"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Poderes concentrados tendem a se concentrar mais ainda



Dentre tantos problemas que invadem a vida dos cidadãos dos mais de cinco mil municípios brasileiros, gerando grandes confusões cognitivas sobre causas e efeitos, surge as discussões sobre uma Reforma Política. 


Associada à enorme desinformação nacionalmente constatada, os detentores dos poderes no País, assolados pela absoluta descrença nos partidos políticos e políticos que se instalou em talvez 98% da população brasileira, são os próprios políticos que tomam a iniciativa de propor alterações. 


Mas pode-se esperar de cortes na própria carne, diante de tantas benesses das quais se comprazem? Poderia se esperar, por exemplo, uma reforma tributária que diminuiria a arrecadação, devolvendo parte da extorsão tributária à própria população? Governos abririam mão disso? 


As respostas soam óbvias demais para se permitir deixar engambelar por propostas que vem de quem detém o poder. É da natureza humana concentrar poder e mantê-lo a todo custo, observe-se o que ocorre, de forma mais marcante nestes dias, no Egito. E, pior do que mantê-lo, é aumenta-lo, o que ocorre no Brasil. Sonhar que demônios se transformem em anjos é devaneio.

Na questão da reforma política – e não é diferente das demais “reformas” em discussão no Governo e/ou no Congresso, o que se propõe é bem próximo de uma reforma cosmética. Uma reforma política de verdade, honesta e objetiva é:

1. fim do financiamento público de campanhas

2. fim do financiamento público de partidos

3. fim das coligações partidárias

4. fim dos suplentes em todos os níveis

5. proibição do voto cumulativo e por procuração nos partidos políticos

6. obrigatoriedade de eleições primárias internas nos partidos para indicação de seus candidatos 

7. implantação do voto distrital misto para estados e municípios

8. implantação do sistema de voto distrital estadual para presidente, com colégio eleitoral nacional ratificador das urnas estaduais, único jeito de se respeitar o povo de cada estado dentro de uma federação 

9. fim da obrigação de abrangência nacional, podendo existir partidos locais e regionais
10. cláusula de acesso ao Congresso e ás Assembléias estaduais para partidos – exigência de desempenho eleitoral mínimo. No País, 10% e nos estados, cada um decide. Nos municípios deve ser livre. 


11.fim dos impedimentos intra-partidários para participação plena dos filiados nos processos de indicação de candidatos e eleição de dirigentes partidários (fim dos feudos intra-partidários)



São 11 pontos que colocam o processo eleitoral brasileiro em pé de igualdade com as nações do Primeiro Mundo, eliminam feudos intra-partidários e respectivos caciques, abrindo espaço para líderes de verdade, cristalizam a democracia, equilibram as disputas de poder, respeitam os filiados e os que militam pelas causas partidárias, atraem a participação popular nos partidos e/ou nos seus processos internos, e permitem uma maior transparência e equilíbrio político. 


O que se discute, como por exemplo, fidelidade partidária, financiamento público de campanhas, fim da suplência aos senadores (porque só aos senadores? Que tipo de gradualismo malandro é esse?), listas partidárias (quem indica os candidatos, os filiados ou os caciques?) dentre outras pouquíssimas providências se não for papo furado é mais engodo. 


Pouquíssimos dos que estão com a mão no poder ou dependentes diretos do mesmo – os chamados “mamadores das tetas da viúva” de fato, não têm nenhum interesse em reformar de verdade qualquer coisa em um País cujo setor estatal é tão “generoso” e um povo tão condescendente.


“Publique-se, registre-se, arquive-se, ignore-se” será o resultado de eventuais propostas honestas que cheguem ao Congresso. 


A população está desarticulada, as lideranças dispersas em vários movimentos disso e daquilo, muitos aceitam inadvertidamente um embate ideológico que já está vencido pelos ocupantes do Planalto e de todo o Estado Brasileiro – praticamente tudo aparelhado. Somente a proliferação da informação sobre o que funciona e o que não funciona pode servir como vírus contra esse aparelho gigantesco. 


Quando o cidadão de cada rincão brasileiro se der conta de que ele é o "pagador da conta" e souber quanto isto custa diariamente em relação ao seu trabalho suado, quem sabe tal condescendência mude.


fonte IF

Reformando o Estado



No momento em que candidatos à Presidência começam a delinear seus programas de governo, nada melhor que estabelecer, diante do quadro de rápida expansão governamental vigente, alguns princípios para uma Reforma do Estado. 


Vamos a eles:


- O Estado não tem vontade própria, nem se situa acima dos indivíduos. É apenas um meio de instrumentar a vontade dos cidadãos, quando esta vontade não pode ser adequadamente atendida pelo sistema de mercado. Assim, antes de discutir tributação, deve-se definir os espaços que o Estado deve ocupar em uma sociedade livre e em que nível de governo poderá melhor cumprir suas tarefas. 


- Não existe “almoço grátis”. O Governo não produz recursos, mas apenas os transfere de uns para outros, capturando para si uma gorda fatia. Qualquer conta é sempre paga pela população, seja sobre a forma de impostos, de empréstimos ou de um imposto inflacionário.


- A ação pública, principalmente a de caráter social, deve ocorrer tão próxima quanto possível da população alvo. O Prefeito sabe melhor que o Governador, que sabe melhor que o Presidente, da necessidade dos seus cidadãos. Mas ninguém, em qualquer nível de Governo, pode saber mais que o próprio cidadão de suas carências e prioridades.


- A atividade estatal precisa ser encarada como qualquer outra atividade econômica. O Estado, em suas diferentes esferas, presta diversos serviços e, para isso, cobra impostos da população. Uma Federação, para fazer sentido pleno, tem de permitir que as partes que a compõem compitam entre si na atração de indivíduos e empresas. Impedir que isto ocorra tem o mesmo efeito maléfico de monopólios ou cartéis na economia privada. 


- A atividade governamental é inerentemente ineficiente e geradora de corrupção por administrar recursos bem longe do “olho do dono”. Segundo a sabedoria popular, “a ocasião faz o ladrão”. Pois bem, quem faz esta ocasião é a massa enorme de dinheiro descuidada-mente movimentada a centenas de quilômetros do cidadão-contribuinte.


Postos estes princípios, cabe indagar o que faz com que tenhamos a sensação nítida de que o Estado não nos devolve em serviços o que pagamos de impostos e, mesmo assim, pouco façamos para reverter a situação. O fato é que, não só aqui, como por todo o mundo, indivíduos e suas famílias foram perdendo espaço para uma “vontade geral”, que nada mais é que a vontade dos governantes de plantão. 


Presumivelmente, estes governantes não teriam os mesmos defeitos dos cidadãos comuns e buscariam apenas o bem da humanidade. 


Na realidade, são tão ou mais falíveis que cada um de nós e, em sua ânsia de mais poder, engordam os orçamentos públicos por motivos muito pouco recomendáveis. Para a defesa dos interesses difusos da sociedade contra os grupos organizados de pressão, só resta uma solução prática: estabelecer limites legais, de preferência constitucionais, para as despesas públicas. Chega!




 Rubem de Freitas Novaes

(Publicado em 06/05/10, n`O Globo, sob o título “Limite às despesas públicas”) 

Mais Valor pelo Seu Dinheiro



O titulo deste artigo reproduz o lema de reformas orçamentárias implementadas no Reino Unido para tornar o cidadão consciente a respeito do que está sendo feito com o dinheiro dos impostos, do resultado desse uso para a comunidade e dos custos incorridos na obtenção de tais resultados, tudo isso com o objetivo de contribuir para a transparência na gestão pública e, assim, aumentar o controle da sociedade sobre o orçamento. 

No Brasil, a questão da transparência orçamentária está longe de alcançar algo parecido. Isto porque, ao longo das últimas décadas, o orçamento público foi perdendo importância enquanto instrumento que reflete decisões estratégicas sobre o modo como os recursos extraídos compulsoriamente dos cidadãos, por meio dos impostos, são utilizados. 



Simultaneamente à perda de importância, decaiu o interesse da população pelo orçamento e cresceu a demanda de distintos segmentos da sociedade por garantias constitucionais de acesso prévio aos recursos orçamentários, o que, por seu turno, aumenta a irrelevância do orçamento em face da crescente rigidez que ele foi assumindo.  

A necessidade de promover o ajuste fiscal para sustentar a estabilidade monetária agravou a situação apontada. Com a perda, em virtude da corrosão, que a inflação provocava nos principais itens de gastos, como a remuneração do funcionalismo, os benefícios previdenciários e os contratos com terceiros, a rigidez do orçamento alcançou patamares mais elevados. 



Em decorrência, a  contenção das despesas passou a depender de um rigoroso controle sobre a execução orçamentária, aumentando o descompasso entre os valores previstos e os efetivamente executados e a própria irrelevância do orçamento.


Neste contexto, não é de estranhar que a transparência do orçamento deixasse de ser uma questão relevante para a sociedade e que uma pesquisa recente sobre o tema demonstrasse o baixo grau de transparência do orçamento brasileiro, que seria inferior ao da Costa Rica, do Peru e do Panamá .

Por certo que o aumento da transparência requer várias medidas que vêm sendo defendidas por especialistas da área, como a adoção de uma linguagem acessível na divulgação do orçamento e da execução orçamentária; a institucionalização de mecanismos de representação dos distintos interesses no processo de discussão e aprovação do orçamento, em especial durante a tramitação da proposta orçamentária no Legislativo; a participação da mídia na divulgação de análises a respeito da repartição dos ônus e dos benefícios das decisões refletidas no orçamento; e a melhoria das instituições encarregadas do controle e da avaliação dos resultados.


Tudo isso, no entanto, depende de que uma condição prévia seja satisfeita: a recuperação da credibilidade do orçamento e o reconhecimento de sua importância para a sociedade. Para tanto, é necessário que o tema da transparência seja abordado no marco de uma reforma orçamentária que tenha esse objetivo em mente.

A irrelevância do orçamento

Uma pesquisa ainda inédita, promovida pelo Programa de Estudos Fiscais da FGV/EBAPE, em parceria com a FGV-Opinião, da mesma instituição, buscou explorar essa questão a partir da percepção dos cidadãos a respeito do orçamento, o conhecimento que têm a respeito, o interesse em acompanhar e participar de sua elaboração, o entendimento de sua importância, os atores que influenciam em sua elaboração, a contribuição que poderiam dar para melhorar o orçamento e as dificuldades que enfrentam para isso.



Em grande medida, os resultados confirmam o baixo grau de conhecimento e de interesse dos cidadãos no orçamento, embora tenham noção de que o orçamento trata de impostos e gastos. O grau de conhecimento e de interesse aumenta com o nível de renda e os anos de escolaridade, mas a noção que os cidadãos têm do orçamento não difere, significativamente, quando se comparam as respostas dadas por aqueles que dizem ter conhecimento do orçamento e os que declaram não ter conhecimento a respeito!

Como era de esperar, o conhecimento dos cidadãos sobre o orçamento se reflete no interesse que manifestam com relação ao gasto público. Quem tem conhecimento tem maior interesse e vice-versa. No entanto, mais de 25% dos que declararam ter interesse não têm conhecimento e 15% dos que declaram ter conhecimento não têm interesse.



A relação entre conhecimento e interesse permite construir uma tipologia dos cidadãos que comporta quatro situações: com conhecimento e com interesse; com conhecimento e sem interesse; sem conhecimento e com interesse; e sem conhecimento e sem interesse. Um terço dos cidadãos está nessa última categoria e 28% na primeira. Não se verificaram mudanças significativas quando as respostas são classificadas segundo o nível de renda dos entrevistados.

A maioria afirma que impostos e gastos são importantes para si e suas empresas, sob várias perspectivas, mas essa afirmação contrasta com o baixo interesse e a falta de conhecimento. Curiosamente, essa importância não varia com a escolaridade e a renda dos cidadãos, o que poderia estar refletindo o reconhecimento de que não têm condições de influenciar. 



Essa hipótese se reflete na percepção da maioria de que na definição do orçamento prevalece o interesse dos políticos e de que o governo decide sobre os gastos pensando nas próximas eleições – apenas aqueles com escolaridade inferior a quatro anos creem que predominam as necessidades da população.

É muito baixo o percentual dos entrevistados que declaram informar-se sobre o orçamento – 26% dos cidadãos. Mesmo entre aqueles que declaram ter interesse e conhecimento no orçamento, os que procuram informar-se são minoria (45%), percentual que cai para menos de 20% entre os que têm interesse, mas não têm conhecimento. 



Dificuldades de acesso a informações e de compreensão do orçamento são vistos como limitações para a busca de informação, apesar da importância que os cidadãos atribuem ao orçamento para suas vidas. A dificuldade de compreensão é vista como o fator mais importante para limitar a participação e a fiscalização

Algumas contradições encontradas nas respostas à pesquisa reforçam a tese de que a citada irrelevância do orçamento concorre para explicar por que o reconhecimento da importância deste instrumento não se traduz na busca de maior conhecimento e participação. Em decorrência, não há estímulos a que os meios de comunicação dediquem maior espaço a esse tema, a não ser para denunciar escândalos relacionados com desvios na utilização de recursos públicos.

A desconstrução do orçamento

A percepção dos cidadãos coincide com o fato de que o orçamento vem sendo desconstruído há algum tempo, perdendo sua condição de instrumento que reflete decisões relativas a prioridades de aplicação dos recursos públicos adotadas durante o processo de sua elaboração, prioridades essas amparadas em uma visão estratégica dos interesses nacionais e estabelecidas mediante uma negociação política, na qual as preferências da sociedade se manifestam por meio de seus representantes no Congresso Nacional.


Em grande parte, as desventuras do orçamento refletem medidas contraditórias adotadas durante o processo de elaboração da nova Carta constitucional. De um lado, as novas regras fiscais inscritas na Constituição de 1988 buscaram submeter a elaboração do orçamento a um processo de planejamento que tencionava assegurar a continuidade na implementação de políticas e projetos prioritários, mediante planos quadrienais de desenvolvimento, cuja duração se estende ao primeiro ano de um novo mandato presidencial, ao mesmo tempo em que proibia a vinculação de receitas tributárias, com exceção daquelas destinadas a gastos com educação.


De outra parte, o mesmo texto constitucional ampliou as transferências de recursos tributários a estados e municípios e vinculou o produto de novas contribuições a gastos com a seguridade social, o que contribuiu para ampliar a irrelevância do orçamento como instrumento de decisão sobre a alocação dos recursos públicos, ao aumentar a parcela das receitas cujo destino já está previamente definido.



Conforme foi demonstrado em estudo recente sobre o tema , a rigidez do orçamento foi aumentando à medida que a expansão dos benefícios contemplados no regime de seguridade social foi crescendo e que o governo federal foi forçado a recorrer às contribuições sociais para promover o ajuste das contas públicas com a finalidade de sustentar a disciplina macroeconômica e consolidar a responsabilidade fiscal. 


Por seu turno, um elevado grau de rigidez orçamentária se traduz em uma situação de grande vulnerabilidade das contas públicas a mudanças na conjuntura econômica, que provoquem queda na arrecadação de tributos, vulnerabilidade que é agravada pela cessação da ajuda que a inflação dava à contenção dos gastos, aumentando a percepção de riscos fiscais que geram instabilidade econômica.

A consequência da vulnerabilidade é a adoção de duas providências adicionais para reduzir a insegurança com respeito ao cumprimento dos resultados fiscais, em face das incertezas relacionadas com o comportamento das receitas públicas. Uma consiste na subestimação das receitas para fins de elaboração da proposta orçamentária enviada pelo Executivo para ser apreciada no Congresso. A outra trata da imposição de rígidos controles sobre a execução do gasto para evitar surpresas.


Em ambos os casos, as consequências são aumentar a irrelevância do orçamento. A subestimação da receita em um contexto de elevada rigidez orçamentária limita a quase nada o espaço para alterações no orçamento durante sua tramitação no Congresso, fazendo com que este proceda a uma reestimativa das receitas para acomodar emendas à proposta do Executivo, em face da proibição constitucional de criar despesas sem identificar a correspondente fonte de receita. 



Por seu turno, o controle sobre a execução do gasto significa que as decisões sobre a pequena parcela do orçamento que não está previamente comprometida ocorrem, de fato, nesse momento, e não durante o processo de elaboração e aprovação do orçamento.

A reação às medidas mencionadas amplia o círculo vicioso que reforça a irrelevância do orçamento. Em seguida à aprovação do orçamento com as novas receitas adicionadas pelo Congresso, o Executivo emite um decreto de contingenciamento dos gastos que busca restabelecer seu controle sobre a situação fiscal. Esse contingenciamento estabelece um processo, por meio do qual o comportamento de receitas e despesas é revisto a cada bimestre, para avaliar em que medida o desempenho das contas públicas se mantém dentro dos parâmetros estabelecidos para as metas fiscais do respectivo exercício.



A cada bimestre, portanto, se reabre o balcão onde negociações a respeito da destinação de eventuais folgas de recursos são realizadas, inclusive para acomodar novos programas que não estavam contemplados no orçamento original. Em decorrência, o horizonte das decisões orçamentárias se reduz a um bimestre, ampliando o divórcio entre o orçamento e as intenções de gasto previstas no planejamento.

Apropriação de recursos por segmentos protegidos


Em virtude das regras que concorrem para a rigidez do orçamento, um aumento na arrecadação de impostos gerado por uma conjuntura econômica favorável, ou por medidas de combate à evasão de receita, não traz qualquer melhoria, uma vez que amplia no mesmo ritmo a apropriação de recursos pelos segmentos protegidos. Como a maioria das regras a respeito faz parte do texto constitucional e trata de questões politicamente sensíveis, o processo orçamentário não contempla qualquer discussão relevante com respeito a prioridades de gasto.

Como as prioridades estão predeterminadas, o futuro está amarrado ao passado, de tal modo que o orçamento deixa de ser um instrumento que reflete decisões estratégicas sobre o uso dos recursos para se transformar em um documento que registra as formalidades que precisam ser cumpridas para realizar o gasto.

Sob outra perspectiva, poderia ser arguido que a rigidez do orçamento não retiraria dele a possibilidade de ser um instrumento importante para a gestão pública, mas isso também não ocorre em razão das distorções que se foram acumulando ao longo do tempo. Em primeiro lugar, a gestão das políticas e programas contemplados no orçamento, inclusive aqueles que contam com recursos garantidos, é prejudicada pela incerteza dos gestores com relação à tempestividade com que os recursos previstos estarão disponíveis para serem efetivamente utilizados, em face do controle exercido sobre a sua liberação. 



Como a regra é apertar o controle na primeira metade do ano e ir afrouxando gradualmente, à medida que aumenta a confiança no cumprimento dos resultados estabelecidos, tudo aquilo que não está no rol das despesas obrigatórias, que implicam desembolsos mensais – como o pagamento do funcionalismo, de benefícios previdenciários e da dívida pública – fica sujeito a incertezas financeiras e, portanto, tem o seu desempenho prejudicado.

As limitações impostas à gestão pública pelas incertezas acima mencionadas são ainda maiores em face da ausência de liberdade dos gestores para remanejar os recursos com que contam para exercer suas atribuições. Em tese, os gestores podem dispor de algum espaço para utilizar a cota que recebem a cada bimestre nas atividades previstas em seus orçamentos, mas não podem transferir recursos de uma rubrica para outra sem autorização. 



Porém, os procedimentos vigentes acabam conduzindo a outra distorção: a preferência por utilizar os recursos liberados em projetos de menor prioridade para depois pressionar pela liberação de recursos adicionais com o objetivo de atender às prioridades oficiais – o que é conhecido como a prática da prioridade invertida.

De novo, tais atitudes geram novas reações que agravam a irrelevância do orçamento. Reproduzindo modelos adotados no passado, as autoridades governamentais instituem regimes especiais de execução orçamentária para um conjunto de programas que recebem um selo de prioridade, de modo a buscar garantir sua execução. Exemplos recentes dessa prática são o Brasil em Ação, adotado no governo anterior, e o Programa de Aceleração do Crescimento, adotado pela atual administração. 



Na prática, esses programas transferem para os órgãos centrais o controle sobre a execução dos projetos neles contemplados, contribuindo para o esvaziamento dos órgãos setoriais. Independentemente do mérito que apresentem, tal prática retira do orçamento o pouco que lhe restava enquanto instrumento importante para a gestão pública.

À medida que as limitações à implementação de projetos prioritários, que não gozam de garantias financeiras, vão-se acumulando, novas medidas para lidar com elas vão sendo criadas. A mais recente tem a ver com o uso abusivo da figura conhecida no jargão orçamentário como “Restos a Pagar”. 


Criada pela Lei no 4 320, de 1964, esta prática visava a permitir que despesas empenhadas e processadas no exercício financeiro de um determinado orçamento, que por algum motivo não fossem pagas até o seu encerramento, pudessem ser satisfeitas no exercício seguinte, uma vez que a legislação brasileira não permite a utilização de saldos orçamentários em anos posteriores. No entanto, o que era uma exceção à regra para lidar com poucos casos especiais foi-se transformando em uma forma de abrir espaço para a continuidade da execução de projetos prioritários, especialmente os previstos nos regimes especiais a que se refere o parágrafo anterior.

Mediante alterações na legislação para viabilizar a expansão do uso dessa figura, o governo mantém em execução as verbas atribuídas a projetos prioritários por vários exercícios consecutivos, de forma que, na prática, o orçamento “rotativo” acaba impondo-se. Ao longo dos últimos anos, o acúmulo de “Restos a Pagar” fez com que esses valores se elevassem a cifras expressivas, que não dispõem da necessária cobertura financeira e não podem ser inteiramente liquidadas de uma hora para outra. 



Desse modo, a execução orçamentária anual já começa a ser comprometida com o desvio de parte das receitas previstas para atender a uma parcela dos “Restos a Pagar”, aumentando, a cada ano, as dificuldades, o que leva a um aumento do controle sobre a liberação dos recursos, à ampliação da incerteza e à própria irrelevância do orçamento para a sociedade.

À medida que esta aumenta, torna-se também irrelevante demandar sua transparência. Por isso é que o discurso da transparência se desloca para questões que têm mais a ver com o que de fato ocorre e não com o que deveria ocorrer. Assim, por exemplo, a divulgação por meio da internet dos dados sobre a execução do gasto é importante, mas não atende ao objetivo de dar transparência ao orçamento. O que está sendo executado em um determinado ano, à parte as despesas obrigatórias que têm um fluxo mensal predeterminado, corresponde, principalmente no caso de investimentos, a despesas contempladas em vários orçamentos anteriores. 



Tais informações são importantes para os analistas fiscais acompanharem a execução e a composição do gasto, mas não para a sociedade tomar conhecimento de como os recursos que transfere anualmente para o Estado, via tributos, estão sendo utilizados, e de como se repartem os custos e benefícios das decisões contempladas no orçamento.

Por isso, qualquer sugestão que trate de aumentar a transparência orçamentária deve partir da proposição de mudanças que restaurem a importância do orçamento como instrumento que reflete as decisões sobre como os recursos disponíveis são repartidos entre os vários programas contemplados e como estes são financiados. A transparência orçamentária depende, portanto, da reconstrução do orçamento.

A reconstrução do orçamento

A reconstrução do orçamento não é uma tarefa fácil. Ela precisa ser conduzida no âmbito das limitações impostas pelas exigências de preservação do ajuste fiscal e de consolidação de uma cultura de responsabilidade no manejo das contas públicas. Isso é particularmente difícil em um contexto em que cerca de 90% dos gastos são predeterminados e em que não há mais espaço para contornar a rigidez do orçamento por meio do aumento na carga tributária. Por isso, o processo de reconstrução do orçamento precisa ser conduzido com cautela e mediante a adoção de uma sequência de mudanças que atenda  a essas preocupações.



Um bom ponto de partida para essas mudanças é a revisão dos procedimentos adotados para a estimativa das receitas orçamentárias. Conforme mencionado, a prática vigente de gerar estimativas conservadoras, com base em procedimentos pouco transparentes, detona reações que desencadeiam uma sequência de respostas negativas com efeitos cumulativos. Assim, ao invés de reduzir as incertezas relacionadas com o cumprimento das metas fiscais, tal prática acaba gerando um efeito oposto ao pretendido.

Convém notar que uma das razões que levaram à criação da LDO na reforma constitucional de 1988 foi a de antecipar o debate sobre os parâmetros que deveriam balizar a elaboração da lei orçamentária, de forma a reduzir o conflito entre o Executivo e o Legislativo em torno do tamanho do orçamento. 



No entanto, como a implementação das novas regras constitucionais coincidiu com um longo período de turbulências econômicas e instabilidade monetária, a antecipação de qualquer entendimento a respeito era logo em seguida questionada, em decorrência da volatilidade das previsões de inflação e de desempenho das demais variáveis econômicas que determinam o comportamento da receita tributária.


Com o tempo, a LDO foi-se afastando do modelo inicialmente concebido e transformou-se em mais um instrumento da política de ajuste fiscal (foco no superávit primário) e em substituto temporário da atualização das normas orçamentárias na ausência de mudanças na Lei no 4 320/1964.

Uma retomada dos objetivos originais da LDO seria, portanto, uma providência importante para lidar com o problema em questão. Um acordo prévio construído no Congresso em torno dos parâmetros que apoiam as previsões de arrecadação de impostos, e também os principais componentes do gasto, contribuiria para evitar os problemas que decorrem de sucessivas reações a medidas adotadas para acomodar as mudanças introduzidas pelo Congresso na proposta orçamentária e os procedimentos adotados pelo Executivo para controlar a execução do gasto . 


Para sustentar esse acordo, a tramitação do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias no Congresso deveria contar com o apoio de um painel de especialistas que seria formado, a cada ano, especialmente para analisar a metodologia utilizada, apreciar as projeções macroeconômicas, dar transparência a esses números e avalizar o entendimento a esse respeito. O painel não discutiria as estimativas, e, sim, as bases em que elas devem assentar-se.


Sua função seria consultiva e dessa consulta deveria surgir um acordo em torno de intervalos de variação para as principais variáveis macroeconômicas que determinam o tamanho e a composição do orçamento. Esse acordo deveria balizar a elaboração da lei orçamentária e reduzir a diferença entre as estimativas encaminhadas pelo Executivo e a revisão feita pelo Legislativo por ocasião da tramitação da proposta orçamentária. 

Um acordo dessa ordem daria maior confiabilidade às previsões e contribuiria para dar maior segurança às estimativas de margens para a expansão do gasto. O acordo relacionado com os parâmetros deveria contemplar, também, projeções trimestrais que levassem em conta os efeitos sazonais da conjuntura econômica sobre o comportamento da arrecadação e das despesas obrigatórias, o que contribuiria para dar mais estabilidade à programação financeira anual e aumentar a segurança dos gestores com respeito à manutenção das atividades governamentais.


O dimensionamento adequado das margens de expansão é uma questão fundamental para alargar o horizonte da programação orçamentária. Isso porque, além de aumentar a confiabilidade das estimativas de recursos disponíveis, é também necessário adotar duas iniciativas complementares. Uma trata de não incluir na determinação dessas margens as chamadas receitas atípicas, isto é, aquelas que resultam de fatos episódicos, como a alienação de patrimônio (privatizações), a cessão de direitos de exploração (concessões), o pagamento de débitos fiscais e o efeito de flutuações “anormais” no preço internacional de commodities. 



Por sua natureza, essas receitas não podem servir de guarida para a expansão de despesas permanentes. A outra iniciativa mencionada se refere à necessidade de construir o entendimento em torno do conceito de despesas obrigatórias.

 No tocante a despesas obrigatórias, o entendimento que resulta das normas vigentes é incluir tudo aquilo que constitui uma obrigação assumida pelo Estado em face de normas legais ou de compromissos assumidos “que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios”, como determina a LRF. Na prática, deduzem-se ainda do cálculo das margens recursos para o cumprimento de sentenças judiciais e das metas para o resultado primário das contas fiscais. 



Cumpre notar, todavia, que um dimensionamento mais adequado das margens de expansão deveria levar em conta também as obrigações que o Estado tem com a manutenção dos serviços prestados à população e da infraestrutura pública, a exemplo da compra de medicamentos, de material escolar e de equipamentos para as forças de segurança pública, bem como a conservação de rodovias. 


A não-inclusão dessas despesas no cálculo de margens de expansão gera ineficiência na gestão pública e enseja a assunção de novos compromissos presentes e futuros que inviabilizam a segurança e a estabilidade de uma programação orçamentário-financeira de médio prazo. 

Não basta, todavia, aprimorar o cálculo das margens de expansão. É preciso que decisões que criem novos compromissos permanentes levem em conta esse espaço fiscal. Disso depende a adoção de uma perspectiva de médio prazo na programação orçamentário-financeira. 



Uma questão que precisa ser levada em conta a esse respeito se refere à estimativa de compromissos futuros que estariam sendo criados em função de decisões adotadas neste momento, como despesas permanentes geradas por novos investimentos (escolas, hospitais etc.); criação ou ampliação de novos direitos por meio de atos legais (benefícios previdenciários e assistenciais e ampliação do funcionalismo, por exemplo); contratos para execução de obras que se estendem por vários anos, etc. A assunção de tais compromissos teria de ser avaliada à luz das margens de expansão estimadas para um perío¬do de, no mínimo, um triênio.

Num contexto em que o grau de engessamento do orçamento é muito alto, como no Brasil, a observância desse procedimento é de fundamental importância para a estabilidade de uma programação de investimentos, pois um aumento descontrolado no ritmo de incremento das despesas permanentes provocará a interrupção de obras e a descontinuidade na execução dos investimentos, especialmente quando a conjuntura econômica se tornar desfavorável.



Outra questão relevante que merece ser examinada trata da periodicidade com que essas margens são reavaliadas. Reavaliações frequentes, como as que ocorrem a cada bimestre, geram efeitos diversos . Por um lado, garantem um melhor controle do cumprimento das metas fiscais. Por outro, encurtam o horizonte das decisões orçamentárias e abrem oportunidades para demandas por maiores gastos, estimulando, inclusive, a prática da inversão de prioridades por parte dos gestores setoriais. Se a cada instante a revisão dá espaço para a inclusão de novos gastos, perde-se a visão plurianual da programação, pois as margens de expansão são constantemente revistas.


A transição para um modelo que incorpore uma visão de médio prazo na programação orçamentário-financeira depende não apenas de que as decisões que geram despesas permanentes levem em devida conta as margens trienais de expansão do gasto, mas também da existência de recursos para lidar com a insuficiência de receitas decorrentes de uma inversão do ciclo econômico. 


Isso significa que a existência de um fundo de estabilização orçamentária é um complemento importante para o alcance do objetivo pretendido . As receitas atípicas não incluídas no cálculo dessas margens podem ser uma fonte importante de alimentação desse fundo, mas a incorporação a ele de uma parte das margens de expansão daria maior segurança à operação de um regime fiscal de médio prazo .

Um problema a ser resolvido durante essa transição é encontrar uma solução para o problema gerado pelo acúmulo de compromissos com os “Restos a Pagar”. O acúmulo desses compromissos e sua constante renovação agregam mais um elemento que retira estabilidade da execução orçamentária, pois saca recursos do exercício presente para pagar compromissos postergados de exercícios anteriores. 


Como não é possível resolver esse problema de uma penada, dado o vulto que assumiu, cabe avaliar a parcela desses compromissos que ainda pode ser cancelada, estabelecer uma hierarquia de prioridades (levando em conta os compromissos políticos assumidos) e definir uma programação para a sua liquidação integral ao longo dos próximos anos, deduzindo-se a parcela correspondente a cada ano do cálculo das margens de expansão de gasto desse período. 

Em busca da transparência

A credibilidade das estimativas de arrecadação e das margens de expansão do gasto é o primeiro passo para dar transparência ao orçamento. Sem que se tenha um conhecimento adequado sobre o real tamanho dos recursos disponíveis e do grau de comprometimento desses recursos, é impossível questionar as implicações decorrentes desses compromissos e submeter o orçamento a um processo de planejamento que contemple uma visão de longo prazo dos interesses e das prioridades nacionais.


A sugestão, anteriormente apontada para gerar a credibilidade requerida, consiste em promover um acordo dos Poderes Executivo e Legislativo, com respeito aos parâmetros macroeconômicos e à metodologia utilizados nas estimativas de receitas e despesas, acordo apoiado em amplo debate com a participação de especialistas. O objetivo desse acordo é reduzir o conflito entre os Poderes durante a elaboração e execução do orçamento, diminuindo, também, as restrições impostas à execução orçamentária em beneficio de maior estabilidade da programação.

A redução do antagonismo entre o Executivo e o Legislativo, propiciada por um acordo em torno dos parâmetros utilizados nas estimativas de receita, também poderia contribuir para limitar o problema decorrente da criação de espaço fiscal para abrigar as emendas de parlamentares ao orçamento. Para isso, também contribuiria o estabelecimento de um diálogo com a Comissão de Orçamento, que precedesse o envio da proposta do Executivo e facilitasse a necessária acomodação .

A redução do conflito entre os Poderes também contribuiria para a regularidade na execução do orçamento, isto é, para que a execução orçamentária se aproximasse das previsões de gasto, em beneficio da relevância do orçamento. Constatadas, na divulgação dos dados a respeito da execução do orçamento, divergências significativas entre o previsto e o realizado, as autoridades responsáveis deveriam ser convocadas a prestar esclarecimentos em audiências públicas organizadas por órgãos do Legislativo, para que as causas das divergências fossem discutidas e explicadas.

A regularidade na execução é condição necessária para que a execução das políticas e dos programas não sofra solução de continuidade e, portanto, possa ter seus resultados aferidos. A aferição de resultados é um dos principais objetivos a serem alcançados por um programa de transparência orçamentária, pois não basta saber se o que foi previsto está sendo executado. 


É necessário saber se a gestão do gasto é eficiente, se os resultados obtidos são satisfatórios e se é possível melhorar os resultados com o mesmo custo, isto é, se é possível obter mais valor pelo seu dinheiro.

Um passo adiante em um programa voltado para a transparência orçamentária é necessário para tratar de um aspecto essencial: a exigência de que se faça, periodicamente, uma reavaliação das despesas públicas e dos compromissos que limitam o espaço para a acomodação do orçamento a mudanças nas prioridades. Revisões quadrienais das despesas, a exemplo do que é feito no Reino Unido, poderiam contribuir para que tais compromissos fossem confrontados com mudanças na dinâmica socioeconômica que alteram o padrão e a composição das demandas da sociedade por programas governamentais. 


A divulgação dos resultados dessas revisões e a promoção de um amplo debate a respeito teriam a função de gerar um processo de contínua adaptação do orçamento a mudanças nas prioridades, evitando o congelamento, que resulta da imutabilidade desses compromissos.

Nenhuma das sugestões acima substitui a necessidade de as mudanças requeridas, para dar transparência ao uso dos recursos públicos, ser acompanhada do estímulo à realização de análises, por organizações independentes, do conteúdo do orçamento e dos resultados de sua execução. Por mais que a divulgação das informações busque torná-las mais acessíveis, a linguagem orçamentária tem características próprias, que não a torna de fácil compreensão por parte de não-especialistas. 


Cabe, portanto, a instituições acadêmicas, órgãos de pesquisa e organizações não-governamentais um papel adicional importante no esforço de ampliar a transparência ao orçamento.




Por: Carlos Simonsen e Fernando Resende

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Uma Reforma Muito Além do Judiciário



Poucas instituições nacionais mudaram tanto nestes primeiros vinte anos da Constituição de 1988 quanto o Poder Judiciário. Os indicadores são palpáveis.

Primeiro, reconquistou, exerceu e consolidou a independência política perdida no regime militar. Sem ela, como a secular experiência nacional – e internacional também – demonstra, inexistem Estado de Direito e democracia. A independência concentra-se no Supremo Tribunal Federal e tem tido nele seu maior símbolo. 



Nos dois mandatos do atual Presidente da República, sete novos ministros ingressaram no STF. Não se concretizou, porém, o receio – como, de resto, parece querer concretizar-se agora nos Estados Unidos – de que, diante das novas nomeações, o Supremo tendesse a uma “partidarização” política. Não nos tem faltado Supremo “apartidário”.

Segundo, o debate sobre a reforma da administração da Justiça extrapolou o círculo restrito dos especialistas em Direito processual, dos desarticulados interesses dos usuários da Justiça e dos articulados interesses corporativos dos profissionais e de alguns setores econômicos. A evidência de que, numa democracia, o Poder Judiciário detém a palavra final no quotidiano das instituições, empresas, comunidades e cidadãos despertou e mobilizou a opinião pública. Os dados são eloqüentes. 



A experiência judicial atinge a cada dia um número maior de brasileiros. Kazuo Watanabe lembra, por exemplo, que, no ano de 2004, enquanto a população de São Paulo cresceu 1,14%, o número de processos aumentou 12,49%. Ou seja, acima de dez vezes mais. Mais ainda. Para cada grupo de dez habitantes já existem três processos. A reforma da administração da Justiça é, hoje, tarefa prioritária de interesse nacional, tanto quanto – talvez até mais que – as reformas fiscal ou trabalhista.

A conseqüência da crescente massificação da experiência judicial foi a crescente atenção e pressão da mídia em favor da reforma. De quase sempre amarga experiência dos cidadãos, para prioridade na agenda nacional e, daí, para prioridade na pauta das redações. E vice-versa. Por isso assistimos, nestes vinte anos, à intensa mudança nas relações entre o Judiciário e os meios de comunicação. Mudança decisiva para a expressão do interesse nacional.

Terceiro, o Poder Judiciário, de parceria com o Congresso, iniciou intensa reforma institucional interna. Dois exemplos apenas. Paralelamente à consolidação democrática, a Justiça eleitoral surgiu como uma das melhores do mundo. 


Ainda que restem problemas não solucionados, também existentes em outros importantes países, como o difícil controle do financiamento eleitoral, trata-se de Justiça pioneiramente informatizada, crível, realmente de âmbito nacional, não corrupta, capaz de assegurar legitimidade e estabilidade a eleitores e eleitos. Capaz, inclusive, de ousar ocupar o vácuo legislativo, fruto de paralisia congressual, diante de propostas de mudanças no sistema eleitoral de que o país carece.


Em matéria eleitoral, nosso déficit está mais nas hesitações do Legislativo em forjar um novo regime partidário e eleitoral do que na eficiência e independência judicial.

Outro exemplo é a criação de inédito órgão de fiscalização, controle e planejamento de magistrados e tribunais: o Conselho Nacional de Justiça. Já implantado e com bom acervo de decisões que modernizam a infra-estrutura ética e gerencial do Judiciário. Tais como: término do nepotismo; estabelecimento de tetos salariais para magistrados e eliminação dos adicionais
(ainda que não de todo domados); informatização do processo judicial através de software livre; criação de estatísticas judiciais nacionais, inclusive da corregedoria, sem as quais não podem ser feitas políticas judiciais realistas; e muito mais. 


Mas falta muito. Pelo mandato que recebeu do Congresso e da sociedade, faltam, ainda, mais decisivo combate à corrupção e à lentidão, e a ampliação do acesso à Justiça às classes e comunidades mais carentes.

A questão que, então, se coloca é: estando em curso esses processos de independência política e reforma administrativa, como prosseguir? A resposta é óbvia. Trata-se, antes de tudo, de consolidar e aprofundar estas conquistas iniciais. Não estou certo, porém, que se consolidem por si sós.


Como na vida pessoal, a vigilância sobre os objetivos que traçamos para nós mesmos deve ser permanente. Receio retrocessos se não transformarmos o ideal de amplo acesso a uma Justiça ágil em agenda e vontade política nacional permanentes. E se não traduzirmos essa vontade em inovação institucional e realização efetiva. Não há que esconder. 



O atual modelo se sustenta através de uma, às vezes articulada, às vezes simplesmente caótica, teia de interesses setoriais intra e extra Judiciário. Teia de interesses e antiguidades que retira da ineficiência operacional e da exclusão do acesso à Justiça seu pão e sua água. Sua vida ou sobrevida. Como desfazê-la?

Paulo Daflon Barrozo diz que interesses nacionais que não se concretizam transformam-se em ilusões nacionais. Iludem e paralisam mais do que estimulam e mobilizam. O risco é este.



A judicialização do déficit público

Este texto chama a atenção para uma hipótese que, latente, começa a ficar evidente. Trata-se de “hipótese-diagnóstico” quase óbvia, mas que não tem recebido a devida relevância na mídia, nem entre as lideranças dos próprios magistrados, que seriam os principais beneficiados dela. 



Nem nas universidades, nem no Congresso Nacional. Nem estimulou a imaginação institucional inovadora, sem a qual não se transforma, diria Bernard Henry Levy, a permanente censura – no caso, a magistrados e tribunais – em permanente proposta de todos.

O interesse nacional não vive apenas na excelência da crítica, por mais justa e precisa que seja. Assim como o paciente não sobrevive apenas de diagnósticos. A repetição exaustiva da crítica não é capaz de, por si só, substituir a realidade existente, diria Carlos Alberto Direito, ministro do Supremo.

A consolidação e aprofundamento das conquistas não ocorrerão sem que se crie um consenso fundamentado num entendimento básico, a saber: a reforma do Judiciário é “multitarefa”, de muitos atores e diferentes responsabilidades. Em outras palavras, a solidão, às vezes acuada, outras vezes agressiva, do Poder Judiciário nem é um entendimento correto da crise, nem é do interesse nacional.

A responsabilidade pelo atual modelo é tanto do Judiciário, como, ao mesmo tempo, do Congresso e do Poder Executivo, das entidades representativas das empresas e dos trabalhadores, dos profissionais jurídicos, das universidades, das associações da sociedade civil, sobretudo dos usuários da Justiça.


Ou seja, a reforma da administração da Justiça não é questão exclusivamente interna ao Poder Judiciário. Mas referente ao conjunto dos interesses e relações sociais políticas, econômicas e culturais que, a partir daí, se formam e entrelaçam, se legalizam e institucionalizam. Na reinvenção desse entrelaçar escondem-se os novos e mais amplos limites e possibilidades do sistema judicial na democracia.



Se o foco da mudança for apenas um aperfeiçoar, conservar, reformar ou mesmo revolucionar o Poder Judiciário (leitor, escolha sua alternativa), ela será sempre insuficiente. Há que mudar, também, a natureza e a forma de suas relações com a sociedade, os profissionais jurídicos, os demais Poderes da República.

A “multilateralidade” da tarefa, poderia dizer Rubem Barbosa, é evidente. Basta perguntarmos: até que ponto o excesso de recursos, que provoca a lentidão das sentenças, responde à demanda corporativa dos advogados? 



Até que ponto a interpretação judicial de primeira instância – para muitos, excessivamente ativista – é conseqüência de um déficit de representação político-democrática das leis, ou, como diria, numa feliz síntese, Henrique Fábio Pierre, conseqüência de uma confusão entre “Estado de Direito” e “Estado de normas”? Entre Rule of Law e Rule of Laws? 


Até que ponto a lentidão processual é manipulada pela inevitável análise econômica de custo e benefício de interesse dos litigantes? Até que ponto o acesso à Justiça – excesso e exclusão – apenas reflete a desigual distribuição de renda nacional? Até que ponto a estruturação processual, administrativa e financeira dos tribunais subsidia e encobre uma ineficiência administrativa e financeira do Poder Executivo?

As respostas a estas questões transformam os tribunais e magistrados de protagonistas únicos e autônomos, de responsáveis exclusivos, em arenas interdependentes e abertas a múltiplos interesses “extra-Judiciário”. O foco de uma nova estratégia de reforma devem ser os anéis, poderia dizer Fernando Henrique Cardoso, ou seja, as alianças intra e extra Judiciário. Debitar as dificuldades da administração da Justiça à exclusiva culpa e responsabilidade de tribunais e magistrados não consolida as iniciais conquistas. Fácil perceber.

De uma perspectiva econômica, o acesso à Justiça e a agilidade dos processos judiciais são variáveis consideradas pelos agentes como “custos transacionais endógenos ao Poder Judiciário”, como lembra Antonio José Maristrello Porto. São custos atribuídos ao Poder Judiciário que afetam diretamente os incentivos para as trocas entre os agentes. Trocas que buscam maximizar a riqueza na sociedade. 


À medida que a percepção dos agentes é negativamente afetada pelos altos custos transacionais associados, hoje, ao Judiciário brasileiro, ocorre uma diminuição dos incentivos para a realização de trocas, o que prejudica a sociedade e o mercado como um todo. No entanto, reconhecer a existência de “custos transacionais endógenos” não significa dizer que a redução de tais custos não depende de fatores externos ao Poder Judiciário. Parte importante deles depende, sim. Essa é a nossa hipótese. E queremos, hoje, colocar luz em apenas um desses fatores exógenos.

O uso patológico do Judiciário pelo Executivo
Trata-se da prática, aliás, mais do que prática, verdadeira cultura, cada vez mais freqüente, do Poder Executivo em tentar diminuir seus próprios custos transacionais ou operacionais, transferindo-os ao Poder Judiciário. Trata-se, no fundo, da cultura de judicialização do déficit público. O atual modelo permite ao Poder Executivo fazer aquilo que denomino “uso patológico” da administração da Justiça. 



Esse uso patológico acaba por impor ao Judiciário pelo menos dois tipos de custos que não são seus. São do Executivo. Por um lado, velados custos financeiros. Por outros, deslegitimadores ônus políticos. Pretendo, daqui em diante, agrupar alguns indicadores já visíveis e consensuais que exemplificam esses custos, fundamentam minha argumentação e confirmam a hipótese-diagnóstico.

O primeiro indicador denomino “estatização da pauta do Judiciário”, o que sobrecarrega, indevidamente, a administração de Justiça. Transcreveremos, a seguir, alguns exemplos empíricos e consensuais – reconhecidos pelo próprio Poder Executivo – de como essa estatização constitui verdadeiro subsídio orçamentário de um Poder para o outro. Iluminar e enfrentar essas transferências disfarçadas, extingui-las, ou, pelo menos, criar um sistema contábil de apropriação de custos mais verdadeiro, é indispensável para a harmonia e independência dos Poderes. Que não deve ser um princípio apenas político. Deve ser contábil também.


O segundo indicador são os financiamentos compulsórios que o Judiciário e as partes são obrigados a conceder ao Tesouro Nacional para fortalecer um sempre insuficiente fluxo de caixa. Esses financiamentos compulsórios, às vezes quase até subsídios, além de transferirem renda do Judiciário e dos usuários da Justiça para o Executivo, impõem ônus de deslegitimação política.



Trata-se de reação em cadeia. O uso patológico do Judiciário pelo Executivo aumenta-lhe a ineficiência operacional e o faz perder legitimidade diante dos cidadãos. Um poder que não funciona. O mínimo que ocorre é um aumento da insegurança jurídica e a criação de um vácuo potencialmente desestabilizador das instituições democráticas: a descrença na Justiça.

Ambos os mecanismos – a estatização da pauta e o financiamento compulsório – vicejam há décadas na história jurídica, política e financeira da administração da Justiça. Não são de responsabilidade deste ou daquele governo. Todos os governos, de qualquer partido, deles se beneficiam. Mais do que um ato, é uma cultura. São práticas e crenças institucionais que precisam ser mudadas. Modelo a se recriar em nome do interesse nacional.

O primeiro indicador:

A estatização da pauta do Judiciário
Nem mesmo o Supremo detém, tecnicamente, o controle total de sua pauta decisória. Quem o detém são os litigantes. O Executivo é o principal deles. Estes, quando propõem uma ação, detêm a exclusiva iniciativa de fazer o Judiciário decidir. Acionam o sistema. O que está certo. Trata-se de mecanismo indispensável ao equilíbrio de Poderes. Diante do imenso poder que o Judiciário tem, uma das maneiras de contê-lo, para que não invada os limites dos outros poderes, é respeitar o princípio da inércia judicial: o Judiciário não age, reage. É ser, como muitos – radicalmente – dizem, um poder sem iniciativas.



Se assim é e deve ser, o Judiciário não controla, ao menos de início, nem a quantidade nem a qualidade de sua demanda. O que ocorre, então, se esta demanda for inadequada? Temerária? De má-fé? O que ocorre se o Judiciário estiver sendo usado patologicamente? Esse não controle de sua demanda acaba abrindo a possibilidade para que o Poder Executivo, a fim de reduzir seus custos internos, em algumas situações – não todas, evidentemente – se aproprie, inadequadamente, do direito de peticionar e da ampla defesa.

Darei dois exemplos de estatização da pauta. O primeiro, de estatização da pauta de primeira instância. O segundo, da pauta do próprio Supremo.


Atentemos, inicialmente, para prática corriqueira e usual nas Fazendas nacional, estadual e municipal que agora descrevo. E para suas conseqüências também. Ao exercer a competência-dever de fiscalizar o pagamento de impostos e defender o Erário Público, a Receita Federal e Secretarias de Fazenda acompanham as declarações dos contribuintes. Havendo qualquer indício de irregularidade, abrem procedimentos internos. O que leva tempo. Havendo infração ou suspeita de infração, abrem-se processos administrativos. O que também leva tempo. 



A duração dessas tarefas fiscalizatórias tem, no entanto, um limite. Não podem ser eternas. A necessidade do limite temporal, do prazo prescricional, tem sentido democrático: impedir que o contribuinte e sua liberdade fiquem, a vida inteira, sob uma espada de Dâmocles. Presos “por um fio”.

O prazo prescricional, nesse sentido, tem várias funções: 



a) estabelece um prazo gerencial para que a tarefa seja concluída com eficiência; 
b) limita o poder discricionário da autoridade fazendária diante da liberdade do contribuinte; e, por fim, 
c) consolida a segurança jurídica administrativa do sistema, como gosto de qualificar (ver a respeito Joaquim Falcão, Luís F. Schuartz & Diego Arguelhes, “Jurisdição, Incerteza e Estado de Direito”, Revista de Direito Administrativo – RDA, São Paulo, Atlas, 243: 79–112, set.-dez. 2006).

Se assim não fosse, inúmeras transações negociais jamais poderiam ser completadas. Nem o comprador nem o vendedor poderiam estimar, com um mínimo de segurança, o valor da transação. A eventual desconhecida dívida fiscal seria um enigma, se não paralisante, pelo menos altamente dificultador da transação. Nem a declaração do vendedor, nem a das autoridades bastariam. O atual prazo prescricional para cobrança tributária é de cinco anos (art. 174 do CTN).


Mas o que em muitos casos, hoje, ocorre? Se procedimentos e processos administrativos da administração fiscal não terminam dentro do período legal, muitos procuradores da Fazenda, nos três níveis de governo, ajuízam ações nas vésperas do encerramento do prazo prescricional para evitar que a prescrição ocorra. Nessa sua prática diária, propõem milhares de novas ações. Judicializam a fiscalização de todo inacabada. Mantêm o contribuinte subordinado e inseguro diante de futuro irrazoavelmente imprevisível.


Excelente estudo recente do Ministério da Justiça sobre execuções fiscais no Brasil conclui: “[...] essa prática – da qual não escapam o Executivo municipal, estadual e federal – é explicada em parte pela demora do processo administrativo, mas também pela desorganização de determinados órgãos [...]” (cf. Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, Estudo sobre Execuções Fiscais no Brasil, São Paulo, agosto de 2007, p. 63). Duas conseqüências daí decorrem: o Poder Executivo ajuíza ação fiscal sem uma avaliação mais rigorosa das efetivas chances de satisfação do débito; e isenta-se o órgão público (no caso, do Poder Executivo) de responsabilidade.

Não nos faltam propostas para resolver, ou minimizar, esse problema: legalizar sistema de compensação de dívidas entre Estado e contribuinte, estimular a conciliação administrativa e pré-judicial, desburocratizar e racionalizar o processo administrativo, criar um contencioso administrativo custeado pelo Executivo mas dele independente etc.

A dificuldade é que essas mudanças não somente interferem nos custos financeiros do Executivo como exigem nova formação e mentalidade dos advogados públicos. Exige, também, uma nova legislação sobre a responsabilização civil do funcionário público. 


Em meu entender, mover ações fiscais contra o contribuinte sem rigorosa avaliação das chances de êxito e com a intenção de procrastinar o prazo prescricional é, no mínimo, lide temerária. Ocorre que a penalidade para lide temerária ou ações claramente protelatórias é imposta pelo juiz à parte litigante: ao Poder Executivo. Dificilmente chega a seus profissionais e agentes.

Em matéria fiscal, têm faltado mais eficiência, limites e transparência da Administração Pública do que imparcialidade e presteza do Poder Judiciário. O resultado líquido é que, muita vez, se transferem para o Judiciário os custos e o risco das fiscalizações inacabadas do Executivo. Judicializa-se. Sem falar nos efeitos colaterais, como o agravamento do engarrafamento processual dentro do Judiciário. Custos transacionais internos adicionais.

O segundo exemplo de estatização da pauta diz respeito ao Supremo Tribunal Federal, mesmo quando já se avizinham dois novos instrumentos criados pelo Congresso, capazes de reduzir o número de casos – mais de cem mil (ver, a respeito, Estatísticas do STF, disponíveis em http://www.stf.gov.br) – que lhe chegam todos os anos: a súmula vinculante e a repercussão geral. 


De agora em diante, tal como nos Estados Unidos, onde se julga cerca de apenas cem processos por ano, o Supremo pode escolher os casos que têm repercussão geral e, a partir deles, dar maior densidade institucional ao seu caráter de Corte político-constitucional que é. E deveria ser exclusivamente.

Recentíssimo e excelente estudo estatístico do próprio Supremo sobre os Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento – ao todo, 3 991 – que nele chegaram entre julho e novembro de 2007, já distribuídos aos ministros com a preliminar de repercussão geral por assunto, demonstra que, de cada cem casos, cerca de setenta são de interesse direto do Poder Executivo. Interesses inicialmente constitucionalizados e, depois, judicializados. Sem mudar a natureza dessa demanda geneticamente estatizada, pouco pode ser feito. 


O quadro abaixo é bastante ilustrativo.






Os dados são claros: a estatização é fruto da demanda exógena oriunda dos problemas da Administração Pública e legalizada pelo Legislativo. O sistema judicial não precisa ser assim. Basta comparar a presença mínima de questões fiscais e sobre servidores na Suprema Corte norte-americana.


Vejam só. A primeira maior demanda que chega ao Supremo, 20,32% dos Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento, dizem respeito aos interesses dos servidores públicos. Falta pesquisa mais extensa, mas ousaria dizer que o Brasil é um dos únicos países do Ocidente – se não o único – onde a Constituição trata de servidor público em tantos dispositivos – são 62 (!), entre títulos, artigos, parágrafos, incisos e alíneas, que contêm as palavras “servidor” ou “servidores” . 


Na França, ao contrário, a Constituição especificamente determina que se trata de matéria infraconstitucional. Essa constitucionalização do serviço público nem assegurou o que o país necessita – uma burocracia altamente profissional, apartidária e estável – nem tranqüilizou os próprios servidores. 


Ao contrário, atua como estímulo ao permanente conflito, à mobilização judicial e à insegurança jurídico-administrativa. Aumenta os custos globais da administração da Justiça, mesmo diante de improvável vitória corporativa. 


A comparação é inevitável. Enquanto o Supremo é compelido a gastar tempo e recursos para resolver conflitos entre a Administração Pública e seus servidores, nada, ou quase nada, lhe chega sobre os conflitos entre empregados e empregadores. O número de empregados e trabalhadores domésticos no Brasil, hoje, ultrapassa a casa dos 54,7 milhões. 


Já o total de servidores públicos e militares é de algo em torno de 5,5 milhões (ver, a respeito, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, 2005, IBGE). O desequilíbrio é evidente. Na pauta do Supremo, o socialmente “menos” quer ser, e tem sido, o judicialmente “mais”. Um vale mais do que dez. Em matéria de relações de trabalho, a constitucionalização dos interesses dos servidores públicos impõe, proporcionalmente, ao Judiciário mais custos do que a atual legislação trabalhista.

Estes dados, recentíssimos, não inovam. Ao contrário, acumulam-se. O Estudo sobre Execuções Fiscais do Ministério da Justiça, acima mencionado, demonstra que, em 2005, 51% de todas as ações em tramitação no Tribunal de Justiça de São Paulo eram de execução fiscal – o que corresponde a cerca de oito milhões de processos. 



No Rio de Janeiro, esse número era de 56%. Na medida, porém, em que, na Justiça Federal, no primeiro trimestre de 2006, as execuções fiscais eram 36,8% do total de ações em tramitação e, no Rio Grande do Sul, eram 24% – ou seja, bem menos – fica claro que essa estatização da pauta não é um destino. É muito mais uma policy judicializante imaginada para superar eventuais ineficiências administrativas do Executivo, ou eventuais leis fiscais temerárias, e que pode ser contornada. 

A contrapartida é que os conflitos decorrentes de relações familiares, comunitárias e negociais são equacionados em outras instâncias. Ou nem mesmo judicializados. A pauta do Judiciário precisa de mais mercado, comunidades e sociedade civil, e de menos Estado. 


Segundo indicador: 



O financiamento e subsídios compulsórios

O financiamento compulsório pode ser apreendido por uma pequena história. Em outubro de 2005, coube ao Congresso votar a Medida Provisória n. 252/05, que propunha uma série de estímulos fiscais, conhecida como a “MP do Bem”. Às vésperas de sua apreciação pelo Congresso Nacional, foi inserida a emenda parlamentar n. 27, que nada tinha a ver com a finalidade da MP. 



Discretamente, ela alterava o artigo 17 da Lei dos juizados especiais federais – Lei n. 10 259/01 – permitindo não apenas o atraso e a não correção do pagamento das decisões judiciais de até 60 salários mínimos favoráveis a aposentados, contra o governo, como também que o pagamento só fosse feito se o orçamento do ano seguinte tivesse previsão para o gasto. Por quê? Qual a razão de ser dessa discreta emenda?

A história foi a seguinte: Em 2000, o Supremo decidira que as contas do FGTS dos trabalhadores deveriam ser corrigidas de acordo com o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), e não com base nos rendimentos da Letra Financeira do Tesouro Nacional (LFT), como pretendia o governo nos planos “Verão” e “Collor I” (ver, a respeito, RE 226855-RS – Rel. Min. Moreira Alves – DJ 13-10-2000). Vitoriosos depois de quase uma década na Justiça, os trabalhadores recorreram em massa aos Juizados Federais, nas causas até sessenta salários mínimos, para recuperar o direito até então negado pelo governo. 



Essa decisão representava um custo financeiro enorme para o Tesouro Nacional. Em outras palavras, por anos o Tesouro Nacional financiara-se através da diferença de índices aplicados nos fundos dos trabalhadores. Agora, tinha que pagar. Os credores correram em massa ao Judiciário.

Aí vem a surpresa: os Juizados Especiais foram tremendamente eficientes, como os idealizaram Hélio Beltrão e José Geraldo Piquet Carneiro. Milhares de casos foram decididos em pouco tempo. Condenava-se, de acordo com a jurisprudência do Supremo, a União. As condenações superaram em muito as provisões, quase sempre insuficientes, do Orçamento da União. 


O governo federal viu-se diante da tarefa de estancar essa justa sangria judicial do Tesouro. Mas como fazê-lo contra o Supremo? Como fazê-lo diante do reconhecimento de um direito legal e legítimo que, até então, tinha sido negado a milhões de trabalhadores? 

Se o Executivo não paga as condenações dos Juizados, os juízes têm competência para decretar o seqüestro das receitas estatais (art. 17, §2º, da Lei n. 10 259/01). Ou seja, seqüestrar recursos do Poder Executivo, onde quer que estejam depositados. Nesse caso, não cabem precatórios. Para tanto, seria necessário mudar a legislação. A opção do Tesouro Nacional foi, então, imediata. Lançou mão da cultura do uso patológico do Judiciário. Tentou mudar a legislação e transformar uma dívida de curto prazo num financiamento subsidiado de longo prazo. Optou por usar a força da lei para, compulsoriamente, financiar-se com o dinheiro dos trabalhadores através da decisão do Judiciário.

Essa tentativa de usar patologicamente a Justiça não era, no entanto, caso isolado. Em 2000, a Emenda Constitucional n. 30 alongara o prazo para pagamento dos precatórios pendentes de pagamento para dez anos. Assim, aliviava pressão sobre o caixa dos tesouros. Em 2001, através da Medida Provisória n. 2 180-35, proibira o uso da ação civil pública em matéria fiscal e previdenciária. Por quê? Por razão simples. Trata-se de uma estratégia de fragmentação processual capaz de impedir que todos os credores cobrem de uma só vez, através da ação civil pública, seus créditos dos Tesouros nacional, estadual e municipal. 


O fulcro dessa estrategia é ampliar a lentidão do julgar em beneficio do Executivo. Em vez de julgar uma ação só, o Judiciário terá que julgar milhares. Aumentam-se seus custos operacionais para prolongar um financiamento que o Supremo julgou ilegal. Aumenta-se o engarrafamento processual. 


É nesse contexto que se insere a tentativa, em 2005, de ampliar o sistema de precatórios para incluir os Juizados Especiais. Daí a emenda parlamentar mencionada. Nesse caso, porém, a estratégia não funcionou. O Judiciário mobilizou-se e o Conselho Nacional de Justiça emitiu Nota Técnica ao Congresso Nacional contrária à sua aprovação. Os congressistas não aprovaram a emenda proposta pelo Poder Executivo.

Precatórios nada mais são do que um financiamento obrigatório com dinheiro de propriedade do vencedor da lide. Estima-se que, hoje, existam cerca de 72 bilhões de reais em precatórios a pagar (ver, a respeito, Nelson Jobim, “Precatórios: O Caminho do ‘Meio’”, Revista de Direito Administrativo - RDA, São Paulo, Atlas, 243: 132–147, set.-dez. 2006). Só que é um financiamento sem prazo certo. Pois os governos não pagam nos prazos como a lei manda. Os custos endógenos que foram transferidos do Executivo para o Judiciário, ainda que temporários, são, para o vencedor da lide, fatores externos a provocar inseguranca jurídica, desestimular as trocas na economia através do Judiciário. 

Há que considerar, também, que a contabilização de dívida judicial não entra para o cálculo do déficit público nem para a lei de responsabilidade fiscal. Distorcem-se as contas públicas. O dano ao Poder Judiciário é visível. Na medida em que a cobrança foi feita através do Judiciário, ele aparece para a população como um Poder ineficaz. Incapaz de fazer valer suas decisões. A população, como sabemos, não distingue que a responsabilidade é do Poder Executivo. O custo da “deslegitimação institucional” acaba recaindo nos magistrados e no Judiciário. 

O segundo exemplo de financiamento compulsório, que é também um subsídio compulsório invisível, pode ser facilmente percebido na remuneração legal dos depósitos que as partes são obrigadas a fazer por decisão dos juízes em conta bancária específica, em determinados momentos do processo, como, por exemplo, para garantir o juízo no processo de execução ou para interpor embargos (art. 8º, in fine, da Lei n. 6 830/30 e art. 621 do CPC). Esses depósitos serão levantados no final da lide pelos vencedores. São os depósitos judiciais.

Como as lides levam anos, esses depósitos são alvo do interesse dos bancos. Não somente por sua expressão – só no Estado do Rio de Janeiro, no início de 2008, estimava-se que os depósitos chegassem à casa dos seis bilhões de reais – mas também porque são altamente lucrativos para os bancos.


A lei n. 11 429 de 2006 estabelece, em seu artigo 1º, que esses depósitos sejam feitos apenas “em instituição financeira oficial da União ou do Estado”. Na Justiça Estadual do Rio de Janeiro e também na de São Paulo, a remuneração de tais depósitos nos bancos oficiais é dada pela TR + 6% ao ano, o que significa uma remuneração de aproximadamente 7,5% ao ano. 


Já na Justiça Federal, a remuneração dos depósitos é determinada pela taxa Selic linear mensal, resultando em algo em torno de 10,48% ao ano. Se um banco tivesse um saldo médio de seis bilhões ao ano, pagasse aos depositantes 7,5% ao ano e emprestasse pela taxa Selic capitalizada, hoje em torno de 11,25% ao ano, teria um ganho, de 225 milhões. 


Se pagasse aos depositantes 10,48%, o ganho seria de 46,2 milhões. Esse seria o montante mínimo da renda transferida compulsoriamente dos depositantes, partes judiciais, para os bancos do Poder Executivo. Mais uma vez, através do Judiciário, que aparece como agente responsável por essa transferência de renda.

A prerrogativa legal para os bancos oficiais controlados pelo Poder Executivo impede que o Judiciário, como qualquer instituição, maximize a competição entre os bancos públicos e privados de modo a melhor remunerar os depositantes e a si próprio, como gestor que é dessas contas. A prerrogativa legal dada aos bancos oficiais viabiliza indireta e encoberta transferência de rentabilidade dos depósitos das partes para o Poder Executivo, aumentando o custo da litigância. 


Custos endógenos e fatores externos. Além de transferência da remuneração dos custos de captação do Poder Judiciário para o Poder Executivo.

Conclusão

Os avanços obtidos até agora com a Constituição de 1988 em relação à independência política e eficiência operacional do Poder Judiciário, para serem consolidados, necessitam que se inaugure um novo entendimento sobre a reforma do Poder Judiciário. Um entendimento que focalize tanto reformas internas como reformas extrajudiciais. Que necessitam ocorrer em outros setores profissionais, interesses sociais e Poderes da República, que participam direta ou indiretamente da administração da Justiça.


É do interesse nacional que um dos campos para a reforma da administração da Justiça, além do próprio Poder Judiciário, seja, justamente, o Poder Executivo – municipal, estadual ou federal. O atual modelo permite que os Executivos transfiram custos orçamentários e custos de legitimidade política para e mediante o Poder Judiciário. Estimula uma cultura de judicialização do déficit público. 



A estatização da pauta do Judiciário, o financiamento compulsório invisível dos tesouros, verdadeiros impostos recônditos, através dos depósitos judiciais e dos precatórios, são alguns dos exemplos dessas práticas. Necessitam ser corrigidos. Mais do que uma estratégia processual do Executivo, trata-se de verdadeira cultura antidemocrática de veladas transferências de ineficiências. 


Necessita-se, pois, de mobilização política e imaginação institucional para corrigir esses rumos. Sem o que, o interesse nacional não progride. As possibilidades estão ao alcance das mãos, como diria Gilberto Freyre. É só agarrá-las com determinação e firmeza democráticas. 


Joaquim Falcão é professor de Teoria do Direito Constitucional e Diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas – RJ e Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. O autor agradece a Marcelo Lennertz, Pablo Cerdeira, Fernando Penteado, Antônio Maristrello Porto, Daniela Barcellos, Leslie Ferraz, Paula Almeida e Rômulo Sampaio.