"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 30 de março de 2012

Fracassamos




Há despolitização, corrupção nos três Poderes e oligarcas como Sarney. A Nova República fez aniversário, ninguém lembrou. Havia motivo?

Nem o dr. Pangloss, célebre personagem de Voltaire, deve estar satisfeito com os rumos da nossa democracia. Não há otimismo que resista ao cotidiano da política brasileira e ao péssimo funcionamento das instituições.

Imaginava-se, quando ruiu o regime militar, que seria edificado um novo país. Seria a refundação do Brasil. Ledo engano.

Em 1974, Ernesto Geisel falou em distensão. Mas apenas em 1985 terminou o regime militar. Somente três anos depois foi promulgada uma Constituição democrática. No ano seguinte, tivemos a eleição direta para presidente.

Ou seja, 15 anos se passaram entre o início da distensão e a conclusão do processo. É, com certeza, a transição mais longa conhecida na história ocidental. Tão longa que permitiu eliminar as referências políticas do antigo regime. Todos passaram a ser democráticos, opositores do autoritarismo.

A nova roupagem não representou qualquer mudança nos velhos hábitos. Pelo contrário, os egressos da antiga ordem foram gradualmente ocupando os espaços políticos no regime democrático e impondo a sua peculiar forma de fazer política aos que lutaram contra o autoritarismo.

Assim, a nova ordem já nasceu velha, carcomida e corrompida. Os oligarcas passaram a representar, de forma caricata, o papel de democratas sinceros. O melhor (e mais triste) exemplo é o de José Sarney.
Mesmo com o arcabouço legal da Constituição de 1988, a hegemônica presença da velha ordem transformou a democracia em uma farsa.

Se hoje temos liberdades garantidas constitucionalmente (apesar de tantas ameaças autoritárias na última década), algo que não é pouco, principalmente quando analisamos a história do Brasil republicano, o funcionamento dos três Poderes é pífio.


A participação popular se resume ao ato formal de, a cada dois anos, escolher candidatos em um processo marcado pela despolitização. A cada eleição diminui o interesse popular. Os debates são marcados pela discussão vazia. Para preencher a falta de conteúdo, os candidatos espalham dossiês demonizando seus adversários.

O pior é que todo o processo eleitoral é elogiado pelos analistas, quem lembram, no século 21, o conselheiro Acácio. Louvam tudo, chegam até a buscar racionalidade no voto do eleitor.

Dias depois da “festa democrática”, voltam a pipocar denúncias de corrupção e casos escabrosos de má administração dos recursos públicos. Como de hábito, ninguém será punido, permitindo a manutenção da indústria da corrupção com a participação ativa dos três Poderes.

Isso tudo, claro, é temperado com o discurso da defesa da democracia. Afinal, no Brasil de hoje, até os corruptos são democratas. No último dia 15, a Nova República completou 17 anos. Ninguém lembrou do seu aniversário. Também pudera, lembrar para que?

No discurso que fez no dia 15 de janeiro de 1985, logo após a sua eleição pelo colégio eleitoral, Tancredo Neves disse que vinha “para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo”.

Mais do que uma promessa, era um desejo. Tudo não passou de ilusão.

Certos estavam Monteiro Lobato e Euclides da Cunha. Escreveram em uma outra conjuntura, é verdade. Mas, como no Brasil a história está petrificada, eles servem como brilhantes analistas.

Para Lobato, o Brasil “permanece naquele eterno mutismo de peixe”. E Euclides arremata: “Este país é organicamente inviável. Deu o que podia de dar: escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está: a bandalheira sistematizada”.

Marco Antonio Villa

domingo, 25 de março de 2012

Crucifixo, chatice e intolerância


Carlos Brickmann, jornalista arguto e politicamente incorreto, decidiu entrar no vespeiro do despejo do crucifixo de todas as dependências do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Vale a pena registrar o seu comentário.

"Há religiões; também há a tradição, há também a história. A Inglaterra é um estado onde há plena liberdade religiosa e a rainha é a chefe da Igreja. A Suécia tem plena liberdade religiosa e uma igreja oficial, a Luterana Sueca. A bandeira de nove países europeus onde há plena liberdade religiosa exibe a cruz.

O Brasil tem formação cristã; a tradição do país é cristã. Mexer com cruzes e crucifixos vai contra esta formação, vai contra a tradição. A propósito, este colunista não é religioso; e é judeu, não cristão. Mas vive numa cidade que tem nome de santo, fundada por padres, numa região em que boa parte das cidades tem nomes de santos, num país que já foi a Terra de Santa Cruz. Será que não há nada mais a fazer no Brasil exceto combater símbolos religiosos e tradicionais?

Se não há, vamos começar. Temos de mudar o nome de alguns Estados e cidades como Natal, Belém, São Luís e tantas outras. E declarar que a Constituição do País, promulgada ‘sob a proteção de Deus’, é inconstitucional.

Há vários símbolos da Justiça, sendo os mais conhecidos a balança e a moça de olhos vendados. A balança vem de antigas religiões caldeias. Simboliza a equivalência entre crime e castigo. A moça é Themis, uma titã grega, sempre ao lado de Zeus, o maior dos deuses. Personifica a Ordem e o Direito.

Como ambos os símbolos são religiosos, deveriam desaparecer também, como o crucifixo?"

Em São Paulo, cidade cosmopolita e multicultural, basta bater os olhos nas estações da Linha Azul do Metrô: Conceição, São Judas, Saúde, Santa Cruz, Paraíso, São Joaquim, Sé, São Bento, Luz, Santana. E aí, vamos ceder ao fervor laicista e mudar o nome de todas elas?

Carlos Brickmann foi certeiro. Mostrou a insensatez e a chatice que estão no fundo da decisão de um Judiciário ocupado com o crucifixo e despreocupado com processos que se acumulam no limbo da inoperância e do descaso com a prestação da justiça à cidadania. Na escalada da intolerância laicista, crescente e ideológica, não surpreenderia uma explosão de ira contra uma das maravilhas do mundo e o nosso mais belo e festejado cartão-postal: o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.

O Estado brasileiro é laico. E é muito bom que seja assim. Mas a laicidade do Estado não se estende por lei, decreto ou decisão judicial a toda a sociedade. O Estado não pode abolir ou derrogar tradições profundas da sociedade, pois estaria extrapolando o seu papel e assumindo a inaceitável função de tutor totalitário de todos nós.

Como já escrevi neste espaço opinativo, o laicismo, tal como hoje se apresenta e "milita", não é apenas uma opinião, um conjunto de ideias ou uma convicção, que se defende em legítimo e respeitoso diálogo com outras opiniões e convicções, como é próprio da cultura e da praxe democrática. Também não se identifica com a "laicidade", que é algo positivo e justo e consiste em reconhecer a independência e a autonomia do Estado em relação a qualquer religião ou igreja concreta, e que inclui, como dado essencial, o respeito pela liberdade privada e pública dos cultos das diversas religiões, desde que não atentem contra as leis, a ordem e a moralidade pública.

O laicismo militante atual é uma "ideologia", ou seja, uma cosmovisão – um conjunto global de ideias, fechado em si mesmo -, que pretende ser a "única verdade" racional, a única digna de ser levada em consideração na cultura, na política, na legislação, no ensino, etc. Por outras palavras, o laicismo é um dogmatismo secular, ideologicamente totalitário e fechado em sua "verdade única", comparável às demais ideologias totalitárias, como o nazismo. Tal como as políticas nascidas dessas ideologias, o laicismo execra – sem dar audiência ao adversário nem manter respeito por ele – os pensamentos que divergem dos seus "dogmas" e não hesita em mobilizar a "Inquisição" de certos setores para achincalhar – sem o menor respeito pelo diálogo – as ideias ou posições que se opõem ao seu dogmatismo.

Alegará que são interferências do pensamento religioso ou de igrejas, quando um democrata deveria pensar apenas que são outros modos de pensar de outros cidadãos, que têm tantos direitos como eles; e sem reparar que o seu laicismo militante, dogmático, já é uma pseudorreligião materialista e secular, como o foram as ditaduras comunistas e o nazistas.

Pratica-se, então, o terrorismo ideológico, pelo sistema de atacar os que, no exercício do seu direito democrático, pensam e opinam de forma diferente da deles, acusando-os de serem – somente por opinarem de outra maneira – intransigentes, tirânicos, ditatoriais – três características das quais o laicismo, na realidade, parece querer a exclusividade.

O Brasil, não obstante o empenho dos proselitistas ideológicos, é um país tolerante. Na religião, igualmente, o Brasil tem sido um modelo de convivência. Ao contrário de muitas regiões do mundo marcadas pelo fanatismo e pelo sectarismo religioso, o Brasil é um sugestivo caso de relação independente e harmoniosa entre religião e Estado.

É preciso, sem dúvida, desenvolver o senso crítico contra os desvios da intolerância, do fanatismo e de certas manifestações de estelionato religioso tão frequentes nos dias que correm. Mas não ocultemos os estragos causados pelo fundamentalismo laicista.

Estado laico, sim. Mas articulado com o Brasil real, tolerante, aberto, miscigenado.

por: Carlos Alberto Di Franco

quarta-feira, 21 de março de 2012

Presidencialismo de coalizão


Muitos já ouviram falar do termo "presidencialismo de coalizão", cunhado pelo brilhante cientista político Sergio Abranches. Poucos talvez saibam como o sistema funciona na prática.

A ideia do presidencialismo de coalizão se assenta em dois pilares: o papel do presidente e a existência de coalizões partidárias que sustentam o governo.

Ao colocar a fórmula em movimento, os partidos da coalizão participam do governo quase que de forma semiparlamentarista e, ao mesmo tempo, oferecendo a maioria de que dispõem no Congresso para apoiar a agenda do presidente.

O presidencialismo de coalizão é um modelo que vem sendo aplicado desde a redemocratização. Fernando Collor tentou governar de modo diferente. Rendeu-se, ainda que tarde, à fórmula, mas não escapou do impeachment. Para que serve esse sistema?

Na prática, o presidencialismo de coalizão serve para: dar governabilidade ao presidente; assegurar a aprovação das principais propostas do Planalto no Congresso; e evitar que a oposição paralise politicamente o governo com pedidos de investigação.

Se o modelo de presidencialismo de coalizão não conseguir assegurar tais condições, não irá funcionar. E, pior, será gerador de crises que, no mínimo, impactarão a governabilidade e, no máximo, inviabilizarão o governo.

O Brasil vive hoje uma crise em seu presidencialismo de coalizão. A crise, mais do que anunciada desde o final da campanha de Dilma, agravou-se pela incompatibilidade entre a gestão política do governo e as expectativas dos aliados.

Na gestão Lula, tanto por sua imensa popularidade quanto pela certeza de que poderia prolongar o "lulismo" com a eleição de Dilma, as diferenças e incompatibilidades foram abafadas em nome do continuísmo. Hoje, a situação é diferente.

As fissuras verificadas na campanha de 2010 prosseguem sendo ampliadas. A divisão ministerial, a distribuição de cargos de segundo e terceiro escalões e os cortes de despesa aprofundaram a cizânia. O diálogo político, que seria o paliativo para as diferenças, não é aplicado eficientemente.

O núcleo do governo parece distante e insensível aos reclamos da política. Ainda que não caiba fazer juízo de valor acerca do que se pede, o fato é que existe um jogo político sendo jogado que, para funcionar bem, deve manter os sócios do governo satisfeitos.
Os focos de atrito estão em todos os partidos da base. Caso o conflito não seja reduzido a limites toleráveis, o cenário é de derrotas no Congresso; de apoios relativizados; de dissidências crescentes; e, ainda, de real possibilidade de racha na base política do "lulismo".

O que acontece em São Paulo, em torno dos movimentos de José Serra, é uma amostra de como poderá ser em 2014. A crise no presidencialismo de coalizão sinaliza que não vale apoiar a fórmula governista no primeiro turno, já que os ganhos políticos não são assegurados.

Aparentemente, o movimento de tensão e conflito com a base pode ser planejado e visaria "emagrecer" a coalizão, expulsando os parceiros indesejáveis, ou decorreria apenas da incapacidade política de gestão? Seja qual for a causa, os efeitos nunca serão agradáveis.

Murillo de Aragão

terça-feira, 20 de março de 2012

O trabalho dos religiosos


Compreende-se que ao ingressar em entidades religiosas o indivíduo abre mão completamente de bens terrenos e se dedica tão somente ao cotidiano religioso, que em muitas ocasiões se realiza às atividades com os atributos: "Pobreza, obediência e castidade".

Quando eu era criança duas situações me marcavam com imensa interrogação: como a televisão (emissora) ganha dinheiro, se assistimos de graça? E a outra era: Quem paga o Padre?

Após minha formação em Direito e afinidade que nutro pela disciplina trabalhista, tecerei alguns comentários acerca da segunda pergunta: Quem paga os Padres? Eles são empregados de quem?

Espero ajudar na compreensão dessa dúvida que permeou minha infância e causa interrogação também a alguns indivíduos na sociedade.

De início faz-se mister ressaltar que diante da Legislação pátria empregado é aquele que se enquadra perfeitamente no Art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho:

"Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário".

Diante da categoria de "religiosos", o legislador se posicionou com tratamento diferenciado, preconizando que os membros de institutos de vida consagrada, de congregação, de ordem religiosa e os ministros de confissão religiosa passam a ser regidos e compreendidos como contribuintes individuais à Previdência Social, conforme dispositivo 9º, V, "c", do Decreto nº 3.048/99 (Previdência Social), e considerados autônomos de acordo com a Lei 6.696/79.

A jurisprudência e a doutrina atual vêm entendendo que labor de caráter religioso não se constitui em vínculo de emprego, uma vez que o ofício do

religioso é prestar auxílio espiritual e assistir a comunidade nos seus anseios, além de divulgar a fé que acredita.

Compreende-se que ao ingressar em entidades religiosas o indivíduo abre mão completamente de bens terrenos e se dedica tão somente ao cotidiano religioso, que em muitas ocasiões se realiza às atividades com os atributos: "Pobreza, obediência e castidade".

O ilustre Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Granda Martins Filho, assevera: "as pessoas que se dedicam às atividades de natureza espiritual a fazem com o sentido de missão, atendendo a um chamado divino e nunca por uma remuneração terrena".

Destarte, entendemos de acordo com o entendimento majoritário atual que de início já se exclui o quesito "mediante salário" tão bem lecionado no Art. 3º da CLT. Então, até aqui, não há vínculo de emprego entre religiosos e entidades.

O legislador Brasileiro adotou, então, o sistema italiano ao editar a lei 9.608/98. Essa lei veio com o objetivo de elucidar o trabalho voluntário e o art. 2º dispôs quais as formas de atividade voluntária:

"A atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social."

E o parágrafo único do mesmo artigo fixou:

"O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciário ou afim".

Assim, a posição atual apregoa que os religiosos se adequam à categoria de trabalhadores voluntários.

Diante de tal premissa, é cediço que os tribunais vêm negando os vínculos suscitados e declarando não encontrarem nenhum indício ou possibilidade de relação de emprego entre os "religiosos" e suas respectivas entidades.

Nesse sentido a jurisprudência demonstra:

PASTOR EVANGÉLICO. RELAÇÃO DE EMPREGO.

Inexiste vínculo de emprego entre o ministro de culto protestante – pastor – e a igreja, pois o mesmo como órgão se confunde com a própria igreja.

 

RELAÇÃO DE EMPREGO –PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS RELIGIOSOS – INEXISTÊNCIA.

Não gera vínculo de emprego entre as partes a prestação de serviços na qualidade de pastor, sem qualquer interesse econômico. Nesta hipótese, a entrega de valores mensais não constitui salário, mas mera ajuda de custo para a subsistência do religioso e de sua família, de modo a possibilitar maior dedicação ao seu ofício de difusão e fortalecimento da fé que professa. Recurso Ordinário que se nega provimento.

 

VÍNCULO DE EMPREGO. ATIVIDADE RELIGIOSA. O exercício de atividade religiosa diretamente vinculada aos fins da Igreja não dá ensejo ao reconhecimento de vínculo de emprego, nos termos do artigo 3º da CLT. Recurso do reclamante a que se nega provimento.

 

PASTOR. TRABALHO VOLUNTÁRIO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DEFINIDORES DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. O alegado desvirtuamento da finalidade da igreja e o enriquecimento de seus "líderes" com recursos advindos dos fiéis, embora constitua argumento relevante do ponto de vista da crítica social, não afasta a possibilidade de haver, no âmbito da congregação, a prestação de trabalho voluntário, motivado pela fé, voltado à caridade e desvinculado de pretensões financeiras. Assim, estando satisfatoriamente provada a ausência dos requisitos definidores do vínculo empregatício, deve ser afastada a tese da existência de relação de emprego com a entidade religiosa.

 

De acordo com tais pronunciamentos assim vêm se posicionando nossos tribunais, desconhecendo em todas as situações vínculos de empregos entre os que professam a fé e suas congregações.

Passarei a tratar agora das exceções encontradas em nosso ordenamento jurídico e suas lições.

A profícua doutrinadora Alice Monteiro de Barros ensina que a entidade religiosa não pode ser totalmente imune ao fato de ser empregadora, pois se houver prestação de serviços por um indivíduo não pertencente à congregação, a vinculação do emprego não pode ser afastada, caso ocorra todas aqueles requisitos do art. 3º,CLT.

Neste sentido também corrobora a eminente magistrada Vólia Bonfim Cassar:

"A igreja pode ser considerada por alguns como intocável, ou do "outro mundo". Mas a realidade jurídica é algo deste mundo e regida pelas leis terrenas. A igreja é considerada pessoa jurídica de direito privado pelo Código Civil – art. 44, I, CC, logo, pode ser empregadora. Aliás, a CLT não distingue entre o empregador que explora atividade lucrativa daquele que tem finalidade beneficente ou sem finalidade econômica ou lucrativa – art. 2º, CLT.

É neste sentido que encontramos decisões favoráveis a obreiros que prestam serviços não-beneficentes às entidades religiosas:

 

PASTOR– CONTRATAÇÃO TAMBÉM COMO MÚSICO – VÍNCULO DE EMPREGO – POSSIBILIDADE

A atividade de gravação de CD’s em estúdios da igreja não se insere no espectro das funções eclesiásticas, razão pela qual, uma vez caracterizados os requisitos do art. 3º da CLT, não há obstáculo ao reconhecimento de vínculo de emprego entre o pastor e sua igreja no trabalho como músico.

Neste sentido é cediço entre os juízes que algumas igrejas possuem estatutos internos, regulando alguns eclesiásticos às atividades extra-religiosas e

ao pagamento de certa quantia em pecúnia mensalmente por serviços prestados, além de um regimento que regula a ascensão funcional. Também é encontrado nesse estatuto a necessidade de exclusividade por parte do religioso e sua total aquiescência às ordens de bispos ou entidades hierarquicamente superiores, sob pena de punição. Uma das formas de punição é o desconto em suas remunerações. As igrejas permitem que os seus agregados recolham renda em gravações de CDs, edições de livros, eventos e shows, etc.

Destarte, podemos diagnosticar a configuração dos pressupostos típicos da relação empregatícia: prestação por pessoa física, subordinação, habitualidade, e a onerosidade.

Neste aspecto sobre onerosidade assevera Maurício Godinho:

"É claro que o pagamento que descaracteriza a graciosidade será aquele que, por sua natureza, sua essência, tenha caráter basicamente contraprestativo".

Outrossim, vem lecionando a jurista Vólia Bonfim Cassar:

"Entendemos que caso o pastor, o padre, ou o representante da igreja receba pagamento em dinheiro, moradia ou vantagens em troca dos serviços prestados, o trabalho será oneroso. Seu trabalho é de necessidade permanente para o tomador de serviços, logo, também é habitual. Além de ser pessoal, o pastor, padre ou representante da igreja presta serviços de forma subordinada. Sujeita-se aos mandamentos filosóficos, idealistas e religiosos de sua igreja, sendo até punido caso contrarie alguns mandamentos. Também está subordinado a realização de um número mínimo de reuniões, cultos, encontros semanais na paróquia. Se aliado aos demais requisitos, não correr o risco da atividade que exerce, será empregado".

Por último ela chama a atenção do princípio da Alteridade que leciona ser isento de qualquer risco o empregado em relação à empresa que trabalha.

Diante de tais premissas os tribunais vêm decidindo que existindo liame entre o prestador de serviços e o tomador, caracterizando assim todos os elementos típicos da relação, outra atitude não deve ser tomada senão a de prover a decisão de vinculação de emprego.

Assim, encontramos a seguinte decisão:

VÍNCULO EMPREGATÍCIO – CARACTERIZAÇÃO – PASTOR EVANGÉLICO.

Em princípio, a função de pastor evangélico é incompatível com a relação de emprego, pois visa a atividades de natureza espiritual e não profissional. Porem, quando desvirtuada passa a submeter-se à tipificação legal. Provado o trabalho do reclamante de forma pessoa, continua, subordinada e mediante retribuição pecuniária, tem-se por caracterizado o relacionamento empregatício nos moldes do art. 3º da CLT.

Caminhando nessa evolução em abril de 99, o Sindicato dos Ministros de Cultos Religiosos Evangélicos e Trabalhadores assemelhados de São Paulo (SIMEESP) conseguiu registro sindical, e conta atualmente com cerca de 3% de 130.000 pastores evangélicos do Estado de São Paulo. Através desse movimento, muitos hoje partem em busca de reivindicações trabalhistas. Dentre os pedidos mais vistos, estão: anotação da CTPS, reconhecimento de vínculo, regulação do piso salarial, prestação da gratificação natalina, férias e depósito do FGTS.

Recentemente um pastor evangélico de Salvador (BA) pleiteou a condição de empregado da Igreja Universal do Reino de Deus, perante a Justiça do Trabalho. O processo tramitou até chegar ao TST, sendo examinado pelo colendo ministro Ives Granda Martins Filho.

O ínclito Ministro discorreu acerca desse fato:

"Todas as atividades de natureza espiritual desenvolvidas pelos "religiosos", tais como administração dos sacramentos (batismo, crisma, celebração de missa, atendimento de confissão, extrema-unção, ordenação sacerdotal ou celebração de matrimônio) ou pregação da Palavra Divina e divulgação da Fé (sermões, retiros, palestras, visitas pastorais, etc.), não podem ser consideradas serviços a serem retribuídos mediante uma contraprestação econômica, pois não há relação entre bens espirituais e materiais".

E também ponderou:

"O reconhecimento do vínculo empregatício só é admissível quando há desvirtuamento da instituição, ou seja, quando a igreja estabelece o comércio de bens espirituais, mediante pagamento. Pode haver instituições que aparentam finalidades religiosas e, na verdade, dedicam-se a explorar o sentimento religioso do povo, com fins lucrativos. Apenas nessa situação é que se poderia enquadrar a igreja evangélica como empresa e o pastor como empregado".

O Ministro encerrou suas sábias palavras lecionando-nos:

"Sob o ponto de vista jurídico a organização do trabalho divide-se em seis modalidades: assalariado, eventual, autônomo, temporário, avulso e voluntário. A última, o voluntário, é caracterizada pela prestação de serviços sem remuneração a entidade pública ou particular sem fins lucrativos, mediante termo de adesão, que não resulta em vínculo de emprego".

Com essa decisão do conspícuo Ministro, podemos observar que deve se separar o trabalho voluntário prestado a entidades religiosas, do serviço de caráter oneroso e com todos os elementos do art. 3º, da CLT. Sendo com certeza concedido ao empregado típico os seus direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal e a Consolidação das Leis do Trabalho.

Outro aspecto que acena com bastante atenção constitui-se no labor de padres e freiras diante do magistério e do auxílio hospitalar. A pergunta contundente é, então, proferida: Existe vínculo de emprego entre o padre ou freira e o colégio que leciona, ou o hospital que toma seus serviços de enfermeiro (a)?

A célebre jurista Alice Monteiro de Barros preconiza: o simples status de eclesiástico não impede a possibilidade de se firmar um contrato de trabalho, como qualquer outro trabalhador subordinado laico.

Neste âmbito podemos discorrer que a Ciência Trabalhista já demonstrou em outros casos que atividades não se confundem. Exemplo típico dessa demonstração é a súmula 369, III, TST:

"O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente".

Dessa forma, concluímos que as atividades não devem se confundir. Para que o obreiro possua estabilidade faz-se mister que este exerça o mesmo ofício pelo qual assiste aquele sindicato da categoria que ele foi eleito. Assim como a atividade de eclesiástico não obsta que esse mesmo seja contratado por uma empresa para trabalhar nos moldes do art. 3º, CLT. Configurando, assim, vínculo de emprego.

Por fim, demonstramos o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca do trabalho prestado por religiosos no âmbito de suas congregações ou em condições laicas. Mostramos quais os direitos, garantias e decisões concedidas a respeito das relações de emprego dos que exercem a atividade religiosa.



Roberto Victor Pereira Ribeiro

segunda-feira, 5 de março de 2012

A Monarquia e o nosso dinheirinho?


É frequente surgir a questão das Finanças da Monarquia. Ainda há quem julgue que a Monarquia é um privilégio de uma família e há quem pense que a república veio acabar com isso.

Quem está certo? Quem está errado?

O Rei não recebe nem salários nem pensões de reforma acumuladas. O que o Rei reinante recebe do Estado, é uma dotação orçamental prevista no Orçamento de Estado para despesas correntes do Estado e das funções constitucionais inerentes. De resto, o Rei e a Família Real vivem dos seus bens privados e não à custa de nenhum Cidadão.

Pelo contrário, os Presidentes da República, – não pondo em causa as pessoas em si! – recebem mensalmente salários, recebem dotações orçamentais para representação do Estado e quando saem das funções, recebem pensões de reforma, com direitos vários, desde viaturas, seguranças, escritórios, funcionários, etc… Isto não acontece em Monarquia.


A Monarquia serve o País. A República serve-se do País. Arriscar-me-ia a dizer que para controlar os abusos susceptíveis em qualquer regime republicano, é necessária uma Instituição reguladora das Instituições e que lhe dê credibilidade. E essa Instituição só pode ser a Instituição Real através da Dinastia.

O Rei e a Família Real vivem dos seus bens privados e pagam impostos! É bom sublinhar isto!

Vivem dos seus bens privados e dos seus investimentos privados, claro.

A conclusão acaba por ser evidente:

A República é um privilégio de uma família que aproveita o cargo do eleito para viver às suas custas. Quem não se recorda da primeira tomada de posse do actual Presidente, em que não foi só ele quem entrou em Belém, mas a esposa, os filhos e os netos…

A Monarquia é um privilégio de uma Nação, porque tem uma Família Representativa, que investe na Nação, cumpre os seus deveres Constitucionais, e dá credibilidade à Democracia e ao País.

Daí já ter referido uma vez, que a Monarquia é um Investimento que acaba, naturalmente, por não ser de curto prazo mas de longissimo prazo, para o bem de todos.

E tem gente para dizer "Monarquia! Eu é que não sou a farvor!"



Fonte: Real Portugal

domingo, 4 de março de 2012

A república vista por Rui Barbosa.


“Ao governo pessoal do imperador, contra o qual tanto nos batemos, sucedeu hoje o governo pessoal do presidente da república, requintado num caráter incomparavelmente mais grave: governo pessoal de mandões, de chefes de partido; governo absoluto, sem responsabilidade, arbitrário em toda a extensão da palavra [...], negação completa de todas as idéias que pregamos, os que nos vimos envolvidos na organização desse regímen e que trabalhamos com tanta sinceridade para organizá-lo.”


“Não confio em nenhum presidente da república, ainda que meu pai fosse, em nenhum, para lhe dar uma arma tão perigosa quanto esta, para depositar nas suas mãos o estado de sítio, considerando-o como limitado unicamente pelo juízo do poder público, sem nenhum critério material que o definisse positivamente. Porque todos os homens arrastados pela ambição, dominados pelos interesses, fascinados sobretudo pelo poder, todos os homens se desencaminham, se estragam, se pervertem sem que nos faltem exemplos dos espíritos mais altos, mais liberais, mais puros, a quem o fato de empunhar o poder não tenha deslizado para o arbítrio e a ditadura.”

“Corruptissima republica, plurimae leges” – “Quanto mais corrompida a república, mais leis. Já vistes quadro mais solene dessa verdade que o Brasil dos nossos dias?”
Senado Federal. Rio de Janeiro, DF


“Nas monarquias representativas o rei não é um indivíduo, é um princípio, é uma instituição encarnada no homem, cujos defeitos se corrigem, cujas paixões se eclipsam na impossibilidade de fazer mal; não sendo aliás um autômato no jogo das instituições, nem uma quantidade negativa no desenvolvimento do país; pois no desempenho do seu papel há suficientes ensanchas para mostrar e exercer amor para com seu povo, o amor sensato, discreto e sábio [...]“

“A centralização era, na monarquia, um sistema regular e equilibrado, com freios e contrapesos no mecanismo do regímen parlamentar, na responsabilidade dos ministros e num complexo de franquias provinciais, contra as quais a Coroa não atentava. Ao passo que, nesta decomposição do regímen federativo, onde viemos parar, um golpe de interferência da União na vida política dos Estados, pode operar de improviso o desmoronamento de toda a sua situação interior, aniquilando, a um só choque, uma organização custosamente obtida e laboriosamente consolidada.”

Fonte A.C.I

Como investir em educação

O Brasil faz uma importante correção de rumos, mas ainda precisa privilegiar o futuro em vez do passado

É fácil ser pessimista com relação à educação no Brasil. Diariamente ouvimos histórias da falta de recursos e do descaso. Para piorar, os resultados dos estudantes brasileiros em exames internacionais são razão de vergonha nacional. No exame PISA (Program for International Student Assessment) de 2009, a educação brasileira ficou em 53º lugar entre 65 países, atrás de Trinidad e Tobago.

Entretanto, há cerca de 20 anos, iniciamos no Brasil uma despercebida correção de nossas maiores mazelas educacionais, que deve se acelerar ao longo das próximas décadas. Nos anos 90, começou um processo de inclusão educacional, com a universalização do acesso à educação básica, a elevação da escolaridade média e a expansão do acesso à universidade.

O número de universitários no País passou de 1,5 milhão em 1990 para 3,5 milhões em 2000 e para 6,5 milhões em 2010. O problema é que este avanço no acesso à educação deteriora os indicadores de qualidade do ensino. A população brasileira ficou mais educada, mas o nível médio do estudante universitário, refletido nos exames, piorou à medida que estudantes menos preparados passaram a ingressar nas faculdades. Quando comparamos a nota média dos alunos de 2000 com a média dos estudantes em 2010, desconsideramos que, dez anos antes, três milhões deles nem sequer chegavam à faculdade. Uma fotografia mais fidedigna da evolução da qualidade apareceria se comparássemos apenas as notas dos 3,5 milhões dos melhores alunos de hoje com as dos 3,5 milhões de dez anos antes.

A verdade é que a expansão do acesso à universidade ainda tem de progredir muito nas próximas décadas. Apesar de todo o avanço em inclusão nos últimos 20 anos, ainda hoje apenas um de cada cinco jovens brasileiros chega à universidade.

Também a qualidade de nossa educação vai melhorar gradualmente nas próximas décadas, por duas razões.

A primeira é um sustentado aumento dos investimentos públicos em educação, possibilitado pelo forte crescimento econômico e consequente elevação da arrecadação de impostos. De 2005 a 2010, os gastos do governo com educação passaram de 3,9% para 5,4% do PIB e devem atingir 7,0% do PIB em 2014.

A segunda razão é demográfica. Com a forte queda da taxa de natalidade nas últimas décadas, o número de crianças e jovens em idade escolar e universitária cairá nas próximas décadas. Com mais recursos e menos alunos, o investimento por aluno aumentará consideravelmente, o que – salvo total desperdício do dinheiro gasto – deve resultar em melhor qualidade de ensino.

Tudo resolvido então? Claro que não. Precisamos acelerar muito a inclusão e a qualidade de nossa educação. A Coreia, país mais bem colocado no exame PISA (Xangai ficou em primeiro lugar, mas não foi apurada uma média para toda a China), mostra o caminho.

Há 30 anos, a renda per capita na Coreia era similar à brasileira; hoje ela é duas vezes maior. Não por acaso. Na Coreia, para cada R$ 1 que o governo gasta com crianças de até 15 anos, ele gasta R$ 0,80 com aqueles com mais de 65 anos. Como consequência, os coreanos são líderes em qualidade de ensino e mais de 60% dos jovens coreanos chegam à universidade.

No Brasil, para cada R$ 1 de gasto público com crianças, são gastos R$ 10 com idosos. A Coreia escolheu investir no futuro. O Brasil, no passado.


 Ricardo Amorim

O que o Carnaval diz do Brasil?

No Brasil, o Carnaval nos permite abandonar as hierarquias e os tabus de um sistema altamente repressivo


Toda celebração nacional tem um mito, uma história que explica e justifica a sua celebração. O melhor exemplo é o nosso "7 de setembro". Uma arrogada realidade histórica ensina que já em agosto de 1822 Dom Pedro I rompera com Portugal declarando inimigas as tropas lusas que estavam em nosso território. Mas o mito, conforme aprendemos na escola primária, narra um gesto muito mais dramático e revelador. Em viagem a São Paulo acompanhado por sua guarda de honra (chamada de "dragões"), Dom Pedro recebe a correspondência de Portugal limitando seu poder. Reagindo à diminuição de sua liberdade, arranca do seu dólmã as fitas com as cores vermelha e azul das cortes portuguesas, desembainha a espada e grita: "Independência ou morte!".


Estava declarada nossa independência às margens do Ipiranga – um riacho de "água vermelha" (i-piranga em tupi), como mostra o quadro consagrador de Pedro Américo. O ritual que celebra esse mito repete todo ano o gesto de uma forma estilizada: há uma parada militar onde se afirma o poderio brasileiro. O grito "original" (sinal do rom-pimento) é substituído por discursos ou pelo canto do hino nacional. A Independência segue a norma dos ritos da ordem e tem um centro, um propósito e um personagem.

Tudo isso contrasta notavelmente com o Carnaval, que não tem um mito de origem nem é uma comemoração de algum ato ou pessoa. Na festa de Momo, temos o rito, mas não temos o mito. Trata-se de uma festa da desordem e, como tal, ela promove uma infinidade de personagens e eventos. Em contraste com a Independência, o Carnaval ocorre dentro de um tempo bíblico. O Carnaval, como o futebol, não foi inventado no Brasil e faz parte de uma tradição arcaica na qual se coloca em correspondência a mudança das estações do ano ou anomalias cósmicas (como os eclipses) e o barulho por meio da percussão, o insulto e o as-sassinato dos deuses.


Ele ocorre antes da Quaresma, que culmina no sacrifício de Cristo, o Deus que se fez homem para salvar a humanidade, conforme reza a tradição cristã. Antes então de um período de disciplina (onde não se come a carne – donde: carne levare), permite-se o excesso que sinaliza o fim de um recreio.

No passado, o Carnaval foi uma celebração obrigatória: todos tinham de brincá-lo. Hoje, ele é um longo feriado, embora con-tinue preservando sua escritura original que suspende e inverte as regras das rotinas mais equilibradas. A norma é esbaldar-se, brincar e pular até cair. Temos então uma revelação interessante: como uma festa baseada no "poder fazer tudo" acontece na terra do "não pode"? Um "não pode" sempre dirigido para quem não é rico, bem de vida ou faz parte do governo?

A pergunta contém sua resposta. Só existe Carnaval onde há o desejo de ver o mundo de cabeça para baixo. A permissividade planejada e permitida é, no fundo, uma licença "legal" (conforme taxamos tudo o que é bom no Brasil) para abandonar, por um curto período de tempo, as hierarquias e os tabus de um sistema altamente repressivo. Tão profundamente aristocrático e desigual que seus membros precisam de um ritual permissivo. Testemunha isso o fato de o Carnaval ter sido proibido na Espanha e em Portugal nas ditaduras de Franco e Salazar.


No Brasil, as tentativas de proibi-lo sempre estiveram associadas ao elitismo intelectual que vê na festa um abuso dos bons costumes e um exemplo de "atraso" nacional. Enfim, como perda de um tempo precioso, destinado a produzir e a fazer as grandes reformas e a "revolução" de que tanto precisamos. Como o futebol, o Carnaval seria um ópio ou, na melhor hipótese, um remédio para o povo.

O que fazer com o puritanismo globalizado que manda trabalhar, poupar e ser recatado, se o Carnaval apresenta aos seus celebrantes uma verdade alternativa: aproveite enquanto pode; é hoje só, amanhã não tem mais… E, ao lado dessa mensagem, deixa que o pobre vire divindade, reduzindo o patrão ao papel de espectador de seus empregados. Não satisfeito com tais ab-surdos, ele faz o governo destinar verbas para suas "escolas de samba", cujas sedes são melhores que as escolas e os hospitais. Pode-se urinar, beijar e fazer outras coisas na rua em cidades cujas vias públicas são finalmente destinadas a nós, seus cidadãos – essas ruas que, sem os nossos mortíferos automóveis, podem ser desfrutadas porque estamos num mundo sem donos e patrões.
Nada melhor do que a marchinha de Lamartine Babo, escrita em 1934, para mostrar o que o Carnaval diz do Brasil:

Quem foi que inventou o Brasil?
– Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval!

Se o mundo diário nos obriga a pensar a festa como um resultado ou um prêmio, a música e o mito levam a ler o Brasil irre-mediavelmente marcado pelo Carnaval. Nele, a festa não depende do Brasil, mas, pelo contrário, é o Brasil que dela decorre. O compositor percebe como o Carnaval escapa do viés utilitário que só enxerga o mundo como controlado por partidos e classes sociais. Nessa sociedade que, até 1888, teve escravos, que até ontem teve imperadores e barões e, no seu período republicano, mais ditaduras do que regimes igualitários e livres, entende-se por que o Rei Momo vem periodicamente governar.


Pois, mais do que festa, o Carnaval é o espelho pelo qual vemos a nós mesmos por meio da estética dos subordinados. Esses que amam o luxo e o enfeite adoram o exagerado e o invejável. E assim reproduzem seus superiores por meio da licença ampla concedida pela permissividade do ritual. Desse modo, abusam tanto quanto seus superiores o fazem no mundo diário, onde desfilam com suas falcatruas, mentiras e roubos da coisa pública, sem ser punidos.
Penso, pois, que o Carnaval põe o Brasil de ponta-cabeça. Num país onde a liberdade é privilégio de uns poucos e é sempre lida por seu lado legal e cívico, a festa abre nossa vida a uma liberdade sensual, nisso que o mundo burguês chama de libertinagem. Dando livre passagem ao corpo, o Carnaval destitui posicionamentos sociais fixos e rígidos, permitindo a "fantasia", que inventa novas identidades e dá uma enorme elasticidade a todos os papéis sociais reguladores.


Se Shakespeare nos visitasse, confirmaria seu famoso axioma segundo o qual o mundo é um palco. E descobriria, indo além de si mesmo, que, nesse cenário de tragédias, injustiças, sofrimento e reveses, a própria morte é convidada. Pois, no Carnaval, os homens desmorali-zam a morte, cantando e dançando com ela. Reafirmando o riso como nosso único consolo. Esse riso carnavalesco que cora-josamente permite rir de nossas próprias desgraças.

 Roberto DaMatta