dos homens que constituíam a santa igreja podia ser contestada pelos seus membros, por que a autoridade dos homens que constituíam o estado deveria estar fora de controvérsias? Não era mais o grupo, mas as partes individuais e seu poder de escolha o valor final da teoria moral protestante. A insurgência religiosa era evidência de que as pessoas se viam como indivíduos racionais e livres. Tal sociedade precisava de fundamentos modernos para uma teoria de soberania. Era isso que o contrato social prometia oferecer: a obediência emanada da liberdade.



A segunda parte desta série é dedicada a explicar como Hobbes tenta alinhar absolutismo divino com liberdade negativa.

O determinismo de Hobbes permite que as pessoas tenham liberdade sem autonomia. Assim como uma massa de água pode correr livremente desde que não haja obstáculos em seu percurso, a liberdade nada mais é do que “a ausência de impedimentos externos”. Os seres humanos são livres enquanto “vontade, desejo e inclinação” não encontram obstáculos para se atualizarem em ações, mas nossas vontades e desejos se assemelham a um apetite animal irresistível que se alimenta do “medo da morte violenta”. Não raro, a nossa vontade colide com a razão. E deve ser a razão, junto a outras características que o mundo externo imprime em nós, que condiciona nossa vontade.

A vontade é o elemento definitivo de todos os acordos, e uma fonte de obrigações. Mas, por estar em repetitivo desacordo com a razão, a vontade humana carece de autoridade moral. Na verdade, nossa vontade deve se submeter à autoridade moral que vem de Deus e que é mediada pelo escolhido de Deus, o soberano. Hobbes consegue acomodar vontade, liberdade, e obediência na mesma correnteza que flui desde Deus e que alcança o mundo por meio do estado. A razão humana, para Hobbes, apenas está correta quando garante ao soberano a adoração que lhe é adequada.

Talvez nenhum conceito abrace melhor essa essência da retórica majestosa de Hobbes do que a “vontade para a obediência”. Seu propósito é dar uma harmonia geométrica à sociedade. Liberdade e vontade são elementos vetoriais da natureza humana que devem ser mantidos em paralelo aos comandos divinos. Resistência ao soberano é apenas permitida para a preservação própria. De outro modo, o indivíduo se torna um obstáculo à metafísica fluente de Hobbes.

Quando colocada em contexto com a sua antropologia, a justificação hobbesiana da soberania começa a se revelar um absolutismo racionalista. De certa maneira, Hobbes corrompeu o absolutismo de Bodin colocando o soberano acima da Igreja. O soberano de Bodin é absoluto no sentido em que não deve ter que obedecer às leis promulgadas pelos soberanos que lhe precederam. Ele continua sendo, no entanto, compelido pela lei divina. Em Hobbes, o soberano está em um estado de guerra no qual “nada pode ser injusto”.

Com Hobbes, os limites medievais sobre o rei (sujeitando-o às leis de Deus) desaparecem em definitivo. As leis do rei, na prática, são tão mandatórias quanto as leis de Deus. Hobbes não revolucionou o conceito do direito divino, apenas o manipulou. A vontade do soberano hobbesiano estaria constantemente alinhada com a vontade de Deus, mas ele adicionou que a vontade do povo estaria sempre de acordo com a vontade do soberano. A soberania, para Hobbes, é essa “alma artificial” que “dá vida e movimento ao corpo inteiro”. É assim que Hobbes compatibiliza liberdade como ausência de restrições com as “cadeias artificiais” das leis civis.



Depois de falar sobre a antropologia de Hobbes, vamos tratar de sua epistemologia.

Para o filósofo inglês, todo o nosso conhecimento é adquirido por meio dos sentidos, pelo mundo externo se pressionando contra o homem. Esses sentidos colocam o homem em movimento intelectual. A imaginação e a memória seriam apenas a redução da velocidade do movimento recebido pelas impressões (em sentido quase literal) sensoriais. As memórias podem ser arranjadas e combinadas, gerando diferentes experiências no interior da mente. Os pensamentos resultantes de tais combinações estão sempre conectados uns aos outros, fluindo de acordo com o movimento provocado pelo mundo exterior.

Para comunicar nossos pensamentos, utilizamos palavras. A razão é a adição ou a subtração do arranjo de palavras. Se dois homens diferem em seus raciocínios, é porque ocorreu uma falha de cálculo, apenas solucionável por um juiz.

A mesma aritmética aplica-se aos apetites. Os apetites são divididos em duas categorias: quando a natureza move o homem em direção a algo, nós temos um desejo. Quando move o homem para longe de algo, temos uma aversão. As ações resultam da deliberação, isto é, da operação aritmética dos desejos menos as aversões.

Ao se cancelarem, o resultado remanescente é a vontade. Os apetites, a deliberação e a vontade são comuns aos homens e aos animais. Essa operação com os dados que a natureza entra no ser humano (incluindo a deliberação entre bem e mal) não consegue chegar à verdade, porque o conhecimento nada mais é do que as impressões naturais sobre nossos sentidos. A razão tampouco pode ser confiada nessa missão, porque nenhuma pessoa em particular pode ter certeza de que sua conta está correta.

Se por um lado, a epistemologia de Hobbes começa a nos fazer enxergar a necessidade de um soberano, por outro nos revela contradições fundamentais. Se Hobbes acredita ser capaz de poder ensinar algo aos seus leitores, falta nexo entre seu propósito e sua filosofia.

Dentro do sistema hobbesiano, o Leviatã seria o resultado de uma grande equação na mente de Hobbes a partir da qual conhecimento algum pode ser extraído. Se seu discurso realmente produz conhecimento na cabeça do leitor, restam-nos duas opções:

1) Hobbes é um ser sobre humano; ou

2) existe alguma forma de conhecimento que o cérebro humano adquire que não é movido simplesmente por forças exteriores, mas da codificação das ideias geradas por uma mente alheia que podem ser decodificadas pela nossa mente.

Quando eu aprendo, minha mente muda. É necessária uma intenção nas pessoas de criar essa comunicação que é mais profunda do que Hobbes pressupõe. O primeiro golpe contra o conceito de estado soberano de Hobbes deve ser dado aqui, contra a sua noção cartesiana de que os homens são complexos e mecânicos como qualquer máquina de corda e que, portanto, devem ser ativados por agentes externos, incluindo o próprio Hobbes.

O Leviatã é, assim, um exemplo daquilo que Olavo de Carvalho chama de paralaxe cognitiva:

Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação de discurso na qual a afirmação é feita. O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre o gênero ou espécie a que ele próprio pertence.

Há apenas três exceções à espécie humana no Leviatã de Hobbes: a Igreja, o Estado Soberano e Thomas Hobbes. Os dois primeiros derivam sua autoridade sobrehumana de Deus. Como o conhecimento sobre as leis positivas apenas pode ser adquirido por meio da revelação direta de Deus, e Hobbes o possui, devo concluir que ele também é excepcional. Afinal, ele não apenas tenta ser um historiador, mas pretende produzir um conhecimento que o leitor não possuía previamente.

Após a leitura da teoria de conhecimento de Hobbes, ficamos com a expectativa de que nada de novo pode surgir no restante do livro, pois conhecimento não se adquire a partir do discurso, apenas dos sentidos.

 Diogo Costa