"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 26 de janeiro de 2014

A solução está com o povo


 Mario Cesar Flores 

Duas estruturas institucionais controlam hoje o Brasil. A primeira, o governo de coalizão – um modelo imposto pela existência de dezenas de partidos programática e doutrinariamente amorfos, mais propensos à participação no poder e seu usufruto do que aos grandes projetos nacionais -, em que a repartição de cargos e a liberação de recursos de interesse paroquial eleitoreiro dos congressistas asseguram o apoio ao viés populista-voluntarista do Executivo. A segunda, a burocracia administrativa preenchida (aparelhada…) menos pelos critérios de capacitação e mérito e mais pela conveniência política.

Como em qualquer esquema de poder, o funcionamento do brasileiro depende da competência e da consistência ética de sua base estrutural – o poder político eleito. Poder político lato sensu: a responsabilidade estende-se aos Legislativos da União, dos Estados e municípios, embora nosso povo, indiferente à (ou desconhecendo a) dinâmica completa da democracia, só se interesse (quando se interessa) pela eleição dos Poderes Executivos. Em destaque a do presidente da República, que, na mão inversa à Federação sadia, a centralização tributária transforma no agente de nossa ilusão cultural de que o Estado pode tudo.

O pecado original do esquema está, portanto, na formação (na eleição) de sua base estrutural, que, prejudicada pela vulnerabilidade do povo à ilusão, não assegura valor adequado ao produto. Políticos dos vários partidos “surfam” na onda do brasileiríssimo “me engana que eu gosto”, valendo-se da publicidade inebriante e fantasiosa (a propagada pela televisão impacta sem precisar ler e entender) orquestrada por marqueteiros hábeis na criação de imagens míticas, no travestir meias-verdades e fantasias em verdades e fatos e no “vender” ao povo boas intenções tão óbvias quanto vazias (alguém é contra reduzir a pobreza…?).

E políticos já no poder acrescentam à psicose publicitária a exploração demagógica de programas assistencialistas que, a par de pertinentes – mas nem sempre aplicados corretamente -, são formadores de imensos currais eleitorais dependentes da máquina estatal controlada politicamente. A publicidade esfuziante e o uso demagógico do assistencialismo criam versões contemporâneas do “pão e circo” romano; em evidência, hoje, as bolsas disso e daquilo e a Copa do Mundo de Futebol, com seu hexa (?) e suas “arenas” à Coliseu, onde teremos futebol para divertir e anestesiar.

A dissonância entre o potencial e a realidade socioeconômica do Brasil evidencia as limitações do modelo de governo de coalizão com pandemônio partidário, conduzido pelo produto de processo eleitoral viciado e operado por burocracia politicamente aparelhada, carente de competência e firmeza ética. Dissonância transparente em projetos fantasiosos e comumente inacabados, inflação teimosa, carga tributária alta, crescimento pífio do produto interno bruto (PIB), industrialização marcando passo e balança comercial tropeçando, 85.º lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH, da ONU) entre 186 países, caos na saúde, transporte público e (hoje muito citado) sistema carcerário, infraestrutura logística e educação insatisfatórias. E transparente já à beira da pandemia dramática, na delinquência generalizada, da corrupção política e administrativa, sonegação de impostos e desordem e violência epidêmicas, à rotina do crime abjeto e dos delitos banais, já assimilados na cultura popular.

Um cenário dessa natureza conduz naturalmente à desmoralização da (e à desesperança na) democracia clássica. Processo já sensível no Brasil, seus sintomas estão claros na indiferença e na descrença crescentes pela política. Em particular pelos Poderes Legislativos, bem refletidos ao estilo lúdico (e no caso, irresponsável) brasileiro na eleição de personagens exóticas: Tiririca foi eleito deputado federal (votação expressiva) por seus méritos políticos ou como demonstração de insatisfação e desesperança…?

Na História a fraqueza sempre induziu a tentação do milagre. Corremos o risco de emersão da ideia – vem emergindo, sem força expressiva, embora não nula – de que em países ainda em desenvolvimento, de populações enormes, grande parte delas em déficit cultural e socioeconômico, a democracia em sua integralidade anglo-saxã não resolve, há que adaptá-la à respectiva realidade nacional. O que seria isso varia com a propensão ideológica.

Não existe a ameaça de nosso quadro melífluo desembocar no autoritarismo explícito, só imaginável com saturação social e “rolezões” nacionais de alto risco, que exigissem controle autoritário. Mas são plausíveis as alternativas “mais ou menos” democráticas. Uma delas já se instilando no Brasil: a democracia populista de tendência voluntarista (o modelo esboçado no início deste artigo) protagonizada por lideranças que, simultaneamente, falam pela grande massa e se harmonizam com o grande capital – uma mistura confusa de Getúlio do paradigma “trabalhadores do Brasil”, Rousseau adaptado à multidão (minorias militantes interpretando a “vontade geral”) e Marx inautêntico (socialista-capitalista). Como em qualquer regime de fisionomia voluntarista, também a moderada versão brasileira precisa de inimigos. Na moda, hoje, a liberdade de imprensa e expressão, cujo controle já foi aventado aqui e está instalado nas “democracias” (?) chavista e kirchnerista, bem vistas pelo nosso populismo voluntarista.

Resumindo: vivemos um quadro nacional confuso, à moda sul-americana. A “cambalhota institucional” é implausível, mas não a paulatina e camuflada ascensão, sem traumas e à sombra de sistemática eleitoral viciada, do modelo em que a visão voluntarista-populista do governo precede o interesse do Estado e o rigor democrático: um chavismo tupiniquim ao gosto de parte do nosso mundo político e aceito sem ponderada avaliação por parcela expressiva do povo, apático e/ou iludido.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Independência de poderes e hipertrofia do Executivo


O princípio da separação e independência dos poderes remonta a Aristóteles que distinguia a Assembleia Geral, o corpo de magistrados e o corpo judiciário. Esse princípio foi sistematizado por Montesquieu no seu célebre O Espírito das Leis [De l´Espirit des Lois] em seu capítulo VI, do Livro XI.

No entendimento de Montesquieu tudo estaria perdido se aqueles Três Poderes — o de criar leis; o de executar as políticas públicas e o de julgar — se reunissem num só homem ou associação de homens. Questionado se realmente o princípio teria de Montesquieu a paternidade o grande Madison no célebre O Federalista [The Federalist] referiu que: “Se não foi ele o autor desse valioso preceito da ciência política, teve ao menos o mérito de expô-lo e recomendá-lo do modo mais eficaz à atenção da humanidade.”

O princípio da separação e independência dos poderes foi positivado no Século XVIII com a Declaração de Direitos da Virgínia [Virgínia Bill of Rights] de 12 de junho de 1776. Alcançou tal prestígio que o artigo 16 da Constituição Francesa, de 3 de setembro de 1791, quando refere-se à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão refere: “Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos do homem nem determinada a separação dos Poderes, não possui Constituição.”

No Brasil, o princípio vem previsto desde a Constituição do Império [1824]. Até mesmo as Constituições do Regime Militar, 1964 e 1969, não deixaram de prevê-lo em seu texto. Na Constituição de 1988, o princípio da separação e independência dos poderes foi inserido já no seu artigo 2º.

O princípio foi erigido nas democracias visando evitar o absolutismo dos monarcas e evitar as ditaduras e tiranias para que um Poder Estatal pudesse contrabalançar o outro, sem suplantá-lo, no sentido de haver harmonia nas suas funções executoras, julgadoras e legisladoras. Este princípio é o maior antídoto constitucional contra o aparecimento de déspotas ou tiranos.

Nos últimos anos observa-se no Brasil um Poder Executivo cada vez mais hipertrofiado, com uma força imensa sobre o Congresso que precisa de liberação de recursos para a aprovação de emendas parlamentares, para não falar na constante edição de medidas provisórias. Aprovando tudo o que for de seu interesse, nem que para isso o texto constitucional seja objeto de maus tratos e de sucessivas violações.

Tivemos no último ano clássico exemplo disto quando o Poder Executivo deixou de enviar ao Congresso Nacional a proposta orçamentária apresentada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, nos exatos termos dos artigo 84, inciso XXIII e artigo 99 da Constituição Federal de 1988.

A presidente da República não encaminhou a proposta como determinado na Constituição Cidadã, mas “mensagem”, sem garantir recursos, alegando “a crise internacional” e a “falta de dinheiro”. Mesmo que se saiba que a arrecadação apenas na Justiça Federal tenha sido em média de R$ 10 bilhões anuais nos últimos anos nas Varas de Execução fiscal para os cofres da União e a proposta orçamentária total do Poder Judiciário fosse de R$ 7, 7 bilhões para ser executada ao longo de 4 anos. Deu a lógica e prevaleceu a vontade do Poder Executivo. O Poder Judiciário ficou sem orçamento para 2012.

Como se não bastasse isso, o artigo 37, inciso X, da Constituição Federal também foi descumprido. Esse artigo foi criado com a participação da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), pela EC 45/2005, criando um teto remuneratório moralizador para o funcionalismo público. Essa disposição determina a revisão do teto anualmente. O teto não tem sido atualizado como determina de forma cogente o texto constitucional e a magistratura é a única categoria no país que tem perda real do seu subsídio nos últimos seis anos superior a 33% [um terço dos seus rendimentos]. Para o orçamento de 2013 não se tem melhores notícias e o mau agouro persiste.

Foi apenas uma revisão no subsídio dos juízes nos últimos sete anos, no ano de 2009, no insuficiente patamar de 8,8%. Nos outros anos a nossa Carta Política foi solenemente ignorada pelo Poder Executivo e Congresso Nacional. O Poder Executivo, em especial, tem estado de costas para o Poder Judiciário. Chega a ser tênue e cândida, a lúcida e bem posta afirmação do diretor da ConJur, meu querido amigo Márcio Chaer, quando ao denunciar a gravidade desta situação com brilhantismo, afirma que o Poder Executivo trata o Poder Judiciário como se fosse “uma mera repartição do Poder Executivo” e que este só dá “a mesada ao Poder Judiciário se este se comportar bem”. A situação atual é gravíssima e até mais poderia ser dito...

Muitos magistrados de elevada qualificação estão deixando a carreira buscando opções mais atrativas, não apenas no setor privado, mas no setor público, optando por outros concursos.

Os melhores alunos das Faculdades de Direito já não optam pela magistratura porque sabem que o Poder Executivo e o Congresso Nacional estão fazendo letra morta de garantias constitucionais da magistratura como a irredutibilidade do subsídio, vitaliciedade e inamovibilidade. Estas garantias não são um privilégio do juiz, mas inerentes ao exercício do cargo e visam assegurar ao cidadão receber uma decisão de qualidade e, acima de tudo, imparcial.

De fato, parece que pouco importa a Constituição ao Poder Executivo, que com forte influência e poder de pressão sobre o Poder Legislativo, impediu a votação também dessa matéria no final do ano de 2011. Há um flagrante caso de crise institucional entre os Poderes da República e um abalo na estrutura de independência e harmonia entre os mesmos.

Na última semana a presidente Dilma reuniu-se com o presidente do STF, ministro Carlos Ayres Britto, jurista de escol e respaldado por toda a magistratura brasileira como seu representante maior para tratar da revisão dos defasados subsídios dos juízes. Segundo divulgado pela mídia, a presidente reafirmou a sua intenção de continuar descumprindo o que deve ser obedecido: o texto constitucional e a autonomia orçamentária do Poder Judiciário.

Como chefe do Poder Executivo, não é este comportamento que se espera de uma presidente da República, ainda que não possua formação jurídica, em relação a outro Poder do Estado. É flagrante a assacadilha a independência do Poder Judiciário.

Nesta quadra de nossa história republicana o Poder Executivo conseguiu, por absurdo e a título de exemplo, a aprovação da DRU e pode gastar 20% do seu orçamento como bem quiser. Como se para isso não existissem os princípios constitucionais que regem a administração pública, em especial o da legalidade [Art. 37].

O Executivo acumula agora super-poderes nunca antes vistos, nem mesmo o Poder Moderador nos reinados de Dom Pedro I e Dom Pedro II chegou a tanto. Todavia, agora nada mais causa empeço ou molesta o super- governo da presidente Dilma. Até mesmo a simetria constitucional garantida para toda a magistratura em relação ao Ministério Público, pelo Egrégio Conselho Nacional de Justiça, foi impugnada pelo Poder Executivo com proposição de ação por parte da Advocacia-Geral da União no STF. Felizmente o ministro Luiz Fux, através do indeferimento da liminar, conteve este ímpeto de enfraquecer os direitos e prerrogativas da magistratura. Essa postura do Poder Executivo em relação ao Poder Judiciário tem dado maus resultados e, se as coisas continuarem assim, ainda dará péssimos...

É de lembrar-se a célebre frase de De Lolme ao criticar a postura autoritária da Câmara de Lordes na Inglaterra, dizia ele: “A Câmara de Lordes pode tudo, só não pode transformar um homem em uma mulher e uma mulher em um homem”. Hoje, talvez o Poder Executivo brasileiro possa mais que isso...

A hipertrofia do Poder Executivo ganhou Habeas Corpus e agora até “o controle social e popular da mídia” é cogitado como se não observássemos receosos os péssimos exemplos de regimes autoritários no que tange a liberdade de imprensa de Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia e, agora, a tentativa de dificultar o funcionamento do jornal El Clarín na Argentina.

É de lembrar-se, por fim, da frase de Rui Barbosa que, reencarnado, poderia reproduzi-la na sua voz de grande orador que um dia, como a grande águia, encantou Haia: “Deste feito, o presidencialismo brasileiro não é senão ditadura em estado crônico.”

Gabriel Wedy

sábado, 18 de janeiro de 2014

O Estado delinquente


Todo criminoso deve ser punido. Cabe ao Poder Judiciário condená-lo, após o devido processo legal e respeitada a ampla defesa. É o que determina a lei suprema (artigo 5º, incisos LIV e LV).
Nas democracias, o processo penal objetiva defender o acusado, e não a sociedade, que, do contrário, faria a justiça com as próprias mãos.

O condenado deve cumprir a sua pena nos estabelecimentos penais instituídos pelo Estado, em que o respeito à dignidade humana necessita ser assegurado.Quando isso não ocorre, o Estado nivela-se ao criminoso. Age como tal, equiparando-se ao delinquente, da mesma forma que este agiu contra sua vítima.
A função dos estabelecimentos penais é a reeducação do condenado, para que, tendo pago sua pena perante a comunidade, retorne à sociedade preparado para ser-lhe útil.

Os cárceres privados constituem crime. Quem encarcera pessoas, tirando-lhes a liberdade, deve ser punido e sofrer pena que o levará a experimentar o mesmo mal que impôs a outrem.E o cárcere público? Quando um criminoso já cumpriu o prazo de sua pena e tem direito à liberdade, mas o Estado o mantém encarcerado, torna-se o ente estatal um delinquente como qualquer facínora.

Todo condenado deve cumprir sua pena, mas nunca além daquela para a qual foi condenado. Se o Estado o mantém no cárcere além do prazo, torna-se responsável e deve ser punido por seu ato. Como não se pode encarcerar o Estado, deve-se pelo menos pagar indenizações à vítima pelos danos morais causados.
A tese vale também para aqueles que forem condenados a regimes abertos ou semiabertos e acabarem por cumprir a pena em regimes fechados, por falta de estrutura estatal, pois estarão pagando à sociedade algo que lhes não foi exigido, com violência a seu direito de não permanecerem atrás das grades. Nesses casos, devem também receber indenização por danos morais.

A tese de que todos são iguais e não deve haver privilégio seria correta se o Estado mantivesse estabelecimentos que permitissem um tratamento pelo menos com um mínimo de respeito à dignidade humana. Como isso não ocorre, a tese de que todos devem ser iguais e, portanto, devem “gozar” das péssimas condições que o Estado oferece é simplesmente aética, para não dizer algo pior. Em vez de o Estado dar exemplo de reeducação dos detentos, a tese da igualdade passa a ser garantir a todos tratamento com “igual indignidade”.

Enquanto a Anistia Internacional esteve no Brasil, pertenci à entidade. Lutávamos, então, não só contra a tortura, mas contra todo o tratamento indigno aos encarcerados, pois não cabe à sociedade nivelar-se a eles, mas dar-lhes o exemplo e tentar recuperá-los.

Por isso, ocorreu-me uma ideia que sugiro aos advogados penalistas e civilistas –não atuo em nenhuma das duas áreas–, qual seja, a criação de uma associação, semelhante àquela que Marilena Lazzarini criou em defesa dos consumidores, para apresentar ações de indenização por danos morais em nome das pessoas que:

a) cumpram penas superiores àquelas para as quais foram condenadas;
b) cumpram penas em regimes fechados, quando deveriam cumpri-las em regime aberto ou semiaberto;
c) cumpram penas em condições inadequadas.

Talvez assim o Estado aprendesse a não nivelar-se aos delinquentes. Sofrendo o impacto de tais ações, quem sabe poderia esforçar-se por melhorar as condições dos estabelecimentos penais, respeitar prazos e ofertar dignidade no cumprimento das penas.

Todo criminoso deve cumprir sua pena, mas nos estritos limites da condenação e em condições que não se assemelhem às dos campos de concentração do nacional-socialismo.

 Ives Gandra

O Supremo entre o político e o jurídico


A recente discussão sobre a possibilidade de doação pecuniária por pessoas jurídicas para partidos e campanhas políticas traduz assunto público complexo que, por assim ser, merece profunda reflexão da sociedade brasileira. O primeiro ponto a ser destacado é que as leis que estão sendo impugnadas são uma do ano de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e outra de 1997 (Lei das Eleições).

Ou seja, durante quase duas décadas, tais dispositivos legais valeram e foram tidos por absolutamente constitucionais. No entanto, parece que o passar do tempo, ao invés de estabilizar a lei, gerou efeito inverso, levantando a poeira da dúvida sobre aquilo que era considerado inquestionável. Então, o que mudou, nesse interregno, de lá para cá?

Bem, muita coisa mudou. O Brasil, principalmente após o sucesso do Plano Real, andou para frente em muitos aspectos socioeconômicos, mas, politicamente, além de não avançar, retrocedeu em questões importantes, tais como, por exemplo, na moralidade pública. Dessa forma, diante dos reiterados insucessos éticos da política nacional, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra as regras que autorizam a contribuição eleitoral por pessoas jurídicas. Em síntese, sustenta-se que tal norma estimula a corrupção e o surgimento de relações espúrias entre o poder e empresas privadas.

A linha lógica do argumento é indiscutivelmente encantadora. E o encanto aumenta quando olhamos para a realidade política brasileira e vemos que os anjos estão cada vez mais distantes desse quadro desolador. No entanto, a bem intencionada iniciativa possui sérios problemas constitucionais. Primeiro, porque torna jurídico algo que é prioritariamente político. Segundo, porque possibilita, após 20 anos de vigência de uma lei, a alteração das regras do jogo democrático por uma decisão jurisdicional, comprometendo, assim, o princípio da legitimidade popular que enseja os atos legislativos republicanos. E terceiro, porque coloca o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma situação limite entre o interpretar a norma e o ditar a lei.

Ora, não existe dispositivo constitucional que proíba as empresas de contribuírem eleitoralmente. Tanto é verdade que tal regra está em vigor por mais de 20 anos no Brasil. E a inconstitucionalidade, em controle abstrato, somente pode ser declarada quando o vício legislativo é claro, palpável e inequívoco. Sobre o ponto, a lição lapidar do eminente Pedro Lessa: “Não basta demonstrar que a lei incriminada é injusta, opressora, ou fere direitos naturais, sociais ou políticos. É indispensável convencer de que se trata de uma lei contrária à Constituição, que viola um preceito constitucional, devendo se concluir a oposição entre a lei e o artigo constitucional, de modo inequívoco, nos termos da Constituição”.

Como se vê, em exame de constitucionalidade em tese, o juízo negativo apenas se impõe quando a violência à Constituição é manifesta e inarredável. Trata-se, enfim, de uma questão de conteúdo, não de efeito. Mas se a lei, no plano da eficácia, não é boa ou se mostrou com o tempo ruim? Então, que se mude a lei, nos termos do processo legislativo traçado na Constituição. E processo legislativo não é processo judicial; ambos são notadamente processos, mas de natureza, titularidade e procedimentos distintos.

Logo, o Supremo naquilo que é jurídico pode ir às estrelas do céu constitucional; todavia, naquilo que é político deve respeitar o mármore soberano do Congresso Nacional. Mas dá para confiar no Congresso?

Bem, essa é uma questão política, e a boa política se faz no dia a dia de nossas vidas como cidadãos participativos e conscientes dos deveres de honestidade privada e pública. Infelizmente, o Supremo não é mágico e não pode mudar aquilo que depende de nós. Em outras palavras, a Suprema Corte, embora possa muito, não tem o poder de mudar a política, pois quem muda a política são as pessoas e a sociedade no exercício construtivo de uma cidadania ativa. Ocorre que, diante de um progressivo esvaziamento político do Parlamento e de uma certa preguiça cívica do cidadão, o colendo STF está sendo chamado para completar lacunas democráticas que, antes de uma segura análise jurídica, precisam obrigatoriamente de um sólido debate político de âmbito nacional.

Analisando as perspectivas do controle da constitucionalidade, o catedrático professor Josaphat Marinho apontou letras jurídicas inapagáveis, frutos de sua invulgar sabedoria e cultura: “Justo notar que o Poder Judiciário, em sua tarefa criadora, especialmente através do Supremo Tribunal, não se tem limitado à compreensão larga ou vivificante das regras legisladas. No deslinde de vários problemas, diante de deficiências do direito positivo, formula conceitos e soluções somente depois incorporados aos textos legais”. Resta claro, portanto, que o papel criativo da jurisprudência constitucional atua em favor do aperfeiçoamento da atividade legislativa, levando luzes onde paira a escuridão do ilícito ou retirando pedras do caminho para o livre passar da ordem jurídica justa.

Nesse ambiente institucional construtivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário se completam mutuamente em suas respectivas áreas de atuação. São, assim, poderes complementares, jamais de substituição. Aliás, a complementaridade decorre de um fato inquestionável: só há controle de constitucionalidade abstrata com lei, pois, sem lei, o controle constitucional perde a sua necessária concretude.

Dessa forma, se uma dada regra ordinária foi tida durante anos como constitucional e tendo a Constituição se mantido inalterada quanto ao ponto, a eventual perda de eficácia social da regra não se resolve em juízo de validade constitucional.

Ora, sabidamente, é possível termos uma regra constitucional em tese, porém praticamente ineficaz porque nem sempre os planos de validade e eficácia se encontram na hora marcada. A questão é que, quando uma regra válida perde eficácia, temos de duas, uma: ou mudamos as estruturas político-sociais para o resgate da eficácia jurídica perdida; ou mudamos as regras do jogo, atualizando eficazmente o sentido normativo da lei.

Em ambas as situações o caminho é prioritariamente político e, não, judicial. Afinal, quem muda as leis da República é o Poder Legislativo e quem muda as estruturas sociais de um país é a política bem exercida.
Se as atuais regras de financiamento eleitoral são defectivas, é preciso mudar as referidas regras e criar instituições que garantam o fiel cumprimento da lei. Logo, aqui, não é o caso de mudar a interpretação jurídica sobre o que se tem, pois, antes e acima de tudo, é preciso mudar o que se é. Mas o que vale mudar as atuais formas de doação político-partidárias se as contas eleitorais continuarem a ser uma farsa democrática?

Supremo tem função política‏

É público e notório que o egrégio Supremo Tribunal Federal (STF) vem ampliando sua função política na atual quadra evolutiva da democracia brasileira. Sem cortinas, o fenômeno veio para ficar e, se bem executado, poderá contribuir em muito para o progresso institucional da nação. Todavia, como todo fato complexo, há desafios e limites jurídicos a serem observados, sob pena de desnaturar a obrigatória legalidade da decisão jurisdicional em simples ato de discricionariedade política. Nesse contexto de transformações importantes, é oportuno indagar: por que a função política do Supremo tem se destacado no atual panorama institucional brasileiro?

Os motivos são plurais e de diversos matizes; começam por uma saudável estabilidade normativa da Constituição de 1988, passam por um necessário e contínuo aperfeiçoamento hermenêutico das regras constitucionais, chegam a uma sociedade economicamente mais organizada e potencialmente mais capaz de enxergar a vida com o auxílio de atuantes ferramentas tecnológicas, vindo, ao final, a desaguar em uma dramática apatia parlamentar do Congresso Nacional, que, por interesses pequenos, aceita, sem rodeios, os acenos fúteis de um Executivo cada vez mais ganancioso pelo poder. Na outra ponta, temos uma oposição calada, com raras lideranças eminentes, e completamente desarticulada em sua tímida ação política. Com isso, o Congresso desce e o Judiciário sobe como instância pública de dialética e solução de assuntos de interesse da coletividade.

Aqui, chegamos ao coração pulsante da questão: até onde o Supremo poder ir no desempenho de sua inata função política? Bem, entramos em um território em que não há fronteiras fixas, pois cabe à técnica e à sensibilidade do juiz constitucional avaliar as circunstâncias concretas e decidir se o momento é de avanço ou de cautela. Para tanto, não será a inteligência individual, mas a sabedoria colegiada dos “11 velhinhos do Supremo Tribunal”, expressão do bom e velho Baleeiro, e de toda a comunidade jurídica do Brasil, que deverão, juntos, desenvolver os limites para a ação construtiva e vivificante da jurisprudência pátria.
Em sua dimensão constitucional, o Supremo é a ponte que liga o político ao jurídico.

Nas clássicas lições de filosofia do direito de 1912, o inigualável Pedro Lessa ensina que “são de mútua dependência e subordinação as relações do direito com a política”. A justa medida está na compreensão de que a Constituição precisa da lei e a lei, para valer e ser respeitada, precisa de uma jurisdição atuante. Em outras palavras, a Constituição precisa de um Congresso e de um Judiciário que ajam com segurança e firmeza em suas respectivas e complementares áreas de atuação.

O Supremo Tribunal Federal tem feito muito, talvez até demais. Por outro lado, o que tem feito o Congresso Nacional para dignificar sua alta responsabilidade política? A resposta é o começo de um ajuste institucional necessário. O Supremo pode muito, mas não pode mudar a política partidária. Que tal, então, começarmos a fazer a nossa parte?

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr

A política externa e as eleições


As convenções partidárias que confirmarão os candidatos a presidente da República serão realizadas em junho, pouco antes da Copa do Mundo. A partir de agosto, todas as atenções estarão voltadas para as eleições. Haverá pouco tempo para um efetivo debate sobre os temas maiores que afetarão a economia, políticas sociais, meio ambiente e políticas externa e de comércio exterior no próximo governo, a partir de 2015.

Por isso, parece oportuno que alguns temas comecem a ser discutidos para influir nos programas dos futuros candidatos. Um dos temas que mais suscitaram controvérsia nos últimos 12 anos foi o da formulação e execução da política externa e a condução do Itamaraty, que era considerada uma das instituições de excelência na vida pública brasileira.

O senador Aécio Neves (PSDB-MG), candidato provável da oposição em outubro, foi o primeiro a apresentar suas ideias sobre áreas que considera prioritárias para discussão durante a campanha eleitoral. Dentre os temas ressaltados em sua cartilha e que se espera sejam desdobrados em propostas concretas para consideração da sociedade brasileira, está o papel do Itamaraty, os desdobramentos da política externa e suas implicações para a política de comércio exterior. Como reintegrar o Brasil no mundo e aumentar sua credibilidade e projeção externa são os desafios.

Segundo Aécio Neves, “o viés ideológico imposto à nossa política externa nos últimos anos está isolando o Brasil do mundo. Demos as costas para importantes nações democráticas e abraçamos regimes de clara inclinação totalitária, em flagrante contraste com as melhores tradições da nossa diplomacia. Com visão de futuro, o compromisso é conquistar um lugar privilegiado para o Brasil no mundo. É necessário abandonar a política externa de alinhamento ideológico adotada nos últimos anos e resgatar a tradição de competência e a atuação independente da diplomacia brasileira.

O Itamaraty deve servir ao Brasil e defender o interesse nacional, acima de todo e qualquer interesse partidário. Nossa diplomacia deve, também, recuperar no exterior os compromissos que defendemos internamente, como o repúdio às tiranias, o direito à paz, a solidariedade internacional em defesa da democracia, o respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente”.

A cartilha ressalta ainda que “a partidarização da política externa tem consequências severas na política de comércio exterior: acentua o isolamento, ao invés de ampliar a integração; produz atritos, em lugar de cooperação produtiva; empobrece nossa pauta de comércio, ao invés de dinamizar trocas e oportunidades. As decisões equivocadas de política externa fizeram com que, nos últimos anos, o Brasil não negociasse acordos com as principais economias e os principais blocos, de forma a dinamizar nossas relações de comércio. A integração regional está se desfazendo e o Brasil continua a reboque dos acontecimentos. Deixamos de abrir mercados para os produtos brasileiros e de ampliar a modernização da estrutura produtiva interna, pela falta de acesso à inovação e à tecnologia de ponta”.

“Especificamente em relação ao Mercosul, o bloco precisa voltar a ser o que era quando da sua concepção: uma área voltada à liberalização do comércio e à abertura de mercados. O Brasil deve assumir a efetiva liderança regional e propor as mudanças que se fazem necessárias para o crescimento do nosso comércio internacional e o desenvolvimento de nossa economia.

A negociação de um acordo abrangente e equilibrado entre Mercosul e União Europeia deve ser concluída, mesmo que, para tanto, o Brasil avance mais rapidamente que outros membros do bloco, para deles não ficar refém. O Brasil precisa voltar a integrar-se num mundo em que, cada vez mais, as relações são interdependentes. Nossas empresas produzem com qualidade, mas com cada vez menos competitividade, dados os altos custos internos. É preciso criar condições para ajudá-las a se integrar nas cadeias produtivas globais, por meio de profunda melhoria, racionalização e simplificação do ambiente econômico interno”.

A cartilha, em três parágrafos, lança o debate envolvendo questões que interessam aos empresários, aos trabalhadores e à sociedade em geral. O principal objetivo é a recuperação do prestígio do Itamaraty e de sua centralidade no processo decisório interno. O trabalho da Chancelaria deveria ter como meta apenas o interesse nacional, acima de plataformas de partidos políticos.

Entre outros temas, caberia discutir como aperfeiçoar sua gestão para evitar situações equivocadas e para responder aos desafios atuais; como voltar a projetar o Brasil no mundo por meio de políticas sem preconceitos ideológicos; como ampliar o relacionamento com nossos vizinhos sul-americanos e a integração regional, hoje os maiores problemas da política externa; como voltar a dar prioridade às relações com os países desenvolvidos de onde poderá vir a cooperação para a inovação e tecnologia; como reexaminar a estratégia de negociação comercial externa, paralisada pelo isolamento do Brasil, que em 12 anos negociou apenas três acordos de livre-comércio; como aprofundar os acordos de comércio com Peru, Colômbia e México; como iniciar conversações tendentes a associar o Brasil aos acordos regionais e bilaterais com países desenvolvidos para integrar as empresas nacionais nas cadeias produtivas globais; como completar a negociação com a União Europeia, que se arrasta há mais de 12 anos; como aperfeiçoar o processo decisório interno para fortalecer a Câmara de Comércio Exterior (Camex) e dar mais relevância e apoio ao setor externo, que só conseguiu apresentar superávit em 2013 em razão de manobras petroleiras contábeis.

Esses são alguns dos temas que o futuro governo deverá enfrentar e que em boa hora começamos a debater.

Rubens Barbosa

Congresso Nacional precisa recuperar sua dignidade


A Constituição do Império previa em seu artigo 8º, inciso II, a suspensão dos direitos políticos por sentença condenatória a prisão, ou degredo, enquanto durassem seus efeitos, tendo sido a única Carta brasileira que restringiu a suspensão dos direitos políticos à aplicação de determinadas espécies de pena. Na República, todas as Constituições previram a suspensão dos direitos políticos como consequência de uma condenação criminal, independentemente da espécie de pena aplicada.

Como regra geral, a privação dos direitos políticos engloba a perda da capacidade eleitoral ativa (votar) e da capacidade eleitoral passiva (ser votado), bem como a perda de mandato eletivo, determinando, portanto, imediata cessação de seu exercício.

Excepcional, porém, é a previsão constitucional na hipótese de condenação criminal de deputados federais e senadores da República, como defendo desde a primeira edição de meu Direito Constitucional (1997). Os parlamentares federais no exercício do mandato que forem condenados criminalmente incidem na hipótese do artigo 55, inciso VI e § 2ºda Constituição Federal não perdendo automaticamente o mandato, mas não podendo disputar novas eleições enquanto durarem os efeitos da decisão condenatória, pois seus direitos políticos estão suspensos.

Isso ocorre porque a própria Constituição Federal estabelece que perca o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado, sendo que a perda será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

Assim, em face de duas normas constitucionais aparentemente conflitantes (CF, artigos 15, III, e 55, VI), deve‑se procurar delimitar o âmbito normativo de cada uma, vislumbrando‑se sua razão de existência, finalidade e extensão, para então interpretá‑las no sentido de garantir‑se a unidade da constituição e a máxima efetividade de suas previsões.

Com base nessa análise, percebe‑se que a razão de existência do artigo 55, inciso VI, e parágrafo 2o, da Constituição Federal é de garantir ao Congresso Nacional a durabilidade dos mandatos de seus membros (deputados federais e senadores da República), com a finalidade de preservar a independência do Legislativo perante os demais poderes, tendo sua extensão delimitada, tão somente, aos próprios parlamentares federais, por expressa e taxativa previsão constitucional. Trata‑se, pois, de uma norma constitucional especial e excepcional em relação à previsão genérica do artigo 15, inciso III. Dessa forma, em relação aos congressistas condenados criminalmente, com trânsito em julgado, não será automática a perda do mandato, pois a própria Constituição, estabelecendo que “a perda será decidida”, exigiu a ocorrência de um ato político e discricionário da respectiva Casa Legislativa Federal, absolutamente independente à decisão judicial.

Esse entendimento vem oscilando no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, tendo sido adotado inicialmente (“por esse critério da especialidade... o problema se resolve excepcionando‑se da abrangência da generalidade do artigo 15, III, os parlamentares referidos no artigo 55, para os quais, enquanto no exercício do mandato, a condenação criminal por si só, e ainda quando transitada em julgado, não implica a suspensão dos direitos políticos, só ocorrendo tal se a perda do mandato vier a ser decretada pela Casa a que ele pertencer” RE no 179.502‑6/SP, relator ministro Moreira Alves), e alterado no julgamento do “Mensalão”, quando por maioria de votos, nossa Corte Suprema definiu que “a Constituição não submete a decisão do Poder Judiciário à complementação por ato de qualquer outro órgão ou Poder da República...

Ao Poder Legislativo cabe, apenas, dar fiel execução à decisão da Justiça e declarar a perda do mandato, na forma preconizada na decisão jurisdicional... Repugna à nossa Constituição o exercício do mandato parlamentar quando recaia, sobre o seu titular, a reprovação penal definitiva do Estado, suspendendo-lhe o exercício de direitos políticos e decretando-lhe a perda do mandato eletivo” (AP 470, relator ministro Joaquim Barbosa).

Entretanto, com a alteração da composição da Corte e a posse dos novos ministros Teori Zavascki e Roberto Barroso, em caso recente (AP 565, julgada em 8 de agosto de 2013), novamente por precária maioria (6 votos a 4, sendo impedido o ministro Luiz Fux), passou o STF a excepcionar da incidência automática do artigo 15, inciso III, os parlamentares federais, remetendo a Casa Legislativa a decisão pela perda do mandato em votação secreta pelo voto da maioria absoluta de seus membros, nos termos do parágrafo 2º, do artigo 55.

Em lamentável e funesta votação ocorrida na Câmara dos Deputados em 28 de agosto de 2013, não se obteve a necessária maioria da Câmara dos Deputados para decretar a perda do mandato de parlamentar condenado definitivamente pelo Supremo Tribunal Federal por crimes contra a administração pública e fraude a licitação.

A hipótese não acarretava nenhum perigo a independência do Legislativo e a autonomia do exercício de mandatos parlamentares, mas um número suficiente de parlamentares manteve o mandato do deputado condenado criminalmente, sob o manto da covarde ausência de transparência existente nessa votação secreta, humilhando a crença brasileira em dias melhores e a necessidade de maior combate a corrupção, esquecendo-se das lições de Caio Túlio Cícero, pela qual fazer muito mal a República os políticos corruptos, não apenas por se corromperem, mas também por corromperem e, principalmente, pela nocividade do exemplo.

A existência de prerrogativa ímpar aos parlamentares federais para que ostentem ampla e absoluta liberdade de convicção, pensamento e ação em defesa da República e do povo brasileiro, no bom desempenho de seus mandatos, não pode ser transformada em escudo protetivo de atividades ilícitas, envergonhando toda a nação.

“Imunidade” não pode ser confundida com “impunidade”! “Discricionariedade legislativa” não pode ser confundida com “arbitrariedade”, sob pena de descrédito da Justiça, corrosão da Constituição, desgaste das instituições e ampliação da corrupção em nosso sistema político.

A consciência geral dos brasileiros exige não somente a aprovação de PEC acabando com o voto secreto nessas votações — como bem salientado pelo presidente da Câmara dos Deputados —, mas também o extermínio dessa exceção prevista no artigo 55, parágrafo 2º, para que dentro do ideário republicano da igualdade, todos os condenados criminalmente com trânsito em julgado fiquem suspensos de seus direitos políticos integralmente, inclusive com a perda automática dos mandatos políticos.

A evolução cultural e política brasileira e o desrespeitoso desvio na aplicação dessa norma por um grande número de deputados, transformaram-na em odioso privilégio justificando imediata alteração na Constituição. Com a palavra o Congresso Nacional, para resgatar a dignidade da representação política e o respeito do Parlamento!

Alexandre de Moraes 

Tribunais de Contas são os guardiões do dinheiro público


No dia 17 de janeiro comemora-se o Dia dos Tribunais de Contas. Muito poucos sabem disso. Não é para menos. Ainda hoje muitos não sabem o que são e o que fazem os Tribunais de Contas. Uma grande injustiça com estes órgãos tão importantes e que prestam um serviço da mais alta relevância para o país.

Seguramente o órgão público que mais intensa e diretamente trata com questões de Direito Financeiro, nada mais justo do que começar este ano prestando-lhes uma merecida homenagem nesta coluna, que há mais de um ano trata deste tema e raras referências fez a eles.

Os Tribunais de Contas surgiram no Brasil pelo Decreto 966-A, de 7 de novembro de 1890, que, por iniciativa do então ministro da Fazenda, o renomado jurista Rui Barbosa, signatário da exposição de motivos, criou o Tribunal de Contas da União.

Em 1891 foi contemplado na primeira Constituição da República, no artigo 89, já lhes assegurando independência funcional (“É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem submetidas ao Congresso. Os membros desse Tribunal serão nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado, e somente perderão os seus lugares por sentença”). 

Sua instalação, no entanto, só veio a ocorrer no dia 17 de janeiro de 1893 (daí a escolha da data comemorativa), por empenho de Serzedello Correa, ministro da Fazenda do governo Floriano Peixoto, e que hoje empresta seu nome ao instituto de estudos e aperfeiçoamento funcional instalado no TCU e vem prestando valiosos serviços no aprimoramento do direito financeiro, administrativo e gestão pública.

Previsto no artigo 71 da Constituição Federal, o Tribunal de Contas da União tem a função de auxiliar o Congresso Nacional na missão de exercer o controle externo da administração pública federal, realizando a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas.

Em nosso sistema federativo, o controle externo dos demais entes federados é sempre exercido pelo respectivo Poder Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de Contas competente, conforme dispõe a legislação específica. Cada ente da federação dispõe de um Tribunal de Contas responsável por exercer as funções que lhe são constitucionalmente atribuídas, em forma que pode variar de um para outro.

Em regra, há um Tribunal de Contas do estado que auxilia a Assembleia Legislativa e as Câmaras Municipais no exercício desta função de controle externo. Outros dispõem de dois tribunais de contas estaduais; o Tribunal de Contas do Estado, para a administração pública estadual, e o Tribunal (ou Conselho) de Contas dos Municípios, para as administrações públicas municipais. A atual Constituição Federal vedou a criação de tribunais de contas municipais (art. 31, parágrafo 4º), mas permaneceram os já instalados, nos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro.

Auxiliam o Poder Legislativo, mas a ele não se subordinam, não havendo qualquer relação de hierarquia, sendo dotados de autonomia institucional para cumprirem esta e outras funções determinadas diretamente pela Constituição (STF, ADI 4190).

O Brasil adota o sistema de controle externo “continental-europeu”, com um órgão colegiado responsável pelo controle externo das contas públicas, diferentemente dos países de origem britânica, que preferem o modelo de controladorias, como se vê no Reino Unido (National Audit Office — NAO), Estados Unidos da América (Government Accountability Office — GAO), e Austrália (Australian National Audit Office — ANAO), para citar alguns exemplos.

Daí nossos Tribunais de Contas, que são compostos por nove ministros (Tribunal de Contas da União), sete ou cinco conselheiros (tribunais de contas estaduais ou municipais, respectivamente), devendo estes últimos seguir o modelo federal, por simetria. Escolhidos entre brasileiros que satisfazem os requisitos do artigo 73, parágrafo 1º, da Constituição Federal, destacando-se a idoneidade moral e reputação ilibada, bem como os notórios conhecimentos, os ministros e conselheiros gozam das garantias e prerrogativas que lhes permitem agir com independência, necessária para que possam fiscalizar com imparcialidade as contas dos governantes e gestores que administram os recursos públicos. Em muitos entes da federação ainda se vê a prática de adotar critérios predominantemente políticos na escolha destes cargos de cúpula, o que evidentemente, não é o melhor caminho. Não impediu de que tivéssemos, e ainda tenhamos, grandes nomes, mas seguramente não é o ideal, e a tendência é de que cada vez mais sejam consideradas as qualidades técnicas na escolha, que cabe aos poderes Legislativo e Executivo.

Com quadros formados por servidores concursados, entre os quais os das duas carreiras que o integram e têm assento no colegiado — a de auditores e a do Ministério Público de Contas, a competência profissional dos recursos humanos dos Tribunais de Contas tem se destacado, e eles são responsáveis por muito do que se melhorou em qualidade do gasto público nos últimos anos.

A função que lhes é confiada pelo artigo 71 e outros da Constituição é, como qualquer pessoa pode notar, tarefa ampla, complexa, que exige muito trabalho e competência. E no exercício de sua missão, os Tribunais de Contas têm sido responsáveis por grandes avanços no aprimoramento do Direito Financeiro, desenvolvendo estudos e técnicas que colaboram para o melhor uso do dinheiro público.

Muitas dessas funções merecem destaque, e a referência a apenas parte delas certamente importará em omissões, mas muitas oportunidades ainda haverá para serem mencionadas.

A fiscalização da renúncia de receitas, cuja referência na Constituição é expressa, tem sido objeto de especial atenção, com análises e relatórios detalhados e específicos. Afinal, como já se reconhece há muito, recursos dos quais o governo abre mão por benefícios fiscais diversos equiparam-se às despesas, tanto que a doutrina os denomina de “gasto tributário”. São recursos públicos, e portanto devem merecer atenção redobrada, pois são menos transparentes e mais difíceis de serem fiscalizados. O mesmo se diga em relação a benefícios creditícios governamentais, que estão a exigir cada vez mais atenção.

Foi-se o tempo em que os Tribunais de Contas se ocupavam apenas da fiscalização de conformidade, sob o aspecto da legalidade, concentrando-se nas formalidades da despesa pública. Muito se avançou, e continua avançando, na fiscalização da qualidade do gasto público, levando-se em consideração a eficácia, efetividade, eficiência e economicidade no uso dos recursos públicos, pois o que realmente importa são os resultados e benefícios alcançados, e não o cego respeito a uma burocracia, não raro, obsoleta.

Relatórios sobre as contas do governo mais abrangentes, com avaliação das macrofinanças governamentais e das políticas públicas que vem sendo desenvolvidas, apontando-se falhas e sugerindo soluções e aperfeiçoamentos, mostram-se cada vez mais frequentes, tornando os Tribunais de Contas órgãos que atuam preventiva propositivamente, e não apenas na fiscalização a posteriori, quando o dinheiro já foi gasto e só resta a punição dos responsáveis se houver mau uso.

Muito dinheiro público é economizado a partir de recomendações e determinações dos Tribunais de Contas em razão de sua atividade de fiscalização das políticas públicas, como ocorreu recentemente na área da educação, após avaliação dos programas do Fies e Prouni pelo TCU, em que se estima terem sido economizados mais de R$ 300 milhões em 2013. Ou, de outro lado, ajudando a melhorar a arrecadação, como se vê nas sugestões para incrementar a cobrança da dívida ativa pela via extrajudicial, o que colabora ainda para desafogar o Poder Judiciário que sofre com o excesso de execuções fiscais, prejudicando a prestação jurisdicional em outros setores mais relevantes.

Mostra-se também intensa a fiscalização de editais e contratos da administração pública, bem como a execução de obras públicas, sendo frequentes as e suspensões de editais, e constatações de irregularidades graves que levam ao cancelamento de repasses de recursos, impedindo a continuidade no desperdício do dinheiro que é de todos nós.

Os Tribunais de Contas dispõem de instrumentos eficientes para evitar o mau uso do dinheiro público, como os alertas a que se refere o artigo 59, parágrafo 1º, V, da Lei de Responsabilidade Fiscal, com os quais informam os gestores sobre ultrapassagem de limites de gastos e endividamento, indícios de irregularidades e outros que possam comprometer a boa gestão das contas públicas. Atualmente tem sido intensificado seu uso, mostrando esta importante ação de natureza preventiva, seguramente a melhor forma de evitar a má gestão das contas públicas.

Punir nem sempre é o melhor caminho para melhorar as coisas, mas muitas vezes é necessário, e os Tribunais de Contas têm muitos instrumentos para isso. Dentre as principais está a multa, que, embora pouco conhecida do grande público, é largamente aplicada. Também as condenações ao ressarcimento do dano ao erário têm se mostrado frequentes e com importante efeito pedagógico, além de serem responsáveis pela recuperação de boa parte dos prejuízos causados ao Estado. Políticos e gestores são punidos com frequência, evidentemente não gostam, e estejam certos de que disto resultam muitas das críticas que sofrem os Tribunais de Contas.

Muitas linhas, parágrafos e páginas são necessários para enumerar tudo que os Tribunais de Contas já fazem, podem e devem fazer para cuidar do nosso dinheiro, e este espaço evidentemente não comporta. Ainda há muito a fazer, e todos podem ajudar, pois, da mesma forma que o controle interno ao qual já me referi anteriormente, os Tribunais de Contas dispõem de ouvidorias para receber denúncias de irregularidades ou ilegalidades (Constituição, artigo 74, parágrafo 2º). E parabéns aos Tribunais de Contas pelo seu dia!

José Mauricio Conti 

“Pedrinhas” no caminho do Estado Democrático de Direito


Há mais de dez anos, diversas autoridades locais denunciam o colapso do sistema penitenciário e alertam sobre a perda do controle da situação no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão. Nas últimas semanas, após uma série de atos de barbárie ganhar repercussão internacional, a crise se tornou uma verdadeira pedra no meio do caminho do governo maranhense e, de um modo geral, do Estado brasileiro.

Isto porque, com o registro de inúmeras rebeliões e da morte de 60 apenados apenas no último ano — muitas delas por decapitação, com os vídeos circulando pela internet —, o Conselho Nacional de Justiça promoveu uma inspeção nos estabelecimentos prisionais do Maranhão.

O relatório apresentado, em dezembro, pelo juiz auxiliar da Presidência do CNJ, Douglas de Melo Martins, conclui que “o Estado tem se mostrado incapaz de apurar, com o rigor necessário, todos os desvios por abuso de autoridade, tortura e outras formas de violência e corrupção praticadas por agentes públicos”.

Em nota, o governo reagiu contra o relatório do CNJ, alegando que o documento contém “inverdades” e pretendeu apenas agravar ainda mais a situação. Afirmou também que as medidas necessárias para solucionar os problemas verificados no sistema prisional estão sendo tomadas e os investimentos na área já ultrapassaram os R$ 130 milhões.

Antes disso, em outubro de 2013, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados do Brasil recorreram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), que, em dezembro, solicitou ao governo brasileiro, cautelarmente, a adoção de medidas para evitar mortes, a redução da superlotação, a investigação dos fatos relatados e a prestação de informações no prazo de 15 dias sobre as providências tomadas.

Na última semana, a Justiça maranhense determinou que o Estado construa novos presídios, no prazo de 60 dias, especialmente no interior, e reforme completamente o Complexo Penitenciário de Pedrinhas, sob pena de multa diária fixada em R$ 50 mil. Tal decisão poderá ser objeto de recurso.

Na semana passada, ao conceder entrevista aos veículos de comunicação, a governadora — que é graduada em sociologia pela UnB — desvendou o mistério da violência no Maranhão: “É um estado que está se desenvolvendo, que está crescendo. E um dos problemas que está piorando a segurança do nosso estado é que nosso estado está mais rico, mais populoso também”.

Se antes era trágico, agora também é cômico. Tal declaração me lembrou do pronunciamento do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, há um ano, quando classificou as prisões brasileiras como medievais: “Se fosse para cumprir muitos anos em uma prisão, em algumas prisões nossas, eu preferia morrer”.

A pergunta que nenhum jornalista formulou, na ocasião, foi a seguinte: “O senhor se elegeu deputado federal em 2002 e se reelegeu em 2006. Desde 2010, ocupa a o cargo de ministro da Justiça. Explique, por favor, o que o senhor e seu ministério fizeram durante todos estes anos para mudar esta realidade?”

Nos últimos dias, ele esteve reunido com Roseana Sarney e a cúpula do governo do Maranhão para tratar diretamente das medidas a serem tomadas para resolver o problema e, assim, evitar um pedido de intervenção no estado, que dispõe de uma estrutura com 2.219 vagas, ocupadas por 5.417 presos.

Noticia-se que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, está com o pedido de intervenção federal pronto para protocolar no Supremo Tribunal Federal. Penso, particularmente, que esta é a resposta constitucionalmente adequada. Ocorre que já vi este mesmo filme outras vezes...

A primeira delas, em 2008, quando o PGR pediu ao STF a intervenção federal no estado de Rondônia em face da situação de calamidade em que se encontrava o presídio Urso Branco, em Porto Velho. Não deu em nada. O processo (IF 5.129) tramita há mais de cinco anos no tribunal.

Depois disso, em 2009, no Rio Grande do Sul, quando trabalhei longamente com Lenio Streck, que oficiou ao PGR no sentido de que representasse pela intervenção federal — nos termos do artigo 34, inciso VII, da Constituição —, em razão da inoperância das autoridades locais diante da crise no sistema penitenciário gaúcho, cujo déficit de vagas superava o número de 10 mil. Desta vez, nenhuma providência foi tomada pela PGR, exceto um pedido de esclarecimento dirigido à governadora Yeda Crusius.

Voltando ao caso do Maranhão, que certamente não é exclusivo do Maranhão — poderíamos dizer que o Maranhão é do tamanho do Brasil —, parece inacreditável como a barbárie ainda impere no interior daquilo que chamamos Estado Democrático de Direito.

Tudo indica que, de há muito, instalou-se na administração dos sistemas penitenciários, de um modo geral, um autêntico "estado de exceção", no sentido retrabalhado por Agamben. A situação pode ser resumida do seguinte modo: desde 1984 — e, portanto, desde antes da Constituição —, há uma Lei de Execução Penal segundo a qual o preso tem direito à alimentação, vestuário, saúde e educação, entre outros igualmente imprescindíveis à dignidade humana. Ocorre que, no mundo da vida, há um sistema caótico e perverso, em que o preso é tratado como homo sacer, pronto para o abate.

Agora as autoridades descobriram que a crise penitenciária resultante da superlotação dos presídios tem saída, mas depende da construção de novas unidades, da ampliação das vagas, da contratação de servidores, da capacitação de agentes, etc. Para isto, entretanto, é preciso planejamento e, sobretudo, investimentos. O problema é que, antes disso ocorrer, lamentavelmente, nos esqueceremos da crise das “cadeias do Maranhão”, assim como fizemos com tantos outras. E alguém dirá: eram apenas umas pedrinhas no meio do nosso caminho.

André Karam Trindade 

A busca por uma Corte Constitucional para chamar de nossa


Na última semana, ganhou ampla divulgação proposta de emenda à Constituição apresentada pela Deputada Luiza Erundina (PEC 275/2013), que tem por finalidade alterar a competência e a composição do Supremo Tribunal Federal. A proposta também altera o nome do tribunal, que passaria a chamar-se Corte Constitucional. Aparentemente, a PEC inspira-se em sugestão apresentada em 2013 pelo professor Fábio Konder Comparato.

A ideia não é totalmente nova. Há outras propostas parecidas, em trâmite no Congresso Nacional, relacionadas, por exemplo, ao método de escolha dos ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal.

A proposta contida na PEC 275/2013 coincide, em alguns pontos, com o que venho defendendo há alguns anos. Em alguns textos da coluna Processo Novo, aqui na ConJur, tenho tratado do tema. Em 2012, analisando a PEC 209/2012, a Comissão Nacional de Acesso à Justiça da OAB apresentou sugestão semelhante, que, contudo, foi rejeitada pelo Conselho Federal da entidade.

A PEC 275/2013 tem vários pontos positivos.

Além de modificar os critérios de escolha dos membros do STF, com a apresentação de listas prévias à Presidência da República, altera a competência dos tribunais superiores, otimizando sua atuação. Assim, passa a caber recurso extraordinário somente contra decisões proferidas por tribunais superiores, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (ou Corte Constitucional, nome dado ao referido tribunal pela PEC); contra decisões proferidas por tribunais locais (Regionais Federais e dos Estados), cabe apenas recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça. A proposta também amplia o número de ministros do Superior Tribunal de Justiça. A PEC acerta, a meu ver, ao reduzir a competência originária do Supremo Tribunal Federal.

Considero, contudo, que a proposta deve ser aperfeiçoada.

Embora pretenda transformar o Supremo Tribunal Federal em uma corte constitucional, a PEC mantém-se presa a estrutura ultrapassada, prevista na Constituição Federal de 1988, que dividiu a competência dos tribunais superiores, no que respeita aos recursos extraordinário e especial, tendo em consideração a natureza das questões (constitucional ou federal infraconstitucional).

Essa separação não faz mais sentido. O Superior Tribunal de Justiça resolve questões federais à luz da Constituição — e não poderia ser diferente. Parece mais adequado, assim, que em recurso especial possa se alegar tanto violação à norma constitucional quanto federal-infraconstitucional. Essa solução teria também a vantagem de preencher o vácuo em que se encontra o sistema jurídico brasileiro, já que, hoje, inexiste tribunal de superposição que elimine controvérsias de interpretação acerca da norma constitucional, quando se entender que a questão não tem repercussão geral.

Considero que a PEC 275/2013 deve ser aprimorada também em outro ponto. Refiro-me à previsão de cabimento de recurso especial somente quando “a decisão recorrida der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”, o que corresponde à hipótese prevista na alínea c do artigo 105, III da Constituição, em sua atual redação.

Nesse ponto, a sugestão é melhor que a prevista na “PEC do STJ”, que cria o requisito da relevância da questão federal para o recurso especial, pois enaltece um dos papéis fundamentais do Superior Tribunal de Justiça, que é o de promover a uniformidade de interpretação do direito federal. Peca a proposta, contudo, ao não admitir recurso especial quando se alegar violação à lei federal, ainda que inexista dissídio jurisprudencial. Pode suceder, assim, que questões de direito federal novas ou que emerjam de apenas um dos tribunais locais não possam ser objeto de decisão, pelo Superior Tribunal de Justiça. Penso que a hipótese de cabimento prevista atualmente na alínea a do artigo 105, III da Constituição não pode ser totalmente afastada — ainda que, no caso dessa alínea, se preveja o requisito da relevância da questão federal, tal como previsto na PEC 209/2012.

Quanto à conveniência de se alterar o nome do Supremo Tribunal Federal, que passaria a ser chamado de Corte Constitucional, confesso ter minhas dúvidas. Por um lado, a modificação do nome do tribunal, a rigor, não altera substancialmente sua função e razão de existir. Caso a Constituição passe a chama-lo de Corte Constitucional, contudo, é certo que isso terá importante papel simbólico, e poderá deixar marcas no modo como se comportam os juízes de tal corte.

José Miguel Garcia Medina 

Estamos longe de superar os preconceitos do cotidiano


Com a morte de Nelson Mandela, no útimo dia 5 de dezembro, várias reportagens sobre sua história tem sido publicadas. Mensagens com suas frases mais famosas tem sido compartilhadas intensamente nas redes sociais.

Enquanto lia as muitas matérias e posts que lamentavam a partida de Mandela, fiquei a pensar em nosso preconceito de cada dia, e no quanto estamos dispostos a seguir, em todos os níveis e dimensões, aquilo que líder sul-africano defendia.

Nossa sociedade é preconceituosa. Não me refiro apenas ao racismo. Há, entre nós, várias ordens veladas de preconceito. Quando trato de preconceito, não faço alusão apenas a “conceito prévio”, nem à discriminação, embora tudo isso se relacione. Refiro-me a preconceito marcado pelo cinismo, como disfarce para o ódio bem comportado, ou humilhação justificada, ou aversão irracional bem explicada, e por aí vai.

É o preconceito que permite que se olhe o “diferente” de maneira diferente e aversiva, que justifica a separação, que “explica” porque é certo ficar longe de quem é diferente ( “inferior” a você). É o preconceito que autoriza humilhar o mais fraco, que ordena a violência contra quem ou o que é não é igual.

Há, além de preconceito racial ou sexual, também, dentre tantos exemplos, o preconceito contra aquele de origem pobre, que justifica que vivamos em um apartheid social.

A lei, não raro, é complacente com isso. Devemos atuar para que desapareçam as desigualdades geradas na lei, evidentemente. Mas não podemos silenciar enquanto ainda houver desigualdade perante a lei.

Veja-se, por exemplo, o preconceito contra pessoas portadoras de deficiência. A regra prevista no artigo 208, III da Constituição estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. A meu ver, a garantia prevista no artigo 208, III abrange qualquer deficiência, aí incluídos os mais variados transtornos psiquiátricos, ainda que não especificados na Lei 9.394/2006, recentemente atualizada pela Lei 12.796/2013. O texto constitucional, e as leis que o esmiúçam, vem sendo observado?

Nem sempre. Prepondera, entre nós, a ideia de que alunos que precisem atenção devem ser, de algum modo, “segregados”. Nem todas as escolas aceitam alunos que precisem de um cuidado especial. É o que revelam os variados casos julgados pelo Judiciário. De fato, estamos longe de alcançar o desiderato constitucional.

Em outros casos, não obstante haver previsão normativa, e chegar a haver reconhecimento, ao final, do direito, a causa tramita por tempo nada razoável — o que acaba por significar, ao final, muito mais que o adiamento da tutela jurisdicional. É o que revela caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Não raro, deparamo-nos com edifícios ou áreas públicas que dificultam a locomoção de pessoas portadoras de deficiência. Isso ocorre, inclusive, em escolas. Recentemente, decidiu o STF que o estado de São Paulo deveria adaptar escola para alunos com deficiência. Há algo de curioso no caso referido, contudo: o recurso extraordinário foi provido — o que, sem dúvida, representa uma vitória —, mas tramitou no Supremo Tribunal Federal desde 2005. Não deixa de ser um desalento. Quando casos graves como esse são finalmente resolvidos através da intervenção judicial, o são muito tardiamente.

Deparamo-nos com muitos outros exemplos de preconceito, em nosso dia a dia, a respeito dos quais o Judiciário vem sendo chamado a se manifestar. As hipóteses reveladas pela jurisprudência revelam que ainda temos longo caminho a percorrer, até conseguirmos tornar, de fato, o que a Constituição prevê, de direito. De nada adiantará lamentar a morte de Mandela ou celebrar seus feitos, se não alterarmos nossa práxis.

José Miguel Garcia Medina 

O sistema judicial é seletivo e sacrifica o mais fraco


O site Congresso em Foco publicou reportagem sobre os disparates do sistema penitenciário brasileiro. Chama a atenção para o fato de que o sistema penal como um todo é seletivo, pois considera crimes ou pune de modo mais severo atos que podem ser praticados, preponderantemente, pelas camadas menos favorecidas da população. O resultado disso é visto nas prisões brasileiras.

A matéria confirma o que, há poucos dias, disse o ministro Luís Roberto Barroso: “Para ir preso no Brasil, é preciso ser muito pobre e muito mal defendido. O sistema é seletivo, é um sistema de classe. Quase um sistema de castas”.

Pouco ou nada falamos sobre esse estado de coisas. Mas, como afirmei em outro texto desta coluna, não se trata de mero conformismo. Afinal, não apenas vivemos como se não tivéssemos nada a ver com problemas como esses. Beirando ao cinismo, chegamos a encontrar justificativas para que as coisas sejam como são. Assim como, por exemplo, a mesma sociedade que critica a violência decorrente do tráfico de drogas o alimenta, consumido carreiras em baladas chiques.

Os problemas acontecem não apenas no âmbito do processo penal. O acesso das pessoas mais pobres à Justiça, no âmbito civil, também é difícil. Exemplos: a Defensoria Pública ainda encontra-se deficitária, em boa parte do Brasil; em alguns estados do país, o valor das custas processuais é excessivamente elevado; as sedes dos tribunais, em muitos casos, encontram-se muito distantes da comarca ou subseção judiciária, o que torna dispendioso o deslocamento do advogado da parte para acompanhamento da causa; etc.

Mas, se de um lado faltam investimentos ou gestão de recursos financeiros que olhem para as pessoas mais fragilizadas, o que há, do outro lado?

Há exemplo recente, que bem demonstra o modo como o Estado pode criar leis “seletivas”, também no âmbito civil. Refiro-me à Lei 12.663/2012, conhecida como “Lei da Copa”.

Tenho defendido que essa lei padece de inconstitucionalidade.

Há na “Lei da Copa” disposições que revelam a absoluta subserviência do Estado brasileiro à Fifa, como o artigo 23, segundo o qual “a União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a Fifa, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos”, ou o artigo 53, que isenta “a Fifa, as Subsidiárias FIFA no Brasil, seus representantes legais, consultores e empregados” do adiantamento de custas judiciais e estabelece, ainda, que eles “não serão condenados em custas e despesas processuais”.

O artigo 68 da Lei 12.663/2012, ao afastar a incidência de vários dispositivos da Lei 10.671/2003 (Estatuto da Defesa do Torcedor), viola, a meu ver, os artigos 5º, inciso XXII, e 170, inciso V, da Constituição, mas é, sobretudo, um dispositivo imoral, concebido com o intuito de favorecer uma pessoa e o grupo com ela relacionado em detrimento do torcedor, protegido pela Lei 10.671/2003.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que isenta a Fifa de uma série de obrigações, a referida lei cria tipos penais específicos que tutelam os interesses da entidade (cf. artigos 30 ss. da “Lei da Copa”).

Vê-se, pois, que a “Lei da Copa” foi criada para proteger uma pessoa ou grupo em detrimento do povo brasileiro. Nenhuma surpresa, pois, como afirmam os dirigentes da Fifa, menos democracia é melhor para se organizar uma Copa.

O Estado e seus principais agentes, quando realmente querem, agem para mudar as coisas. Mas o Estado, em todos os seus níveis e dimensões, existe para servir à sociedade, e não a uma pessoa ou a um determinado grupo. Deve o Estado atuar com o objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, como diz a Constituição (artigo 3º, inciso I). Solidário é o Estado se tem interesse na sociedade, pois solidariedade significa, essencialmente, importar-se e, no caso, o Estado deve importar-se, essencialmente, com o povo (CF, art. 1º, parágrafo único). Esse, pois, é o sentido, tanto como motivo da existência quanto como rumo a ser seguido pelos órgãos do Estado.

Assim, todos os agentes públicos devem atuar em prol da sociedade, e não do próprio aparato estatal e, evidentemente, não de interesses pessoais, próprios ou de pessoas ou grupos específicos, em detrimento do bem comum. Não sendo assim, restará ao Estado apenas a forma estrutural, desvinculada do serviço que lhe dá sentido, que é cuidar dos interesses do povo.

O sistema judicial, penal ou civil, não pode ser seletivo, ou de castas.

José Miguel Garcia Medina.

Avaliação da democracia togada passa pelas causas e efeitos


“Acho que decisão política tem que tomar quem tem voto. Agora, a inércia do Congresso traz riscos para a democracia. E proteger as regras da democracia é um papel do Supremo”

Com essas palavras, relativas à questão das doações de pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, o ministro Luís Roberto Barroso talvez tenha sintetizado um novo referencial de atuação do Supremo Tribunal Federal, em sua coerente e corajosa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada no dia 22 de dezembro de 2013.

Coerente entrevista por expressar uma concepção que marca, há muito, a trajetória pessoal de Barroso, seja como doutrinador, seja como advogado. Corajosa por expor, de maneira clara e honesta, a crença de que o STF tem um papel de tal modo proeminente no sistema institucional brasileiro, que pode substituir a atuação dos demais poderes — exercendo, portanto, diretamente suas funções — quando considerar, segundo seus próprios critérios, que esses poderes se encontram de algum modo inertes, em formulação que, para muitos, seria a síntese do ativismo judicial.

Em suma, o exercício subsidiário das funções dos demais poderes pelo Supremo teria como fundamento um déficit de atuação por parte do Executivo e do Legislativo. A insuficiência dos representantes popularmente eleitos na implantação de políticas públicas ou na elaboração de normas é que habilitaria o tribunal, por exemplo, a determinar a realização de um programa de saúde pública não priorizado pelo governo da hora ou a fixar uma norma geral e abstrata em matéria não contemplada pelo Congresso Nacional.

Assim, examinado esse argumento sob outra óptica, é possível afirmar que a base para a atuação excepcional do Supremo estaria no reconhecimento de uma incapacidade popular no exercício da cidadania, que levaria à reiterada escolha de representantes — administradores e legisladores — incapazes de realizar o conteúdo democrático da Constituição. O STF, nessa perspectiva, salvaria o povo de suas próprias escolhas, desempenhando, no sistema institucional brasileiro, um papel orientador e corretivo dos poderes constituídos, papel esse que, em condições normais, seria do eleitorado.

Tal lógica, porém, não é nova na história das instituições políticas brasileiras. São vários os casos de órgãos de poder que, diante de um eleitorado por eles tido como fraco ou insuficiente, incapaz de escolhas consideradas por esses mesmos órgãos como corretas, passaram a desempenhar tarefas de suplementação democrática.

Exemplo mais gritante dessa realidade talvez se tenha na experiência do sistema parlamentar do Segundo Reinado, em que a alternância dos partidos políticos no poder se dava pelo desígnio do imperador e não pela vontade popular manifestada nas eleições, no que já foi chamado de “doutrina brasileira do Poder Moderador”.

Ante a insuficiência do eleitorado, cabia ao imperador, segundo sua visão pessoal acerca das necessidades da população e das urgências do Estado, chamar à composição de um novo gabinete esta ou aquela agremiação partidária, independentemente de contar com a maioria no Parlamento. Era o “parlamentarismo às avessas” — em que o monarca fazia as vezes do povo —, denunciado de forma magistral por José Thomaz Nabuco de Araújo no famoso Discurso do Sorites.

Nessa realidade, como registra Cezar Saldanha Souza Junior, o Poder Moderador cumpria não só uma função de árbitro no jogo político — como era próprio da teoria européia de Benjamin Constant, plasmada no artigo 98 da Constituição de 1824 —, mas também era “um poder subsidiário da comunidade”, que supria, “dentro da lei, as deficiências de um eleitorado ainda muito fraco em força política, na medida dessa fraqueza e enquanto as condições econômicas, sociais e mesmo políticas não lhe permitem uma atuação mais efetiva”.

Ou seja, as intervenções de poder pessoal do monarca — chamado, à época, de “imperialismo” — eram justificadas por uma insuficiência da população em, por meio de eleições, escolher representantes capazes de cumprir a contento as exigências típicas de um regime democrático. O imperador desempenhava uma suplementação democrática, que tornava viável — apesar da suposta incapacidade popular no exercício da cidadania — o funcionamento do sistema parlamentar.

Nesse quadro de artificial alternância democrática, o Império chegou a ser classificado por Bartolomeu Mitre, presidente da Argentina entre 1862 e 1868, como uma “democracia com coroa”; sendo igualmente popular a expressão “democracia coroada” para designar o Segundo Reinado.

De fato, porém, em nome de um sistema em aparência democrático, a coroa invadia searas que ordinariamente seriam de poderes popularmente respaldados, justificando sua ação na tese — inegavelmente elitista — da incapacidade do povo.

Não é de se estranhar, assim, que, ao final do Império, Ferreira Vianna, ministro do regime imperial e membro do Partido Conservador, assim avaliasse o Segundo Reinado: “O Imperador levou cinquenta anos a fingir que governava um povo livre”.

É interessante constatar — sem que disso decorra qualquer juízo de valor — que a justificativa para o “imperialismo” de Pedro II era a mesma que hoje se dá para o ativismo dos tribunais, qual seja, a insuficiência do povo, que não escolhe representantes suficientemente idôneos para o exercício das funções que lhes são constitucionalmente atribuídas no regime democrático brasileiro.

A razão de ser da “democracia coroada” seria a mesma que leva à construção de um novo oximoro, o da “democracia togada”, decorrente da atuação supletiva do Judiciário na implantação de políticas públicas ou na elaboração de normas, em substituição aos popularmente eleitos Executivo e Legislativo.

Diante da constatação dessa comum etiologia, não seria absurdo concluir que essas duas democracias qualificadas — a “coroada” e a “togada” — têm raízes não muito populares, posto partirem da aristocrática ideia da maior capacidade de alguns frente à incapacidade de muitos. Ambas as concepções acabariam por menosprezar a participação do povo, privilegiando a atuação politicamente irresponsável de seus “representantes” não eleitos; seja o imperador, seja a noblesse de robe.

Seria ainda possível registrar, para melhor ilustrar a questão e encetar a polêmica, que o “imperialismo” característico da “democracia coroada” não foi capaz de diminuir sua própria causa; ou seja, não criou — ao longo do Segundo Reinado — um eleitorado consciente que permitisse uma diminuição gradativa das intervenções do monarca. Em essência, o exercício extravagante do Poder Moderador somente servia para reforçar o próprio Poder Moderador e, ao mesmo tempo, torná-lo responsável único pelas agruras da vida institucional do Império.

Do mesmo modo, nada indica que o ativismo da “democracia togada” tenha gerado — ou tenha a potencialidade de gerar — as condições necessárias para a superação de sua existência, chamando os representantes popularmente eleitos a suas responsabilidades constitucionais.

Muito antes pelo contrário. É correto afirmar que a atuação supletiva dos tribunais — e em especial a do Supremo — pode desonerar as elites políticas de suas responsabilidades, transferindo para os juízes o ônus de decisão em searas que não lhes são naturais e permitindo que essas mesmas elites se perpetuem inertes e incólumes no poder: se as medidas decorrentes da decisão judicial são bem sucedidas, naturalmente ficam associadas ao governo que as executou; se fracassam, são imputadas ao Judiciário. A “democracia togada” teria, pois, um patente viés conservador, conferindo um bill of indemnity para aqueles causadores da inércia que estaria em sua gênese.

No momento em que se passa a afirmar, de modo honesto, um novo referencial de comportamento institucional para os tribunais, permitindo-se a discussão aberta de seus prós e contras, é necessário ter presentes essas e outras questões relacionadas à “democracia togada”, para que se avalie com clareza quão promissores podem ser seus efeitos e quão popularmente legítimas são suas causas.

Carlos Bastide Horbach 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Veremos como nunca a criminalização dos movimentos sociais


Não nos acostumamos, ainda, com a Democracia. Passados mais de 20 anos, o exercício de direitos civis causa absoluto incômodo e truculência por parte dos órgãos estatais. O Direito de Reunião e Livre Manifestação estão em fase embrionária, mal engatinham.

Movimentos sociais nunca foram, nem serão vistos com bons olhos por quem está no poder — ou dele tira grande proveito, pelo simples motivo que é do caráter de qualquer movimento, sua natureza contestatória, evidenciando alguma injustiça histórica perpetrada no país.

A existência dos movimentos pressupõe logicamente uma denúncia. Somente existe Movimento Sem Terra pois no Brasil há uma desigual distribuição de terra, com latifúndios, muitos deles improdutivos. Por sua vez, somente existe Movimento dos Sem Teto por não haver teto para todos. Quem vive em São Paulo se acostuma a se deparar no Centro com edifícios inteiros abandonados, enquanto temos um grave cenário de moradores de rua.

Por incomodarem, quando se reúnem, são chamados (pelo governo e pela mídia) de baderneiros, vândalos, bandidos, vagabundos, os quais fazem bagunça, arruaça, baderna. Sempre estiveram nas ruas reivindicando, sempre na corrente contrária da clássica medida política de maquiagem do aparente bem estar social. O esforço é enorme para desmotivar a população a se identificar com quem está na rua lutando por ela.

A Copa é um grande sinal deste conflito. Enquanto o governo trabalha incessantemente para mostrar que no Brasil não há pobreza, racismo, desigualdade social, entre outros problemas, a articulação dos movimentos sociais causará enorme insatisfação e frustração governista.

Veremos, como nunca, a criminalização dos movimentos sociais. Ser de algum movimento será (se já não é) equivalente a ser de uma organização criminosa. Principalmente para o operador de direito, tão confortável na ordem e na letra da lei. Temos, inclusive, uma Lei de Organização Criminosa, extremamente vaga, que dará margem a atuação brutal da Polícia e do Judiciário.


Assim dita o Artigo 1º, parágrafo 1º da Lei de Organização Criminosa:

“§ 1o Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.

Com base nessa lei, dependendo da ideologia de quem acusa e julga (como já escrevi aqui, chamar manifestante de vândalo é opção ideológica e muitos movimentos sociais podem ser — injustamente — classificados como organização criminosa. Vimos, recentemente, manifestantes serem enquadrados na Lei de Segurança Nacional, resquício da ditadura.

Portanto, a campanha e articulação contra a prática odiosa da criminalização dos movimentos sociais — medida vil adotada em outros países, como, por exemplo, a Espanha — será uma grande luta a ser travada como nunca. Pois na Copa, o Brasil será perfeito, mesmo que seja na marra.

 Brenno Tardelli

sábado, 4 de janeiro de 2014

Financiamento de campanha e o STF como “motor da história”


Em minha última coluna, escrevi sobre algumas inquietações que me perseguiam por conta do início do julgamento da ADI 4.650, questionadora da constitucionalidade de dispositivos da Lei dos Partidos Políticos e da Lei das Eleições que versam sobre a possibilidade de doações realizadas por empresas para o financiamento de campanhas eleitorais. De lá para cá o debate ficou acirrado: ainda na sexta-feira 13, logo após as duas primeiras sessões do julgamento, a OAB Federal emitiu nota para esclarecer aspectos ligados ao pedido formulado na ação; em entrevista à Folha de S. Paulo o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que, em casos específicos de inércia do legislativo, o Supremo Tribunal precisa portar-se como o “motor da história”.

Assim, diante do calor que o debate ainda produz e no intuito de esclarecer melhor aquilo que foi por mim tratado anteriormente, continuo a tratar do tema.

Dois aspectos essenciais

No texto anterior, procurei apresentar dois aspectos que me parecem essenciais para a questão que se coloca no julgamento da ADI 4.650. Em primeiro lugar, o elemento propriamente jurídico da questão, que diz respeito aos limites da atuação do poder judiciário no exercício do controle de constitucionalidade e a demarcação do espaço legítimo de atuação discricionária do poder legislativo. Nesse primeiro ponto, temos como pressuposta a seguinte premissa: em um Estado Constitucional Contemporâneo, o espaço de discricionariedade legislativa encontra-se reduzido.

Vale dizer: a liberdade de conformação política de que goza o legislador encontra balizas demarcadas pela Constituição. Todavia, disso não se pode concluir que o legislador não possui nenhuma liberdade de conformação. Uma tal conclusão levaria, inevitavelmente, à total inutilidade do poder legislativo e, ao mesmo tempo, a uma hipertrofia do sistema constitucional, aumentando em níveis indesejáveis aquilo que Gomes Canotilho, a partir de John Elster, chamou de “paradoxo da democracia” e “paradoxo intergeracional”.

Outro aspecto, que me parece igualmente relevante, diz respeito a um problema pragmático (proto-consequencialista, poder-se-ia dizer) presente na pergunta: em caso de decisão procedente exarada pelo Supremo Tribunal Federal na referida ação, o que será colocado no lugar? Quem arcará com os custos das campanhas imediatamente subsequentes à decisão do tribunal? A OAB esclarece que, em seu pedido, não consta aquilo que se nomeou por aí de “incidência imediata”, já para as eleições de 2014. Todavia, afirma, novamente, uma crença que, data máxima venia, reputo idílica, ingênua até: a de que, com a proibição das doações por empresas, haverá uma necessária recomposição dos gastos partidários no sentido de se realizar campanhas mais módicas do ponto de vista financeiro.

Ora, em um país com dimensões continentais, as campanhas são caras por si só. Isso sem falar que, no que tange ao mercado publicitário, reconhecidamente um sugador insaciável de recursos financeiros dos partidos, os valores praticados não serão reduzidos pelo simples fato de ter sido alterado o quadro de doadores.

Assim, o sistema político irá buscar, de alguma forma, meios para ajustar a captação de recursos às necessidades de custeio das campanhas. Em conclusão, de duas, uma: ou haverá uma modificação na parte pública do sistema de financiamento, visando uma mordida maior nos recursos de nosso já combalido Estado Social; ou, por outro lado, teremos um aumento dos mecanismos ilegais de captação.

Sinceramente, não consigo seguir a lógica que preside o silogismo que está por trás do fundamento do pedido formulado pela OAB. Ora, por qual motivo poderíamos concluir que, da retirada das empresas do processo eleitoral, teríamos menor incidência do famigerado “caixa 2”? Essa conclusão tem tanto valor quanto uma nota de R$ 3! Na realidade, ela sofre de uma contradição insolúvel: somente depois que fosse levada a cabo a medida é que seria possível verificar o acerto da afirmação, com a consequente aferição da diminuição ou do aumento do propalado recurso. Afirmar isso a priori é impossível. Trata-se, no máximo, de uma conjectura. E, nesse caso, uma conjectura servir de elemento suficiente para afirmar a inconstitucionalidade de uma opção legislativa é algo que até o mais ardoroso defensor do intervencionismo judicial titubearia em sustentar.

Ausência de parâmetro constitucional para o controle

No que tange ao primeiro aspecto mencionado, qual seja, o da possibilidade da intervenção judicial, há que se ressaltar que não há, no modelo constitucional atual, qualquer possibilidade de admitir-se a existência de um quadro normativo Constitucional claramente divergente daquele que se praticou e que continua vigente na atual legislação.

Reafirmo que não tenho simpatia e não gosto do modelo de financiamento político que permite a participação de empresas no processo eleitoral. Mas, entre afirmar a minha opção de gosto e formar a concepção jurídica adequada de constitucionalidade, há uma evidente diferença.

Lenio Streck e José Levi Mello do Amaral Júnior acertaram ao dizer que, no caso atual, não há parâmetro constitucional que permita o controle pelo judiciário. Há que se reconhecer, aqui, o espaço legítimo de atuação do legislativo. Alguém poderia objetar dizendo que esse argumento representa um conservadorismo que impede o progresso moral de nosso sistema eleitoral.

O legislativo debate a reforma política desde os idos de 1995 e, desde então, apenas micro-reformas foram feitas. Questões substanciais são reiteradamente deixadas de lado, já que aqueles que pretendem reformar o sistema possuem interesse em mantê-lo da forma como está. Vou, então, fazer um exercício de ingenuidade à la Voltaire e apresentar o seguinte contra-argumento: quantas teses, dissertações, livros, audiências publicas foram realizados sobre o tema? Respondo: uma infinidade. Nos limites dessa coluna, remeto a apenas um, que está disponível para consulta no site da Câmara dos Deputados. Qual conclusão é possível extrair da leitura dos vários textos que compõem esse livro que documenta um fórum realizado sobre o tema em 2007? Ei-la: ainda falta um consenso mínimo para que as propaladas “alterações substanciais” possam ser realizadas.

Note-se: a falta de consenso não é só parlamentar. A própria comunidade acadêmica e setores da sociedade civil estão profundamente divididos. A questão específica do financiamento de campanhas é um espinho constante nesse dissenso. Nesse ponto, o problema é ainda mais intrincado porque o debate acaba prejudicado pela cortina de fumaça projetada pela prevalência da paixão e dos interesses partidários em face daquilo que realmente funcionaria melhor dentro do processo eleitoral.

A ausência de parâmetro constitucional fica evidenciada, também, no próprio pronunciamento do ministro Barroso. Ele disse que, a princípio, não considerava inconstitucional a participação de empresas no financiamento de campanhas eleitorais. Todavia, por motivos consequencialistas, principalmente de moralidade do processo eleitoral, entendia haver na hipótese a necessidade de o Supremo agir para desemperrar o motor da história. A afirmação é um evidente sinal de que, no caso, o judiciário deveria fazer um exercício de self-restraint, afastando-se do mérito da questão. Ademais, se, em todos esses anos, não houve a produção de um consenso mínimo em torno do tema, por que razão os 11 ministros do Supremo poderiam ser colocados na condição de porta-vozes da verdade?

De se registrar ainda outro problema jurídico intrincado a tumultuar a questão: se reconhecermos, agora, que o modelo normativo que preside o financiamento partidário desde meados da década de 1990 é inconstitucional, o que faremos para legitimar a constitucionalidade das eleições anteriores que cobrem todo o período de estabilidade institucional vivenciado no regime pós 1988? A OAB responde dizendo que pleiteou a aplicação da modulação de efeitos para restringir a pronúncia da nulidade apenas com efeitos ex nunc, prospectivos. Todavia, como ressalta Lenio Streck, o que faremos com o passado? De fato, no caso, não se trata apenas de um problema de segurança jurídica. O artigo 27 da lei 9.868/1999 coloca como requisitos, para que seja efetuada a propalada modulação, além do quórum qualificado de oito votos a favor da medida, a observância de fatores ligados à segurança jurídica e ao relevante interesse social.

De se consignar, com Georges Abboud, que o manejo de tais conceitos jurídicos não está à disposição da discricionariedade do Supremo Tribunal Federal. É preciso que sejam fundamentados de forma constitucionalmente adequada. Assim, pergunto, não é de relevante interesse social que as eleições estejam amparadas pela Constituição? Como é possível justificar que, somente agora, quase duas décadas depois, é que despartamos do sono dogmático que nos prendia ao passado e descobrimos, lividamente, que a existência da possibilidade de financiamento de partidos políticos por empresas representa uma indevida intervenção do poder econômico no processo democrático?

Democracia, ideologia e o STF como “motor da história”

De tudo que foi dito, há algo que aparece como uma constante: aqueles que defendem a improcedência da ADI 4.650 acabam rotulados como conservadores e portadores de argumentos que emperram o aperfeiçoamento das instituições democráticas e o progresso moral do processo eleitoral.

Confesso que essa é uma pecha que me incomoda. Não porque esteja eu preocupado em pensar de forma “progressista” (seja lá o que isso queira dizer). Incomoda-me o fato de que as considerações que procuramos fazer, seja no campo da política ou no campo do direito, sofram sempre com essa estereotipagem diádica, que opõe direita e esquerda, progressistas e tradicionalistas, inovadores e conservadores. Parece não haver a possibilidade de se analisar de forma autônoma e independente as questões que são postas. Será que, em um contexto político-jurídico, não é possível afirmar posições independentes? Será que, em tais casos, só é possível “pensar com a caixa”, vale dizer, restringidos pela cartilha fornecida por alguma das oposições que alimentam a clássica díade utilizada para descrever as posturas políticas?

Desde a sociologia do conhecimento, a partir dos trabalhos de Karl Mannheim, o pensamento dito “conservador” é associado à ideologia, ao passo que o pensamento “progressista” é associado à utopia. A ideologia é retratada como uma trama que se encontra subjacente aos argumentos que fundamentam a ação dos atores sociais.

Nesse contexto, a dominação social seria desnudada na medida em que fosse descoberta a motivação ideológica que sustenta os argumentos que a justificam. Aqui, a verdade não seria captada pela observação, pelo raciocínio lógico e pela argumentação, mas pela descoberta das causas secretas, no mais das vezes desconhecidas pelo pensador, que determinam suas conclusões. Não haveria, portanto, liberdade de pensamento. Haveria apenas pensamento condicionado pela ideologia. Apenas alguns poucos privilegiados, versados na análise da reificação ideológica, é que conseguiriam libertar o pensamento de seus grilhões conservadores e tradicionalistas e instituir a marcha do progresso. Assim, a forma mais fácil de rebaixar um pensamento é, desde logo, reduzi-lo à ideologia. E, como bem ressalta Giovanni Sartori, a acusação de ideológico a uma determinada posição política representa um álibi de que se vale o interlocutor para rejeitar, de plano, os argumentos apresentados, sem que seja empreendida por ele a tarefa de justificar os seus próprios argumentos.

O grande paradoxo é que, os caçadores de ideologias não deixam de estar presos a ela. Na verdade, em uma sociedade pluralista, as ideologias são o resultado da confluência das mais diversas visões de mundo concorrentes. A ambivalência mais trágica que a persegue, como afirma Stein, é que a ideologia (que nasce justamente do pluralismo e da relatividade) acaba por negá-los porque, ao fim e ao cabo, sempre se pretende hegemônica. Assim, não é o conservadorismo que define a qualidade do ideológico, mas, sim, a pretensão de hegemonia que se apresenta incutida no argumento. Vale dizer: o seu absolutismo.

Não deixa de ser curioso que, na contemporaneidade, esses conceitos só se apresentam assim, de forma muito clara, no contexto de uma abstração barata e sem sentido. De se notar, por interessantíssimo, que, quando caiu o muro de Berlin, pondo fim à experiência do socialismo soviético, um autor tido por “conservador” escreveu um livro para tratar, a partir da filosofia da história de Hegel interpretada via Alexandre Kojève, do “fim da história”. A expressão fim aqui aponta para o caráter teleológico (finalístico) que essas concepções afirmam ser inerentes ao processo histórico. Todo filósofo da história, ao contrário do historiador, permite-se atuar como uma espécie de profeta, como que a desvendar qual o nosso melhor futuro, segundo a finalidade instituída.

É interessante que a expressão “motor da história”, ou a energia que move a história (o que dá no mesmo), sejam expressões caras à filosofia da história. A linguagem do ministro aproxima-se, assim, daquela utilizada pelos filósofos-profetas. Com base nessa filosofia da história, o autor a que me referi afirmou, naquele contexto de desfazimento do socialismo soviético, que a história tinha encontrado o seu fim e que a melhor forma de organização política que a humanidade produziu era a democracia liberal-capitalista. A tese teve inúmeros detratores. Inclusive este humilde escriba. Mas, não deixa de ser instigante o fato de que o mesmo tom profético presente na enunciação daquele que afirmou o fim da história esteja também presente na fala do ministro Barroso, o representante privilegiado do “progressismo jurídico”. O autor, conservador, que tratou do fim da história, é Francis Fukuyama.

Rafael Tomaz de Oliveira