domingo, 30 de março de 2014

Por que não se resolve a desigualdade social no mundo?


Desigualdade nós sabemos que existe em todo o planeta. Mas por que não se encara o problema e qual é o papel das empresas em relação a isso?   

As empresas representam um dos setores mais poderosos e organizados da sociedade, cujas receitas ultrapassam, muitas vezes, o de países inteiros. No Brasil, não é diferente. Uma pesquisa pouco divulgada no Brasil, mas publicada na revista Forbes Brasil de 30 de janeiro, mostra a força das corporações no país.

O estudo Quem São os Proprietários do Brasil?, realizado pelo Instituto Mais Democracia (IMD) e pela Cooperativa Eita – Educação, Informação e Tecnologia para Autogestão sobre o poder dos grupos privados no país, apontou que a maior parte do poder econômico privado nacional está sob controle do grupo espanhol Telefônica, do fundo de pensão Previ (dos funcionários do Banco do Brasil), do grupo Telemar, do grupo Bradesco e dos negócios da família Gerdau. Foram considerados apenas grupos privados. Não fosse isso, a União seria considerada pelo estudo o maior poder econômico nacional.

Essas quatro empresas juntas possuíam, em 2011, um “poder acumulado”, isto é, de controle e participações em empresas e negócios, de mais de R$ 400 bilhões, um pouco abaixo do que o “poder acumulado” da União nesse mesmo ano, calculado em R$ 460 bilhões, somando as participações no BNDES e o controle das estatais.

Por aí se vê que o setor privado pode desempenhar um papel fundamental para pavimentar o caminho de uma sociedade mais justa e sustentável. E, em nosso país, as empresas têm dado sua contribuição para a superação de nossas mazelas tradicionais. Os avanços obtidos no combate à pobreza e na promoção de uma melhor qualidade de vida para todos são importantes e reconhecidos internacionalmente.

Todavia, a desigualdade social persiste. O Brasil ainda é o quarto país mais desigual da América Latina, segundo levantamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2013. A Guatemala é o mais desigual, seguida por Honduras e Colômbia. Depois vêm Brasil, República Dominicana e Bolívia.

No ranking do Pnud, os países com menor desigualdade são Venezuela, Uruguai, Peru, El Salvador, Argentina, Equador e Costa Rica, por exemplo.

Maior risco para o mundo

Se serve de consolo, a desigualdade social não é um problema só nosso. O próprio Fórum Econômico de Davos apontou, no início deste ano, o agravamento da desigualdade social como o maior risco para o mundo, em 2014. Em seu relatório Riscos Globais 2014, elaborado por 700 especialistas, a entidade ressaltou que a crônica disparidade entre as rendas dos cidadãos mais ricos e as dos mais pobres representa o maior risco para o mundo na próxima década. E, como essa desigualdade não vem sendo atacada de frente pela maioria dos países, os efeitos tendem a ter seu alcance ampliado nos próximos anos.

Também em Davos, a Oxfam, uma confederação de 13 organizações e mais de 3.000 parceiros, que atua no combate à pobreza em 100 países, divulgou um estudo no qual informou que apenas 85 multimilionários detêm um patrimônio igual à soma do patrimônio de 3,5 bilhões pessoas no planeta – o equivalente a US$ 1,7 trilhão. Um seleto grupo de 1.426 indivíduos acumula um patrimônio de valor líquido de US$ 5,4 trilhões.

O relatório, denominado Trabalhando para Poucos, afirma também que a riqueza pertencente ao 1% mais rico da população mundial – ou seja, 70 milhões de pessoas – equivale a US$ 110 trilhões.

Ele mostra ainda que sete em cada dez pessoas nasceram em países cuja desigualdade aumentou nos últimos 25 anos e apenas três em em cada dez, em nações onde a desigualdade diminuiu.

Esse relatório da Oxfam quase não foi divulgado aqui no Brasil, na época de seu lançamento, em janeiro. E ele faz elogios aos esforços do país e de alguns outros emergentes, como a Argentina e o México, para o declínio da desigualdade.

Outro fato interessante ressaltado pelo estudo da Oxfam é que, numa pesquisa feita em seis países – Brasil, Espanha, Índia, África do Sul, Grã-Bretanha e Estados Unidos – sobre leis e justiça, o resultado apontou que a maioria dos entrevistados acredita que as leis são distorcidas em favor dos ricos. A porcentagem foi maior na Espanha, onde oito em cada dez pessoas têm esse entendimento.

É possível enfrentar as desigualdades do mundo?

A Oxfam fez essa pergunta aos especialistas que conduziram o estudo e a resposta deles foi: sim, é possível. E quanto mais os países acertarem políticas globais de enfrentamento do problema, mais rápido a desigualdade diminuirá. Eles sugeriram algumas medidas, tais como:

* Criação, no mundo todo, de impostos progressivos sobre patrimônio e renda;

* Luta por maior transparência do sistema financeiro internacional;

* Protocolos internacionais que regulamentem o sigilo financeiro, de modo a evitar sonegação de impostos e paraísos fiscais;

* Regulação maior dos mercados para promover crescimento sustentado;

* Diminuição dos poderes dos ricos de influenciar em processos políticos; e

* Estabelecimento de uma meta global de redução da desigualdade extrema em todos os países.

O combate à desigualdade esteve presente nas discussões da Organização das Nações Unidas (ONU) quando, em 2000, os países-membros adotaram os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Agora, a ONU se debruça sobre o estabelecimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que devem ser metas adotadas pelos países após 2015, quando se encerra o período de cumprimento dos ODM.

Para quem não sabe, os ODS vão representar uma nova agenda de metas para os países, que vai começar a valer a partir de 2016, em substituição aos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O documento final da Rio+20, denominado O Futuro que Queremos, apontava para o estabelecimento de metas favoráveis ao desenvolvimento sustentável, tais como acesso universal à energia sustentável, água limpa para todos, enfim, um conjunto de objetivos concisos, de fácil compreensão, que possam ser desdobrados em ações de desenvolvimento humano e combate à pobreza.

E o Brasil?

Muitas das medidas sugeridas pela Oxfam têm feito parte dos debates no Brasil a respeito de uma agenda nacional de desenvolvimento sustentável. O país possui um grande potencial que precisa ser utilizado a favor da construção de outro modelo de economia, que favoreça a distribuição das imensas riquezas que possuímos e produzimos.

Uma reforma fiscal de incentive setores da nova economia, por exemplo, vinculada à construção de serviços públicos de qualidade, dará, sem dúvida, um grande impulso ao combate à desigualdade. Outra possibilidade é a promoção de um setor dedicado ao manejo sustentável e à conservação dos chamados serviços ambientais, que garantam, por exemplo, o abastecimento de água para as grandes cidades.

Outras ações de combate à desigualdade podem contar com a participação ativa das empresas. Por exemplo: o estímulo ao empreendedorismo social; a promoção de políticas internas e externas (nos fornecedores, por exemplo) de valorização racial e de gênero; o cumprimento da Lei do Aprendiz, que garante formação profissional e futuro para milhões de jovens; acordos com comunidades para uso de insumos vindos da natureza; e o estabelecimento de diálogo constante com as partes interessadas, pois isso permite incluir no planejamento estratégico, bem como nos processos, produtos e serviços, as demandas que elas têm.

A criatividade empreendedora também pode inventar novas iniciativas que contribuam para tornar o Brasil um país mais igual. O que não se pode perder de vista é que desigualdade social faz mal aos negócios e às empresas, porque torna o ambiente desequilibrado, com poucas oportunidades e muito risco para investimento.

Jorge Abrahão 

terça-feira, 4 de março de 2014

O movimento das “Diretas Já” e a construção do STF


Há um consenso em se concluir que o Supremo Tribunal Federal não é mais o mesmo. Muito se discute acerca dos atuais problemas na imagem que o STF construiu nos últimos anos, seja no seu papel de protagonista político, seja na postura de seus componentes, seja na forma como algumas decisões são proferidas.

O atual STF (e sua consequente imagem) se alicerça em um espaço de poder historicamente ocupado no Brasil pela figura do presidente da República. Esta entidade onipresente, que sempre se plasmou na fusão da instituição com a imagem da pessoa que a ocupava, serviu, desde os tempos imperiais, como mola-mestra dos destinos da República.

Com o olhar retrospectivo, torna-se mais claro concluir que a edificação da democracia no país somente seria possível com o recuo da centralidade do Poder Executivo, de forma que o hiato deixado pudesse ser preenchido pela representação popular e institucional do Legislativo. Por várias razões isso acabou não ocorrendo da maneira esperada e chegamos aos 25 anos da Constituição de 1988 com um Congresso retraído. O STF, na inércia da primazia linguística dos direitos fundamentais e do Estado Constitucional, ganhou corpo e autoridade e hoje rivaliza com o Executivo na responsabilidade com a própria governabilidade do país.

Como isso se deu na história recente do país? Para além das explicações insuficientes da filosofia do Direito Constitucional, é fundamental rememorar fatos e eventos políticos que alteraram o curso da história e ajudaram a produzir o ambiente institucional que hoje se tem no país. Os limites à autoridade do Poder Executivo passaram a ter novo enredo a partir da década de 1980.

Comemoraremos nos próximos dias 10 e 16 de abril, 30 anos de realização no Rio de Janeiro e em São Paulo dos comícios-símbolos do movimento das “Diretas Já”. Há uma tendência em estudar as “Diretas Já” como um evento preparatório para os trabalhos constituintes de 1987-1988 e, por assim dizer, reduzir a sua importância política. Em realidade, o movimento das “Diretas Já”, além de ser a maior manifestação popular-pública da história do país, é também o ponto de inflexão da separação de poderes, o big bang de nossa etapa democrática.

Sob essa perspectiva, a Constituição de 1988 é também o resultado de um novo arranjo de forças políticas que se tornou possível e viável a partir do decadente paradigma cuja ruína se acelerou com as “Diretas Já”. De fato, o enfraquecimento do Regime Militar e a gradual abertura política do país podem ser associados à convergência de vários eventos igualmente decisivos: a revogação do Ato Institucional nº 5, o restabelecimento da imunidade parlamentar e a reestruturação do sistema partidário com a Emenda Constitucional 11, de 13 de outubro de 1978 (artigos 1º — com alteração do artigo 32 e 152 da Constituição de 1967/1969 — e 3º); a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia); as eleições diretas para governadores em 15 de novembro de 1982, com a vitória do PMDB em São Paulo e em Minas Gerais e do PDT no Rio de Janeiro (com Franco Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola); as consequências dessa eleição para a composição do Colégio Eleitoral em janeiro de 1985; a Aliança Democrática; a crise econômica grave durante o Governo Figueiredo com recessão de 1981 a 1983 e aumento da inflação e da dívida externa; a greve de 1978 do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a renovação do movimento sindical com a fundação da CUT.

Entretanto, é o movimento das “Diretas Já” que melhor representou o processo de redemocratização e restrição aos poderes do Regime Militar. Em um misto de insatisfação, paixão e esperança, as “Diretas Já” deixaram como legado a ideia subliminar — fundamental em uma democracia — de que o povo se organiza e se manifesta quando a situação chega a um limite político-econômico (o estado de “calamidade total” de que falou Teotônio Vilela na famosa entrevista ao programa Canal Livre em novembro de 1982).

A Folha de S. Paulo de 17 de abril de 1984 descreveu a espontaneidade e sinceridade do movimento que foi se fortalecendo desde março de 1983 em uma imprevisível dinâmica de formação de consenso que chegou ao seu ápice no Vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984: “Mais de um milhão de pessoas em silêncio, mãos entrelaçadas, braços para cima. Ao sinal do Maestro Benito Juarez, da Orquestra Sinfônica de Campinas, a multidão cantou o Hino Nacional. Do céu caía papel picado, papel amarelo, a cor das diretas, brilhando à luz dos holofotes. No Vale do Anhangabaú, muita gente chorou.”

De fato, o movimento das “Diretas Já” não foi isolado e não se resumiu a um único comício. Desde 1983, atos públicos, embora com participação popular limitada, se espalhavam pelo país, levantando a reivindicação das eleições diretas para Presidente da República, prerrogativa popular essa que havia sido abandonada desde o Ato Institucional de 09 de abril de 1964 quando o seu artigo 2º previu que “A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República, cujos mandatos terminarão em trinta e um (31) de janeiro de 1966, será realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, dentro de dois (2) dias, a cortas deste Ato, em sessão pública e votação nominal.”

Dali se seguiu espúria tradição no Brasil com o art. 6º, parágrafo único, da Emenda Constitucional 9, de 22 de julho de 1964 (apesar da promessa do artigo 1º e a mudança do artigo 38 e 81 da Constituição de 1946); artigo 9º do Ato Institucional 2, de 27 de outubro de 1965 (apesar da promessa do artigo 26 do próprio Ato Institucional); artigo 76 da Constituição de 1967; e artigo 74 da Emenda Constitucional 1, de 17 de outubro de 1969.

Em 19 de abril de 1983, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresentou a Proposta de Emenda Constitucional 5/1983 por meio do qual propunha nova redação aos artigos 74 e 148 da Constituição de 67/69. A chamada “Emenda Dante de Oliveira” imediatamente se tornou uma bandeira e alimentou a realização de atos públicos e comícios como os ocorridos em São Paulo em 25 de janeiro de 1984, em Belo Horizonte em 24 de fevereiro de 1984, no Rio de Janeiro em 21 de março de 1984, o famoso comício da Candelária em 10 de abril de 1984, em Goiânia em 12 de abril de 1984, em Porto Alegre em 13 de abril de 1984 até o comício do Vale do Anhangabaú de 16 de abril de 1984.

O movimento, ao tempo em que ganhava estatura e força política, fortalecia também seus próprios símbolos e personagens que vieram a moldar emblematicamente o processo de resgate da cidadania. É dessa narrativa que se consolidou Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB, como o “Sr. Diretas”, e o senador Teotônio Vilela como o “Menestrel das Alagoas” (mesmo com a sua morte em 27 de novembro de 1983), eternizado na famosa charge de Henfil de 1984. O enredo dramático ainda se estruturaria por meio de uma “tragédia”, de uma “morte”, a ausência impactante de um personagem com a força de torná-lo mito. Não me refiro ao falecimento sentido do recém-eleito presidente Tancredo Neves em 21 de abril de 1985, mas ao da “Proposta Dante Oliveira” em 25 de abril de 1984, quando obtivera em votação plenária no Congresso 298 votos dos 479 parlamentares presentes. Não se conseguiu atingir a marcar de 320 congressistas. A derrota na votação do Legislativo erigiu em definitivo a “eleição direta para presidente da República” na maior de todas as bandeiras democráticas.

Estávamos no amanhecer de um novo tempo, de uma nova separação reequilibrada de poderes, da qual a Constituição de 1988 foi seu selo terminante. Dessa histórica passagem da década de 1980, o Supremo Tribunal Federal se apresentou com mero espectador, testemunha de um país que conseguiu se reerguer por meio das multidões e da imprensa livre. Viria a se beneficiar (ou se prejudicar), anos mais tarde, no espaço político deixado pela retração do Executivo causado pelo movimento incontido das ruas. Esses são ecos que não podem ser esquecidos, mesmo em tempos de normalidade institucional, mesmo quando as crises políticas ou econômicas parecem ser controladas nos limites da legalidade constitucional, mesmo quando informalmente se elegem instituições garantes dos direitos. Como bem representou Paulo Caruso, em charge publicada na Folha de S. Paulo de 25 de abril de 1984, o movimento das “Diretas Já” foi um segundo grito de independência, quando se viu a “história brotar das ruas e na garganta do povo” (nas palavras de Ulysses Guimarães em 24 de abril de 1984 em discurso no Congresso).

Rememorar aqueles fatos e re-significá-los talvez nos ajude a ter claro que a democracia é um bem que merece cuidado constante e que as instituições previstas na Constituição de 1988 não têm poderes absolutos e, em última análise, devem sempre prestar reverência a esse legado, reconhecendo seus próprios limites e valorizando o equilíbrio de forças. Na democracia nem ao Executivo, nem ao Legislativo e nem ao Judiciário cabe o papel de protagonismo.

Rodrigo de Oliveira Kaufmann