"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Quem tem medo da participação cidadã?


Vereadores de Ilhéus proíbem qualquer cidadão de filmar e transmitir em tempo real as sessões da Câmara Municipal. “Parece que não querem o povo tão dono assim dessa Casa”, diz Nicole Verillo.

Ser um cidadão ativo, buscar melhorias para sua cidade e enfrentar a corrupção é uma tarefa árdua e que requer sim muito esforço e persistência. O exercício da cidadania e do controle social da gestão pública incomoda muita gente e por isso é um grande desafio.

Verdade seja dita, a luta anticorrupção possui alguns bons motivos para comemorar. Há dez anos, quando surgiu a Rede Amarribo Brasil-IFC, hoje formada por cerca de 200 organizações no Brasil, ter acesso às informações públicas era quase uma piada. As respostas das prefeituras e câmaras municipais eram sempre negativas. Hoje, com a Lei de Acesso à Informação, temos relatos dentro da Rede que esse quadro mudou, ou começou a mudar.

Além da Lei de Acesso à Informação, outros avanços anteriores merecem ser reconhecidos como parte desse processo, no que diz respeito à transparência. Em 2000 entrou em vigor a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) que trata da responsabilidade do gasto público de acordo com a arrecadação dos estados e municípios, juntamente com a promoção da transparência. E em 2009 foi aprovada a Lei da Transparência (Lei Complementar 131/2009) que determina a publicação em tempo real de informações sobre a execução orçamentária da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Apesar de todo esse avanço e do arcabouço legal que possuímos, ainda existem muitos gestores públicos que parecem não reconhecer o direito à informação do cidadão, trabalhando na via do retrocesso para que este direito não seja uma realidade em muitos locais do país.

No último dia 13, fui surpreendida ao saber que a Câmara Municipal de Ilhéus, na Bahia, aprovou, por unanimidade dos presentes, um requerimento, de autoria do vereador Luiz Carlos Nascimento (PP), conhecido como Escuta, que proíbe qualquer cidadão de filmar e transmitir em tempo real as sessões da Câmara. Isso mesmo que você leu, pelo requerimento ninguém pode filmar pessoas públicas, no caso os vereadores, no espaço público, no caso a Câmara de Vereadores, também conhecida como “a Casa do Povo”.

Mas parece que os vereadores de Ilhéus não querem o povo tão dono assim dessa Casa. Há mais de um ano o Instituto Nossa Ilhéus (INI), parceiro da Amarribo Brasil, filma e transmite em tempo real todas as sessões da Câmara pela internet. Todas as filmagens também ficam armazenadas em um Canal no YouTube, permitindo que qualquer cidadão acompanhe as sessões a qualquer tempo, de onde estiver. Além disso, com base nas sessões, o INI divulga, semestralmente, um relatório avaliando o desempenho dos vereadores. Parece que a avaliação da sociedade incomodou os vereadores.

Além do extremo retrocesso que a medida representa, o que mais me surpreende é lembrar que cerca de três meses atrás, em maio deste ano, eu mesma estive em Ilhéus, em um evento realizado na Câmara Municipal, discutindo transparência e Lei de Acesso à Informação junto a representantes do poder público e a sociedade. Na ocasião, o presidente da Câmara, Josevaldo Machado (PC do B), que votou favoravelmente ao requerimento, havia se mostrado extremamente disposto a se engajar em ações de transparência e acesso à informação em prol da participação cidadã em Ilhéus. Se a fala foi para encantar os munícipes presentes, ao votar a favor do requerimento ele provou o contrário. Uma pena.

É fundamental que os gestores públicos que ainda não entenderam, entendam: não há democracia sem informação e o direito à informação é garantido através da transparência, liberdade de imprensa, de expressão e de comunicação.

Tentar impedir o trabalho brilhante realizado pelo INI é incabível. Se os vereadores de Ilhéus pretendiam chamar atenção, causar repulsa e desgastar a imagem da própria Câmara, conseguiram. Se a Câmara de Vereadores de Ilhéus é honesta, atua dentro da ética, faz seu trabalho como deve ser feito e não tem nada a esconder, por que não permitir que a sociedade acompanhe seu trabalho?

Nicole Verillo é diretora de Desenvolvimento Institucional da Amarribo Brasil e secretária-executiva da Articulação Brasileira Contra a Corrupção e a Impunidade (Abracci).

Defender assembleia constituinte, hoje, é golpismo e haraquiri institucional


Setores da sociedade civil, sindicatos, associações, grupos e partidos políticos, tradicionalmente ligados a setores de esquerda, propõem com um “plebiscito” totalmente informal, entre 1º e 7 de setembro, em locais de votação organizados por qualquer um que queira se juntar a esse movimento, aprovar a convocação de uma assembleia "constituinte soberana e exclusiva" que, sob o objetivo de viabilizar uma reforma política profunda, venha a revogar a atual Constituição da República, de 1988, e elaborar uma nova Constituição para o Brasil (ler aqui).

Embora reconheçamos por óbvio que nenhuma ordem constitucional seja eterna e imutável, o compromisso republicano nos exige denunciar os erros da atual proposta de "constituinte soberana e exclusiva" em seus próprios argumentos.

Sendo assim, esse movimento parte da ingenuidade, histórica e hermenêutica, de defender algo como uma "situação ideal de deliberação", supostamente sem disputas, sem conflito, sem influências externas e à base de um consenso já pressupostamente alcançado, isso que chamam de "constituinte soberana e exclusiva".

O que mais impressiona é que seus idealizadores se dizem porta-vozes do povo e de uma maioria popular que, todavia, contraditoriamente não alcança sequer o quórum de 3/5 exigido para reformar a Constituição.

É certo que, sem mobilização política suficiente para aprovar no Congresso, mudanças constitucionais e legais muitas vezes apelam para a judicialização das questões políticas.

E agora, se não conseguem aprovar as reformas pelos meios da Constituição, seja no Congresso, seja mesmo pela via controversa do Judiciário, passam a defender reformas, e mudanças, ainda que "contra a Constituição". Na verdade, frontalmente contra a Constituição e contra o Estado Democrático de Direito. Ou seja, não acreditam na democracia. Querem estabelecer uma nova, a partir de um grau zero de sentido. Zera tudo, acabam-se direitos e começa tudo de novo.

Por isso, não demonstram ter compromisso republicano mais vigoroso. Assim procedendo, não respeitam as regras do jogo democrático: mostram ter com essas regras uma relação meramente estratégica, instrumental; seriam regras a serem respeitadas somente quando lhes interessam, no mero limite dos seus próprios interesses.

Para tanto, cria-se um conflito artificial entre a Constituição e o que eles querem chamar de "verdadeira democracia popular". Claro: somente alguns sabem o que essa verdadeira democracia popular...

Daí propõem:

a) uma constituinte: a Constituição atual valeria muito pouco. Querem não apenas fazer uma "reforma política", mudando a Constituição, por meio das regras previstas para tanto, mas mudar de Constituição. Incorporam o discurso da direita acerca do suposto caráter ilegítimo e ingovernável da Constituição, desconsiderando a ampla participação política quando da sua elaboração, as disputas políticas e hermenêuticas, bem como a dinâmica social complexa que nesses 25 anos, cheios de idas e vindas, se seguiu à sua promulgação;

b) soberana: sem limites procedimentais e materiais, a não ser com os pontos de vista ideológicos que sustentam como indiscutíveis. Como se alguma coisa em política não fosse controversa, objeto de disputa e exigisse a construção no mínimo de compromissos entre as forças políticas e sociais. Afinal, alguém pode afirmar que haja consenso sobre o conteúdo da tal reforma política entre as várias forças políticas e sociais? E em política alguém pode mesmo falar num consenso prévio sobre qualquer assunto?

c) Além disso, querem que as decisões sejam por maioria absoluta, 50 + 1 dos membros e não por 3/5, para facilitar as mudanças, como se a exigência de reforma constitucional nos termos do artigo 60 não tivesse justamente o sentido da garantia de que as deliberações sejam tomadas à base de compromissos a serem alcançados por meio de debates públicos e de negociações entre os diversos pontos de vista ideológicos em disputa;

d) constituinte exclusiva: exclusivamente eleita para elaborar uma nova constituição. Uma constituinte supostamente isenta em face da própria política e do político. Como se uma assembleia exclusiva não estivesse sujeita às mesmas condições históricas e sociais, bem como à pressão política dos grupos econômicos e dos diversos interesses e valores existentes na sociedade.

Ora, não existe algo tal como uma situação ideal de deliberação. Não há esse grau zero histórico e hermenêutico. No fundo, esse esquerdismo é politicamente liberal. Acredita-se na possibilidade de instauração de algo como uma posição original rawlsoniana, em que interesses e valores serão colocados entre parênteses e os constituintes irão somente por tais restrições levados a decidir no igual interesse de todos os seus representados.

Esse esquerdismo é utópico no nosso sentir. E por tudo isso corre o risco de ser tão autoritário quanto a direita que criticam. Engels já chamava atenção em O socialismo jurídico para o fato de que não se faz uma revolução apenas mudando leis e constituições. Revoluções são feitas politicamente, por meio de transformações sociais e econômicas. E como bem já alertava Lenin: todo "esquerdismo" no fundo é liberal e pequeno burguês, nem revolucionário, nem socialista: O "esquerdismo é a doença infantil do comunismo"!!

O que parece que os nossos bravos defensores da tese de uma assembleia constituinte exclusiva e soberana, com o “povo na rua” etc., não se dão conta é o risco do retrocesso na atual correlação de forças.

Ou seja, é verdade que o quórum de 3/5, previsto pelo artigo 60 da Constituição, bem como as demais limitações formais, circunstanciais e materiais, não impede esses retrocessos. Em nossa opinião, há quem discorde: a chamada emenda da reeleição foi um deles, quando considerada retrospectivamente e no contexto brasileiro. A reeleição não poderia ter sido aprovada. Mas com certeza baixar o quórum para maioria absoluta, além de toda essa proposta de procedimento facilitado e sem nenhum limite material, só incrementa esse grave risco.

A questão é: por que a constituição deles seria mais efetiva ou a democracia deles seria mais democrática? Uma coisa que um marxista como o Franz Neumann chamava atenção é que o Direito, e o Direito Constitucional em especial, enquanto expressão normativa dos compromissos políticos e sociais, pode ser atuado, apesar de tudo, não apenas como um mero instrumento de dominação de classe, mas como garantia contra retrocessos; todavia, se dele soubermos não abrir mão em meio a uma situação de impasse político.

Parece que os defensores da tese não compreenderam bem a história. Basta uma olhada para trás. É ingenuidade pensar que, hoje, uma assembleia constituinte possa trazer mais avanços do que os que constam na atual Constituição. Qualquer um sabe que os atuais direitos, uma vez zerados (afinal, a constituinte seria exclusiva e soberana), deles nada restaria. Até o direito dos índios seriam liquidados. Até mesmo o direito dos professores públicos, suas condições de trabalho, seriam reduzidos a pó. Ou a constituinte seria composta apenas por “agentes do povo”? Os empresários não se elegeriam... Os meios de comunicação não arrasariam com as teses dessa nova esquerda que, paradoxalmente, quer fazer uma nova constituição (portanto, acredita no direito), mas não acredita no direito atual... Suprema ironia. Ou seja, direito sim; desde que seja um outro, feito a partir do grau zero.

Já dissemos alhures (ler aqui), a partir de um Manifesto, que a tese de uma constituinte exclusiva era um haraquiri institucional. O Brasil seria a única democracia do mundo que se autodissolveria, convocando uma assembleia constituinte que partiria do zero. As lutas sociais, os mártires, as batalhas pela democracia de pouco vale(ra)m até hoje. É isso que se depreende dos documentos firmados pelos signatários da tese da constituinte exclusiva. Antes deles, o caos. Depois deles, o paraíso.

Numa palavra: o movimento que defende uma assembleia constituinte exclusiva e soberana é ingênuo. Defende, equivocadamente, uma idealística situação deliberativa, onde reinaria o consenso em torno de ideias revolucionárias, que construirão um novo país, sem privilégios, sem os políticos de hoje, sem essa imprensa burguesa, sem os meios de comunicação, sem as forças de reação, sem os latifundiários etc., etc., etc.

O Brasil gastou nos últimos anos verdadeiras fortunas na formação de seus mestres e doutores, dentro e fora do país. Escreveram-se centenas de teses sobre poder constituinte, sobre democracia, sobre regras do jogo... Para quê? Para nada. Afinal, a democracia do Brasil está um caos, a Constituição é ruim... Solução: zeremos tudo! Fora com a literatura que prega a democracia; fora com as aulas de direito constitucional. Vem aí a assembleia constituinte exclusiva e soberana.

Da proposta percebe-se, por fim, o receio quanto ao futuro. Vem bem a calhar a filosofia da esperança de Ernst Bloch. Durante os anos de 1987 e 1988, o Brasil fez sua escolha por meio de uma constituinte democrática que produziu uma Constituição democrática. Nossas escolhas foram-se atualizando; já sabemos o que queremos e o que não queremos. O desafio agora é a materialização destas escolhas. Retornar ao ponto de onde já partimos há mais de 25 anos significa dizer que construímos história — a nossa, nem pior, nem melhor do que a de ninguém: diferente, apenas — e parece que nada aprendemos com esta construção. Seria mais um momento de lamentação, do sempre desespero idealista do que poderíamos ter sido. Também queremos deixar claro que toda constituição pode ser reformada, ou mesmo abandonada. Não há mal algum nisso e a manifestação democrática constituinte será bem recebida. O detalhe é que, diante do acúmulo histórico que já se conquistou, não nos parece razoável que vivamos um novo momento constituinte quando sequer concluímos o instante positivo escolhido em 1988.

Gilberto Bercovici, Lenio Luiz Streck, Marcelo Cattoni e Martonio Barreto Lima

domingo, 24 de agosto de 2014

Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito


O alerta de Alessandro Baratta: afinal, o que queremos?

No final dos anos 1990, o grande criminólogo Alessandro Baratta esteve em Porto Alegre participando de um simpósio sobre criminologia e feminismo. Em pauta a violência contra as mulheres e minorias. As mulheres presentes, a expressiva maioria professando um pensamento progressista, tinham um objetivo: criminalizar duramente os delitos desse jaez. Baratta, homem de militância progressista, no início de sua conferência, fez a seguinte reflexão: neste congresso demonstramos um alto grau de esquizofrenia. Em sentido amplo, todos queremos um direito penal mínimo e o máximo de liberdade; todavia, quando atingidos pela situação, ou seja, em sentido estrito (referindo-se às mulheres e minorias), queremos o mais alto de punição. Assim, ao mesmo tempo manifestamos a nossa descrença no direito penal e entoamos uma ode em seu louvor, pugnando pelo máximo de punição. Afinal, perguntou: “o que queremos”?

Passados tantos anos, durante os quais estamos buscando aperfeiçoar as garantias constitucionais, eis que nos deparamos com um Mandado de Injunção (4.733-STF) — instrumento criado para garantir as liberdades fundamentais e em geral os direitos civis, políticos e sociais — pretendendo (consoante trecho extraído dos autos do processo)

“obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima, por ser isto (a criminalização específica) um pressuposto inerente à cidadania da população LGBT na atualidade”.

O Mandado de Injunção, no seu polo ativo, é assinado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT); o réu: o Congresso Nacional que estaria em mora por não criminalizar os atos acima referidos. O Procurador-Geral da República, na linha dos pronunciamentos dos presidentes da Câmara e do Senado, exarou parecer pelo não conhecimento do mandamus injuntivo. Já o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do ministro Ricardo Lewandowski, fulminou o pedido, aduzindo, entre outras questões, que a criminalização de condutas depende de lei, invocando precedentes da corte.

A questão, portanto, parecia encerrada, desembocando na resposta juridicamente apropriada. No entanto, a ABGLT impetrante ingressou com agravo regimental. Até então, nada de anormal. O que surpreendeu, deveras, foi o parecer da Procuradoria-Geral da República (ler aqui) que, contrariando o parecer anterior e a jurisprudência da Suprema Corte, exarou entendimento favorável:

“O Mandado de Injunção, na linha da evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, presta-se a estabelecer profícuo e permanente diálogo institucional nos casos de omissão normativa. Extrai-se do texto constitucional dever de proteção penal adequada aos direitos fundamentais (Constituição da República, art. 5º, XLI e XLII). Em que pese à existência de projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, sua tramitação por mais de uma década sem deliberação frustra a força normativa da Constituição. A ausência de tutela judicial concernente à criminalização da homofobia e da transfobia mantém o estado atual de proteção insuficiente ao bem jurídico tutelado e de desrespeito ao sistema constitucional. Parecer pelo conhecimento e provimento do agravo regimental. PGR Mandado de Injunção 4.733/DF (agravo regimental). Parecer 4.414/2014-AsJConst/SAJ/PGR).

Ou seja, para a Procuradoria-Geral da República, é possível, via Mandado de Injunção, criminalizar a homofobia e a transfobia, posição que, permissa vênia, vai na contramão da história constitucional, porque admite, a partir da tese da proibição de proteção insuficiente, que o Poder Judiciário pode estabelecer criminalizações.  Segundo o parecer, existe uma clara falta de norma regulamentadora que

“inviabiliza o exercício da liberdade constitucional de orientação sexual e de identidade de gênero, bem como da liberdade de expressão, sem as quais fica indelevelmente comprometido o livre desenvolvimento da personalidade, em atentado insuportável à dignidade da pessoa humana (...).

As indagações que cabem são: Qual seria a relação de uma criminalização com o livre desenvolvimento da personalidade? Qual é o papel do direito penal em um Estado Democrático? Cuida-se, aliás, de questionamentos que não dizem respeito apenas ao caso da criminalização da homofobia, mas que tocam a problemática mais ampla do uso (ou abuso?!) do direito penal como resposta adequada aos problemas da sociedade, que aqui não se poderá desenvolver.

Nessa quadra, vale enfatizar que respeitamos o pleito da ABGLT. O que aqui se questiona é o foro adequado para a satisfação de sua pretensão, que não há de ser o Poder Judiciário. A luta pela criminalização, entretanto, em si, embora contrária à melhor filosofia do direito penal, não é evidentemente inconstitucional, como também não seria inconstitucional eventual lei (desde que proporcional, portanto,  contemplando as exigências da Constituição Penal) tratando do assunto.

Trata-se, fundamentalmente, da discussão acerca dos limites institucionais na relação de Poderes da República. Nesse sentido, lembramos que há mais de quatro séculos essa questão já estava posta em pleno absolutismo dos Stuart, na Inglaterra seiscentista. Lá, Sir Edward Coke, juiz de um pequeno tribunal da Inglaterra no início do século XVII, já considerava nulos os atos do Rei absolutista pelos quais este pretendia estabelecer penalizações sem lei (o famoso caso das Proclamations). Quer dizer, Coke, sem garantias constitucionais, enfrentava o absolutismo para impedir que se pudesse criminalizar condutas sem previsão específica em lei. Passados tantos séculos, o Brasil corre o risco de colocar-se na contramão do constitucionalismo, rompendo com todo um sistema de garantias fundamentais estabelecido com ênfase na própria Constituição Federal de 1988 (CF).

Por tal razão, há que publicamente e com particular ênfase, questionar uma série de aspectos vinculados à tese da Procuradoria-Geral da República, que deveriam deixar muito preocupados os cidadãos brasileiros e todos os que defendem um Estado Democrático de Direito.

1. O próprio uso do Mandado de Injunção como meio para assegurar, à revelia do legislador infraconstitucional, punições na seara criminal é de ser posto na ordem do dia. Note-se que de acordo com o texto constitucional, dar-se-á Mandado de Injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos assegurados pela Constituição Federal.  Muito embora o artigo 5º, XLI (mas também o inciso XLII no que toca à criminalização do racismo), tenha a feição de um mandado expresso de punição de toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, isso não significa – diferentemente do que se verifica no caso do racismo (assim como da tortura e da ação de grupos armados contra a ordem constitucional) – que tal punição tenha de se dar na esfera criminal, pois aqui as hipóteses concretas e mesmo as sanções para as diversas situações foram deixadas (pelo constituinte originário) ao alvedrio da deliberação legislativa infraconstitucional.

2. Além disso, especialmente para efeitos de criminalização e penalização a própria CF assegura, na condição de direitos-garantia fundamentais, a legalidade estrita (art. 5º, XXXIX, CF). Resulta elementar que o Mandado de Injunção não pode ser manejado para efeitos de por um lado buscar uma “criminalização judicial” onde sequer a CF exige de forma inequívoca a criminalização, pois, reitere-se, punição não é equivalente a criminalização (e nem esta necessariamente implica imposição de pena, como se extrai do exemplo da despenalização, mas não descriminalização da posse de droga para consumo próprio), muito menos, contudo, para com isso violar frontalmente outros direitos e garantias fundamentais.

3. Na medida em que a CF não estabelece a obrigação de criminalizar a homofobia, o deferimento do Mandado de Injunção faria com que o Judiciário legislasse, substituindo os juízos políticos, morais e éticos, próprios do legislador, pelos seus. Como já referido, a CF estabelece a obrigação de criminalizar o racismo, mas a extensão do conceito de racismo para a homofobia ou transfobia é um claro exercício do que se poderia designar de panhermeneutismo, sem considerar aqui a ocorrência da absolutamente vedada analogia in malam partem. Não há abrigo constitucional para tal.

4. Mais ainda, o parecer do Ministério Público Federal não leva em conta que o direito fundamental invocado na impetração impõe ao Estado o dever de combater e punir todas as formas de discriminação e racismo (fim), não se referindo, portanto, “à legislação específica de um tipo especial de conduta (meio)”.

5. Portanto, não há qualquer comando constitucional que exija tipificação específica para a homofobia e transfobia. Se a opção for pela criminalização e pela punição tal decisão cabe aqui com exclusividade ao legislador infraconstitucional, o que não pode ser superado mesmo por uma exegese extensiva de legislação em vigor.

6. Outra preocupação guarda relação com o uso descontextualizado de uma figura oriunda do direito alemão, qual seja, o princípio da proibição de proteção insuficiente, o assim chamado Untermassverbot. Se a tese foi utilizada na Alemanha no direito penal, foi-o em outro sentido e contexto. Lá o Tribunal Constitucional declarou ser inconstitucional a descriminalização do aborto. Havia uma lei e o Tribunal entendeu que o Parlamento não tinha liberdade de conformação para proceder a descriminalização, à míngua de alternativa minimamente eficaz para a proteção da vida do nascituro. Mas a decisão do Bundesverfassungsgericht não criminalizava qualquer conduta. A proibição de proteção insuficiente, que opera como um segundo nível de controle das omissões e ações (insuficientes) do poder público, poderá servir de importante critério para o controle dos atos do poder público e mesmo ensejar uma correção de rumos, mas não se presta como fundamento cogente e eficaz, por si só, para justificar a criminalização de uma conduta, ainda mais, como no caso em tela, mediante provimento jurisdicional.

7. Todos sabemos que a jurisprudência do STF tem sido firme com relação à necessidade de se detectar, para o cabimento do Mandado de Injunção, a existência inequívoca de um direito subjetivo, concreta e especificamente consagrado na CF, direito que não esteja sendo fruído por seus destinatários em virtude da ausência de norma regulamentadora exigida por essa mesma Carta (por todos, o MI 624/MA). Aliás, no parecer anterior, acolhido pelo ministro Lewandowski, assim se manifestou o PGR de então:

“Dessa forma, verifica-se que o ordenamento jurídico pátrio protege homossexuais, bissexuais e transgêneros de agressões fundadas pelo preconceito contra suas orientações sexuais. Por mais que a associação impetrante julgue tal proteção deficiente, a insatisfação com o conteúdo normativo em vigor não é motivo suficiente para o cabimento do presente Mandado de Injunção. ”

A questão simbólica

De todo modo, respeitando, à evidência, a posição jurídica explicitada no parecer do Procurador-Geral da República, o que mais nos preocupa é o valor simbólico da questão sub judice. Tudo indica que, por coerência e prestigiando os seus próprios julgados, o Supremo Tribunal Federal fulminará o agravo. Entretanto, o que fica é a ponta do iceberg de um imaginário que cresce dia a dia no Brasil, caracterizado pelo uso de criminalizações para resolver problemas sociais e de relacionamento sociais. Por certo que não foi este o objetivo Ministério Público Federal.

Por evidente que não se nega a importância do direito penal e sequer se questiona a existência, especialmente no caso brasileiro, de mandados constitucionais de criminalização. Neste ponto, deve ser louvada a posição exposta no parecer, porque abre esse horizonte de cumprimento, no futuro, dos mandados constitucionais, embora não seja o caso, na opinião dos subscritores, da homofobia. Mas o que não se pode tolerar é o estabelecimento de uma hipertrofia do direito penal, que, ao fim e ao cabo, resulta paradoxal. De um lado, os movimentos sociais (minorias, etc.) clamam por liberdades e pelo estabelecimento de limites à atividade de controle do Estado; de outro, exigem que o mesmo Estado criminalize condutas, a ponto de colocar a criminalização como condição para o exercício do “desenvolvimento livre da personalidade”.

Não esqueçamos, ainda nessa quadra, que a tentativa de criminalizar as referidas condutas expostas na inicial tem como sustentáculo a sua correlação (analogia) com o racismo. Nesse sentido, há que se ter em conta a relevante circunstância – de índole constitucional – que racismo é crime hediondo; consequentemente, tudo está a indicar que qualquer agressão de cariz homofóbico e identidades de gêneros, a vingar a pretensão da inicial do Mandado de Injunção, será considerada “crime hediondo”. E veja-se a vagueza e a ambiguidade do “tipo penal” pretendido na impetração, o que, por si só, já ofende princípios e regras elementares da Constituição Federal e do direito internacional dos direitos humanos. Como conceituar “todas as formas de homofobia e transfobia”? Ofensas verbais estão incluídas? E isso seria uma forma de racismo? E o crime de homofobia abrangeria atos concretos de discriminação (mediante uma leitura afinada com o que dispõe o art. 5º, XLI, CF) ou já incluiria atos de preconceito?

Mas também a chaga de uma forma sutil de “maquiavelismo jurídico” merece referência, visto que não é a primeira vez que causas que são em si nobres (uma vez que ninguém questiona — e a CF impõe! — a bondade intrínseca do combate a todas as formas de discriminação), tendem a legitimar, do ponto de vista de alguns, praticamente todo e qualquer meio para a sua realização, ainda que o meio implique sérias violações de direitos e garantias fundamentais, profundamente incrustrados na Constituição e no direito internacional dos direitos humanos, todos a contemplar a legalidade estrita em matéria penal.

Assim, sem pretender tirar a legitimidade dos movimentos sociais em buscar a criminalização de condutas que, a seu juízo, violam seus direitos fundamentais, entendemos, a partir de um olhar constitucional, que esse desiderato não pode ser alcançado pela via do Poder Judiciário. Nossa divergência, nesse sentido, quer abrir as portas para um profícuo diálogo no sentido de buscar as melhores e mais eficazes formas de combater discursos de ódio e atos discriminatórios praticados contra os mais variados movimentos sociais — em especial o LGTBT — e mantendo, assim, incólume a Constituição, porque de nada adiante, sob pretexto de uma proteção, desproteger outros direitos.

Numa palavra: pretendemos ser duros na defesa do direito constitucional, mas tolerantes com a divergência e prontos para o diálogo democrático, circunstância que envolve, necessariamente, o fundamental papel desempenhado pelo Ministério Público brasileiro, em especial na sua fala máxima com assento na Suprema Corte, onde tais questões, muitas vezes por carência de diálogos institucionais, deságuam e acabam por resultar, como se pretende no Mandado de Injunção aqui questionado, em provimento que desborda dos limites do Estado Democrático de Direito. O combate eficaz que deve ser travado contra toda e qualquer forma de discriminação atentatória aos direitos humanos e fundamentais, no que se inclui a luta contra a homofobia, há, contudo, de ser travado sem violar princípios sagrados à Democracia e ao constitucionalismo.

Por Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wolfgang Sarlet, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Lenio Luiz Streck e Flávio Pansieri

Discurso de moralização da política faz mal à jovem democracia brasileira


Estamos em pleno período eleitoral. Como adverti aqui em outras ocasiões nas quais se discutiu o tema dos direitos políticos e da democracia em nosso regime constitucional, infelizmente, corre-se o sério risco de que a moralização da política leve a um nefasto rebaixamento da disputa eleitoral. Ao invés da discussão de ideias, planos de governos e projetos que atendam os graves problemas que atingem nossa sociedade nos três níveis de governo de nossa Federação, vai-se tornando mais provável o terrível vaticínio de que  candidatos de todas as cores políticas, desgraçadamente, vejam-se incentivados e mesmo obrigados a responder a um anseio difuso —  em tudo lamentável — de conquistar a vitória com a moralização do debate político.

Em tais circunstâncias, com sério prejuízo para nossa democracia, sobraria muito pouco espaço para a apresentação de propostas e projetos, já que a propaganda  negativa, aquela que se concentra em profanar o oponente, transformando-o em inimigo público (exemplo da moda: petralha/tucanalha), mostra-se muito mais eficaz do que o comportamento propositivo.

A tentação para moralizar o debate político torna-se ainda mais intensa no terreno hoje fértil entre nós, onde frutificam posições extremas de delírios fundamentalistas à esquerda e à direita. De fato, infelizmente, em pleno Brasil do século XXI, ganha corpo a compreensão daqueles que acreditam, repito, tanto à esquerda como à direita, que os fins de suas ideologias, dogmaticamente tidas como imunes a erros e a contradições, justificam qualquer meio de atuação, inclusive e principalmente, a exclusão definitiva da voz do oponente. Como se sabe, para nosso infortúnio coletivo, muitas dessas ideias estão deixando os sítios virtuais da internet e começam a ganhar a materialidade das ações concretas.

Isso considerado, a questão que submeto aos nossos esclarecidos leitores, com o auxílio de um excepcional ensaio de Niklas Luhmann (Die Zukunft der Demokratie — O futuro da democracia) é a de saber se e até quando a nossa jovem democracia pode suportar o que me parece ser uma grave disfuncionalidade de nosso sistema de disputa eleitoral: a moralização da política.  

Poderia formular uma hipótese inicial de resposta a essa questão afirmando que a nossa democracia — como qualquer outra — não suportará ilimitadamente a predominância de quem trata o opositor político como inimigo, muito menos inimigo moral. A democracia não pode se converter numa disputa entre o essencialmente bom (aquele que pensa como eu) e o essencialmente mau (os que pensam diferente). Em resumo, no Brasil, como em qualquer outro lugar, os inimigos da democracia são, em primeiro lugar, todos aqueles que tratam o seu oponente como inimigo a ser excluído, não importa por qual meio ou instrumento, do debate e da disputa política. A única intolerância da democracia, como já foi dito, deve ser com os intolerantes. Mas vejamos o problema em termos mais analíticos.

Como qualquer instituição humana, também a democracia não pode, só por si, garantir o seu próprio futuro.  Dito de outra forma, também a democracia requer a presença de condições mínimas de possibilidade, sendo que nada a protegerá, se os seus destinatários não estiverem vigilantes com a sua própria má vontade, ou desídia com alguns requisitos mínimos para a preservação de sua existência.  “Todo futuro – adverte Niklas Luhmann – oferece motivo para preocupação. Este é o seu sentido,  e isso vale naturalmente também para o futuro da democracia. Quanto mais o futuro se abra a possibilidades, tanto maior se torna a preocupação. E isso se aplica em medida muito especial à democracia, pois a democracia, se tem algo de fato especial, é (precisamente) uma abertura incomum de possiblidades de escolha futura”. De fato, o autor tomará a democracia menos pela qualidade de seu titular e muito mais por suas possibilidades de abertura e escolha para o futuro.

I — O que é e o que não é a democracia

Segundo Luhmann, bem observados os fatos, a democracia, conceituada como “o governo do povo pelo próprio povo”, seria uma hipótese teoricamente imprestável (unbrauchbar). E, com efeito, é hoje quase incontornável a conclusão de que um regime de governo democrático diz muito pouco sobre si mesmo quando apenas observado pelo aspecto subjetivo de quem o titulariza. A democracia, portanto,  não teria a sua natureza e futuro determinados pela ideia de que o povo possa governar-se a si mesmo.

Ainda segundo Luhmann, a democracia também não se caracteriza pelo “princípio de que todas as decisões devem ser produzidas de forma participativa”, pois isso envolveria um processo infinito de decisões sobre decisões. Uma e outra preconcepções (governo do povo pelo povo e a exigência de que todas  as decisões sejam tomadas de forma participativa), obviamente, sobrecarregariam e/ou inviabilizariam qualquer sistema de tomada de decisão.

No correto dizer de Luhmann, a democracia não é, como querem alguns, um curto-circuito na ideia de poder (o poder anulando o poder) e, de outro, não pode implicar a “multiplicação ou propagação sem fim de cargas de decisão”, o que, além de tudo, resultaria numa “intransparência das relações de poder”. A democracia, como um regime permanente de decisões participativas de todos para todos, obviamente, sacrificaria, por sua ilimitada abertura e indistinção, qualquer possibilidade de controle dos atos de poder, além de impedir a afirmação de outros princípios como premissas materiais de justiça,  tornando impossível saber “o que” e “a quem” se deva demandar. Num ambiente assim revolto,  adverte Luhmann, os resultados muito provavelmente se revelariam a  favor de quem conseguisse “enxergar e nadar nessa água turva”.

Em lugar dessas “inservíveis” hipóteses de definição de democracia, Luhmann prefere conceituá-la como uma “alternativa ou separação na cúpula”, ou, numa tradução livre, “cisão por cima” (Spaltung der Spitze), sendo a democracia caracterizada mais precisamente pela existência de um sistema em que haja, na cúpula da sociedade, uma diferenciação entre governo e oposição, ou seja, em que, na direção da sociedade, haja uma clara distinção de  funções (de governo/de oposição), mas com a possibilidade sempre aberta de uma troca de posições. Consoante essa definição, na democracia, “a oposição não tem poder de governo, mas ela pode, por isso mesmo, fazer valer o poder daqueles-que-não-têm-poder” (Macht der Ohnmacht).

Em outras palavras, o que distinguiria a democracia das demais formas de governo, segundo Luhmann, é que, nos demais sistemas, existiria uma diferenciação estratificadora  entre, de um lado, os detentores do poder (que estão em cima) e, de outro, os que estão submetidos a esse poder (os subalternos, que estão por baixo).  Assim, sem exagero, afirma Luhmann, a democracia é, pode-se dizer, uma estrutura e um acontecimento de alguma forma bastante improvável, pois o normal seria, com as teorias tradicionais, conceber a repartição do poder político a partir de um código bem diferente, isto é, entre a posição de quem está em cima e a posição de quem está em baixo - por exemplo, a antiga divisão entre poder público e o setor privado, entre Estado e cidadão.

Num quadro evolucionário, o que fez a democracia foi, portanto, cindir esse “poder superior”, esse “poder por cima”, criando “pontas” na cúpula, que pudessem representar diversas posições políticas (governo e oposição), obviamente, concebendo e instruindo-lhes com ferramentas para que possam consistentemente exercer os seus “poderes” de governo e de oposição, abrindo-se a democracia, no limite, inclusive e regularmente, à possiblidade de alternância dessa posição binária (governo/oposição).

É essencial à democracia, pois, a distinção e a possibilidade do legítimo exercício das funções de governo e de oposição. Por outro lado, na democracia é “genial também que se evita o exercício ao mesmo tempo do poder pelo governo e oposição ao modo dos cônsules romanos, e permite, apesar disso, a existência simultânea da estrutura binária”.

Sem a divisão/alternativa por cima, entre oposição e governo, como propiciado pela democracia, a mudança de poder, repito, sem alternativa por cima,  verificar-se-ia sempre de forma traumática, com, por exemplo, guerra civil, cisma, desordem ou revolução.

Na democracia, diversamente, nenhum grupo pode pretender representar toda a sociedade, ou titularizar todo o poder, havendo sempre espaço – por cima, nas estruturas de poder -  para o exercício da oposição. Por isso, a democracia é caracterizada como um regime de pontas cindidas. Segundo Luhmann, essa  hipótese pode ser facilmente comprovada, uma vez que, na democracia, qualquer grupo político que tiver a pretensão de representar e ordenar a sociedade como um todo (Gesamtgesellschaft) enfrentará dificuldades com a democracia. Nessas condições, o político perde a condição de representar toda a sociedade.

II — Contra a moralização da política

Logicamente, a alternativa e abertura por cima, própria da democracia, exige que os grupos de poder atuem, no dizer de Luhmann, com uma certa e “distinta amoralidade” em relação aos grupos opostos. Nada mais nefasto, portanto, à democracia que a tentativa de demonizar e  “moralizar” negativamente o comportamento do outro. Nas palavras do grande pensador alemão “Em vez disso, a democracia precisa de um estilo de distinta amoralidade, nomeadamente, a renúncia a moralização do oponente ou da oposição política (Moralisierung der politischen Gegnerschaft)”.

Em outras palavras, nada mais pernicioso à democracia do que o comportamento de quem pretende fazer política moralizando a si mesmo (como “o bem”) e o oponente (como “o mal”). Nessas condições, o apelo à moral desqualifica não apenas um determinado  comportamento ou uma determinada conduta do oponente, mas desqualifica a sua própria existência política e, portanto, a sua habilitação para o exercício legítimo do poder.

Não sabendo dizer de forma mais correta ou mais elegante, valho-me uma vez mais desse grande gênio da sociologia para concluir o presente artigo:

“O esquema governo/oposição não deveria ser confundido, nem por parte do governo nem por parte da oposição, com um esquema moral no sentido de que apenas nós somos bons e dignos de consideração, e  o outro lado, ao contrário, é mau e deve ser condenado e repudiado”.

 Néviton Guedes

Federação tem função de corrigir disparidades econômicas regionais


Neste ensaio quero tratar da função corretora das disparidades econômicas regionais do Brasil por intermédio da União. Com a formação econômica do Brasil, que passou por diversos ciclos regionais de desenvolvimento econômico desde o descobrimento, é fácil notar certa tensão entre as regiões, especialmente entre os eixos Sul e Norte do país no século XX. Para Furtado (2003: 248).

“Assim como na primeira metade do século XX cresceu a consciência de interdependência econômica — à medida que se articulavam as distintas regiões em torno do centro cafeeiro-industrial em rápida expansão —, na segunda poderá aguçar-se o temor de que o crescimento intenso de uma região é necessariamente a contrapartida da estagnação de outras”.

De fato, a contrapartida da estagnação das demais regiões brasileiras em relação à prosperidade econômica do Sudeste tornou-se real, especialmente pela concentração de indústrias no estado de São Paulo. Em outros países do mundo a concentração de indústrias em determinada região também ocorreu, revelando ser uma tendência natural do desenvolvimento econômico a concentração de forças produtivas em determinada região, como ocorreu nos Estados Unidos, Itália e França. Sabe-se também, uma vez iniciada a marcha da concentração, tal não se reverte espontaneamente.

É papel do Estado no sistema federado engendrar formas de diminuição dos efeitos deletérios das disparidades econômicas entre as regiões.

Em geral, as causas que levam a essas disparidades estão associadas à escassez de recursos naturais da região menos favorecida e à incapacidade de acumulação de capitais capazes de gerar os investimentos na agroindústria e na indústria de transformação. No caso do Nordeste brasileiro, as condições climáticas de boa parte do interior, que sempre sofreu com os longos períodos de estiagem, explica o fato de o café, por exemplo, ter encontrado melhores condições de se expandir no Sudeste. Outro ponto curioso, que justifica historicamente os baixos índices de desenvolvimento do Nordeste, foi a condução política dada aos interesses voltados à produção de cana-de-açúcar. Os grandes engenhos, na medida em que não se modernizaram, perderam poder de competição no mercado internacional, ficando a cana-de-açúcar produzida no país, confinada praticamente ao abastecimento do mercado interno.

O café produzido no Sudeste, ao contrário, voltava-se ao mercado interno e externo, produzindo, inclusive, excedentes. O modelo de monocultura agrícola do café também contribuiu para que os governos da época, em um período em que a democracia se sustentava em bases incipientes, tendessem a preferir atender aos interesses econômicos dos cafeicultores, do que aos dos senhores de engenho. O resultado foi a perda paulatina de influência política dos governadores do Nordeste sobre o governo federal (ABRUCIO, 2002: 32).

Esse contexto de perda de força política motivada pelo esplendor da cultura do café no Sudeste, explica de certa forma o fato de os recursos financeiros do capitalismo industrial, embora iniciado no Nordeste, rapidamente ter encontrado condições econômicas e políticas de se expandir no Sudeste.

Apesar da faixa territorial atingida pela seca, não foram exatamente as vicissitudes climáticas que impediram as indústrias do Nordeste de se expandir. Provavelmente a influência econômica e política do Estado de São Paulo sobre a primeira república propiciou a concentração dos investimentos industriais mais nessa região do que no Nordeste. É relevante considerar que as dificuldades para obtenção de água influenciam nas opções do setor industrial. Mas se sabe que os flagelos da seca e dos seus efeitos se resumem à região do semiárido nordestino e não a toda a região. Além disso, as técnicas de obtenção de água do subsolo ou do desvio dos cursos dos rios são antigas e poderiam ter servido, inclusive, de fundamento para o combate da seca desde então.

O caso da região Norte não é tão complicado quanto o Nordeste, pois que a concentração de pessoas é menor, uma vez que na história do desenvolvimento econômico brasileiro, essa região ficou destinada à produção da borracha e foi poupada dos sucessivos ciclos econômico pelos quais passou o Brasil.

Terminado o ciclo da mineração, o Centro-Oeste encontrou sua vocação agropastoril, com a pecuária e algumas plantações de café. O Sul se inclinou também a criação de gado e outros animais de corte, fornecendo insumos para indústrias correlatas a esses bens. Esses fatores, notadamente a cultura de subsistência do Sul e do Norte, aliada às condições climáticas mais favoráveis, diminuíram os efeitos deletérios da disparidade de renda entre o Sudeste e essas regiões.

Em um país com a extensão territorial do Brasil, a correção das disparidades econômicas não é tarefa fácil. Em compensação, os efeitos negativos trazidos pelas disparidades econômicas entre as regiões atravessam tranquilamente as fronteiras entre os estados, sobretudo em razão da integração do sistema monetário.

O primeiro efeito de ordem prática é a migração. O fluxo de mão-de-obra para as regiões de maior produtividade provoca pressão de diminuição do nível de salários, já que aumenta a oferta de mão de obra. O efeito desse crescimento é que os salários deixam de acompanhar o aumento real de produtividade. Se por um lado o aumento de produtividade faz crescer a rentabilidade das empresas (industriais), por outro lado afeta o consumo, porquanto achatando a renda do trabalhador pelo excesso de oferta de mão-de-obra, esse achatamento empurra a alocação de recursos para a compra de gêneros de subsistência, cujos preços em regra são ditados pelo nível de renda dos consumidores. Isso leva a um efeito em cadeia, uma vez que o comércio terá que oferecer preços mais baixos para ter mercado, provocando diminuição de rentabilidade sobre o comércio.

A migração também direciona o capital das regiões mais pobres para as mais ricas, eis que a prosperidade econômica atrai capitais de todas as origens. O efeito é o pouco de capital formado na região menos favorecida migra para a região mais rica, igualmente ao fluxo de mão-de-obra, elevando os índices de pobreza.

Em termos comparativos, considerando que os custos de produção das regiões mais pobres são elevados, o efeito é que a mão-de-obra, nessas regiões, torna-se relativamente mais alta quando comparada com o custo de mão-de-obra das regiões mais prósperas. Esse cenário de escassez de recursos gerados na economia local, somente se resolveria do ponto de vista estritamente econômico, caso pudessem ser importados gêneros alimentícios subsidiados pelo governo para abastecimento da região.

Apesar de ter sido um dado histórico relevante, a migração das regiões brasileiras menos favorecidas para a região Sudeste, não se ignora que a região Nordeste manteve-se densamente povoada, ao menos em sua parte úmida. Apenas nos anos oitenta, o Nordeste encontrou certa vocação para a indústria do turismo. A partir da estabilização monetária dos anos noventa, essa atividade econômica se intensificou, mas não a ponto de atender as necessidades sociais da vida urbana.

Somente a industrialização da região Nordeste poderia atenuar as disparidades econômicas entre as duas regiões mais citadas neste ensaio. O problema se potencializa na medida em que as disparidades econômicas brasileiras se relacionam também com outras regiões, em especial as regiões Norte e Centro-Oeste.

Em uma federação, a convivência em meio a condições econômicas tão díspares não é benéfica. Fora as dificuldades observadas no campo da economia, subsistem tensões políticas que às vezes amadurecem a ponto de eclodir como movimentos separatistas, ou na forma velada de um odioso e sutil preconceito econômico e de origem. Conforme relata Skidmore (2003: 67), nos dois Impérios (1808-1889) ocorreram vários movimentos separatistas, tais como: Guerra dos Cabanos, em Pernambuco (1832-1835), Guerra da Cabanagem, no Pará (1835-1840), Sabinada, na Bahia (1837-18380), Balaiada, no Maranhão (1838-1841) e Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul (1835-1845).

De volta ao ponto, o governo central, no sistema federado, acaba tendo que assumir a tarefa de ser distribuidor da riqueza quando a solução econômica não for viável por fatores naturais, como, por exemplo, o mau desenvolvimento da agricultura.

Quando tais condições desfavoráveis puderem ser superadas, a escolha é de ordem política. De fato, a concentração de capital e sua aplicação nos empreendimentos econômicos não são casuais. A concentração de recursos financeiros por parte dos particulares em determinado segmento é atraída em um processo quase mecanizado e automático, uma vez que a mão-de-obra disponível se concentra proporcionalmente à concentração da atividade econômica mais vantajosa.

No caso da comparação histórica entre a agroindústria e a indústria de bens de valor agregado, esta amealhou inúmeras vantagens sobre a primeira, uma vez que permitiu mais rentabilidade em menor tempo. A industrialização, por sua vez, transformou os modos de ser da sociedade às suas vicissitudes, o que rendeu espaço à ampla e rápida urbanização do espaço territorial brasileiro.

Por conseguinte, nos países federados, especialmente nos casos de grande extensão territorial como ocorre com o Brasil, a União exerce papel destacado ao executar mecanismos de repartição da arrecadação nacional com os demais entes federados. Esse sistema de repartição abre margem ao cumprimento das competências constitucionais materiais em todos os níveis e à tão desejada erradicação da pobreza, da marginalização e da desigualdade entre as regiões.

 Cleucio Santos Nunes

Instituto do foro privilegiado não atende à evolução do Direito


O foro especial tem a seu favor, além de alguns argumentos legais, a sua longa permanência na história do Direito brasileiro. Vale lembrar que a sua instituição teve por fito evitar que certas autoridades fossem processadas criminalmente nos juízos locais, então havidos como influenciáveis por questões políticas ou de alcance paroquial.

Esse cenário político era uma herança dos mandonismos que provinham da época imperial, que sobreviviam nas décadas iniciais do período republicano, quando as disputas partidárias continham poucas notas que as elevassem acima da rasteirice dos interesses dos chefões municipais, que eram os articuladores políticos.

A Justiça, nesse tempo, vivia à sombra das oligarquias e dos chefetes provincianos, não se assemelhando ao atual e moderno Poder Judiciário do país, formado por magistradas e magistrados de alto preparo intelectual e profissional, atuando com independência superior; nada há que temer, portanto, quanto ao relevante aspecto da imparcialidade dos julgadores, de sorte que o argumento perdeu a base sociológica que eventualmente apresentasse.

Ademais, existem fortes razões de ordem prática que conspiram contra o chamado foro especial. A primeira está no fato de os juízes de primeiro grau serem muito mais vocacionados que os magistrados integrantes dos tribunais para o processamento das ações penais, sobretudo na condução inicial do processo e na fase de produção de provas. É que os tribunais foram e são formatados e mais habilitados para revisarem anteriores julgamentos e para manterem a integridade da Constituição e a inteireza das regras legais.

A segunda é que os tribunais não dispõem de estrutura para processarem e julgarem, originariamente, nas questões penais, 81 senadores, 513 deputados federais, 27 governadores, 5.570 prefeitos, além de centenas de deputados estaduais, além dos ministros do Judiciário e do Executivo.

Acrescente-se a isso que o julgamento em mais de uma instância, possibilitado pelo duplo grau de jurisdição, aquieta um pouco o espírito do condenado que nunca se conforma com uma única sentença que o condene definitivamente.

Percebe-se, assim, já ter sido superado o contexto que explicava o foro especial, sendo uma exigência do modelo republicano — que rejeita privilégios — que todas as pessoas submetidas a processo criminal respondam perante o juízo ordinariamente competente.

Não alimento dúvida que o foro especial não reúne mais elementos de racionalidade que lhe possam subsidiar permanência. Caminhamos, com certeza, para a sua extinção e isso é um sinal que o sistema jurídico se atualiza e se torna contemporâneo de sua própria época. Ao contrário será optar pelo conservadorismo e pelo imobilismo institucional, quando se vê que o instituto do foro especial não atende às expectativas da sociedade e à evolução do Direito
Cesar Asfor Rocha

Fim do foro privilegiado não acabará com impunidade de figurões
Editorial do jornal O Globo publicado (19/8).

A Justiça brasileira é lenta. Ao se criar o Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda 45, em 2004, à Constituição, no governo Lula, tinha-se como meta aperfeiçoar o sistema judiciário, objetivo que passa necessariamente por tribunais mais ágeis. Desde então, quase sempre por ações do CNJ, em geral a produtividade das cortes melhorou, mas ainda assim há muito o que fazer neste particular. O tempo de tramitação de processos está longe do ideal, seja pelo acúmulo de ações nas varas ou pelas possibilidades protelatórias que se escondem em ritos ou chicanas que protelam desfechos. A morosidade é uma negação do ato de fazer justiça. Nesse vácuo apostam autoridades processadas por ilícitos, quase sempre envolvidas em corrupção.

Pela Constituição, réus com cargos públicos (ou que por eles tenham passado) são julgados em instâncias especiais, o chamado foro privilegiado — o Supremo Tribunal Federal, o STJ ou Tribunais de Justiça. Por um lado, esse cuidado visa a proteger o acusado de perseguições políticas por meio da Justiça, maquinadas no Judiciário, ou mesmo pelo Ministério Público; por outro, procura evitar que a proverbial vagarosidade dos tribunais comuns sirva para acobertar crimes de colarinho branco ou inviabilizar ações criminais tipificadas no Código Penal. À vista disso, é emblemático que fim do foro especial seja uma bandeira permanente em várias frentes dos três Poderes, mas mais objetivamente no Congresso, por meio de projetos de lei.

À primeira vista, o fim do foro especial no julgamento de políticos em cargos eletivos e autoridades em geral tem uma capa moralizadora. O principal argumento em defesa dessa ideia é que o STF nem sempre é ágil ao cuidar desses processos — o que não é totalmente falso, mas ainda assim é menos arriscado do que transferi-los para os ainda mais lerdos, e mais suscetíveis a pressões, tribunais comuns. Também se diz que deixar tais processos por conta de uma corte superior visaria a proteger poderosos — argumento que não resiste às próprias iniciativas de réus que, processados no Supremo, procuram transferir a ação para a Justiça comum.

Exemplo notório dessa esperteza deu-se no julgamento do mensalão: a primeira manobra da defesa dos acusados foi tentar desmembrar o processo, para deixar por conta da primeira instância judicial o julgamento dos réus sem foro privilegiado. Uma chicana que, se obtivesse êxito, inviabilizaria a acusação e, na prática, livraria todos os mensaleiros do ajuste de contas com a Justiça. Um exemplo dessas ações ardilosas é a manobra do ex-deputado mineiro Eduardo Azeredo, o principal implicado no mensalão tucano, que, processado, renunciou ao mandato (logo, ao foro privilegiado) para ser julgado em corte de primeira instância. Acabar com a impunidade de figurões não passa por ideias falsamente moralizadoras, como o fim do foro especial. Deve-se, na verdade, aperfeiçoar os ritos judiciais — para o quê, inclusive, há instrumentos legais disponíveis, como metas de produtividade, cobradas pelo CNJ aos tribunais. E é preciso, sobretudo, haver vontade política de melhorar e agilizar o funcionamento da Justiça.

CARTA A UMA SENHORA


"Prezada dona Justiça," do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos

Antes de mais nada, dona Justiça, devo confessar que, lá onde nasci, a senhora era figura rara. Não me interprete mal, por favor, não estou insinuando que na minha cidade ou no meu país falte justiça --o que de fato acontece, mas não vamos antecipar as coisas. Eu simplesmente queria começar contando que na minha cidade não se via --e, até onde eu sei, não se vê-- sua figura em locais públicos. Vasculhei minuciosamente minha memória --incluindo as lembranças inventadas-- e juro que não consegui localizar uma escultura, uma pintura ou pelo menos um grafite onde a senhora aparecesse. Estranho, não é? O mais provável é que sua ausência tenha uma explicação sem graça, que se deva a motivos burocráticos, quer dizer, ao fato de a administração da Justiça ser centralizada. Minha cidade não é capital do Estado, não é capital de coisa nenhuma. Ergo: não tem nenhum órgão próprio de Justiça, o que nos condena à ausência do prédio de um tribunal, que teria na entrada e à vista de todos aquela sua figura de olhos vendados, com seu par de pratinhos na mão direita e a espada na esquerda.

Se não me falha a memória --depois de muito puxar por ela, tanto que talvez a misture com a imaginação-- a primeira imagem da senhora que vi na vida foi na televisão. Deve ter sido num filme de advogado ou num desenho de super-heróis. A senhora percebe, dona Justiça? Em nenhum dos casos se trataria de um produto de ficção nacional, os dois são ficções importadas dos Estados Unidos. Volto a lhe pedir que não me interprete mal, não há segundas intenções na minha afirmação --não estou dizendo que a Justiça no meu país seja importada dos Estados Unidos. Só acho curioso uma pessoa que cresceu numa cidadezinha mexicana ter tido o primeiro contato com a senhora Justiça através de uma imagem produzida pela poderosíssima indústria do entretenimento do país vizinho.
A senhora notou, dona Justiça, que num espaço muito breve já lhe pedi duas vezes para não me interpretar mal? Me dá um pouco de vergonha, mas imagino que a senhora já deva estar acostumada, sendo, como é, sujeita a infinitas interpretações.

Desculpe o atrevimento, dona Justiça, mas desde que vendaram seus olhos eu sempre tenho a impressão de que a senhora foi sequestrada. Não precisa que a gente mande alguém para providenciar seu resgate?

Por outro lado, gostaria de lhe sugerir algumas mudanças na sua imagem. Não sei se a senhora costuma ver televisão --imagino que não, a não ser que tire a venda dos olhos depois do expediente--, mas agora são muito comuns uns programas que transformam a aparência das pessoas. No início mostram uma pessoa que faz questão de parecer feia. E no fim do programa essa mesma pessoa aparece linda de morrer. Sei que muita gente acha que isso é uma frivolidade --e é mesmo, quando se trata de seres humanos--, mas acontece que a senhora, dona Justiça, não é um ser humano: é pura imagem. Na minha humilde opinião, a senhora devia encurtar um pouco a saia, ser mais generosa no decote, inclinar o corpo de um jeito mais sugestivo. Numa palavra: ser mais sensual. A senhora pode imaginar? Eu posso: uma dona Justiça que provoque desejo.

E já que quebramos o gelo, gostaria também de falar sobre os pratinhos da balança que a senhora segura na mão direita. Eles me dão angústia. A interpretação mais corrente diz que esses pratinhos representam o equilíbrio entre o verdadeiro e o justo. Certo. Só que eu acho que eles transmitem uma tremenda fragilidade, como se esse equilíbrio, na prática, fosse impossível. É um problema gravíssimo, que põe em risco sua credibilidade e a confiança dos seres humanos! Não sei se a senhora está a par do espírito da nossa época. Deixe eu lhe dizer uma coisa: já não restam muitos idealistas, a maioria deles se bandeou para o time dos pragmáticos. E o que um pragmático pode pensar vendo a senhora de olhos vendados segurando dois pratinhos numa mão e uma pesada espada na outra? "Impossível!", é o que ele vai pensar, que é impossível haver justiça.

Por último, mas nem por isso menos importante, queria lhe falar da espada, símbolo do poder da razão e da justiça. Hoje em dia já não gostamos muito de armas, sabe? Quer dizer, muita gente gosta delas e as usa, mas digamos que nossas sociedades não têm uma boa imagem das armas nem das pessoas que gostam delas e as usam. Sugiro duas alternativas. Se a senhora faz mesmo questão de continuar sendo idealista --coisa que eu aplaudo--, é melhor trocar a espada por um livro ou por uma folha de papel que simbolize nossas leis. Se, ao contrário, a senhora quer convencer os pragmáticos com um elemento dissuasivo --o que também não seria má ideia, dada a situação do mundo--, seria melhor esquecer a espada e comprar logo uma arma de fogo. Uma pistola. Uma escopeta. Melhor ainda! Uma Uzi, um AK-47!

Pode ser que a esta altura, cara dona Justiça, a senhora esteja escandalizada. Se for assim, peço que me desculpe. Minha imaginação foi condicionada pelo fato de não ter crescido perto de uma imagem sua. A senhora provoca em mim uma terrível saudade, a mesma que sentem os amantes separados por milhares de quilômetros. Acredite que o que me move é o mais puro amor por tudo que a senhora representa.
Sempre seu,
Juan Pablo Villalobos

Texto originalmente publicado na Folha de S.Paulo, pela primeira vez em português. Foi escrito para comemoração dos 100 anos do Palácio da Paz, em Haia. Traduzido por Sérgio Molina.

sábado, 2 de agosto de 2014

Parlamento britânico aprova lei de reforma da câmara dos lordes


A crise da legitimidade parlamentar é praticamente universal. A democracia representativa é uma das grandes conquistas da civilização ocidental e sua evolução pode ser associada a alguns marcos históricos, nos quais se deu a afirmação da aristocracia e da burguesia sobre o poder centralizado na figura do monarca. São exemplos disso os episódios que permitiram a aprovação da Magna Charta de 1215 e do Bill of Rights de 1689. Quanto a este último documento, é de ser lembrado que sua aprovação pelo rei Guilherme III e pela rainha Maria decorreu do sucesso da Revolução Gloriosa de 1688-1689, que destronou o rei católico Jaime II, da dinastia escocesa dos Stuart.

No século XVIII, a Revolução em França, de 1789, surgiu com idênticos propósitos aos da revolução inglesa de 1688-1689. Uma de suas fontes de inspiração foi a Revolução Americana de 1776, que aprovou uma constituição presidencialista (uma cópia do modelo britânico então existente, com a diferença de se ter um rei eleito, o presidente dos Estados Unidos), mas que também conferiu enorme importância ao Congresso. A experiência francesa é um excelente paralelo ao que ocorreu no Reino Unido, quase 100 anos antes, e sua leitura metafórica está muito bem posta no clássico de Charles Dickens, A tale of two cities (Um conto de duas cidades), de 1859. O centro da metáfora dickensoniana está em que os aristocratas britânicos uniram-se à burguesia para destronar um rei impopular, ao passo em que os franceses não souberam transformar o falido modelo absolutista e terminaram por lançar a nação em um banho de sangue.

Nos séculos XIX e XX, a participação popular no processo político-representativo tornou-se crescente e foi alimentada por outras revoluções, especificamente a Revolução Industrial  (que não foi um movimento político e sim econômico) e a Revolução Russa de 1917. Os britânicos, uma vez mais, souberam antecipar-se às exigências históricas e realizar reformas suaves em seu sistema político. Sob a liderança de políticos conservadores e liberais, como Benjamin Disraeli, 1o Conde de Beaconsfield (1804-1881), David Lloyd George, 1° Conde Lloyd George de Dwyfor (1863-1945), e Winston Spencer Churchill (1874-1965), o único dos três com ancestralidade nobre desde o século XVII, aprovaram-se leis que ampliaram o direito ao voto aos membros das classes trabalhadoras e que reformaram o sistema eleitoral, a fim de eliminar práticas espúrias como distritos eleitorais fantasmas (os famosos “burgos podres”) e a compra de votos.

O processo britânico de democratização radicalizou-se durante as duas Grandes Guerras do século XX. Um exemplo disso está em que Lloyd George e Winston Churchill conseguiram aprovar o Parliament Act 1911, que retirou da Câmara dos Lordes o poder de veto em matéria orçamentária, não sem antes ter ocorrido a famosa crise constitucional de 1910, na qual o Gabinete Liberal ameaçou criar 400 novos pares do Reino para a Câmara dos Lordes e obter a aprovação da lei orçamentária com uma nova maioria naquela casa parlamentar. Não é sem causa que alguns historiadores atribuem a vitória britânica em ambas as guerras à superioridade de seu regime político sobre os arcaicos modelos monárquicos das potências centrais — Alemanha e Áustria-Hungria. O fim da era czarista na Rússia, destruída pela Revolução de Outubro, é também atribuído ao anacronismo de suas instituições, dado que os russos começavam a experimentar um enorme crescimento industrial no início do século XX.

Essa radicalização democrática chegou ao século XX. No entanto, a hipercomplexidade da sociedade contemporânea revelou o esgotamento do modelo parlamentar clássico, que hoje tem de conviver com diversos e contraditórios fenômenos, que ora solapam sua legitimidade popular, ora põem em xeque a legitimidade moral desse modelo que atravessou os últimos séculos e conseguiu sobreviver a enormes desastres históricos. Algumas dessas contradições podem ser inventariadas:

a) A maior democratização do processo eleitoral trouxe para os parlamentos —em seus diferentes níveis — os representantes de setores sociais excluídos, mas também permitiu que muitos vereadores, deputados e senadores fossem eleitos, com votações estrondosas, graças a seu exotismo ou a duvidosos méritos em certas atividades.

b) Generalizou-se o alheamento do Poder Legislativo de profissionais liberais bem-sucedidos, servidores públicos qualificados, professores, médicos e outros integrantes da “classe média”. Os elevados custos de se participar das eleições e o recrudescimento de métodos sujos antes, durante e depois do processo eleitoral tornaram bem pouco atrativo o Parlamento para aquelas personagens, que, durante boa parte do século XX, ocuparam posições de protagonismo nas casas legislativas.

c) A perda de massa crítica nos parlamentos, especialmente nas câmaras altas, que eram responsáveis pela estabilização do processo legislativo, deslocou o cenário das decisões políticas fundamentais para a cúpula do Poder Judiciário, de modo específico o tribunal constitucional. O “protagonismo judiciário-constitucional relutante” é sentido não apenas no Brasil, mas em países tão diferentes como a Tailândia, a Turquia e o Egito, estes últimos em uma fase histórica de disputa (ou de busca de equilíbrio) entre os militares, o Parlamento e o Tribunal Constitucional.

d) A criminalização da política avança a passos largos e, para além da retirada de cena dos antigos líderes intelectuais da cena parlamentar, identifica-se agora a discreta saída dos capitalistas dos congressos. Evidentemente que se continuará com o ingresso sazonal de alguns líderes empresariais, que buscam um reconhecimento social de um mandato para seu êxito nos negócios privados. No entanto, os riscos para a reputação desses indivíduos, decorrente do processo eleitoral, e a perda de relevância decisória dos parlamentos têm atuado para que esse fenômeno se manifeste e não apenas no Brasil.

Um dos símbolos mais evidentes desse trágico processo de degradação da mais importante das instituições democráticas, o Parlamento, pode ser identificado na pátria da democracia representativa, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. (...)

O projeto, apresentado em junho de 2012, transformou-se em lei aos 14 de maio de 2014. E é sobre seus principais aspectos de que se cuidará agora.

A nova lei, intitulada de House of Lords Reform Act 20141, aplica-se à Inglaterra, ao País de Gales, à Escócia e à Irlanda do Norte (seção 7, item 4), embora suas três primeiras seções, que tratam da renúncia, do não comparecimento e da condenação por serious offence2, terão vacatio de três meses, contados de 14 de maio de 2014.

O House of Lords Reform Act 2014 introduziu medidas inéditas no regime parlamentar britânico, no que se refere ao modo como são tratados os pares do reino que integram a câmara alta.

A primeira inovação está em se permitir a aposentadoria ou a renúncia de um lord (seção 1), o que era tido como algo impossível em termos constitucionais. A renúncia é irretratável e não terá efeitos retroativos, devendo ser comunicada ao Secretário do Parlamento.

Na seção 2, encontram-se as normas para o não comparecimento dos lords às sessões parlamentares. O membro da Câmara dos Lordes, que é um par do Reino e que não compareça em 1 sessão, deixará de integrar a casa no início da sessão seguintes (item 1). Essa regra só terá aplicação se for certificada a ausência pelo Lord Speaker, com bae nos registros oficiais da casa, e se o par não tiver obtido licença para se ausentar, nos termos do regimento da Câmara dos Lordes. É possível também relevar a aplicação da pena se a Câmara entender que o par encontra-se justificado por “circunstâncias especiais”, além de outras hipóteses menos relevantes.

A seção 3 prevê a hipótese de condenação do lord por serious offence (item 1). Para fins disciplinares, essa condenação só terá efeito no Parlamento se: a) o Lord Speaker certificar que a pessoa, na condição de membro da Câmara dos Lordes, foi condenado criminalmente e que a ordem judicial determinar a prisão ou a custódia por tempo indeterminado ou por mais de um ano (item 2). É irrelevante para os fins do item 2, se o crime for cometido por alguém que já é membro da Câmara dos Lordes e se a ordem judicial ou seus efeitos ocorrem no Reino Unido ou em outro lugar, desde que a casa alta entenda que seja possível aplicar o item 1 a esse tipo de condenação.

A reforma aprovada em 2014 é uma resposta “possível” a uma demanda por uma mudança substancial no Parlamento britânico. Há defensores de soluções mais radicais como a pura e simples extinção da Câmara Alta, como tem ocorrido em diversos países do mundo, ou de sua transformação em um Senado, com representantes eleitos e não mais com membros vitalícios.

Infelizmente, escândalos como a “venda” de títulos de nobreza e de vagas na Câmara dos Lordes, durante a administração do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, e, mais recentemente, o envolvimento de Lord Hanningfield em fraudes para obtenção indevida de ressarcimento de despesas e diárias têm minado a credibilidade da House of Lords. O exemplo do barão Hanningfield é bem característico da triste realidade da “moderna” Câmara dos Lordes: nascido em 1940, Paul Edward Winston fez carreira política como representante dos jovens agricultores e avançou nas fileiras do Partido Conservador levantando a bandeira da autonomia dos governos locais. Em 1998, ele foi nobilitado como barão e tornou-se membro da Câmara Alta. Em 2009, Lord Hanningfield, Lord Taylor of Warwick (filho de imigrantes jamaicanos e indicado pelo Partido Trabalhista) e os deputados trabalhistas Elliot Morley, David Chaytor e Jim Devine foram acusados criminalmente no “Escândalo das Despesas Parlamentares”.

Um paradoxo nessa crise é que a origem da maior parte dos “lordes modernos” é socialmente idêntica: pessoas oriundas de classes sociais menos favorecidas. Sendo certo também que é comprovado estatisticamente que a atual composição da Câmara Alta é a mais plural e diversificada de entre as instituições parlamentares do Reino Unido. Há mais representantes de minorias, imigrantes e de pessoas com necessidades especiais do que em qualquer outra casa parlamentar democraticamente eleita. Desde a reforma de Tony Blair, ocorrida nos anos 1990, a maioria dos lords tradicionais perderam o direito de assento hereditário na câmara alta.

O tema da reforma da Câmara dos Lordes permanecerá em destaque no Parlamento britânico.

Se a Câmara dos Lordes é hoje o símbolo da crise do modelo parlamentar, que se verifica em todo o mundo, parece ser bom lembrar que, em 2015, se celebrarão 410 anos da “Conspiração da Pólvora”, um episódio histórico até hoje lembrado no Reino Unido e cuja principal personagem, o católico Guy Fawkes, tornou-se o símbolo dos protestos ocorridos no Brasil em 2013, com a máscara usada por centenas de ativistas.

Em 1605, um grupo de conspiradores tentou assassinar o rei Jaime I durante a cerimônia de abertura do Parlamento, que ocorreria no dia 5 de novembro, na Câmara dos Lordes. Guy Fawkes, um experiente militar nas campanhas da Guerra Hispano-Holandesa, foi encarregado de minar os subterrâneos da House of Lords com barris de pólvora. A conspiração foi denunciada e conseguiu-se impedir a explosão. Os envolvidos foram presos, julgados e condenados à morte. Desde então, as noites de 5 de novembro tornaram-se data de comemoração popular no Reino Unido. É a Bonfire Night ou Noite de Guy Fawkes.

Hoje, a efígie de Guy Fawkes difundiu-se na cultura popular contemporânea graças aos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, posteriormente transformados no filme V de Vingança, de James McTeigue. A máscara com o sorriso e o bigode de Fawkes converteu-se em um símbolo de rebeldia. A metáfora da tentativa de explosão da Câmara dos Lordes e do Parlamento britânico, um atentado contra um rei e os membros do Legislativo, passou por uma releitura e ganhou a simpatia de muitos “indignados”.

Com todos os problemas, o Parlamento e o modelo de democracia parlamentar ainda é a forma possível de filtragem da soberania popular e de transformação de milhões de vontades individuais em algo parecido com o sonho iluminista de uma “vontade geral” ou de uma “vontade nacional”, dois conceitos datados e que merecem ser lidos com a necessária contextualização histórica. É provável que tenha havido a reconversão histórica de um atentado contra o sistema parlamentar, por razões religiosas, no século XVII, em um desejo de implosão do “sistema”, nos dias atuais.

É preciso lembrar, porém, que foi esse modelo falido e criticado que resistiu durante os trágicos anos de 1939-1945 ao avanço das forças totalitárias do nazifascismo na decadente Europa dos anos 1930, com o apoio heróico das forças soviéticas a partir de 1941.

Em 1939, o Reino Unido fez uma declaração formal de guerra às potências do Eixo, algo que foi ridicularizado por Hitler. Essa declaração foi lida por um arauto, com trajes do século XVII, na entrada do Parlamento britânico. E, mesmo após os bombardeios a Londres e a destruição de sua sede, as Câmaras dos Comuns e dos Lordes nunca deixaram de se reunir.

Se não há mais homens e mulheres com a legitimidade ou com as qualidades daqueles tempos sombrios, isso não pode ser afirmado peremptoriamente, embora haja suspeitas a respeito de que isso é verdade. Independentemente dessa visão pessimista, o modelo parlamentar merece ser defendido, com todas suas contradições e mazelas. A democracia ainda precisa do Parlamento. A História comprova que os inimigos do Parlamento nunca desejaram outra coisa que não o poder absoluto. E não se precisa sair do Brasil para saber disso.

 Otavio Luiz Rodrigues Junior

Novo presidente do Supremo deverá enfrentar grandes desafios em sua gestão


O Supremo Tribunal Federal elegerá nos próximos dias seu novo presidente, o que se espera que ocorra dentro do já costumeiro clima de estabilidade institucional que tem marcado as sucessões presidenciais na Corte.

A eleição do presidente do STF por seus próprios pares tem representado, ao longo de toda a história do Tribunal, uma garantia de independência e, portanto, uma espécie de escudo institucional contra as ingerências políticas dos demais poderes, especialmente do Poder Executivo.

Nunca é demais relembrar alguns conhecidos episódios históricos em que o Tribunal se viu institucionalmente vulnerável em face do Poder Executivo, como o ocorrido no governo Floriano Peixoto, quando o presidente e o vice-presidente da Corte eram obrigados a prestar juramento perante o chefe do executivo, que demorava para marcar a data da cerimônia e assim deixava o Tribunal e seu regular funcionamento submetidos às vontades do Executivo; assim como o período em que o governo de Getúlio Vargas determinou, por meio do Decreto-Lei 2.770 (de 11 de novembro de 1940), que o presidente e o vice-presidente do STF deveriam ser nomeados, por tempo indeterminado, diretamente pelo presidente da República.

Ambos os episódios (encerrados em 1894 e 1946, respectivamente) geraram para a Corte lições históricas importantes no sentido da necessidade de se consolidar e de se assegurar a permanência dessa regra de eleições presidenciais pelos próprios integrantes do colegiado como uma garantia de sua independência e de seu regular funcionamento e desenvolvimento institucionais.

O tradicional sistema de eleições presidenciais no STF também tem contribuído para que o presidente seja considerado no interior do colegiado como um primus inter pares. A própria configuração institucional do cargo assim o sugere, ao prever mandatos presidenciais relativamente curtos, de apenas dois anos, vedada a reeleição. Assim, a cada dois anos os ministros elegem seu novo presidente, que deve ser escolhido entre os integrantes do próprio colegiado. Na prática, adota-se a já tradicional regra costumeira de se respeitar a ordem decrescente de antiguidade entre os magistrados, de modo que sempre é eleito o ministro mais moderno em relação ao presidente que termina seu mandato.

A observância rigorosa dessas normas e práticas no processo de eleição presidencial tem proporcionado a manutenção de uma ordem institucional no seio do colegiado e assegurado uma legitimidade muito forte do presidente entre os colegas. Todos são bastante conscientes do fato da rotatividade periódica e da ordem pré-estabelecida de sucessão no cargo, o que na prática elimina completamente eventuais jogos políticos com objetivo de conquista do cargo. O clima institucional é de pleno respeito ao exercício presidencial de cada ministro que esteja ocupando o cargo, o qual é reconhecido como o coordenador momentâneo das atividades administrativas e jurisdicionais do Tribunal, mas que por isso não deixa de ser considerado entre seus pares como mais um membro do órgão colegiado.

O fato é que o Supremo Tribunal Federal pratica hoje um regime de autogoverno que é mais colegiado do que presidencialista. Não se cultiva uma figura presidencial forte como a que existe na Suprema Corte dos Estados Unidos — cujo chief justice é nomeado pelo presidente da República por tempo indeterminado — e também não há espaços para se falar, como na realidade norte-americana, de uma “Corte Warren”, por exemplo. Apesar de algumas destacadas atuações presidenciais no STF, como as dos ministros Moreira Alves, Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso e, mais recentemente, dos ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes, as características institucionais do cargo não deixam muita margem para se atribuir a uma única figura presidencial o predomínio doutrinário e a liderança institucional que podem marcar toda uma época na histórica da Corte.

Nesse contexto, a cada dois anos um novo presidente do STF assume a direção do Tribunal dotado de considerável legitimidade perante seus colegas para, sobretudo, dar continuidade ao trabalho das gestões anteriores, enfrentando os desafios que se impõem momentaneamente no biênio de seu mandato.

O novo presidente do STF, o ministro Ricardo Lewandowski, enfrentará desafios atuais importantes. Alguns deles exigirão do presidente um perfil mais político para atuar perante os demais Poderes e os órgãos do Poder Judiciário. A demanda remuneratória dos servidores do Poder Judiciário, que também se relaciona com o pleito de reformas na carreira dos servidores do próprio STF, são alguns dos temas administrativos que pressionarão a nova gestão da Corte e provavelmente a inserirá no embate político com o Poder Executivo pela aprovação orçamentária, como já ocorrido em outras ocasiões. Perante o Poder Legislativo, o presidente terá que atuar politicamente pela aprovação dos projetos de lei de interesse do Poder Judiciário, entre os quais, por exemplo, o Projeto de Lei de Regulamentação do Mandado de Injunção, que permanece como a única ação constitucional despida da regulamentação exigida pela Constituição. No âmbito do Conselho Nacional de Justiça, deve ser cobrada a continuidade e o aperfeiçoamento de políticas importantes, algumas delas criadas em gestões anteriores como as da ministra Ellen Gracie e do ministro Gilmar Mendes, seja no âmbito do sistema prisional, no aperfeiçoamento da gestão e da informatização dos tribunais e nos programas especiais voltados para a efetivação do direito à saúde, democratização e acesso à justiça, conciliação, mediação e arbitragem.

É no plano interno, no entanto, especialmente no tema da gestão dos processos do Tribunal, que se encontram alguns dos principais desafios atuais do novo presidente do STF. Em especial, existe uma premente necessidade de encontrar soluções procedimentais inovadoras para o pleno funcionamento do sistema de normas e procedimentos da repercussão geral, que inicialmente tiveram imenso desenvolvimento nas gestões da ministra Ellen Gracie e do ministro Gilmar Mendes, mas que há algum tempo sofrem do problema da elevada quantidade de temas com repercussão geral aprovada à espera de efetivo julgamento de mérito. A constante aprovação de novos temas no plenário virtual e a dificuldade de julgamento daqueles já aprovados têm criado uma fila de julgamentos praticamente infindável em curto prazo e implicado o sobrestamento nos tribunais inferiores de uma quantidade muito grande de recursos, com graves impactos na gestão dos processos no âmbito do Poder Judiciário e repercussões desastrosas para a prestação jurisdicional. O problema, no fundo, diz respeito às práticas de deliberação do Tribunal, que não criam condições para julgamentos mais céleres e eficazes que poderiam dar maior vazão à imensa lista de processos da atual pauta do Plenário.

O pleno desenvolvimento do sistema de repercussão geral está a depender de uma verdadeira revolução nas práticas deliberativas do Supremo Tribunal Federal, cujo modelo vem demonstrando sinais claros de esgotamento, como já afirmado nesta coluna em 1º de fevereiro de 2014 — clique aqui para ler. O novo presidente terá que se atentar para esse fato. É preciso criar regras (regimentais), reconstruir e renovar práticas antigas e arraigadas, muitas que remontam aos primórdios do Tribunal e que não mais respondem ao perfil institucional da Corte e às demandas do atual sistema complexo de tramitação e julgamento tanto dos recursos como dos processos originários na Corte.

Em termos genéricos, algumas ideias podem servir de referência, tais como, por exemplo: o planejamento estratégico da agenda de julgamentos e a definição das pautas temáticas com maior antecedência (mensal ou semestral, a depender do tipo de processo); a construção de práticas de deliberação prévia que favoreçam maior diálogo interno entre os ministros e possam criar condições para a construção mais colegiada dos posicionamentos; o desenvolvimento de costumes de votação mais célere, como a limitação prática do tempo de voto individual; realização de sessões extraordinárias exclusivas para relatórios e sustentações orais; a ampliação do uso dos sistemas informatizados e do plenário virtual para contatos e trocas argumentativas e textuais internas, não só entre ministros, mas também entre as equipes dos diversos gabinetes; construção de padrões de formatação, mais estruturados, sintéticos, claros e facilitadores da publicação mais célere, para os acórdãos e especialmente para as ementas, para que estas possam efetivamente representar, de forma didática e unívoca, a posição do colegiado; entre outras. Além disso, é hoje fundamental dar continuidade à ampliação da competência das turmas, o que já vem trazendo resultados positivos para a paulatina diminuição da pauta do Plenário.

Essas questões devem ser levadas a sério pelo novo presidente e postas à discussão do colegiado, com a finalidade de se dar início aos trabalhos de reformas de curto, médio e longo prazo, que gerem responsabilidade, inclusive, para as próximas gestões presidenciais.

 André Rufino do Vale