"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 23 de junho de 2012

Quem vai desenterrar a verdade do presente?

Dilma Rousseff chorou ao instalar a Comissão da Verdade. Entre os companheiros que se emocionaram com ela estava José Sarney, presidente do Senado. Citando Galileu Galilei, a presidente disse que “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”. Sarney servia ao regime que Dilma quer investigar, mas isso não tem a menor importância. Ambos são sócios numa verdade que não é filha do tempo, nem da autoridade. A verdade de Dilma e Sarney é filha da mãe de todos os posseiros do Estado brasileiro.

É uma verdade tão generosa que pode admitir até censura. Não a dos anos de chumbo, que está fora de moda. Censura moderna, cirúrgica. A investigação da família Sarney por tráfico de influência vinha sendo exposta por O Estado de S. Paulo. Com apoio irrestrito de Lula e Dilma, Sarney ficou firme no cargo, e seu filho conseguiu submeter o jornal à censura prévia, que já completará três anos. Em nome da verdade.
Galileu entendia dos astros, mas não sabia nada de fisiologismo. Se soubesse, descobriria que a verdade é uma ação entre amigos.

Amordaçar a imprensa foi uma forma eficaz de proteger a ditadura, especialmente quando ela torturava. Dilma Rousseff deve saber disso. Portanto, censura nunca mais – a não ser para defender alguém como Sarney, que, como disse Lula, “não é uma pessoa qualquer”. E não é mesmo. Acima do José Ninguém que apoia o governo popular com sua crença, seu voto e outras miudezas, Sarney é um companheiro diferenciado: põe seus lotes privados na máquina pública a serviço de Dilma, se ela mantiver seu alvará de sucção. Uma troca verdadeira.

Uma amizade dessas vale gestos extremos. Segundo a ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, chamou-a ao Palácio do Planalto para lhe dar ordens. A Casa Civil não manda na Receita, mas Dilma mandou Lina resolver pendências fiscais da família Sarney. Solidariedade é isso (só quem lutou contra a tirania da ditadura sabe). Dilma não aceitou uma acareação com Lina. Uma virou presidente, a outra sumiu. Se a verdade fosse filha do tempo, a esta altura já estaria num orfanato.

A presidente que quer passar a ditadura a limpo de mãos dadas com Sarney poderia, talvez, pedir uma hora extra à Comissão da Verdade para dar uma olhada no caso Agaciel. O Brasil inteiro ouviu (já esqueceu, mas ouviu) os telefonemas entre o então diretor e o presidente do Senado combinando nomeações secretas de parentes e amigos. Onde foi parar essa verdade? Ou ela é filha da autoridade, e foi retocada, ou Sarney não tem condições morais de presidir o Senado – enquanto não for devidamente investigado. Mas esses detalhes não incomodam Dilma Rousseff em sua cruzada humanista. A presidente dos famintos nem se importa que a filha de Sarney compre 68 toneladas anuais de comida (só para ela e seu vice) à custa do contribuinte, como ÉPOCA mostrou. A verdade varia conforme a fome do dono.

O Brasil precisa acertar contas com seu passado, buscando justiça para os desaparecidos. Mas engole junto a propaganda política dos aparecidos. Ao lado de Dilma, no altar do bem contra o mal, estão heróis como Fernando Pimentel, ex-guerrilheiro, atual ministro vegetativo do Desenvolvimento. A resistência aos militares forjou nele valores sólidos, como ser amigo da presidente e faturar alto com consultorias invisíveis. Somando o passado e o presente de Pimentel, a única verdade insofismável é que ele não perde o cargo de jeito nenhum – nem depois de voar de favor em avião de empresário. Rodoviária nunca mais.

A luta continua, como prova Ideli Salvatti, ex-militante de direitos humanos na ditadura. No Ministério da Pesca, ela operou o milagre da multiplicação das lanchas – cujo fabricante, por coincidência, bancou sua campanha eleitoral. Na posse, Ideli cantou Ivan Lins para celebrar o triunfo da esquerda: “No novo tempo, apesar dos perigos; da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta; pra sobreviver, pra sobreviver”. Ideli sobreviveu graças à Comissão de Ética da Presidência – devidamente enquadrada por Dilma depois de dinamitar o companheiro Lupi –, que arquivou o caso das lanchas.

Nada como desenterrar as verdades certas e enterrar as erradas. Pra frente, Brasil!

Guilherme Fiuza

A diferença é o tempo verbal

Uma conversa fictícia entre Euclides da Cunha e Monteiro Lobato sobre a política do Brasil de hoje

Euclides da Cunha e Monteiro Lobato foram dois intelectuais profundamente preocupados com o Brasil. Euclides viveu o período da propaganda republicana, o golpe militar de novembro de 1889 e os primeiros 20 anos do novo regime. Desiludido com a república, acabou morrendo assassinado em 15 de agosto de 1909. Foi um colaborador habitual d'O Estado de S. Paulo. Ficaram célebres especialmente as reportagens sobre a Guerra de Canudos, em 1897, com o título de Diário de uma expedição. As reportagens, além de uma breve estadia com a quarta expedição no cerco do arraial fundado por Antonio Conselheiro, foram fundamentais para a confecção do maior clássico brasileiro, Os sertões.

Monteiro Lobato foi não só um grande escritor, como também um batalhador incansável em defesa da exploração do petróleo. Era um nacionalista anti-estatista, espécie rara no Brasil. Acabou preso no Estado Novo pelos ataques que fez ao general Horta Barbosa, primeiro presidente do Conselho Nacional de Petróleo. Foi também um colaborador contumaz de O Estado de S. Paulo. Foi no Estadão que publicou os também célebres artigos Uma velha praga e Urupês, em 1914.

Euclides e Lobato, caso estivessem vivos, estariam certamente estarrecidos com a conjuntura política brasileira e a falta de perspectivas. Nesta entrevista imaginária, os dois comentam os dilemas do Brasil de outros tempos. A única alteração é no tempo dos verbos. A conversa começa com a discussão sobre a mania que temos de reformar sempre pelo alto, ignorando os fundamentos do Estado, daí passa pelo velho problema da burocracia, da falta de quadros políticos, do fracasso da elite e do nosso futuro.

- Como analisa as reformas políticas?

Euclides da Cunha: O espírito nacional reconstrói-se pelas cimalhas, arriscando-se a ficar nos andaimes altíssimos, luxuosamente armados. Os novos princípios que chegam não têm o abrigo de uma cultura, e ficam no ar, inúteis, como forças admiráveis, mas sem pontos de apoio; e tornam-se frases decorativas sem sentido, ou capazes de todos os sentidos; e reduzem-se a fórmulas irritantes de uma caturrice doutrinária inaturável; e acabam fazendo-se palavras, meras palavras, rijas, secas, desfibradas, disfarçando a pobreza com vestimenta dos mais pretensiosos maiúsculos do alfabeto.

- E a burocracia nacional, como vencê-la?

Monteiro Lobato: O governo que suprimir o Ministério da Agricultura e os casarões que ele ocupa, prestará ao Brasil um serviço tremendo. Um dia Nilo Peçanha, por capadoçagem, lembrou-se de criar aquilo - e nossas desgraças começaram. O parasita foi encorpando, foi emitindo tentáculos, foi imiscuindo-se em tudo - nas culturas, para atrapalhá-las, na criação de porcos, para burocratizá-la; na avicultura; na citricultura, na pomicultura; em tudo que diz respeito a extrair coisas do solo. A ‘assistência’ daquele parasitismo começava a embaraçá-lo seriamente. Depois a ‘assistência’ degenerou em ‘proteção’ - esse tremendo negócio de parasitas que acaba matando o parasitado.

- E o governo, como vai? E o presidente da República?

Monteiro Lobato: Os nossos estadistas dos últimos tempos positivamente pensam com outros órgãos que não o cérebro - com o calcanhar, com o cotovelo, com certos penduricalhos - raramente com os miolos. Daí o desmantelo cada vez maior da administração pública; daí a bancarrota, a miséria horrível do povo. A miséria é tanta em certas zonas, que a grande massa da população rural já está perdendo a forma humana.

Euclides da Cunha: O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar - porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar - porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado superior das suas tradições...

- Temos uma elite política? E os nossos intelectuais, continuam em silêncio?

Monteiro Lobato: Somos um pântano com 40 milhões de rãs coaxantes, uma a botar culpa na outra do mal-estar que sentiam. Procuram soluções políticas, mudam a forma do governo, derrubam um imperador vitalício para experimentar imperantes quadrienais, fazem revoluções, entrematam-se, insultam-se, acusam-se de mil crimes, inventam que o pântano permanece pântano ‘porque há uma crise moral crônica’. O mal das rãs é julgar que sons resolvem problemas econômicos. Trocam o som ‘monarquia’ pelo som ‘república’, e trocam este som pelo ‘república nova’. Depois inventam sons inéditos - ‘reajustamento’, ‘congelados’, ‘integralismo’. O próprio das rãs é esse excessivo pendor musical, Querem sonoridades apenas. ‘Somos o maior país do mundo’. ‘Temos o maior rio do mundo’. ‘Nossas riquezas são inesgotáveis’, etc. Enchem o ar dessas músicas - e mandam o ministro da Fazenda correr Nova York e Londres de chapéu na mão a pedinchar dinheiro.

Euclides da Cunha: Apresentamos o quadro de uma desordem intelectual que, depois de refletir-se no disparatado de não sei quantas filosofias deceradas, nos impôs, na ordem política, a mais funesta dispersão de idéias, levando-nos aos saltos e ao acaso, do artificialismo da monarquia constitucional para a ilusão metafísica da soberania do povo ou para os exageros da ditadura científica. Para ainda agravescer a crise, os dois ideais da abolição e da República não requeriam mais as emoções estéticas. Resolvidos na ordem moral, estavam entregues à ação quase mecânica dos propagandistas. Estes precipitavam-nos com o desalinho característico da fase revolucionária das doutrinas, em que se conchavam as idéias e os paralelepípedos das ruas, e os melhores argumentos desfecham no desmantelo das barricadas investidas.

- E o povo brasileiro? O que devemos fazer?

Euclides da Cunha: Este país é organicamente inviável. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está - a bandalheira sistematizada. O melhor serviço a prestar-se nesta terra, no atual momento, consiste sobretudo na seriedade, que é uma forma de heroísmo no meio deste enorme desabamento....

Monteiro Lobato: A pátria (permanece) sempre naquele eterno mutismo de peixe. A ilusão do brasileiro é um caso sério. O mundo já na era do rádio, e o Brasil ainda lasca pedra. Ainda é troglodita. O Brasil dorme. Daqui (dos Estados Unidos) se ouve o seu ressonar. Dorme e é completamente cego.


Marco Antonio Villa

Como melhorar a educação?

Está ficando cada vez mais claro que um dos principais problemas que a sociedade brasileira enfrenta hoje em dia é a péssima qualidade da educação que é oferecida na grande maioria de nossas escolas públicas e privadas. Isso tem consequências muito importantes, passando pela produtividade das nossas empresas até a criminalidade que nos afeta todos os dias. Apesar de grande parte da sociedade já ter compreendido que a educação é mais importante para a nossa competitividade do que a proteção de setores específicos da nossa economia, há uma dificuldade muito grande para melhorar a qualidade da educação. Nossos avanços, apesar de estarem acontecendo, são muito lentos.

Nesse ritmo, demoraremos décadas para alcançar o nível educacional de Shangai na China, por exemplo. Será que devemos nos resignar e deixar a educação ir melhorando lentamente ao longo dos anos? Ou será que há mecanismos para aumentar a qualidade mais rapidamente? O que mostram as evidências?

As pesquisas realizadas no Brasil e no exterior mostram que a gestão do sistema escolar é o que realmente faz a diferença. Nesse sentido, pesquisadores estão desenvolvendo novas técnicas para medir a qualidade da gestão nas escolas e encontrando resultados bastante interessantes. As medidas de gestão mais importantes têm a ver com estratégia e planejamento. Mede-se, por exemplo, se a escola acompanha o desenvolvimento dos alunos nas fases críticas de aquisição de conhecimento, com dados de avaliações periódicas, disponíveis para todos os interessados.

Outra questão importante é se o desempenho das escolas nos exames de proficiência está sendo monitorado de forma adequada, se é discutido com os professores e funcionários e quais são as consequências dessas discussões. Um ponto importante diz respeito aos professores. Como a escola lida com os professores que não estão fazendo seu trabalho adequadamente? Por quanto tempo o desempenho insatisfatório é tolerado? É possível substituir os professores com desempenho persistentemente abaixo do esperado?

Os primeiros resultados dessas pesquisas, realizadas em países desenvolvidos, têm mostrado que há uma variação muito grande na qualidade da gestão nas escolas e que as escolas melhor dirigidas têm notas maiores nas avaliações de proficiência. Outra pesquisa mostra que as escolas charter americanas, que atendem as minorias, são mais efetivas em termos de notas quando acompanham e dão “retorno” frequente para os professores sobre o seu desempenho, usam dados de avaliações para guiar todo o processo de instrução, dão mais horas de aula e tem expectativas altas com relação aos alunos. Tamanho de classe, gastos por aluno e qualificação dos professores não parecem influenciar os resultados dessas escolas. Não há segredo.

Nesse sentido, é muito decepcionante que as discussões sobre o plano nacional da educação tenham se focado no aumento de gastos com educação. Na verdade, o foco da discussão deveria ser leis que permitissem maior flexibilidade na gestão escolar, em particular na contratação e demissão de professores e diretores, que são os atores centrais, juntamente com os alunos, do processo educacional. De nada adianta aumentar os gastos com educação para aumentar o salário dos professores e com isso atrair melhores profissionais para o ensino, se não houver a possibilidade de substituir os professores que tem desempenho abaixo do esperado.

O corporativismo é um dos fatores que mais atrapalha a busca por melhores resultados no Brasil, não só na educação, mas também em várias outras áreas. Por exemplo, os funcionários do judiciário estão entre os profissionais mais bem pagos no Brasil. Entretanto, a justiça brasileira é uma das mais morosas do mundo e os seus funcionários vivem em greve. Se aumentos de salários resolvessem o problema, nossa justiça seria uma das mais eficientes do mundo. O corporativismo faz com que os professores na Bahia, por exemplo, estejam em greve há mais de dois meses, período em que todos os alunos estão sem aulas. Enquanto as greves de ônibus são resolvidas em um dia, as da educação demoram muito tempo, pois não afetam diretamente o dia a dia das pessoas. Como aprender sem aulas?

Para citar um exemplo caseiro, a cidade de Sobral no Ceará conseguiu em apenas quatro anos (2005 a 2009) aumentar o seu Ideb de 4 para 6,6, alcançando a meta estabelecida pelo governo federal para a cidade para 2021! As notas de matemática dos alunos da 4ª série na prova Brasil aumentaram 44% nesse período. Quando perguntado sobre o que foi feito para melhorar tanto em tão pouco tempo, o secretário de educação local afirmou que o principal foi o foco nas crianças menores e na alfabetização. Foi feito um monitoramento das escolas, com avaliações constantes sobre o progresso de todos os alunos.

Além disso, houve responsabilização, ou seja, os professores e diretores são diretamente responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos alunos. Os profissionais que alcançam as metas são premiados. Os bons resultados aumentaram a autoestima dos professores, o que criou um círculo virtuoso. Quando perguntado se houve aumento dos gastos com educação na cidade para atingir esse resultado, o secretário respondeu: “Dez anos passados, a gente gasta o mesmo porcentual com educação e consegue avanços significativos”. Enquanto isso, o relator do PNE pensa em aumentar os gastos com educação para 10% do PIB, drenando recursos de todas as outras áreas para satisfazer a demanda dos professores. Pode?

Naércio Menezes  

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Monarquia instrumental - uma saída para uma Constituição inacabada


D.Pedro I, com a Constituição na mão.
A presente Constituição brasileira está incabada, 20 anos após sua promulgação, o que gera sérios problemas institucionais no relacionamento entre os Poderes do Estado, com destaque para a confusão entre a Chefia de Estado e a Chefia de Governo. De fato, a prática político-constitucional evidencia uma hipertrofia do Poder Executivo. Embora o país se denomine “República”, este regime não está protegido pela Constituição e pode ser mudado, desde que as cláusulas pétreas sejam respeitadas. É sugerida a mudança para uma monarquia como meio de melhor fazer funcionar o Estado Democrático de Direito no Brasil.

Entre as várias e possíveis conceituações para “Constituição”, por exemplo, na linha de José Gomes Canotilho, está a de que se trata, não apenas do conjunto das normas supremas do ordenamento jurídico de um Estado, mas também de uma técnica específica de limitação de poder, com fins garantistas.
Um teste importante para uma teoria constitucionalista está na prática, de como “acontece” uma Constituição em um país dado, “in concretu”.

O caso brasileiro, cuja constituição atual recém completou 20 anos, em 5.10.2008, é de interesse real para o debate acadêmico, em especial das relações entre Direito e Política.

Levantamentos recentes mostram que 351 artigos ainda, nela, demandam lei complementar para que sua vigência seja plena, sendo que até o momento o Congresso já tratou da regulamentação de outros 209 artigos. Pendem de aprovação 142 leis previstas no texto constitucional, das quais 62 dispõem de projetos já apresentados e 80 ainda não mereceram qualquer iniciativa.

Esta situação sugere que os constituintes de 1986-1988 não partiram de uma nítida teoria/conceituação do que uma Constituição é, mas, bem ao estilo do plurissecular ecletismo brasileiro, desenvolveram os seus trabalhos dentro de uma negociação, entre ‘partidos’ e grupos de pressão, sem um nítido marco teórico de partida, pelo que “adiaram” a solução de todos os impasses para as “futuras” legislações complementares.
O inacabamento desta Carta Magna, aliás, principalmente escrita contra o passado, então, recentíssimo, dos governos militares, coloca em xeque suas expectativas de dotar o país de um grau de governabilidade, em nível político, capaz de enfrentar os desafios contemporâneos, sejam econômicos, sociais ou, propriamente, políticos.

O hibridismo de sua forma final tem levado a uma hipertrofia do Executivo, tanto em termos teóricos como práticos, conforme registrado pelos estudiosos e pela imprensa.


Um caso é a confusão mal resolvida entre a chefia de Estado e a chefia de Governo. Na atualidade, por exemplo, funciona a Chefia da Casa Civil da Presidência da República como um virtual “Primeiro Ministério”, à vista, entre outros documentos pertinentes, do disposto no Decreto n.º 4.676, de 17.4.2003. Um parlamentarismo defectivo, evidentemente.

Esta confusão entre chefia de Estado e chefia de Governo, potencialmente, resulta na extrema dificuldade para alguém exercer de forma proativa a sua cidadania. Ou seja, cria impasses entre uma “oposição eventual a um governo” e uma efetiva “traição à Pátria”, por exemplo. Ora, o exercício proativo da cidadania é fundamental num Estado Democrático de Direito no século XXI.

Disto resulta que se inacabada a Constituição brasileira, incompleta está; se incompleta, ineficaz. Se ineficaz, com legitimidade, ao menos em nível de especulação teorética, muitíssimo prejudicada. Digna de revisão, fundamental.

Sabe-se, tendo como ponto de partida o texto da Constituição brasileira de 1988, que suas cláusulas pétreas (artigo 60, § 4.º) são (1) a forma federativa de Estado, (2) o voto direto, secreto, universal e periódico, (3) a separação dos Poderes, e (4) os direitos e garantias individuais.

Não há, portanto, uma definitiva filiação, pétrea, incontornável, desta Carta Magna, ao jacobinismo e ao Terror francês do século XVIII.

É possível descortinar, então, outras soluções para os seus impasses, inclusive pela mudança da denominação do Estado Brasileiro e o sentido de sua condução, de República – uma denominação quase sem sentido no nosso caso concreto, para Monarquia. Não em um hipotético “futuro”, mas já, tanto por razões advindas da Ciência Política e do Direito Constitucional e disciplinas conexas, como diante da grave situação nacional constatada no último quarto de século em particular.

Não como restauração de um passado que já se foi, mas como instrumentalidade para solucionar a questão da chefia de Estado e de Governo, trazendo esta para mais próxima do povo, pelo parlamentarismo. Isso permitirá, entre outros resultados desejáveis, abrir espaço para uma cidadania proativa, longe dos “acordos de elite”, realizando, muito melhor, um Estado Democrático de Direito para o Brasil.
Bibliografia consultada.

Este artigo reflete a análise da conjuntura brasileira, tal como percebida em julho de 2009, havendo sido escrito para debates internos no Instituto Brasileiro de Estudos Monárquicos, bem como em âmbito acadêmico fechado. Quase três anos após,  parece ao Autor que ainda detém atualidade para o urgente e necessário debate sobre o futuro político-institucional do Brasil.

Neste momento, o Autor serve como Secretário-Geral do IBEM, sendo, ainda, Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa sobre "Inovação e Futuro", registrado no CNPq e certificado pela UFSM. Sua linha de pesquisa é "Inovação e Desenvolvimento Institucional brasileiro".

Adivo Paim Filho

O PERFIL NADA CONSERVADOR DE NOSSA FAMÍLIA IMPERIAL QUANDO NO PODER

Há, no Movimento Monarquista do Brasil, uma corrente expressiva que defende a tese de que nossos príncipes devem, necessariamente,  cultivar um pensamento político conservador, assim considerado o que se apega aos  ditos valores tradicionais.

Este posicionamento é  respeitável, porque, se queremos um regime monárquico democrático, temos que praticar a democracia interna, respeitando a opinião alheia, ainda mais quando ela encontra eco em algumas das mais proeminentes lideranças da Família Imperial. Não quer dizer, entretanto, que tenhamos de concordar, ou não devamos expressar discordância,  por  temor reverencial.

Quando se fala em “conservador” se o faz em contraposição aos chamados “reformistas”, e, com mais razão, quanto aos “revolucionários”.

Revolução é, como a História demonstra, um caminho cheio de armadilhas, que geralmente conduz a resultados bem diferentes, quando não opostos, aos inicialmente pretendidos.

A Revolução Francesa se fez sob a divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, e desembocou no Terror. Após trucidada a nobreza, os revolucionários de ontem tomaram o lugar dos nobres na guilhotina, e os libertários passaram  a decepar cabeças uns aos outros, a pretexto de dissenções  internas. Nem o próprio Guilhotin, inventor da guilhotina,  escapou! A ordem foi restabelecida por Napoleão, que, simplesmente, implantou uma nova monarquia, embora sem legitimidade dinástica. E, mais uma vez, a Coroa de França se perdeu em guerra contra os ingleses. Um espetáculo “déjá vu”.

A Soviética, desde o início, não escondeu ao que veio: eliminar a burguesia como classe social, inclusive fisicamente. Até conseguiu, mas logo as facções  passaram a matar entre elas, aos milhares. É um erro pensar que o maior dizimador de esquerdistas foi algum governante de direita. Na verdade, ninguém matou e perseguiu mais comunistas, trotkistas, e anarquistas, que Stalin. Passava-se de “herói popular” a “inimigo do povo”, com uma canetada.

Descartada a opção revolucionária para os monarquistas, resta- lhes seguir o conservadorismo, ou partir para o reformismo, embora previsivelmente  não de forma homogênea.

Note-se, contudo, que o   confronto entre reformas e valores tradicionais, é relativo .

Reformar não e sinônimo de destruir tudo . O que é bom deve ser mantido, e, com maior razão, se é tradicional. Não se conhece nenhum reformista que pregue a abolição de valores tradicionais como honestidade, patriotismo, solidariedade, trabalho. O que se discute é a respeito de  modelos políticos e econômicos, e, quanto a estes, não são perenes, na medida em que as relações sociais são dinâmicas, e o que é  aceitável em um determinado momento histórico, passa a ser obsoleto no seguinte.
Naturalmente, não apenas o reformista não é conservador, mas, igualmente, o transgressor. Este, também, não conserva, e antes destrói que modifica.

Nossos dinastas, quando no poder, estiveram longe do conservadorismo.

D. Pedro I fez a Independência.

Uma vez independente  o país em 1822, promulgou a Constituição de 1824, sem dúvida a mais democrática e liberal de sua época.

Surpreendeu ainda mais, ao se tornar Grão-Mestre da Maçonaria, movimento perseguido em grande parte da Europa por erguer, como bandeira, o fim das monarquias absolutistas, e que tivera grande influencia na Revolução Francesa.

Abdicando à Coroa do Brasil, se juntou aos remanescentes da Revolução Liberal , nos Açores, enfrentando e derrotando o absolutismo monárquico representado por seu irmão D. Miguel, que  usurpara o trono luso, a que tinha abdicado em favor de sua filha portuguesa .

Então, no campo político, jamais se poderia atribuir a D. Pedro I ser um conservador. Muito menos em matéria de vida privada, (aliás, nem tão privada assim...), como é de todos sabido, e seria ocioso reportar.

Já Dom Pedro II, além de se empenhar em trazer para o país os avanços da tecnologia, foi, até em excesso, o antípoda do absolutismo . Como pode ser conservador quem, além de aceitar com extrema liberalidade as críticas mais desrespeitosas, lutou vitoriosamente pelo fim da escravatura? São de seu período a Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu o ingresso de novos cativos no país, a do Ventre Livre, a dos Sexagenários . Esta, não apenas libertou por limite de idade, como criou estímulos aos agricultores para substituírem a mão de obra escrava pela de trabalho livre, em troca do perdão de dívida tributária .

Mais ainda: após a Abolição foi o pioneiro da reforma agrária no Brasil, propondo, à Assembléia Geral do Império, a desapropriação de terras improdutivas à margem das ferrovias, para nela assentar ex-escravos libertos e imigrantes. É o que se lê da transcrição da “Fala do Trono” na Abertura da 4ª Sessão da 20ª Legislatura, em 3.05.1989: “... resolvereis sobre a conveniência de conceder ao governo o direito de desapropriar, por utilidade pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitadas pelos proprietários e podem servir para núcleos coloniais”.

Como um Governante que extingue o tradicional modo de produção pré-capitalista, promove sua substituição pelo novo modo, capitalista, contrariando os interesses dos latifundiários,  a maior força política e econômica da época , pode ser    tido por conservador ?!

Some-se, a isto, sua atitude na Questão Religiosa, quando, embora não sendo maçom, como o fora o pai,  arbitrou em favor da Maçonaria a controvérsia mantida com bispos que pretendiam aplicar, no Brasil, uma bula papal de excomunhão genérica aos membros daquela ordem  .

Esta norma, face ao sistema de Padroado que se acordara com a Santa Sé, e ao art. 102, Item 14, da Constituição de 1824, dependia de  beneplácito régio  para aqui vigorar (“art. 102 – O Imperador é o chefe do poder executivo, e o exercita pelos seus ministros de Estado. Suas principais atribuições são 1)........., 14) Conceder, ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios, e letras apostólicas, e quaisquer outras constituições eclesiásticas que se não opuserem á Constituição; e precedendo aprovação da Assembléia, se contiverem disposição geral.”)

O regime de Padroado, era um sistema de pesos e contrapesos. A Religião Católica era a oficial, os bispos  recebiam remuneração dos cofres públicos, a exemplo dos  funcionários, mas, em contrapartida, Sua Santidade os nomeava de comum acordo com Sua Majestadade, e, para que as disposições  eclesiásticas vigorassem no Brasil, dependiam do beneplácito do Imperador e, eventualmente, da aprovação da Assembléia, como no caso .

Tudo isto era consensual, pois, evidentemente, se assim não fosse, a Igreja não admitiria que seus dignatários recebessem os estipêndios.

Pode-se concordar ou discordar do sistema , mas censurar o Imperador por exigir respeito às prerrogativas que lhe assegurava, obriga ao absurdo de censurar o Papa por nele haver consentido. Afinal, é princípio elementar que acordos existem, para que sejam cumpridos.

Quanto à Princesa Isabel, embora discordando do pai quanto à Questão Religiosa, era entusiasta adepta, não apenas da abolição da escravatura e seu complementar projeto de reforma agrária, como, ainda do voto feminino. Como uma Sufragista ainda em pleno Sec. XIX, abolicionista, e junto com seu pai, pioneira em matéria de reforma agrária, pode ter sido conservadora ?!

Conservadores, isto sim, eram os republicanos que os depuseram, imbuídos dos mais primitivos sentimentos, como machismo e racismo . Quanto a este último, em carta de 2 de janeiro de 1889, ao Dr. José Mariano Carneiro da Cunha, Deputado Liberal na Assembléia Provincial de Pernambuco, advertiu o grande Joaquim Nabuco: “Os republicanos falam abertamente em matar negros como se matam cães. Eu nunca pensei que tivéssemos no Brasil a guerra civil depois, em vez de antes, da abolição. Mas haveremos de tê-la. O que se quer hoje é o extermínio de uma raça e como ela é a que mais tem coragem, o resultado será uma luta encarniçada” (in “D. Isabel I – A Redentora” textos e documentos sobre a Imperatriz exilada do Brasil em seus 160 anos de nascimento” - IDI, Rio, 2006, pag 151)

Uma princesa que confraterniza com um intelectual negro que escreve tais coisas, é conservadora?!
Esquerda e direita são conceitos imprecisos e obsoletos. Não se é de esquerda, mas se está à esquerda de algo. Idem quanto  à direita . Mas, para isso, é necessária uma referência, o centro. E quem está autorizado a definir o que seja centro ?!

Independente da imprecisão, não  há base lógica para se pretender que nossos príncipes – e com maior razão, seus apoiadores – devam ser “de direita”, “de centro”, ou “de esquerda" . O Rei é rei de todos os súditos, não apenas dos católicos ou dos protestantes, dos progressistas ou dos reacionários, dos empregadores ou dos empregados, dos rubronegros ou dos vascaínos ...

Cada um seja  pelo que quiser, e, de preferência, evite polemizar no seio do movimento, porque devemos centrar no que nos une, a mudança de forma de governo, e não no que nos divide, as preferências ideológicas, ou mesmo religiosas .

Saboia Bandeira de Mello 

quinta-feira, 7 de junho de 2012

PETRÓPOLIS + 10

Vamos imaginar um país, onde a opinião pública se divida em dois partidos, que vivam às turras, cada um achando que seu programa é o adequado à felicidade geral .

Em dado momento, golpe de estado coloca no poder um ditador, que proíbe a atividade partidária. O que se espera dos até então antagonistas? Prosseguirem se hostilizando, ou unirem forças contra o inimigo comum ?

No Brasil parece que a estratégia “dividir para conquistar” foi adotada, não pelos conquistadores, mas pelos conquistados, dificultando, a persistir, qualquer hipótese de reversão .

Tal se deu pela conhecida adesão de parte dos Príncipes da Família Imperial a uma polêmica associação civil, que prega doutrina baseada em radical enfoque político e religioso que não conta com a aprovação da grande maioria do eleitorado . Isto confina o Movimento em espaço limitadíssimo, a ponto de, hoje, não haver no Congresso um único parlamentar que se assuma como monárquico .

Leve-se em conta que, no Plebiscito de 1993 o então Movimento Parlamentarista Monárquico (MPM) obteve mais de 13% dos votos válidos, percentual superior à votação da maioria dos partidos em qualquer pleito, e se verá a inviabilidade política daquela tendência de pensamento , que afugenta, ao invés de agregar , eleitores e militantes .

Esta realidade deve levar a refletir sobre a CARTA DE PETRÓPOLIS, subscrita por alguns dos mais representativos nomes do ex- MPM no Estado do Rio de Janeiro, a qual pode ser vista como desdobramento do manifesto assinado por diversos Príncipes de Orleans e Bragança em 1993 , cujos teores se segue :



CARTA DE PETRÓPOLIS

Os abaixo assinados, reunidos ao longo dos dias 23 e 24 de novembro de 2002, na Cidade Imperial de Petrópolis, atendendo a um chamamento de união e de abertura dos espíritos em prol da Causa Monárquica, com base em práticas de oficina de trabalho, procedemos a um exame desapaixonado do que vem ocorrendo com o Movimento Monarquista (MM) desde o plebiscito de 1993, projetando, ao mesmo tempo, uma estimulante visão de futuro que seja nossa estrela-guia.

Nossa reunião teve sua origem nas facilidades e baixo custo permitidos pelo uso da Internet na comunicação interpessoal. O Encontro de Petrópolis foi aberto a todos que quisessem participar sem nenhum tipo de discriminação. Não foram distribuídos convites formais, mas foram recebidos de braços abertos todos os que se dispuseram a comparecer. A ausência dos príncipes foi a condição natural para permitir uma discussão mais à vontade do tipo brain-storming. E também pa ra que reavaliássemos nossa posição face aos mesmos. Cobrar apenas dos príncipes brasileiros o que podem fazer pela causa nos pareceu cômodo demais de nossa parte. Centramos nossa atenção na contribuição que podemos lhes dar e também à causa para que nosso sonho se torne realidade num horizonte de 15 anos. Em momento algum, foi posta em dúvida a fidelidade dos presentes ao Brasil, à Casa de Bragança, a ser preservada, e ao importante papel dos príncipes.

A análise retrospectiva do que ocorreu desde 1993 não foi nada tranquilizadora. Houve consenso sobre a baixa voltagem com que o Movimento Monarquista vem atuando. A luz vermelha acendeu quando tomamos conhecimento do pedido de afastamento de um monarquista histórico da presidência de uma tradicional agremiação monarquista localizada na cidade do Rio de Janeiro. Constatamos que esse sentimento de jogar a toalha, de desistir, seguido de atitudes nessa direçã o, vem crescendo entre nós. Por sua vez, nenhuma causa vai em frente se não houver entusiasmo e confiança no futuro. Precisamos, sem perda de tempo, crescer e não encolher.

A principal deficiência observada foi a ausência de um planejamento estratégico acompanhado de um monitoramento sistemático das metas estabelecidas. Se existem metas já estabelecidas para serem atingidas, certamente não satisfazem à condição de metas SMART, ou seja, eSpecíficas (e eScritas), Mensuráveis, Alcançáveis, Relevantes e Temporais. Sem satisfazerem a essas condições, não passam de declaração de boas intenções, a matéria-prima que pavimenta o caminho para o inferno. Vale ressaltar o caráter temporal da meta. Ela tem que ter data para acontecer. Daí mencionarmos um período de 15 anos como tempo hábil para restaurar a monarquia no Brasil. A liderança do MM precisa dotá-lo de uma visão compartilhada e apoiada por todos, capaz de ser abrangente e detalhada, positiva e inspiradora, e alavancada por instrumentos de ação prática.

Buscamos balizar conclusões e propostas levando em conta nossos pontos fortes e fracos, as oportunidades existentes e as ameaças que nos rondam, internas e externas. Dentro desta linha de pensamento e dinâmica de trabalho, chegamos a um consenso em torno dos seguintes pontos:

-unir todos os monarquistas sob a bandeira de uma frente ampla;
-traçar um plano estratégico e estabelecer uma poderosa visão de futuro;
-ter claro que a legitimidade também deve estar a serviço da Causa;
-tratar a educação do futuro monarca como assunto de Estado;
-separar, no âmbito do MM, Chefia de Governo da Chefia de Estado e
-dotar o MM, com base numa proposta criativa, de autonomia financeira.

Dedicamos muita atenção ao último item referente à autonomia financeira do MM por ser ele o divisor de águas entre uma atuação amadora e outra, como precisa e deve ser, de cunho profissional. A trajetória do PT, que soube inclusive se estruturar financeiramente, bem demonstra como uma organização política pode chegar ao poder num período de tempo relativamente curto. Existem formas e modos éticos e lícitos de angariar recursos financeiros para o MM dando em troca produtos e serviços úteis e legítimos a todos que contribuírem para com a Causa.

É fundamental que o futuro monarca, integrante da linha legitimista, receba uma educação a ser tratada como assunto de Estado e não meramente como assunto exclusivo da Família Imperial. Esta é a única maneira de envolver o coração e a mente de cada brasileiro nesse pr ocesso. Caberia a um Conselho Monárquico, formado por representantes dos diversos setores da sociedade brasileira, auxiliar a educação e o preparo do futuro monarca em consonância com a Família Imperial. As Instruções do Marquês de Itanhaém aos preceptores de Dom Pedro II ainda são atuais – mais de século e meio depois! – para dar rumo ao futuro Conselho, em especial o seu artigo 4, cujo espírito de conciliação bem poderia nos servir, aos príncipes e a nós, para retomar o MM em novas bases, onde prevaleça a união. Se derrotar os planos do inimigo e impedir a reunião de suas forças são, nessa ordem, a forma mais refinada da estratégia político-militar, essas práticas seriam devastadoras se prevalecessem entre nós. Garantiriam, de antemão, nosso insucesso.

Nenhum brasileiro monarquista está lutando para colocar sua própria família no trono. Esta mesma prova de desprendimento deve ser dada por todos os príncipes para que a legitimidade seja posta a serviço da Causa. E não o inverso. A ordem desses fatores altera o produto e terá forte influência na maior ou menor velocidade com que vamos atingir a meta maior da restauração – nossa missão. Ou mesmo, se vamos atingí-la algum dia antes que a república esteja definitivamente consolidada. O tempo urge, ruge e trabalha contra nós.

Não se trata de pedir renúncias, mas de um firme compromisso em torno de príncipes mais jovens cuja idade permita pôr em prática o que está sendo proposto. Isso nada mais é do que fazer valer nossa tradição histórica levando em conta os novos tempos de que o Brasil tanto necessita para restaurar sua auto-estima, dignidade e honra. O desprendimento da Princesa Isabel levou-a a afirmar: "Mil tronos houvera, mil tronos perderia para libertar uma raça da escravidão." O exemplo de prioridades corretas nos vem de Dom Pedro II que, nos Conselhos à Regen te, grafava Brasileiro com B maiúsculo e imperador com i minúsculo. Disse também ao Barão do Rio Branco em dúvida, que continuasse a servir o País como diplomata, pois o Brasil vinha em primeiro lugar, mesmo sob regime republicano. Ambos deram provas cabais de seu entranhado amor pelo Brasil, ainda que o preço fosse o trono. Agora, o desprendimento pessoal tem um final feliz: a restauração do trono. É preciso que os legítimos sucessores de Dom Pedro II façam um profundo exame de consciência e abram caminho em direção a quem esteja mais dotado na linha sucessória para tornar o sonho realidade nestes tempos conturbados e velozes. Saber adaptar-se é imperioso no processo de sobrevivência bem sucedida.

É importante que mais de um príncipe – um príncipe e uma princesa pelo menos – fosse preparado para exercer a Chefia de Estado. A existência uma alternativa faz parte de u m plano bem feito.

Psicologicamente, é extremamente importante que esses príncipes saibam, desde já, que têm uma missão maior a realizar na vida. Um príncipe herdeiro que vai lutar pelo trono nas horas vagas de suas atividades profissionais dificilmente chegará a bom termo. Mas, para tanto, é preciso vontade política, ampla aceitação pela Nação da educação a lhe ser ministrada e um mínimo de tranquilidade financeira para seu próprio sustento. Temos que fazer ver à Nação Brasileira que a tecnologia monárquica é imbatível quando se trata de formar um Chefe de Estado. Seu grau de isenção e de equilíbrio jamais será igualado por um chefe de estado republicano sempre dependente, quando não refém, de favores de grupos econômicos e de partidos políticos para chegar e se manter no poder. Cabe aos monarquistas e aos príncipes trabalhar arduamente para que o povo brasileiro perceba a importância de ter um aliado fiel e permanente que o defenda contra interesses e políticos menores.

A modernidade da monarquia brasileira durante o século XIX salta aos olhos quando comparada aos dias de hoje. Quando o presidente eleito fala em restabelecer audiências populares, nos vem à mente o que ocorria, todo sábado, nos jardins do Paço Imperial de São Cristóvão, de 17 às 19 horas, em que Dom Pedro II recebia a todos, sem qualquer distinção e sem marcar audiência prévia. Quando nos entusiasmamos com a defesa da ecologia, nos lembramos dos 17 anos de replantio da floresta da Tijuca ocorrido sob o Segundo Reinado. A estabilidade claudicante da moeda conseguida nos últimos 8 anos nos faz lembrar que a inflação durante os quase cinquenta anos do Segundo Reinado foi em média de 1,5% ao ano. Este percentual irrisório é prova cabal da plena responsabilidade fiscal vigente naquela época, ou seja, do respeito ao dinheiro público e ao poder aquisitivo dos menos favorecidos.

A comemoração de uma transição pacífica da faixa presidencial também nos remete aos vários gabinetes de Pedro II, que se sucederam ordeiramente, além do exemplo comovente da abdicação de Pedro I. A liberdade de imprensa e de pensamento, tão comemorada hoje, era moeda corrente durante todo o Segundo Reinado. A proposta, aparentemente moderna, de controle externo do judiciário com a finalidade de coibir os abusos de juízes corruptos já constava da constituição imperial. O Imperador, ouvido o Conselho de Estado, podia suspender de função um juiz e deixá-lo à disposição para julgamento futuro sem privá-lo do direito de defesa. A criação do Ministério da Defesa ocupado por um civil, que nos é apresentado como um grande avanço, mal esconde o fato histórico de que os Ministérios da Guerra e da Marinha eram, durante o Segundo Reinado, normalmente ocupados por civis ciosos de que os militares tinham que estar sob o firme comando do poder civil.

Dói muito rever e sse mesmo filme com mais de cem anos de atraso e lembrar que o PIB acumulado caiu quase 30% nos dez primeiros anos da república. Quando se cai de um patamar de 100 para 70, é preciso crescer quase 50% para voltar a 100. A república, como sempre, marcando passo. Ou a ré-pública, como já disse há muito Dom Pedro Henrique, também na Economia. A questão tão atual de dar acesso ao negro à plena cidadania nos remete ao fato de que 80% da população de origem africana já estava livre quando foi assinada a Lei Áurea e que o Gabinete Ouro Preto, o último do Império, tinha um plano para distribuir terras aos libertos ao longo dos rios e estradas, que a república engavetou por muitas décadas.

O tratamento dado à questão servil denotava o dedo de profissionais, que buscaram resolver o problema paulatinamente, sem mergulhar o país numa guerra civil sangrenta como aconteceu nos EUA. A libertação dos escravos e sua socialização, be m como o estímulo às muitas alforrias, foram bandeiras perenes de nossos dois Imperadores e de nossa Princesa Isabel. Ela que dançou em bailes no Paço Imperial com André Rebouças, engenheiro negro cujos estudos foram financiados por Pedro II com recursos próprios. A própria fome, justamente denunciada pelo presidente eleito, nunca foi um problema realmente sério durante o Império. Basta observar o aspecto físico do povo nas gravuras de Rugendas, de Debret e nas fotografias que registram diversas cenas da vida do Segundo Reinado.

Como se pode constatar, foi um imenso esforço para nos reaproximar do patamar em que nos encontrávamos há mais de um século. A nós, monarquistas, nos enche de orgulho saber que a herança institucional do Império foi tão comprometida com a defesa do interesse público que mais de cem anos depois ainda se revela atual. Estes fatos históricos comprovam o que foi dito, em setembro deste ano, em Natal-RN, pelo Prof. Carlos Lessa, reitor da UFRJ, quando afirmou que o brasileiro não tinha um problema de auto-estima durante o século XIX, tão agudo hoje sob a república, em que a qualidade e a probidade dos homens públicos são diariamente questionadas pela imprensa. Nós, monarquistas, nos orgulhamos também da modernidade e da atualidade das monarquias constitucionais existentes no mundo.

Quando arrolamos indicadores sociais, culturais, econômicos, ambientais, de estabilidade institucional e outros, verificamos que os países que são monarquias estão sempre na ponta. Embora muitos desconheçam, foi sob monarquias constitucionais que os partidos socialistas e trabalhistas mais conseguiram fazer avançar e implantar as profundas reformas sociais previstas em seus programas. Suécia e Espanha são dois bons exemplos disso. Dentre os 25 países mais democráticos e ricos do mundo, 18 são monarquias. Recentemente, dois intelectuais ingleses não-monarquistas resolveram fazer uma lista dos cinco países que ofereciam as melhores condições de exercício pleno da cidadania com excepcional qualidade de vida e tiveram que reconhecer a contra-gosto que todos eram monarquias constitucionais.

Mas não podemos jamais adotar a atitude cega de Luis XIV que concentrou a nobreza no Palácio de Versalhes em funções honoríficas inúteis, eliminando a correia de transmissão exercida por ela entre o povo e o monarca, que acabou isolando a corte do povo, desembocando na fratricida Revolução Francesa. E muito menos ter a postura de um pretendente ao trono francês que se recusou a reinar com as cores azul, branco e vermelha, insistindo na volta do branco e do dourado para que assumisse o trono. Estes foram dinastas com vocação para o suicídio histórico, a última coisa de que precisamos. Conduzir o MM brasileiro dentro da perspectiva de que existe um grupo de ilu minados detentores da verdade nos aproximaria de uma visão excludente que durante décadas dominou o Comitê Central do Partido Comunista da ex-URSS. Deu no que deu. Conversar e negociar sempre foi a linguagem dos dinastas esclarecidos. Cabe a nós, manter essa tradição civilizada e civilizadora.

Além do mais, a nobreza brasileira nunca foi de sangue. Os títulos com grandeza reconheciam méritos. Eram vitalícios, mas não hereditários. A cada geração, essa nobreza tinha que se reinventar para reconquistar seus títulos. Tinha que se manter alerta e disposta a lutar pelo bem da Nação Brasileira para merecê-los. Havia um quê de competição muito saudável pelo bem da Pátria, que renovava o círculo de pessoas que cercava o monarca. A única exceção era a Família Imperial. Caso contrário, descaracterizaria a monarquia ter uma nova família no trono a cada reinado e uma luta pelo poder profu ndamente desestabilizadora das instituições nacionais.

Tudo isso nos enche de responsabilidade. Existe muito trabalho a ser feito. O equacionamento financeiro do MM precisa acontecer com a devida brevidade. Não há mais espaço para amadorismos de qualquer espécie. Temos que avançar em bases profissionais para obter êxito. Nosso sucesso vai depender de nossa união e do comprometimento de cada um de nós e dos príncipes com a causa.

Aproveitamos o ensejo para agradecer a todos aqueles que mantêm viva a chama da luta pela monarquia – ontem, hoje e amanhã. Registramos nosso agradecimento especial ao Deputado Cunha Bueno pelas vitórias que não podem ser esquecidas: a derrubada da Cláusula Pétrea, que nos mantém na luta, e a elaboração do Projeto de Constituição Monárquica, trabalho que se mantém atual até hoje pela objetividade e clarividência. Ressaltamos ainda sua combatividade, habilidade política e tenacida de patriótica na convocação do Plebiscito de 1993, pelo que merece a gratidão e o reconhecimento dos monarquistas e patriotas em geral.

Convidamos os homens e as mulheres de boa vontade entre nós para estarem presentes ao nosso próximo encontro, em Petrópolis, pelo resgate de nossa verdadeira cidadania e em prol de uma causa realmente nobre – o Brasil.

Petrópolis, 2 de dezembro de 2002
Gastão Reis Rodrigues Pereira / Alan Assumpção Morgan / Roberto Mourão Figueiredo Silva / Roberto R. M. Nobre Machado / Luiz Costa de Lucca Silva / Bruno Hellmuth / Laerte Lucas Zanetti / Mário de Freitas Esteves / Gumercindo Rocha Dorea



MANIFESTO DOS PRÍNCIPES DE ORLEANS E BRAGANÇA (Petrópolis e Paraty) :
À NAÇÃO BRASILEIRA

Nós abaixo-assinados, membros da Família Orleans e Bragança,descendentes de D.Pedro I,de D Pedro II e da Princesa Isabel,vimos manifestar,de publico nossa integral FIDELIDADE ao principio de que todo poder LEGITIMO emana do povo e em seu nome deve ser exercido.

Compromissados que somos com a tradição constitucional brasileira,que nasceu sob a égide da limitação do poder real, da aclamação geral dos povos e não do direito divino dos reis,reafirmamos nossa crença arraigada naqueles valores democráticos permanentes que nortearam as instituições e costumes políticos de nosso período monárquico, quais sejam:liberdade de imprensa, de expressão, de pensamento e de iniciativa individual, defesa intransigente do interesse publico, alternância dos partidos no poder, primado de poder civil e cobrança de responsabilidades às classes dirigentes.

Como brasileiros,irmanamo-nos na mais i ntensa esperança de que a revisão da atual Carta Constitucional, em 1993, abra caminho para que instrumentos eficazes de defesa do interesse publico prevaleçam sobre os interesses corporativos de grupos e facções. Somente assim será possível resgatar aqueles valores culturais, políticos, sociais e econômicos que deram origem a sociedades realmente livres, prósperas e democráticas. Somente assim será possível interromper a marcha da insensatez, que deixou o pais à deriva.

Faz parte de nossa tradição familiar colocar em primeiro lugar o Brasil, ou seja, o interesse publico.Em segundo lugar,viria a forma de governo -monarquia ou república- como já entendia D.Pedro II, em momento de extrema provação,quando,mais uma vez,deu testemunho de sua reconhecida desambição pessoal. Somente como terceira prioridade, estaria a designação do futuro monarca constitucional,a ser feita,sob a proteção de DEUS, pelos legítimos representantes do povo,caso seja este o desejo expresso pela Nação brasileira no plebiscito marcado para o dia 21 de abril de 1993.

REPUDIAMOS, assim, veementemente, quaisquer organizações e movimentos extremistas que possam perturbar o processo democrático.Vinculações desse tipo seriam um desrespeito à tradição liberal e progressista que marcou o Império e que nos cabe preservar.

Assinam:D.Pedro Gastão de Orleans e Bragança; D.Pedro Carlos, D. Maria da Gloria, D. Afonso, D. Manuel,Cristina, D. Francisco,D.João Maria e D. João Henrique de Orleans e Bragança.

Sabóia-Bandeira de Mello

terça-feira, 5 de junho de 2012

Poder Legislativo não deve revogar decisões judiciais

O grande orador romano, Cícero, cunhou o emprego de uma expressão que, por muito tempo, representou o topos determinante da relação dos seres humanos com o seu passado: “historia magistra vitae” (A história é a mestre/professora da vida). Baseado em modelos helenísticos, ele afirmava que o orador é capaz de produzir um sentido de imortalidade para a história, articulando-a como instrução para a vida, mostrando para o seu auditório, a partir de uma coleção de exemplos vivenciados no passado, como é possível aprender com a experiência histórica. Nem é preciso dizer o que Marx e Hegel diziam sobre a história. A ave de Minerva só levanta voo ao anoitecer…

Trata-se, aqui, de perceber certo sentido pedagógico para a história; um sentido prático, efetivo, baseado na ideia de que é possível se instruir por meio dela. Em uma rápida síntese, poderíamos reduzir o conteúdo dessa afirmação em torno da intuição elementar de que os acertos do passado devem ser repetidos; os erros, evitados.

Pois no texto desta semana, sem embargo das inúmeras discussões que emergem do que foi dito acima, pretendo estabelecer contato com essa tradição que coloca a história nesse nível mais concreto (homenageio, aqui, os professores Martonio Barreto Lima, Gilberto Bercovici e Marcelo Cattoni), que nos possibilita captar aquilo que a experiência efetiva dos acontecimentos tem para nos ensinar a decidir melhor diante de todas as possibilidades que o futuro nos apresenta enquanto projetos.

Isso porque, um fato recente — a assombrar o Direito Constitucional brasileiro — pode nos colocar diante de uma situação em que teremos de saber se vamos adiante, com algum grau de acerto ou se, em contrapartida, iremos retroceder para o tempo do Estado de Polícia (Polizeistaat).

A análise aqui posta poderia ser realizada através de diversas perspectivas: poderia analisá-la, por exemplo, pela via da teoria do discurso habermasiana. Também poderia olhá-la através da lente do constitucionalismo garantista de Luigi Ferrajoli. Ou, à luz de qualquer teoria que trata da autonomia do direito e da força normativa da Constituição. Em todas essas hipóteses, a preocupação norteadora da investigação seria a questão democrática. Nestas reflexões, entretanto, opero com uma análise hermenêutica do problema (Crítica Hermenêutica do Direito), procurando encarar a questão desde aquilo que venho desenvolvendo enquanto teoria da decisão judicial.

Convém destacar, ainda a título introdutório, que a comunidade jurídica não tem dado a devida atenção à matéria, mantendo um distanciamento preocupante com relação à necessária crítica que deve ser desferida, já no seu nascedouro, à questão (por isso, repito a frase de uma das Colunas anteriores, em uma imitatio de Martin Luther King: não me preocupa o pensamento geral da comunidade jurídica; o que me preocupa é o silêncio dos bons!). Refiro-me à PEC 3/2011, aprovada no dia 25 de abril de 2012 pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Nos termos do projeto, quer-se dar nova redação ao inciso V do artigo 49 da CF que define as competências do Congresso Nacional. A alteração modificaria a competência atribuída ao Congresso de sustar atos normativos do Poder Executivo que extrapolem sua competência regulamentar ou os limites da delegação legislativa.

O novo texto substituiria a expressão “Poder Executivo” por “Outros Poderes”, deferindo ao Legislativo a possibilidade de sustar atos decisórios do Poder Judiciário que adentrem na seara da inovação legislativa “criando” (sic) uma regra jurídica nova.

Efetivamente, nada é gratuito. Não é difícil perceber que esse sucesso inicial da referida PEC na CCJ da Câmara representa um sintoma da patologia que vem se alastrando no Judiciário brasileiro. Trata-se de um “troco” do Legislativo ao Judiciário… Sintomas, à evidência, do “estado de natureza interpretativo” que se estabeleceu no Judiciário deterrae brasilis, onde cada um decide como quer, inventam-se princípios, aplicam-se teses sem contexto, além da “escolha” que tribunais fazem acerca de “cumprir a lei ou não cumprir a lei”… Isso para dizer o mínimo.

É claro que isso nem sempre foi assim. Nossa história constitucional é marcada por longos períodos ditatoriais e alguns poucos suspiros democráticos. Se lermos, por exemplo, a literatura que trata da República Velha, podemos nos indagar: como foi que sobrevivemos?[1] O maior período de estabilidade institucional e funcionamento das instituições democráticas é o atual. Alvíssaras! Mas, é preciso dizer para as gerações mais jovens, nem sempre foi assim. Um famoso livro, escrito por Aliomar Baleeiro ainda na década de 1960, pode nos auxiliar nessa reflexão. O livro se chama O Supremo Tribunal Federal, esse Outro Desconhecido.

O sugestivo título apontava para dois fatores internamente implicados: em primeiro lugar, ao descobrimento que o seu autor, ainda infante, teve desse importante órgão de nossa República. Nas eleições presidenciais de 1919, peleavam Rui Barbosa e Epitácio Pessoa. A Bahia, de Rui e Aliomar, estava em polvorosa e havia grande temor de que as autoridades do estado impedissem a manifestação e circulação dos correligionários políticos de Rui. Muitos familiares de Aliomar estavam entre essas pessoas. Um dia, a família do jovem Aliomar despertou festejante: o Dr. Rui havia conseguido, perante o Supremo Tribunal Federal, uma ordem de Habeas Corpus, que garantia a liberdade de expressão e a circulação de seus partidários políticos. Assim, o Supremo Tribunal Federal — até então um Outro Desconhecido — aparece para Aliomar como o garantidor dos direitos e das liberdades individuais.

O segundo fator, mais fácil de ser reconhecido, deve-se a intenção de Baleeiro de apresentar para a comunidade política esse Órgão que, na história brasileira, mantinha certa descrição institucional até 1988. De se dizer, até 1988 — com um frágil sistema de fiscalização de constitucionalidade e sem efetiva democracia — o STF desempenhava um papel, até certo ponto, coadjuvante no cenário político nacional. No nosso contexto atual, a realidade é bem distinta.

O STF protagoniza, diuturnamente, questões que afetam interesses políticos nacionais. Já não pode ser um “Outro Desconhecido”; mais do que isso, o Supremo Tribunal é hoje um “ex-desconhecido”. E isso decorre, em princípio — e há que se reconhecer isso — de um fator de consolidação de nossa democracia. Sendo mais claro: em uma democracia constitucional é necessário que exista um Judiciário forte, que funcione como efetivo garantidor dos direitos fundamentais e das regras do jogo político que são estatuídas pela Constituição. Nesse sentido, basta ver o que escreve Alexis de Tocqueville, em seu A Democracia na América, sobre as funções da Suprema Corte e a democracia estadunidense.

Nos últimos anos o STF tem participado, cada vez mais incisivamente, da vida política nacional. Isso deveria ser alvissareiro uma vez que — como veremos a seguir — a existência de um Poder Judicial independente que funcione como efetivo garantidor dos direitos fundamentais é um marco definidor de um Estado Democrático de Direito. Vale dizer, em uma democracia constitucional, o Judiciário tende a aparecer mais porque as demandas pela concretização de direitos (civis, políticos e sociais) são efetivamente reconhecidas pelo Estado e a sua proteção cabe, efetivamente, ao guardião da Constituição.
Todavia, em diversos casos, o STF adentra nas veredas da política proferindo decisões que acabam sendo, numa análise rigorosa, estritamente políticas (e, com isso, indiretamente incentiva as demais instâncias a fazerem o mesmo).

Um aviso: por certo que o papel de Tribunal guardião da Constituição desempenha uma atividade que, numa perspectiva mais geral, encontra uma justificativa política. Quando afirmo e defendo, a partir de Dworkin e da matriz hermenêutica, a autonomia do direito e a necessidade de que as decisões judiciais sejam decisões de princípios e não de política, não quero — e nunca quis — afirmar uma separação exclusivista entre direito e política. Como afirma Dworkin em seu Levando os direitos a sério, a justificativa mais geral e abrangente para o direito é política uma vez que, dessa justificativa, deriva a “doutrina da responsabilidade política” que rege a jurisdição constitucional. Nos termos da doutrina da responsabilidade política, os juízes têm para si o dever de, no momento da decisão judicial, decidir conforme o direito segundo argumentos de princípios e não argumentos de política.

Repitamos isso, com vagar: argumentos de princípios e não de política! Esse é o ponto fundamental da questão: a responsabilidade política dos juízes se materializa na produção de decisões segundo o direito (na coluna passada, que pode ser acessada aqui, expliquei o que entendo por direito). Insisto: juiz não escolhe; juiz decide! Explicitando melhor: discussões que envolvem projetos futuros, bem-estar social, consequências que resultaram da aplicação do direito em questão, não são decisões que pertencem à esfera do Judiciário, mas que devem ser tomadas pelos meios políticos adequados (legislativos e/ou executivos). No Judiciário devemos levar o direito a sério, decidindo segundo argumentos de princípios.

Assim, é de se perguntar: qual o argumento de princípio que sustenta a decisão exarada pelo Pretório Excelso no julgamento da ADI 4.029/DF que julgava a constitucionalidade da Lei 11.516/2007 resultante da conversão da Medida Provisória 366/2007 que criou o “Instituto Chico Mendes”? Na ocasião, o STF reconheceu que a medida não havia cumprido o que determina o parágrafo 9º do artigo 62 da CF (submissão a uma comissão mista de deputados e senadores para avaliar o cumprimento dos requisitos da urgência e relevância). Na mesma ocasião, verificou-se, ainda, que muitas outras medidas provisórias (estima-se que mais de 400) haviam sido convertidas em lei sem que o parágrafo 9º do artigo 62 tivesse sido observado no decorrer do processo legislativo. Logo, haveria aqui uma enxurrada de leis que tiveram origem pelo procedimento de conversão de medidas provisórias, vigendo entre nós em regime de flagrante inconstitucionalidade formal.

A decisão do Supremo Tribunal, apesar de reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 11.516/2007, operou uma modulação de efeitos pro futuro, para que os efeitos da pronúncia de nulidade viessem a ocorrer depois de 24 (vinte e quatro) meses…! A decisão atingiu, ainda, outras tantas leis que tiveram o mesmo vício de procedimento que acometia a lei do instituto Chico Mendes. Nos termos do voto do ministro relator Luiz Fux: “No que atine à não emissão de parecer pela Comissão Mista parlamentar, seria temerário admitir que todas as leis que derivaram de conversão de Medida Provisória e não observaram o disposto no art. 62, § 9º, da Carta Magna, desde a edição da Emenda 32 de 2001, devem ser expurgadas ex tunc do ordenamento jurídico. É inimaginável a quantidade de relações jurídicas que foram e ainda são reguladas por esses diplomas, e que seriam abaladas caso o Judiciário aplique, friamente, a regra da nulidade retroativa”.

Vê-se que, neste caso, o Judiciário decidiu segundo padrões estritamente políticos, a partir de argumentos utilitaristas/consequencialistas. No limite, é possível dizer que a discricionariedade judicial chegou a tal magnitude que, para todos os efeitos, foi suspensa a vigência do parágrafo 9º do artigo 62 (estado de exceção?), na medida em que medidas provisórias convertidas em lei sem sua efetiva observância foram convalidadas pelo referido acórdão, caso em que a Corte se transformou em uma espécie de poder constituinte derivado de fato, alterando formalmente o texto constitucional. Alguém dirá: e querias que o STF fizesse o quê? A resposta é simples: as decisões do STF valem também por seu aspecto simbólico, às vezes mais do que real… O que quero dizer é que os efeitos colaterais desse tipo de decisão podem ser perniciosos à democracia, coisa que, no mínimo, deveria ter sido frisada, com letras garrafais, nos votos dos ministros. Mas, não vi nada disso. Não vi qualquer “blindagem” contra a proliferação do vírus.

Há casos em que a discussão envolve questões de princípios — reconhecimento de direitos — só que os fundamentos lançados pelos ministros em seus votos apontam para o fato de que a decisão foi pautada em argumentos de política e não de princípios. Veja-se o caso da ADI 4.424/DF, que questionava dispositivos da chamada “Lei Maria da Penha”. No caso, o STF alterou – via interpretação conforme a Constituição (na verdade, o correto teria sido utilizar a Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung, ou seja, uma nulidade parcial sem redução de texto) – a ação penal do crime de lesão corporal tutelado pela lei, estabelecendo que, nos casos em que o crime for cometido no âmbito da violência doméstica, a ação penal seria pública incondicionada (e não condicionada à representação, como se previa anteriormente).

Nesse caso, não estou preocupado — para efeitos destas reflexões — com o mérito do julgamento (se existia ou não argumentos de princípio a sustentar essa sentença interpretativa da Corte). Preocupa-me, sobremodo, o fato de que, em inúmeros votos, os ministros mencionaram o fato de que as estatísticas sobre a violência doméstica são “alarmantes”, estando a necessitar de um meio mais rigoroso de persecução criminal. Pergunto: manejar estatísticas e planejar ações futuras não seria tarefa pertencente ao âmbito da política legislativa? Seria esse um argumento jurídico suficiente para adicionar um sentido à lei?

Também no emblemático julgamento da ADI 3.510/DF — no interior do qual o atual presidente do tribunal, ministro Carlos Ayres Britto, chegou a afirmar que o STF teria se tornado uma “casa de fazer destinos” — os mais diversos votos enveredaram para a discussão de questões que são alheias à atividade de concretização de direitos que a função contramajoritária da Corte Constitucional comporta. No caso, o próprio voto do ministro relator já citado acima, questiona — numa perspectiva ontológica clássica até — o que é a vida, ou seja, uma espécie de reificação do conceito de vida. Anota-se que, nos termos da CF, os juristas e o Judiciário podem divergir sobre o direito a vida, seu exercício, sua plenitude, etc. Entretanto, parece-me exagerado deixar a uma Corte — composta por 11 ministros — a definição do que seja a vida.

Esse tipo de discussão envolve vários atores sociais, de várias especialidades que não podem ser submetidas ao estrito espaço do Poder Judiciário. De se perguntar: se a decisão incorporasse no dispositivo uma definição de vida, esta faria coisa julgada? Estaria a comunidade científica vinculada à definição determinada pelo Judiciário? E poderia, aqui, ainda, apresentar um elenco considerável de questões de política decididas pelo STF. Todos sabem.

O STF não tem culpa de essas questões a ele serem submetidas. Isso é óbvio. O problema é que não conseguimos, ainda, fazer um diagnóstico acerca das razões pelas quais isso vem sendo assim. De certo modo, o STF acaba tendo que atender às demandas de vários segmentos, como que a institucionalizar uma espécie de “coalização político-judiciária”, repetindo, no mínimo como metáfora, o modelo de presidencialismo de coalização do Poder Executivo: veja-se, nesse sentido, os diversos grupos que leva(ra)m as suas reivindicações ao Tribunal Maior — demarcação de terras indígenas, a questão das cotas, a questão do aborto, as questões homoafetivas, embriões, demandas coletivas de saúde, etc.

Suas “reivindicações” foram atendidas pelo Judiciário (e não pelo Executivo ou o Legislativo). Há, nisso, porém, um ponto problemático: mesmo atendendo a todas essas demandas, por assim dizer, populares-sociais, a Suprema Corte chega às vésperas do julgamento do Mensalão ainda com problemas que, de um modo ou de outro, arranham a sua legitimidade (discussão sobre rito, pressões acerca da conveniência da data de julgamento, risco de prescrição — este considerado o mais sério problema, além do velho problema, já não relacionado ao processo do Mensalão, decorrente das ações penais originárias, que até hoje resultaram em apenas uma condenação, etc).

Enfim, todas essas questões apontam para um acentuado protagonismo do STF no contexto político atual. Nos termos propostos Ran Hirschl (Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitucionalism), esses exemplos são demonstrativos de que nosso grau de judicialização atingiu a mega política (ou, a política pura, como o autor gosta de mencionar). Por certo que este fenômeno não é uma exclusividade brasileira. Há certa expansão do Poder Judiciário a acontecer, em maior ou menor grau, em um cenário mundial. O próprio Hirschl apresenta situações nas quais as decisões, tradicionalmente tomadas pelos meios políticos, acabaram judicializadas, como no caso da eleição norte-americana envolvendo George W. Bush e Al Gore; a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre o papel da Alemanha na Comunidade Europeia, e o caráter federativo do Canadá.

Todos esses fatores deveriam produzir uma autorreflexão — uma espécie de catarse — por parte do Poder Judiciário sobre as suas decisões. É por isso que insisto: precisamos desenvolver/implementar uma Teoria da Decisão Judicial. Urgentemente. E, antes que alguém critique a falta de soluções, quero dizer que, em Verdade e Consenso, proponho uma Teoria da Decisão. Esse é o projeto da Teoria do Direito contemporânea que responde à necessidade de se construir anteparos para a autoridade judicante, na perspectiva de tornar mais democrático o Poder Judiciário. Na verdade, a intensidade da judicialização da política (ou de outras dimensões das relações sociais) é a contradição secundária do problema. A grande questão não é o “quanto de judicialização”, mas “o como as questões judicializadas” devem ser decididas. Este é busiles. A Constituição é o alfa e o ômega da ordem jurídica. Ela oferece os marcos que devem pautar as decisões da comunidade política. Uma ofensa à Constituição por parte do Poder Judiciário sempre é mais grave do que qualquer outra desferida por qualquer dos outros Poderes, porque é ao Judiciário que cabe sua guarda.

Nesse contexto, aproveito o ensejo dessa discussão para esclarecer uma dúvida que cerca os leitores de minha obra. Como sintoma, cito um Congresso realizado além-mar, em que um ex-ministro do STF chegou a dizer que minha teoria seria uma “proibição de os juízes interpretarem as leis” (sic). Ora, ora (e ora!). Indago: fosse eu um defensor do positivismo exegético (sintático, primitivo ou paleojuspositivismo — vejam os diversos nomes que essa “coisa” foi adquirindo), não deveria eu, por coerência, defender a PEC 3/2011? Elementar. Claro. E fácil. Afinal, o Legislativo, como no exegetismo francês do século XIX, é que passaria a cuidar da perfeita obediência à “letra da lei”…! Pois, então, que de agora em diante fique bem claro que não há resquícios de exegetismo em minha obra (alguns chegam a me acusar de “originalista” – sic [e sic] – ao modo norte-americano).

Vou deixar isso mais claro, na “forma da lei e da Constituição”. Com efeito, para um exegeta, certamente seria uma tarefa possível de ser levada a cabo pelo Legislativo a análise da validade das decisões judiciais, na medida em que a aplicação seria um processo mecânico, derivado da interpretação que o órgão judicante — previamente — faz do direito legislado. Bastaria identificar em que lugar o Judiciário deixou de proceder mecanicamente para corrigir o “erro” identificado… e, bingo, alterar-se-ia a decisão (nem quero falar aqui do problema da subsunção, na medida em que tem muita gente que ainda acredita que “casos fáceis se resolvem por subsunção” — sic — e “casos difíceis por ponderação” — sic). Todavia, na hermenêutica, sabemos, de há muito (mas de há muito tempo mesmo), que a interpretação é um ato construtivo. No campo hermenêutico, qualquer iniciante que tenha sobrevivido à mediocridade do senso comum, sabe da existência da ultrapassagem da Auslegung (reprodução de sentido) para a Sinngebung(atribuição de sentido). Deriva ela da compreensão, que é um existencial, cuja função é abrir para o intérprete a possibilidade da interpretação.

Sim, não interpretamos para compreender. Ao contrário, compreendemos para interpretar. Também a interpretação não acontece em tiras (as três subtilitas — intelligendi, explicandi e aplicandi — estão superadas). Ela se manifesta na applicatio (aplicação). Por isso, fundamentação e decisão são co-pertencentes. Ninguém fundamenta primeiro para depois decidir, simplesmente porque, no momento em que decide, já aconteceu a fundamentação. Esse é o círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel), que quer dizer que, de algum modo, o intérprete sempre está à frente de si mesmo, porque a sua condição de existente antecipa sentidos. Definitivamente, a interpretação não é um ato de vontade. Mas, não é mesmo. A partir da hermenêutica, enfim, da Crítica Hermenêutica do Direito, nem de longe é possível dizer isso.

Sigo. O “controle” das decisões é um controle que se opera hermeneuticamente. Aquele que interpreta deve (de)mo(n)strar que sua construção é a melhor segundo o direito da comunidade política. Aqueles que são destinatários da interpretação, por sua vez, têm o dever de questioná-la, apontando os fracos argumentos e as construções mal alicerçadas. Essa é a tarefa que venho chamando, há algum tempo, de “constrangimento epistemológico”, cujo ator jurídico fundamental é a Doutrina. Por isso que, em hipótese alguma, podemos admitir uma doutrina que, diante das decisões dos mais diversos tribunais, assume uma postura de “imparcialidade”, apenas descrevendo as posições que estão na última moda, sem questionar, na sua raiz, os argumentos apresentados pelo Poder Judiciário — na verdade, isso nem é imparcialidade; é, sim, servilismo! Sendo mais claro: a doutrina deve doutrinar!

Outro ponto absolutamente fundamental desse controle hermenêutico das decisões é a exigência de que elas sejam proferidas de forma consistente, segundo critérios de integridade da jurisprudência. É absolutamente inadmissível que, em um dia, o STJ entenda (defina?) o princípio da insuficiência de um modo (negando REsp em um caso de furto de R$ 84) e, não muito depois, explicite-o de outro modo (trancando, via Habeas Corpus, uma ação penal em uma sonegação de tributos de mais de R$ 3 mil); ou que uma Turma daquela Corte afirme a validade do artigo 212 do CPP e outra a negue, sem qualquer menção à jurisdição constitucional. Como é possível que um tribunal negue a validade de uma lei votada democraticamente sem utilizar — e fixo-me na questão do princípio-sistema acusatório — uma argumentação constitucional? Trata-se de uma exigência de equanimidade (fairness, como quer Dworkin), no sentido de que todos os cidadãos recebam tratamento igualitário quando buscarem a tutela jurisdicional. É o mínimo que se quer em uma democracia.

E como se faz isso? Trabalhando com algo que se chama de “Teoria da Decisão”. Nesse sentido, permito-me aqui, mais uma vez — até porque aqui não há espaço para desenvolver amiúde uma questão tão complexa[2] — remeter os leitores interessados nesta discussão para o meu Verdade e Consenso, assim como para livros como Decisão Judicial e o Conceito de Princípio, de Rafael Tomaz de Oliveira, Levando o Direito a Sério, de Francisco Borges Motta, Crítica à Aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro, de Mauricio Ramires, Fundamentos para uma Compreensão Hermenêutica do Processo Civil, de Adalberto Narciso Hommerding, Elementos de uma Teoria da Decisão Judicial, de Orlando Faccini Neto e Hermenêutica Jurídica Heterorreflexiva, de Walber Araujo Carneiro, todos críticos em relação ao ativismo e à discricionariedade, demonstrando uma preocupação com o controle das decisões judiciais, a partir daquilo que hoje é chamado de CrÍtica Hermenêutica do Direito.

Por isso tudo, é preciso separar alho de bugalhos. Se é certo que a atividade jurisdicional deve ser exercida segundo uma rigorosa fundamentação e se é certo que é necessário problematizarmos, pela via da teoria do direito, os limites interpretativos de modo a construir anteparos para a atividade jurisdicional, também é igualmente verdadeiro que esses limites não podem — de forma alguma — ser feitos por um outro Poder da República, como que a repristinar um perigoso “controle político” do poder judiciário, como o constante no art. 96 da Constituição de 1937 (a nossa “polaca”). O relevante controle das decisões judiciais — que, registre-se, é uma necessidade democrática — deve ser hermenêutico e de forma alguma poderá ser aceito um controle político das decisões.

Voltemos a Cícero: Historia magistra vitae. A experiência do constitucionalismo — que é um processo histórico com raízes no século XI, permeado de lutas sociais e teóricas — nos legou muitas coisas: a independência do Parlamento, as limitações ao poder do Rei e a definição de Estado de Direito (Rechtstaat), são algumas dessas importantes contribuições. Esse mesmo processo histórico — e, insisto nisso, o constitucionalismo é essencialmente histórico — ofereceu um reforço que acentuou ainda mais a ideia de Estado de Direito, a partir da afirmação de um Estado Constitucional (Verfassungstaat). Quando falamos em limitação do poder e democracia, um grande ensinamento do passado nos diz que o elemento central, para o Estado de Direito (ou, se preferirem, Estado Constitucional) é exatamente a independência do Poder Judiciário.

Sim, a independência do Poder Judiciário é uma conquista democrática. Parece óbvio isso, mas há que se comunicar esse óbvio ao Parlamento. Conquista, sim, porque não foi o resultado de uma autorização cartorial. Muito mais do que isso, por oito séculos a humanidade lutou para construir os mecanismos de limitação de poder com os quais hoje estamos habituados. Para enfrentarmos os perigos de um governo dos juízes ou de uma juristocracia, precisamos de uma consistente teoria do direito e agentes jurídicos aptos a trabalharem na construção de bons argumentos e na desconstrução dos argumentos ruins.

Sendo bem mais claro: em hipótese alguma, a juristocracia pode ser vencida pela instituição de uma espécie tardia de Polizeistaat. Nesse caso, o problema apenas mudaria de endereço na praça dos três poderes: do Poder Judiciário em direção ao Congresso Nacional. Ou seja, se o ativismo do Poder Judiciário se mostra perigoso ao ponto de o Poder Legislativo pretender limitá-lo via EC 3, não é a simples transferência do polo de tensão para o Poder Legislativo que resolverá a “questão da democracia”. Ao fim e ao cabo, a PEC 3, apontando de volta para o século XIX, não merece mais do que uma onomatopéia que é dita pressionando a língua entre os dentes.

Numa palavra final: para resolver os problemas do ativismo judicial, da vontade de poder (Wille zur Macht) ou do voluntarismo, não precisamos voltar ao hermetismo do século XIX, como querem os parlamentares que aprova(ra)m a PEC 3 na CCJ. Para tirar a água suja, há que se cuidar para não jogar a criança junto… E nem vamos resolver o problema da traição tirando o sofá da sala… Não podemos nos comportar como o sujeito que, tendo perdido o relógio, pôs-se a procurá-lo debaixo de um poste de luz, longe do lugar da perda…porque ali era mais fácil!

Podemos fazer melhor do que isso. Mas, para tanto, necessitamos, primeiro, entender que o direito é um fenômeno complexo (insisto, pois, na luta contra os “simplificadores” e os adeptos de argumentos prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler). Para isso, temos que estudar o processo histórico e como se forjou o positivismo, respondendo perguntas como “o que é isto, um paradigma”, “o que é isto, a autonomia do direito”, “o que é isto, o solipsismo judicial”, “o que é isto, o discricionarismo”…

E, assim, entender que a pretensão de controlar as decisões a partir de uma teoria da decisão, não é, nem de longe, proibir a interpretação… Autores que dedicaram a vida a estudar esse fenômeno e a criticar o solipsismo (graças ao qual se espalha o mantra de que “sentença vem desentire” e que a decisão é um ato de vontade), como Dworkin, Habermas, Gadamer, Luhmann, para falar apenas destes, não podem ser tidos como ingênuos, imbecis, mal-intencionados, autoritários ou, quiçá, “conspiradores contra a independência do poder judicial”…

Em alguma coisa essa gente está(va) certa, pois não? E não consta que o direito esteja blindado às teorias sofisticadas como a desses autores (na verdade, o que há de melhor em termos de teoria do direito passa, indubitavelmente, por esses autores). Peço, pois, que lhes sejam dadas ao menos algumas migalhas de vossa confiança. Sim, peço um crédito de confiança. Não a mim, mas a eles!

POR LENIO LUIZ STRECK