"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A justiça como fundamento da política e a máxima democrática


O debate político amplo e irrestrito é fundamental a um Estado democrático. No entanto, o livre câmbio das ideias na arena política, necessita lastrear-se em uma liberdade serena, que somente pode ser alcançada a partir da justiça que inspira um equilíbrio de forças ideológicas opostas.
Logo mais se avizinha um novo processo eleitoral a coroar a marcha democrática da República Brasileira, não sem tocar, entretanto, em algumas chagas, que se põem a sangrar, nesses momentos exponenciais da democracia representativa.

Assim, às voltas com a manutenção e troca dos chefes políticos por todo o país; a partir do inferno astral dos sucedidos, ouvem-se ranger de dentes e gemidos de azedume (incluindo dos que ficam).

Razões políticas perfilhadas em primeiro plano, esquadrinhando os caminhos de uma transição “suave”, poder-se-ia avocar à razão Socrática, reproduzida por Platão, a verberar que o erro deriva da ignorância, devendo-se, portanto, trazer à luz, olhos acostumados às trevas.

Ora, noblesse oblige! A democracia precisa se equilibrar sobre essa corda bamba, sob pena de se espatifar em um piso azulejado pelo azedume e pela mesquinharia. Serenidade e sobriedade são as medidas do respeito que se deve devotar à continuidade da ação política. De parte a parte, o governo de todos abrange vencidos e vencedores, já que perfilam-se, todos, como cidadãos, sob o manto do interesse comum.

O debate político amplo e irrestrito, adverte-se, é o fundamento desse estado de coisas. Um Estado fundado em uma democracia representativa. E o livre câmbio das idéias na arena política, somente se pode lastrear em uma liberdade serena. A calma necessária para se assegurar a par conditio. E após, a reflexão silenciosa e detida dos espectadores, que se revele em uma decisão responsável e motivada dos eleitores. É o que recomenda a Prudência. É o que exige a Ética. Afinal, o Estadismo preconiza o debate de idéias oportunas na arena política, devendo, o melhor argumento, condicionar o resultado das urnas.

Hobbes, em seu Leviatã, insinua que o Estado Nacional deriva do desejo comum de viver em paz com aquilo que possibilita a convivência de indivíduos desiguais em sociedade.

Acreditamos, portanto, que esse “aquilo” se apresenta no conceito de justiça. Uma justiça que inspira um equilíbrio de forças ideológicas opostas, que alcance um ponto de equilíbrio temporário, mas seguro, apto a gerar um campo neutro, em que as ideias sejam o único móvel capaz de gerar convicções políticas.

Por tal razão, o direito é arte do concreto, como já dizia o português Paulo Ferreira da Cunha e o brasileiro Ricardo Dip. Afinal, contra fatos não há argumentos, já se dizia.

Narra o mito que a Sabedoria e a Justiça, personificadas através da deusa grega Athena, é fruto de Métis (a astúcia, a inteligência) com o poderoso Zeus, chamado ordenador do Cosmos. Após ter sido proferido pelo oráculo que se Zeus tivesse uma filha, ela se tornaria ainda mais poderosa que ele, Zeus tratou de engolir Métis para impedir o nascimento. Assim, Athena é gerada na cabeça do soberano do Olimpo (por isso, a deusa é associada ao lógos). Findado o período de gestação, Zeus passou a sentir terríveis dores de cabeça, pois enquanto a Justiça não nasce, elas são inevitáveis. Desesperado e no limite da dor, Zeus ordena ao ferreiro divino Hefestos (Vulcano) que lhe abrisse a cabeça. Assim, surge, imponente e armada, pronta para a guerra, a deusa Palas Athena.

Palas significa "a donzela", pois a poderosa filha pede ao pai para manter-se sempre virgem e, desta forma, impor-se com a autoridade de quem não se deixa seduzir ou corromper. Altiva, é sempre acompanhada por Niké (a vitória). Mas o combate da deusa grega é diferente da guerra do bélico deus Ares, o cruel deus da guerra, aquele que não titubeia em impor sua caprichosa vontade a quem quer que seja. Um deus de caráter epimetéico: primeiro age, depois pensa. Sempre acompanhado de Éris (a Discórdia), que com seu archote em chamas acende o furor no coração dos homens.

Portanto, pensar é atividade da mente, do elemento Ar, atitude que distingue os homens das bestas (ou dos bestas). Daí a prudente razoabilidade de Palas Athena ser tão necessária à manutenção da ordem (Cosmos) e à evolução do espírito humano.

Apesar de Palas Athena ser a patrona da guerra, o combate por ela preconizado é o feito com inteligência e astúcia, motivado por um ideal honroso, quando uma batalha é a última e derradeira argumentação na defesa da justiça quando todas as outras falharam.

Nas pegadas de Perelman, confiar na justiça, além de exercício da serenidade, é imperativo de existência do regime democrático. Refletindo sobre a máxima de Heráclito: “A Guerra é Pai de todas as coisas”, é, portanto, pela espada de Athena que se impõe a Justiça.

Finalmente, se tudo isso se mostra elocubrativo demais, em tempo de guerra não se limpam armas. Assim, se o melhor absoluto se revela impossível, dadas às circunstâncias – já que o viés é de baixo para cima, almeje-se o melhor possível. É o que ensina Aristóteles.

Alexandre Gazetta Simões

sábado, 12 de julho de 2014

A lógica do poder e a sociedade


Para condicionar a conquista do poder à ética, organizações da sociedade civil não podem defender causas corporativas potencialmente danosas.

A maioria dos políticos (felizmente, não todos) trabalha na lógica do poder, e não na lógica do bem-estar da população. É o que está ocorrendo no Brasil e em muitos países, provocando uma enorme crise de legitimidade da representação dos partidos políticos. O que importa é conquistar e manter o poder, que passa a ser o norteador da maioria das decisões e das ações.

O dinheiro das campanhas pode ser por dentro ou por fora (caixa 2). Não importa de onde e como vier. Os doadores são retribuídos com contratos e favores à custa do dinheiro público. Para ganhar tempo na televisão, firmam-se alianças espúrias sem questionar a afinidade ideológica ou a ética do parceiro. A conta vem na forma de benefícios aos partidos (cargos, recursos públicos etc.), feitos a despeito do interesse público.

Na lógica do poder, o objetivo dos partidos é combater e enfraquecer as legendas rivais. A análise das propostas e das políticas não passa pelo crivo do interesse público, mas por avaliar se aquela medida favorece ou prejudica o partido. Oposição e situação consideram péssimo tudo o que o adversário faz e propõe. Raramente se coloca como fator de avaliação e de decisão o interesse da população. Por exemplo, às vésperas de eleições, é comum esconder a gravidade de determinados problemas e deixar de tomar medidas preventivas, como ocorre com a crise da água em São Paulo.

As organizações da sociedade civil não conseguem mudar essa lógica, mas podem condicionar a conquista e a manutenção do poder ao comportamento ético e ao atendimento das demandas da população. Precisam acompanhar o trabalho dos gestores públicos e dos legisladores, o cumprimento das promessas eleitorais e os resultados das gestões, mobilizando a população e informando os eleitores.

Para isso, precisam ganhar credibilidade e legitimidade. Em primeiro lugar, colocar demandas que atendam ao interesse público, e não defender causas corporativas que possam ser danosas para a população. Em segundo lugar, evitar cair na lógica do poder, desvirtuando os objetivos que deram origem à organização social. O risco é começar a tomar decisões que visem, em primeiro lugar, fortalecer o poder da própria entidade, e não o alcance de sua missão.

Em terceiro lugar, ter uma gestão, práticas e ações coerentes com os princípios e valores que propaga. “Temos que ser o mundo que queremos”, como dizia Mahatma Gandhi. Em quarto lugar, acompanhar a atuação dos governos e dos legisladores e avaliar se cumpriram suas promessas eleitorais, se estão tratando com ética os recursos públicos e se estão de fato melhorando a qualidade dos serviços públicos e, consequentemente, a qualidade de vida da população. E, por último, ter uma atuação totalmente apartidária, pois, ao se vincular a um partido político, a organização perde sua autonomia, sua independência e sua legitimidade diante da sociedade e passa a atuar na mesma lógica de poder desses mesmos partidos.

As cidades e os países mudam e se transformam pela qualidade das políticas e serviços públicos. Pela sua escala, pela abrangência, são as políticas públicas de educação, saúde, habitação, mobilidade, tributos, economia etc. que provocam impactos no Brasil e em qualquer país do mundo. Cabe à sociedade trabalhar para que a conquista e a permanência no poder dos partidos políticos sejam condicionadas ao cumprimento das promessas eleitorais e das metas da gestão, à ética e à melhora dos indicadores sociais, econômicos e ambientais.

 Oded Grajew

Os desiludidos da República


Há um notório sentimento popular de cansaço, de enfado, de identificação do voto como um ato inútil, que nada muda

A proximidade das eleições permite uma breve reflexão sobre o processo de formação de uma cultura política democrática no Brasil. A República nasceu de um golpe militar. A participação popular nos acontecimentos de 15 de novembro de 1889 foi nula. O novo regime nasceu velho. Acabou interrompendo a possibilidade de um Terceiro Reinado reformista e modernizador, tendo à frente Isabel como rainha e chefe de Estado e com os amplos poderes concedidos pela Constituição de 1824.

A nova ordem foi edificada para impedir o reformismo advogado por Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay e André Rebouças, que incluía, inclusive, uma alteração no regime de propriedade da terra. Os republicanos da propaganda — aqueles que entre 1870, data do Manifesto, e 1889, divulgaram a ideia republicana em atos públicos, jornais, panfletos e livros — acabaram excluídos do novo regime. Júlio Ribeiro, Silva Jardim e Lopes Trovão, só para recordar alguns nomes, foram relegados a plano secundário, considerados meros agitadores.

O vazio no poder foi imediatamente preenchido por uma elite política que durante decênios excluiu a participação popular. As sucessões regulares dos presidentes durante a Primeira República (1889-1930) foram marcadas por eleições fraudulentas e pela violência contra aqueles que denunciavam a manipulação do voto.

Os opositores — os desiludidos da República — passaram a questionar o regime. Se apontavam corretamente as falácias do sistema eleitoral, indicavam como meio de superação, como disse um deles, desses “governichos criminosos”, a violência, a tomada pelas armas do Estado. E mais: que qualquer reforma só poderia ter êxito através de um governo ultracentralizador, instrumento indispensável para combater os poderosos, os senhores do baraço e do cutelo, como escreveu Euclides da Cunha.

Assim, o ideal mudancista tinha no seu interior um desprezo pela democracia. Acentuava a defesa de um novo regime para atender as demandas da maioria, mas com características autoritárias. Alguns até imaginavam que o autoritarismo seria um estágio indispensável para chegar à democracia.

A Revolução de 30 construiu o moderno Estado brasileiro. Enfrentou vários desafios e deu um passo adiante no reformismo nacional. Porém, aprofundou as contradições. Se, de um lado, foram adotados o voto secreto, a Justiça Eleitoral, o voto feminino, conquistas importantes, manteve uma visão de mundo autoritária, como ficou patente desde 1935, com a repressão à rebelião comunista de novembro, e mais ainda após a implantação da ditadura do Estado Novo, dois anos depois.

A vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial deu alguma esperança de, pela primeira vez, caminharmos para o nascimento de uma ordem democrática. A Constituição de 1946 sinalizou este momento. O crescimento econômico, a urbanização, o fabuloso deslocamento populacional do Nordeste para o Sul-Sudeste, a explosão cultural-artística — que vinha desde os anos 1930 — foram fatores importantes para o aprofundamento das ideias liberal-democráticas, mesmo com a permanência do autoritarismo sob novas vestes, como no ideário comunista, tão influente naquele período.

O ano de 1964 foi o ponto culminante deste processo. A democracia foi golpeada à direita e à esquerda. Para uns era o instrumento da subversão, para outros um biombo utilizado pela burguesia para manter sua dominação de classe. Os que permaneceram na defesa do regime democrático ficaram isolados, excluídos deste perverso jogo autoritário. Um desses foi San Tiago Dantas.

Paradoxalmente foi durante o regime militar — especialmente no período ditatorial, entre os anos 1968-1978 — que os valores democráticos ganharam enorme importância. A resistência ao arbítrio foi edificando um conjunto de valores essenciais para termos uma cultura política democrática. E foram estes que conduziram ao fim do regime e à eleição de Tancredo Neves, em janeiro de 1985.

No último quartel de século, contudo, apesar das sucessivas eleições, a cultura democrática pouco avançou, principalmente nos últimos 12 anos. As presidências petistas reforçaram o autoritarismo. A transformação da luta armada em ícone nacional é um bom (e triste) exemplo. Em vez de recordar a luta democrática contra o arbítrio, o governo optou pela santificação daqueles que desejavam substituir a ditadura militar por outra, a do “proletariado”.

O processo eleitoral reforça este quadro de hostilidade à política. A mera realização das eleições — que é importante — não desperta grande interesse. Há um notório sentimento popular de cansaço, de enfado, de identificação do voto como um ato inútil, que nada muda. De que toda eleição é sempre igual, recheada de ataques pessoais e alianças absurdas. Da ausência de discussões programáticas. De promessas que são descumpridas nos primeiros dias de governo. De políticos sabidamente corruptos e que permanecem eternamente como candidatos — e muitos deles eleitos e reeleitos. Da transformação da eleição em comércio muito rendoso, onde não há política no sentido clássico. Além da insuportável propaganda televisiva, com os jingles, a falsa alegria dos eleitores e os candidatos dissertando sobre o que não sabem.

O atual estágio da democracia brasileira desanimaria até o doutor Pangloss. A elite política permanece de costas para o país, ignorando as manifestações de insatisfação. E, como em um movimento circular, as ideias autoritárias estão de volta. Vai se formando mais uma geração de desiludidos com a República. Até quando?

Marco Antonio Villa é historiador

Aos 500 anos, O Príncipe é obra para além da política

01 de janeiro de 2014

Voltemos ao ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1513, como se dizia na antiga linguagem tabelioa. Nos anos 1580, por ordem do papa Gregório, não mais será seguido o calendário de Júlio César, dito Juliano, e, portanto, teremos de convencionar que o mês e o dia correspondem, pelos padrões atuais, a 10 de dezembro.  As temperaturas começavam a cair em todo o mundo. Em breve, se iniciaria a chamada Pequena Idade do Gelo, que esfriaria todo o planeta, expulsando os vikings da Groenlândia e reduzindo pesadamente as temperaturas, o que interrompeu a produção de vinhos na Inglaterra, muito favorecida pelo calor dos séculos anteriores.

Nessa época, vagavam pelas estradas italianas, há bastante tempo, grupos de peregrinos em direção a Roma, capital mundial do Cristianismo.  Resistiam, no entanto, grupos heréticos, seitas e comunidades religiosas que viviam particularmente sua fé, afastados da supremacia papal. Nos últimos dois séculos, muitos deles foram massacrados, como os cátaros, que se refugiaram na cidadela de Carcassone, no Languedoc, e foram exterminados por Simon de Montfort. A Peste Negra, no século XIV, dizimara um terço da população europeia. A epidemia era incontrolável, suas causas eram ignoradas e nem mesmo igrejas, monastérios e santuários eram imunes a sua chegada. A “dança da morte” (Totdanz) ganhava os painéis dos pintores medievais, como se pode ver em uma famosa representação de Bernt Notke. Santos e pecadores, nobres e camponeses, mulheres e homens, adultos e crianças, todos sucumbiam à peste. Como continuar a acreditar em Deus? Não seriam a devassidão e a corrupção dos nobres e eclesiásticos que estariam a causar todo esse desastre?

A Itália, outrora o centro do mundo civilizado, convertera-se em uma mera ficção, pois se constituía em uma colcha de retalhos formada por cidades-estado, pequenas repúblicas, ligas comerciais e territórios papais, franceses, austríacos e do Sacro Império Romano Germânico. Os movimentos de contestação religiosa começavam a fervilhar, especialmente na Inglaterra e nos estados do Sacro Império. Os aristocratas de sangue antigo, combatentes das cruzadas, sentiam-se incomodados com a crescente força de camponeses, que foram empurrados para as cidades, em razão das Cruzadas e da Peste Negra, e artesãos, que moravam do lado de fora dos castelos (Burgen) e criavam “vilas”. Esses “burgueses” e “vilões” possuíam um novo bem, o dinheiro, capaz de adquirir objetos de consumo não produzidos nos limites do feudo. Esse dinheiro comprava especiarias, tecidos de seda da China e outras preciosidades que encantavam os paladares, as vaidades e escravizavam os homens do século XVI com novos hábitos. E não se esqueça de sua essencialidade na guerra, um negócio dos mais caros, pois era necessário pagar pelas armas, pelas munições e pela lealdade dos mercenários, um soldado profissional, a serviço da fortuna, que rivalizava e superava os antigos batalhões de caçadores (sim, o nome vem daí) e camponeses, ligados por laços de vassalagem cada vez mais frágeis com seus suseranos.

Um exemplo desse novo tipo de homem, um filho da Baixa Idade Média, foi Carolimbo, que viveu no século XIV, em plena tragédia sanitária da Peste Negra. Sua profissão? Médico. Ele era oriundo de uma família de médicos, daí seu sobrenome Medici, em português, médicos.  Sem preconceitos e estudioso, ele ajudou a tratar a vítimas da peste bubônica. Carolimbo dos Médicos (ou, em bom italiano, Carolimbo dei Medici) devia usar aquela túnica negra, com uma máscara que lembrava uma ave e que hoje pode ser vista nos carnavais de Veneza.  Ele enriqueceu com seu ofício, criou um hospital em Florença (Hospital Tozzi Firenze) e seus familiares passaram a negociar especiarias e tecidos. Em  algum tempo, assumiram o governo florentino, mesmo sem título de nobreza. Mas, isso também se resolvia. O dinheiro traria o ducado e a fama de mecenas. Miguel Ângelo Buonarroti Simoni foi um de seus protegidos. Com a desenvoltura de “novos homens” também avançaram nos negócios feneratícios e tornaram-se banqueiros, destruindo ou, quando conveniente, aliando-se aos tradicionais financistas da Idade Média, os judeus. João Bicci de Médici (1360-1429) foi o banqueiro mais rico da Europa em seu tempo. A compreensão do poder do dinheiro e ausência de escrúpulos quanto às restrições religiosas abriram um mundo inteiramente novo de poder, prestígio e força militar para os Medici. As católicas cidades do Norte da Itália constituíram-se no centro bancário do mundo ocidental.

Ano de 1513... Eis que aquele início do século XVI seria muito conturbado. Apenas quatro anos depois, um jovem e amargurado monge alemão, da Ordem de Santo Agostinho, após uma dolorosa peregrinação a Roma, afixaria nas portas do castelo de  Wittemberg (atualmente Cidade de Lutero-Wittemberg) suas 95 teses em protesto contra a Igreja Católica e iniciaria o movimento histórico conhecido posteriormente como Reforma Protestante.

Mas, não estamos na Alemanha e sim na Itália. Nesse dia 10 de dezembro de 1513,  um homem magro, de pele pálida, de cabelos curtos, escuros, com olhos pequenos, nascido em 1469, portanto, já com idade avançada para a época, terminava um livro intitulado O Príncipe e, como era de praxe, com uma especial dedicatória a um aristocrata poderoso. O oferecimento deu-se ao Magnífico Lourenço de Médici. Sim, a um descendente daquele médico da Peste Negra, ao “novo homem” do Renascimento.

Vivendo naquela era de infelicidades e de transformações, Nicolau Maquiavel era antes de tudo um homem desafortunado.  Na igreja da Santa Cruz, em Florença, no seu cenotáfio, há um dístico que confirma esse juízo a seu respeito: “Um homem tão grande, nenhum elogio [apropriado a essa grandeza]”.

Um alto servidor do Estado em sua amada Florença, por efeito de uma rebelião e do retorno ao poder da família Médici, Maquiavel é destituído de suas funções e exilado em um vilarejo próximo a Florença, onde escreve suas obras-primas. No final da vida, com a derrocada dos Médici, os novos donos do poder consideram-no suspeito de ligações com a dinastia deposta e tomam-no como inimigo da República. Em 1527, profundamente desgostoso de seu destino, Maquiavel faleceu.

Sua obra O Príncipe ganhou o mundo desde então. É a obra mais traduzida do italiano e gozou de diferentes avaliações históricas. Ser “maquiavélico” tornou-se sinônimo de uma atitude pérfida e desleal. Napoleão Bonaparte, ele próprio definido como uma “filho da fortuna”, era leitor ávido dos escritos de Maquiavel, tendo anotado O Príncipe. Outros monarcas, especialmente os “déspotas esclarecidos”, como Catarina, a grande, da Rússia, também dedicaram-se a interpretar a obra que completou 500 anos.



Há muitas tentativas de se explicar O Príncipe, tido como o livro fundador da Ciência Política. O livro assumiria as seguintes feições:

a) O Príncipe seria uma espécie de manual de autoajuda para soberanos ou candidatos a líderes políticos, orientando como lidar com as intrigas, as traições, as vontades populares e os meandros da diplomacia e da “grande política”.

b)  A obra teria sido  escrita para o povo, a fim de orientá-lo sobre como lidar com os déspotas e os poderosos, uma verdadeira aula de realidade política para os despossuídos. É essa a visão de um dos grandes teóricos de esquerda do século XX, o italiano Antonio Gramsci, para quem “o próprio Maquiavel nota que as coisas que ele escreve  são aplicadas, e foram sempre aplicadas, pelos maiores  homens da História. Por isso, não parece que ele queira  sugerir a quem já sabe, nem o seu estilo é aquele de uma  desinteressada atividade científica; nem se pode pensar  que ele tenha chegado às suas teses sobre ciência  política através de especulações filosóficas”. Desse modo,  “pode-se, portanto, supor que Maquiavel tem em vista ‘quem não sabe’, que ele pretende educar politicamente ‘quem não sabe’”

Gramsci refere-se, nesse ponto, à dedicatória de O Príncipe, na qual Maquiavel declara que muitos oferecem aos soberanos objetos de valor, “como cavalos, armas, tecidos bordados a ouro, pedras  valiosas e demais ornamentos dignos de sua grandeza”. Ele, no entanto, prefere doar o que ele tem de melhor: “(...) não encontrei, entre as minhas  posses, nada que mais prezado me seja ou que tanto estremeça quanto o conhecimento das  ações dos grandes homens adquiridos por uma longa experiência das coisas atuais, e uma  repetida lição das antigas; as quais, tendo eu, com muito afinco, detidamente estudado,  examinado-as, remeto agora a Vossa Magnificência, reduzidas a pequeno volume”. Maquiavel reconhece que não tem a pretensão de ensinar ao príncipe, dada sua condição de homem do povo, todavia:

“Menos desejo que por  presunção se tenha o fato de um homem de baixa e ínfima condição discorrer e regular a  respeito do governo dos príncipes; visto como, aqueles que desenham os contornos dos países  postam-se na planície para apreender a natureza dos montes, e para apreender a das planícies  sobem aos montes, do mesmo modo que para bem aquilatar a natureza dos povos é preciso ser  príncipe e para aquilatar a dos príncipes é preciso ser povo”.

c) Fernando Henrique Cardoso, no prefácio à tradução de O Príncipe, feita por  Maurício Santana Dias e editada, em 2010, em São Paulo, pela Penguin Classics/Companhia das Letras, defende que o livro não é merecedor das críticas históricas clássicas (um manual de cinismo político). Em verdade, O Príncipe, de modo original, teria posto luzes sobre os móveis da Política e das atitudes humanas na luta pelo poder, muita vez marcadas pelo “interesse próprio, a ambição, a inveja, a vontade de domínio”. A explicação da Política não dependeria de uma consulta a valores moralmente superiores, mas a razões autoevidentes, que se revelam por meio das ambições, forças e fraquezas dos homens, como afirma Fernando Henrique Cardoso.

Independentemente dessas visões, é importante, nestes 500 anos de O Príncipe, refletir sobre o seu significado para nosso tempo. Esse livro, definitivamente, não pode ser lido como um “manual para candidatos a príncipe”, assim como se fez com A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Se fosse tão bom ou útil, Maquiavel ter-se-ia valido de seus ensinamentos em causa própria e não teria falecido em completo ostracismo e na ridícula condição de persona non grata ao novo regime republicano florentino, cuja forma de governo era-lhe tão simpática.

Outra ironia é que O Príncipe haja sido ofertado à família Médici. Para os padrões da época, os Médici seriam uma espécie de nouveaux riches. Em apenas três gerações, passaram da condição de simples médicos a uma poderosa dinastia econômica e política. Eles não alcançaram o poder pelas armas, em feitos heroicos, a serviço de um suserano e, preferencialmente, na luta contra o infiel. Enriqueceram com seu trabalho e sua argúcia e, depois de conquistado o poder, receberam os títulos de nobreza. Eram homens do “novo tempo”, ainda que se revestissem dos símbolos feudais. E não seria com Maquiavel, um burocrata de pouca habilidade nas intrigas palacianas, que um Médici iria aprender algo sobre a realidade política. A fala humildade da dedicatória de O Príncipe é humilhada pela força dos fatos.

Não se pode também esquecer a admirável combinação de elementos provincianos e universais em O Príncipe. Há quem defenda ter o livro a finalidade de estimular a unidade italiana, um sonho de Maquiavel, que só seria alcançado no século XIX. As lutas políticas italianas em pouco se diferenciariam, com o olhar contemporâneo, de guerras entre famílias mafiosas ou a trágica alternância de poder, através de golpes de Estado, nas repúblicas latino-americanas no século XX.   William Shakespeare aproveitou-se ao extremo da experiência política italiana em suas mais famosas peças. A Guerra das Duas Rosas, entre os Lancaster e os York, com os sangrentos governos de Henrique VIII e Elizabeth I, é certo que influenciaram Shakespeare. A matéria-prima, todavia, estava toda na Itália de Maquiavel.

Ao tempo em que O Príncipe pode ser confundido com uma crônica de conflitos de grupos mafiosos ou de clãs inimigos do interior do Nordeste, é uma obra magnífica em sua abertura para o universal e para o atemporal. A entrada em cena de atores que afirmavam serem os fins justificados pelos meios, é também simultânea à saída de outros atores, que buscavam fundar a racionalidade humana na força das ideias evangélicas da Igreja medieval. Como conquistar e se manter no poder, sem usar a força? Essa angústia “maquiavélica” está aqui exposta:

“A lacuna entre como as pessoas vivem e como deveriam viver é tão grande, que aquele que vive se esquecendo do que está sendo feito, considerando-se aquilo que deve ser feito o quanto antes, trabalha em favor de sua ruína ao invés de sua sobrevivência; aquele que tenta, entre o povo, e sob todas as circunstâncias, comportar-se de acordo com o que é considerado bom, inevitavelmente encontra sua ruína entre tantos outros que não são bons. Por isso, o príncipe que quiser manter-se no poder tem necessariamente que aprender a não ser bom, optando por isto ou aquilo de acordo com a necessidade”.

Maquiavel, mesmo que não tenha tido essa consciência, escancarou as portas para uma nova racionalidade. Seus ecos são audíveis até em nossos dias, como a chamada “ética da racionalidade dos fins”, tão ao gosto de Max Weber, e que pode ser explicada, em linguagem contemporânea pela máxima anglo-saxã: “Isso funciona? Sim. Então é bom.”

Outra conquista “maquiavélica” e que, após a tragédia do século XX, está no reconhecimento de que a Política, mesmo sem os véus hipócritas da tradição medieval (e mesmo anterior ao Medievo), é a melhor alternativa à solução dos problemas por meio do conflito armado.

É por esse motivo que os defensores da “criminalização” da Política, muita vez, são a ponta de lança dos governos ditatoriais. Desmoralizar os políticos e a Política, por mais abjetos que ambos possam parecer, é reabrir as portas do teatro para os agentes em armas. Trata-se de outra contribuição que O Príncipe ainda hoje faz reverberar. O Direito, que em muitos casos assumiu esse papel de intermediação dos conflitos, tem de compreender essa função da Política sob duas ordens: a) a primeira está em não trazer para si a lógica da Política, renunciando à segurança que as categorias, a coerência doutrinária e o rigor da interpretação, em nome de um populismo judiciário que desmoraliza os que permanecem em suas funções, na cotidiana e repetitiva atividade judicante; b) a segunda está em propiciar meios para o exercício legítimo da atividade política, ainda que isso se aproxime de uma quimera. Essa segunda função está muito bem descrita no voto do ministro Dias Toffoli, na ADI 4.430/DF, no qual se encontra o histórico da evolução de nosso sistema eleitoral, com a justa homenagem a Assis Brasil, o líder do Partido Libertador, do Rio Grande do Sul, para quem a aliança com Getúlio Vargas, seu inimigo figadal, valia a pena se dela resultasse a aprovação de um Código Eleitoral para o país.

 Passados 500 anos, Maquiavel, mesmo sem a ajuda de Gramsci, Napoleão, Frederico da Prússia ou Catarina, a grande, é merecedor do reconhecimento humano. Ciente ou não do que ele iria gerar de impacto histórico, o servidor público florentino foi o grande porta-voz da Modernidade. Talvez só tenha escolhido os padrinhos errados. Sem o fracasso pessoal, no entanto, ele deixaria de ser tão humanamente próximo de nós.


Otavio Luiz Rodrigues Junior 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos


Em 30 de novembro de 1813, na praia de Scheveningen, na Haia, uma multidão assistiu ao desembarque do príncipe Guilherme, que se encontrava exilado na Inglaterra desde a invasão francesa a sua pátria, a extinta República das Províncias Unidas dos Países Baixos. O Grande Exército (Grande Armée) de Napoleão fora derrotado pelos russos na trágica campanha do inverno de 1812, cuja melhor expressão simbólica é a Overture 1812, de Piotr Ilich Tchaikovsky, que põe em contraste o som da Marselhesa com o estrondo dos canhões russos, tendo ao fundo a Antífona da Santa Cruz.

Após o fracasso da invasão à Rússia, os franceses são perseguidos por toda a Europa. Com a derrota na Batalha de Leipzig, as forças napoleônicas abandonam os Países Baixos. Um governo provisório ofereceu então a coroa ao jovem príncipe, que retornou a seu país para assumir o trono.

Esse é o marco do nascimento dos Países Baixos e de sua ordem constitucional contemporânea. Os súditos da monarquia holandesa estão a celebrar no triênio 2013-2015 esse importante acontecimento histórico, que se divide em três grandes ocasiões:

(a) a refundação da monarquia, com o retorno de Guilherme I; (b) as constituições de 1814 e (c) de 1815, até hoje em vigor. Esses eventos marcam o bicentenário da constitucionalização do estado holandês.

Importa oferecer ao leitor um breve comentário sobre os acontecimentos históricos que levaram à constituição dos Países Baixos em sua conformação contemporânea. A região atualmente compreensiva dos Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, parte do Norte da França e do Oeste da Alemanha abrangeu as “Províncias Unidas”, que se submeteram ao imperador do Sacro Império Romano Germânico em “união pessoal”, a clássica forma de Estado tratada no Direito Constitucional, no ano de 1549. Diversos problemas decorreram dessa união pessoal, especialmente com os efeitos da Reforma Protestante, que teve enorme sucesso nesses territórios, à exceção de algumas províncias do sul (correspondentes à atual Bélgica), que se conservaram católicas. Como o imperador Carlos V era um Habsburgo e a Áustria manteve-se como um bastião do catolicismo nos conflagrados territórios de língua alemã, desde o início as “Províncias Unidas” evidenciaram seu descontentamento com esse arranjo político.

Filipe II, filho de Carlos V e rei de Espanha, assumiu o controle das “Províncias Unidas”, transformando-as em território espanhol, como um prolongamento da Casa d’Áustria. Em 1579, as Províncias Unidas proclamaram sua independência dos reis católicos da Espanha austríaca. Esse ato passou à História como a União de Utrecht, que congregou, entre 1579 e 1581, as províncias rebeldes da Holanda, Zelândia, Utrecht, Güeldres, Groningen, Frísia, Drenthe, Overijssel, Brabante e Flandres. Em 1581, declarou-se abjuração da soberania espanhola. O líder desse movimento foi Guilherme de Orange-Nassau (1533-1584), que governava as províncias da Holanda, Zelândia, Utrecht e Borgonha em nome dos austríacos.

Ele não só traiu o imperador do Sacro Império, como trocou de religião e converteu-se em líder dos protestantes nos Países Baixos. A família Orange-Nassau até hoje é a dinastia reinante dos Países Baixos e um de seus membros mais célebres no Brasil é o conde (depois príncipe) João Maurício de Nassau-Siegen, que governou o Brasil Holandês entre 1637 e 1640.

Oitenta anos de guerra entre a Espanha austríaca e as Províncias Unidas, organizadas sob a forma pouco usual de uma república confederada, arruinaram os espanhóis e deram aos Países Baixos uma vocação de conquistadores navais, que conduziu à formação de um império colonial que duraria até a segunda metade do século XX. Na famosa Paz de Vestfália, de 1648, considerada o marco de nascimento do moderno Direito Internacional, os Países Baixos tiveram reconhecida sua independência sob a forma da “República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos”, que abrangia a Frísia, Groningen, Güeldres, Holanda, Overijssel, Utrecht e Zelândia. A maior parte das províncias do sul não integrava esse novo Estado, em larga medida por serem católicas e terem mantido sua lealdade aos soberanos dessa religião. Parte da província de Flandres viria a se unir ao território francófono da Valônia e constituir o atual Reino da Bélgica, que congrega povos de línguas tão diferentes como o flamengo e o francês.

Essa nova república assombraria os espanhóis e portugueses, disputando com eles espaços na América, em África e na Ásia. O Brasil, colônia espanhola após a união dos reinos de Espanha e Portugal, com a morte do rei D. Sebastião, foi invadido pelos Países Baixos no evento conhecido como Invasões Holandesas (1624-1654). Na verdade, as Províncias Unidas e muitos de seus burgueses e aristocratas eram acionistas da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, a famosa WIC, a primeira sociedade anônima da História, a verdadeira responsável pela ocupação e administração do Brasil Holandês.

O leitor deve ter notado que não uso a palavra Holanda como sinônimo de Países Baixos. Tecnicamente falando, Holanda é uma das províncias dos Países Baixos. Hoje, a Holanda (rectius, Holanda do Norte e Holanda do Sul) é uma das partes do Reino dos Países Baixos, que compreende também os territórios de Aruba, Saint Maarten e Curaçao, além dos municípios de Bonaire, Saba e Santo Eustáquio, que, até 2010, formavam as Antilhas Holandesas. Doravante, vai-se referir a “holandês” como qualificativo das instituições e dos súditos dos Países Baixos, mas com a advertência sobre o caráter equívoco do termo.

Muito bem, a República das Províncias Unidas manter-se-á até 1795, quando se deu a invasão pelas tropas revolucionárias francesas, que instituíram uma nova realidade político-jurídica para aqueles territórios, denominada de República Batava. Esse estado republicano teve enorme apoio popular dos holandeses e importou a expulsão e o exílio de Guilherme V de Orange, pai do príncipe Guilherme, que retonaria ao país em 1813, como dito no início da coluna.

No período de 1795 a 1813, os holandeses foram um estado vassalo da França revolucionária. Muitas das instituições jurídicas francesas foram adotadas pela República Batava, como o Código Civil francês e a reorganização administrativa do Estado. Em 1806, como um ato de força de Napoleão Bonaparte, os franceses criaram o Reino da Holanda, governado por Luís Bonaparte, irmão do imperador francês. A existência dessa monarquia foi efêmera. Em 1810, o Império francês anexou o Reino da Holanda.

Durante a Revolução Francesa e o governo napoleônico, o império colonial holandês foi ocupado pelos britânicos, como punição por sua aliança com a França, e por terem fornecido soldados ao Exército francês nas guerras contra os britânicos, prussianos, austríacos e russos. A despeito disso, a aliança britânico-holandesa foi reconstituída com o tempo. Os habitantes dos Países Baixos logo perceberam que seu país não passava de um protetorado francês e um fornecedor de tropas para as guerras continentais. É também notável a profunda crise econômica a que o país foi arrastado e que duraria até a metade do século XIX.

Na recepção do príncipe Guilherme em 1813, na praia de Scheveningen, estavam muitos dos líderes que acolheram os franceses como libertadores e apóstolos de um tempo de liberdade, igualdade e fraternidade em 1795.

É muito curioso como a História é repleta dessas manifestações de apoio a líderes militares que derrubam governos ou invadem países, porque imbuídos de propósitos de regeneração nacional, e que, anos depois, são esquecidas e transformadas em demonstrações retroativas de coragem e rebeldia contra os antigos aliados. É o que poderíamos chamar de “coragem assincrônica”. Infelizmente, essas pessoas tornam-se, uma vez passada a tormenta, heróis pelo que nunca foram.

O nascimento do contemporâneo Reino dos Países Baixos deu-se em grande medida pela ação de um jurista formado na Universidade de Leiden, o monárquico da facção organgista [defensor da entronização de um membro da Casa de Orange-Nassau] Gijsbert Karel graaf [conde] van Hogendorp (1762-1834).

Van Hohendorp era versado em leis, mas, como muitos de sua geração, também sabia usar o sabre e o mosquete. Por intercessão da princesa Guilhermina da Prússia, ele foi aceito na academia militar de Berlim e lutou na Guerra de Sucessão da Baviera. Em 1786, ele doutorou-se em Direito na Universidade de Leiden e, em seguida, assumiu o cargo de consultor jurídico da cidade de Roterdã.

Com o vácuo de poder nos territórios holandeses, com a fuga das tropas napoleônicas ante a invasão das forças russas, Gijsbert Karel graaf [conde] van Hogendorp uniu-se ao tenente-geral Leopold graaf [conde] van Limburg Stirum (1758-1840), membro de uma antiga e aristocrática família holandesa, e a Frans Adam Jules Armand baron [barão] van der Duyn (1771-1848), camareiro do príncipe de Orange, para formar uma junta governativa provisória. Esses três homens, um ambicioso burguês e dois membros da nobreza, passaram à História como os integrantes do “Triunvirato de 1813”, que lançou uma proclamação geral aos Países Baixos criando um conselho “em nome do príncipe de Orange” e liberando os holandeses do juramento de fidelidade ao imperador dos franceses. Naquele tempo, esses juramentos ainda eram levados a sério e se fazia necessário dissolver formalmente esses laços com o antigo soberano.

Atendendo ao chamado do triunvirato de 1813, em cuja homenagem há um monumento no centro da Haia, o príncipe de Orange voltou ao país a bordo de uma fragata inglesa. Em 30 de novembro de 2013, com a presença do novo rei holandês, Guilherme Alexandre, participou de uma cerimônia que reproduziu a chegada de seu antepassado à praia de Scheveningen.

É conveniente voltar a Gijsbert Karel graaf [conde] van Hogendorp, cuja tataraneta foi a famosa atriz Audrey Hepburn e ao processo de transição dos anos 1813-1815.

Desde antes da queda dos franceses, van Hogendorp dedicou-se a elaboração de um anteprojeto de constituição para seu país. Após a entronização de Guilherme de Orange, formou-se uma comissão para redigir o novo texto constitucional. Esse foi um de seus primeiros atos no poder no período de dezembro de 1813 a março de 1815, no qual Guilherme governou o país na qualidade de príncipe soberano e não de rei.

Em 1815, Napoleão Bonaparte fugiu do exílio na ilha de Elba e reassumiu o trono francês. Iniciava-se o famoso “governo dos 100 dias”, de 20 de março a 8 de julho de 1815. Imediatamente, formou-se uma nova aliança internacional das monarquias europeias contra o imperador dos franceses. Guilherme de Orange proclamou-se rei dos Países Baixos em 16 de março de 1815, já sabedor da volta de Napoleão e temeroso de perder seu recém-conquistado trono com a volta de seu antigo adversário, que rapidamente engajou seu país em uma guerra nos territórios holandeses.

A derrocada de Napoleão ocorreria em 18 de junho de 1815, na Batalha de Waterloo, quando foi derrotado pelas forças britânicas, prussianas e holandesas, estas últimas lideradas pelo filho do rei holandês, o príncipe Guilherme Frederico.

O fim da era napoleônica permitiu que o novo estado holandês pudesse ser reorganizado. Em junho de 1815, os antigos Países Baixos Austríacos (correspondentes à região de maioria católica e que hoje integra o território da Bélgica) foram incorporados ao reino de Guilherme de Orange, o que demandou a elaboração de um novo texto constitucional, adaptado à nova realidade territorial e também humana daquele Estado e que expressasse também a vontade dos novos súditos.

O projeto de 1815 foi submetido a um grupo de representantes do Norte e do Sul para aprovação em nome de suas gentes. Os protestantes do Norte aprovaram o texto, ao passo em que ele foi amplamente rejeitado pelos católicos do Sul. A despeito da divisão interna do país quanto ao texto da nova constituição, o rei Guilherme sancionou-a. Sua decisão revelar-se-ia equivocada: em 1839, essa artificial união das antigas províncias católicas e protestantes dos Países Baixos seria desfeita com o tratado de separação que criaria o Reino da Bélgica, composto da Valônia e de Flandres. Antes disso, já em 1830, os belgas proclamaram-se independentes e receberam o apoio das nações europeias.

A Constituição de 1815 manteve-se em vigor e, com sucessivas reformas nos séculos XIX e XX, conserva-se como a base da organização jurídico-política do Reino dos Países Baixos. Na próxima coluna, far-se-á a análise de seu conteúdo.


A base da atual constituição encontra-se no projeto de 1815, que, por sua vez, alterou a Constituição de 1814 para incluir as províncias católicas do Sul, correspondentes ao atual Reino da Bélgica. Com o fracasso dessa união forçada entre católicos e protestantes, o que resultou na secessão territorial e no nascimento da Bélgica, o texto constitucional foi modificado para se adequar à nova realidade política, o que se deu em 1840.

Outro momento histórico relevante para a história constitucional holandesa foi o ano de 1848, conhecido como a “esquina do mundo”, porque nele se concentraram os mais violentos levantes populares na Europa desde a Revolução Francesa. Salvo no Reino Unido da Grã-Bretanha e poucos estados europeus, a maior parte do continente foi sacudida por revoltas violentíssimas, que contestaram o arranjo político decorrente da Convenção de Viena, que restaurou o status quo do Antigo Regime, após a derrota de Napoleão Bonaparte.

Nos Países Baixos, não foi diferente. Com o povo nas ruas, o rei Guilherme II (1792-1849), filho do fundador do reino e herói da Batalha de Waterloo, antecipou-se à contestação de seus direitos dinásticos e do regime monárquico e tomou para si a liderança da reforma da ordem constitucional. Seus vizinhos em França, a dinastia Orleans, que havia sucedido seus primos Bourbon após a Revolução de 1830, foram derrubados e proclamou-se a república. Esse foi um enorme estímulo para que o chefe da Casa de Orange-Nassau dissesse que passou de conservador a liberal em uma só noite.

O encarregado de elaborar o anteprojeto de reforma da constituição do Reino dos Países Baixos foi Johan Rudolph Thorbecke (1798-1872), líder liberal, professor de relações internacionais na Universidade de Leiden e um crítico da Constituição de 1815. Thorbecke publicou um estudo, em 1839, quase dez anos antes da reforma de 1848, no qual propunha a adequação da lei fundamental à nova realidade política de seu tempo. Com esse trabalho, ele ganhou notoriedade e espaço na cena partidária holandesa.

Com a crise de 1848, não foi surpresa a designação real de Johan Rudolph Thorbecke para a chefia do comitê para a revisão constitucional. As principais mudanças foram a mitigação do voto censitário; a instituição de um regime parlamentarista democrático; as eleições diretas para a Câmara Baixa e a outorga de poderes para que o Parlamento modificasse as proposições legislativas do Poder Executivo. Outro ponto digno de nota foi a instituição de um pequeno catálogo de direitos fundamentais, que contemplava as liberdades de crença, de educação, de reunião e de organização religiosa, além do sigilo de correspondência.

O resultado dessa reforma foi extremamente favorável para a monarquia e para os Países Baixos. As graves consequências e o morticínio de 1848 foram evitados e as anteciparam-se as reformas que outras nações europeias, como a Rússia, a Alemanha e a Austria-Hungria não fizeram e, por isso, conheceram a fúria de seus povos no início do século XX.

Como resultado de sua bem-sucedida reforma constitucional, que entrou em vigor em 3 de novembro de 1848, o professor Johan Rudolph Thorbecke converteu-se em uma figura política preeminente nos Países Baixos durante as próximas duas décadas e meia. A luta de Thorbecke pela modernização das instituições políticas holandesas contou com um visceral opositor: o novo rei Guilherme III (1817-1890), que ascendera ao trono em 1849. Sua luta foi bem sucedida e seus passos podem ser detectados nas reformas constitucionais da segunda metade do século XIX, algumas delas aprovadas mesmo após sua morte, ocorrida em 1872, em pleno exercício das funções de chefe do Conselho de Ministros. O voto censitário foi praticamente abolido, a separação total entre Igreja e Estado implementou-se e o Senado passou a ter membros eleitos.

A Primeira Guerra Mundial e os efeitos da Revolução de Outubro (a Revolução Russa de 1917) foram causas deflagradoras de novas reformas constitucionais. O sufrágio universal foi adotado sem mitigações e fez-se uma reforma eleitoral.

Após um flerte com o corporativismo na década de 1930, o que demonstra o apoio de amplos setores da sociedade holandesa aos movimentos radicais que campearam pela Europa, como o fascismo, o nacional-socialismo e suas variantes. Com a invasão alemã e a fuga da Família Real e do Governo para o exílio em Londres, a Constituição foi suspensa. O Exército Real dos Países Baixos continuou a lutar nas colônias, especialmente contra os japoneses, e por meio de seus aviadores e marinheiros, baseados em Londres.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o problema constitucional mais emergente era a resolução da questão colonial. No entanto, a independência dos territórios ultramarinos mostrou-se inevitável e a intervenção do Direito revelou-se inútil.

Nos anos 1980, ocorreu uma drástica revisão constitucional, na qual praticamente todos os artigos do texto de 1815 foram alterados, suprimidos ou aditados.

Sobrevivem na ordem constitucional holandesa, até hoje, elementos de direito consuetudinário, ao exemplo dos procedimentos de formação do Conselho de Ministros e a regra não escrita da impossibilidade do bloqueio do processo legislativo pelo Senado.

Interessa agora fazer uma análise do texto da Constituição dos Países Baixos em sua redação atual:

a) Catálogo de direitos fundamentais. O primeiro capítulo da constituição é um catálogo de direitos fundamentais, que, à semelhança de muitos textos dessa natureza, assegura a igualdade entre os sujeitos, bem como o direito a não discriminação por razões religiosas, de crença política, de opinião, sexuais, raciais e de qualquer outra natureza. São ainda reconhecidos os direitos de petição; de liberdade de crença e de culto; de liberdade de expressão; de não censura dos meios de comunicação; de associação e de reunião; de privacidade; de acesso a dados pessoais; da inviolabilidade pessoal; de sigilo de correspondência, de comunicações telefônicas e telegráficas; de propriedade e de justa indenização em caso de atos expropriatórios pelo Estado; de liberdade; de ser representado juridicamente em processos administrativos e jurídicos, de entre outros.

Os direitos sociais integram os direitos fundamentais. Caberá ao Estado, nesse contexto, assegurar a saúde, o pleno emprego; a proteção aos direitos trabalhistas e de seguridade social, além do ao acesso à cultura e à educação.

b) Estrutura do Governo. O segundo capítulo da constituição holandesa é dedicado ao “Governo”, no qual se integram duas seções, dedicadas, respectivamente, ao Rei e ao Rei e seus Ministros.

O monarca dos Países Baixos deverá ser um descendente do rei Guilherme I, príncipe de Orange-Nassau. É possível que, por um ato do Parlamento, alguém seja expressamente excluído do direito de ascender ao trono.

No art. 42, diz-se textualmente que “os ministros, e não o rei, devem ser responsáveis pelos atos de governo”. A chefia das funções do Gabinete caberá a um primeiro-ministro, indicado por decreto real.

c) Os Estados Gerais. Com essa curiosa nomenclatura, que remonta ao período pré-constitucional, os “representantes de todo o povo dos Países Baixos” reúnem-se nos Estados Gerais (art. 50), que se compõem da Câmara Baixa (com 150 membros) e da Câmara Baixa (com 75 membros), com legislaturas que duram 4 anos. Os deputados elegem-se por voto direto e secreto de todos os súditos. Os senadores são escolhdiso pelos membros dos conselhos provinciais.

d) Outras instituições nacionais. A constituição holandesa manteve um órgão que é tradicional nos países influenciados pelo modelo francês: o Conselho de Estado, que tem funções consultivas em matéria legislativa e de tratados internacionais. Os conflitos administrativos também podem ser resolvidos pelo Conselho de Estado, cuja presidência é atribuída ao rei.

Existe também um Tribunal de Contas, encarregado de analisar as receitas e despesas do Estado. Seus membros são vitalícios e indicados pela Câmara Baixa.

O Ouvidor Nacional é outra instituição nacional holandesa. Sua indicação é feita pela Câmara Baixa, por um período definido pelo Parlamento, e sua função é investigar as autoridades do Estado ou delas exigir providências administrativas que se considerem necessárias para o cumprimento de suas atribuições.

e) Administração da Justiça. No capítulo sexto, não há um título sobre o “Poder Judiciário”, mas sim sobre a “Administração da Justiça”. A solução dos conflitos em matéria civil é de responsabilidade do Poder Judiciário. As questões alheias ao Direito Civil deverão ser resolvidas por atos do Parlamento ou por tribunais não administrativos, segundo métodos específicos, definidos congressualmente. Uma vez mais se identifica a influência francesa nesta parte da constituição holandesa, com a separação entre matérias cíveis e administrativas e com o rompimento do monopólio jurisdicional do Poder Judiciário.

Os Países Baixos têm um Tribunal Supremo, cujos membros são nomeados a partir de uma indicação feita pela Câmara Baixa dos Estados Gerais. Sua função é cassatória e também a de julgar autoridades com foro especial, ao exemplo dos atuais e antigos membros dos Estados Gerais, dos ministros e secretários de Estado, em razão de crimes cometidos no exercício de suas funções.

Ainda aqui a tradição francesa mais antiga foi observada: o art. 120 da Constituição proíbe que as cortes judiciais se pronunciem sobre a constitucionalidade dos atos do Parlamento ou dos tratados internacionais.

Esses são, em síntese, alguns dos mais importantes comandos constitucionais dos Países Baixos. A multissecular história dessa nação, as influências profundas do Direito Público francês e a evolução do constitucionalismo europeu do pós-guerra ditam suas grandes linhas e, de um modo curiosamente harmonioso, conseguiram tornar esse Estado um dos mais ricos, desenvolvidos e estáveis de toda a Europa.

Seus 200 anos de ordem constitucional merecem realmente ser comemorados. Mais do que o exemplo de um “patriotismo constitucional”, que se tem muito apregoado nos últimos tempos, os holandeses forneceram ao mundo um modelo de constitucionalismo discreto, que remete muitas de suas questões para o Parlamento ou para as leis ordinárias e que consegue estabilizar suas instituições, sem que se crie uma censurável estagnação.

Talvez se deva olhar com maior atenção para a experiência constitucional holandesa, quando se debatem mudanças no sistema brasileiro.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União 

Fragmentação dos valores e o linchamento de uma dona de casa

12 de maio de 2014

Em recentes acontecimentos que tiveram lugar no território nacional, só possíveis no incrível realismo fantástico tupiniquim, tomamos conhecimento de que um número considerável de brasileiros não viram mal algum em trucidar, em linchamento público, uma pobre dona de casa, vizinha dos justiceiros, mãe de duas belas crianças, suportados na suspeita improvável e logo após desmentida de que a vítima, identificada pelos carrascos através de retrato falado de alguns anos, fosse praticante de uma mal explicada seita onde se sequestravam crianças para rituais de magia negra. É bom que se diga que a morta, sacrificada em holocausto à ignorância que pontifica em boa parte de nossa sociedade cordial, portava no momento do justiçamento público uma Bíblia, pois voltava, segundo o que divulgaram, de um culto evangélico.

Quase no mesmo dia, torcedores de um grande time nordestino, confirmando a barbárie em que se transformaram os estádios brasileiros, revolucionaram a conhecida crueldade que informa a nossas “bem comportadas” torcidas organizadas, promovendo o arremesso de um vaso sanitário sobre a cabeça de torcedores rivais, matando um pobre e indefeso transeunte. Dias antes, duas mulheres teriam confessado, segundo a imprensa, a morte de uma criança de 11 anos.

Como todos sabem, não são eventos isolados. São apenas os exemplos mais próximos. Portanto, não podemos nos enganar: numa sociedade como a brasileira, sem dúvida das mais diversificadas do mundo (tanto do ponto de vista racial, como econômico, cultural, educacional e político), vai se tornando cada vez mais improvável que alguma instituição (igreja, estado, educação ou mesmo a família) tenha a capacidade de integrar minimamente os seus cidadãos. E ninguém quer compartilhar a responsabilidade pelo outro e pela esfera pública. A impressão que se forma é a de que somos todos campeões de direitos, mas temos incrível dificuldade de administrar os compromissos que os deveres correspondentes a esses direitos nos impõem.

Mais do que isso, a sociedade não quer se vincular a valores mínimos que possam coordenar minimamente seu comportamento.

O mal não é só nosso, não obstante ganhe aqui notas de paroxismo. A ideia de que exista um fundamento último, uma ética essencial a atravessar a moral, a política e o Direito, com o qual poderíamos, em cada caso concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela melhor proposta política, ou sobre a melhor conduta no plano moral, ou sobre a melhor decisão no plano jurídico, funda-se na mesma perspectiva de uma mundo governado por uma razão única, em que, existindo boa vontade, poderíamos divisar sempre, e de forma indiscutível, o que é certo e o que é errado. A partir do ponto de vista que nos permitiria a representação da única resposta correta, torna-se possível moralizar a política e até mesmo o Direito.

Assim se mostraria possível perscrutar no voto, ou na opinião, ou na decisão divergente, não apenas o desacordo do olhar, mas a imoralidade de não pensar corretamente, isto é, “de não pensar como nós, os intelectualmente capacitados e moralmente incorruptíveis, pensamos”. Contudo, e esse é o lado positivo, a realidade atual não é composta de uma verdade única. Esse é um mundo, com certeza, que não existe mais.

I. O lado bom da tolerância e da diversidade

Como bem sintetizado por Kundera, a verdade está mais para uma narrativa ambígua e insegura dos personagens de um romance do que para a certeza e a univocidade de uma teoria totalizante que se pretenda impor de fora da vida e da história pela autoridade indiscutível de algum filósofo predestinado (cito): “Compreender com Cervantes o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, muitas verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza, isso não exige menos força. (...) O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe nele a vontade inata e indomável de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias.

Elas não podem se conciliar com o romance a não ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambiguidade no próprio discurso apodíctico e dogmático. Elas exigem que alguém tenha razão; ou Anna Kariênina é vítima de um déspota obtuso, ou então Karenin é vítima de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou então por trás do tribunal se esconde a justiça divina e K. é culpado. Nesse ‘ou — ou então’ está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a ausência do Juiz supremo. Devido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.”

O mundo mudou. As ações morais já não podem contar com um ponto de referência certo e igualmente vinculativo em tudo e para todos. Com a incrível diferenciação funcional das complexas sociedades contemporâneas, os seus subsistemas (direito, política, imprensa, economia etc) passam a autogovernar-se por meio de códigos próprios e autônomos, que prescindem de critérios morais externos de uniformização.

No quadro de uma moral fragmentada e cada vez mais sem capacidade de comunicar-se com os outros subsistemas (Niklas Luhmann), a mesma conduta pode encontrar diferentes coeficientes de legitimação. O servidor público que se transformou em fonte de um jornalista para falar e expor toda a verdade de um fato tem uma conduta positiva no âmbito do subsistema da imprensa e da informação, mas, ao romper o sigilo profissional (artigo 154, do CP), ou quebrar o segredo de justiça de uma interceptação telefônica (artigo 10, da Lei 9.296/96), pratica uma conduta negativa no subsistema do direito e pode, inclusive, ser punido por isso.

II. As dificuldades jurídicas e morais da fragmentação dos valores

Num mundo mais tolerante e diversificado, já não temos uma moral que nos assegure a unidade de pensar e de agir, o que é bom, mas nos impõe seriíssimos desafios. Como será possível a coordenação (inclusive jurídica) de condutas com base em parâmetros comuns numa sociedade de valores tão fragmentados? E, mesmo num quadro de fragmentação moral, muito embora exigíveis limites mínimos, já necessários à própria sobrevivência da sociedade, como dizer e impor o que é certo e errado a grupos de pessoas cuja miséria (indigência) é menos econômica do que cultural e ética?

Antes, as condutas morais podiam, por exemplo, fundamentar-se na figura de Deus e impor-se pela revelação dos comandos que partiam do amor divino, ou do medo provocado pela ira divina. Hoje, contudo, a moral de fundo cristã perdeu, em todo o Ocidente, para o bem ou para o mal, a sua força socialmente vinculativa. A impressão que se tem é que a própria comunicação não conseguirá superar sua contingência imanente e as pessoas estarão verdadeiramente sozinhas.

De fato, como será possível duas pessoas se comunicarem em um universo de valores, regras e comportamentos, além de discursos e semânticas (linguagens) tão diversificados? A questão, pois, é saber como a sociedade contemporânea poderá lidar com essa drástica fragmentação moral e, já agora, até mesmo de sua linguagem.

Parece mesmo duvidoso, como bem deduzido por Detlef Horster, que diante de uma tal fragmentação de valores, exista “um ponto de referência comum para todas as condutas e regras morais e, mais do que isso, para todas as regras e decisões jurídicas, que possa valer, como base e condição contextual, para a interação dos indivíduos que vivem em sociedade”. Em uma sociedade em que se idolatra o individualismo, o normal é que não exista mesmo um ponto comum de consenso como nas comunidades mais antigas, baseadas na revelação de origem cristã. Como se viu, isso é bom e ao mesmo tempo ruim.

Não se pode mais partir, numa sociedade radicalmente diferenciada em suas funções de “uma identidade abrangente (umfassender Identität ) do indivíduo com a sociedade”. Por isso, ainda segundo Detlef Horster, “A não-identidade do indivíduo e sociedade reflete-se na diversificação do direito e moral, de uma forma que era impensável à época de Sócrates, já que para ele (consoante o que podemos intuir do seu díalogo com Criton 53) a virtude individual e o direito da comunidade eram um e a mesma coisa, e uma violação ao direito seria também ilegítimo e indigno (unanständig) do ponto de vista moral”.

Não parece existir hoje qualquer instituição, como a Igreja na Idade Média, que consiga ligar as pessoas de uma mesma comunidade, ao longo de suas vidas, por intermédio de valores ou de objetivos comuns. Mais do que nunca, sabemos da existência de outros territórios, de outras visões de mundo, de outros valores e até mesmo de linguagens e de comportamentos ao mesmo tempo diferentes, mas também legitimados. As pessoas estão livres para associarem-se a grupos, valores e comportamentos, permanecendo vinculadas a eles enquanto estiverem satisfeitas.

Resumindo, ao fim a sociedade torna-se vítima de suas próprias virtudes: quanto mais tolerante, mais fragmentada, desunida e, infelizmente, no nosso caso, mais violenta.

Governos e instituições, aí incluído o Poder Judiciário, desorientam a comunidade com mensagens contraditórias, subtraindo da própria ordem jurídica a capacidade — sua principal característica — de estabilizar expectativas e comportamentos. Não é de surpreender, pois, que sejamos confrontados cotidianamente com comportamentos e valores que julgávamos inexistentes ou extintos da história de nossa cultura (linchamentos e todos os tipos perversos de violência contra a pessoa).

Nada indica que esse estado de coisas encontrará um adversário à altura, sobretudo, se continuarmos insistindo com a ideia de que o mal está exclusivamente no Estado, e não na sociedade como um todo; e com o dogma de que o problema é a qualidade dos agentes públicos brasileiros, e não de formação e de comportamento de todos os indivíduos que compõem a sociedade, estejam ou não no Estado. Enquanto esses (auto)enganos servirem de alívio à consciência e à hipocrisia nacional, todos nós teremos uma ponta de responsabilidade por acontecimentos tão nefastos como aqueles que introduziram o presente artigo.

Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

Princípio da factibilidade fortalece a eficácia da Constituição


O debate sobre a efetividade das normas constitucionais positivas tem se tornado, cada vez mais, lugar comum nas aulas de Teoria da Constituição. Professores e alunos dialogam sobre a problemática entre a Constituição formal e a ideia de Constituição material, em geral a partir de investigações de seu conceito político (Schmitt), sociológico (Lassalle), jurídico (Kelsen) e normativo (Hesse).

Este não é o lugar adequado para uma análise mais aprofundada de cada uma dessas definições, suas consequências teóricas e práticas e sua utilidade para a teoria constitucional contemporânea. Por esse motivo, partirei de uma delas – a proposta da Constituição normativa de Konrad Hesse – que penso melhor se adequar às exigências atuais – na tentativa de apresentar um novo elemento: o princípio factibilidade como vetor argumentativo que pode contribuir para maior justificação racional na ampliação das possibilidades de concretização do “dever ser” formalizado constitucionalmente em face da realidade fática (“ser”). Assim se supera, com ganhos, a ideia de limites em face da reserva do possível.

Sobre a força normativa da Constituição

Em aula inaugural proferida na Universidade de Freiburg-RFA, o professor alemão Konrad Hesse insurge-se contra a tese de Ferdinand Lassalle, que, ao entender que a essência da Constituição se realiza como uma lei básica, suporte de validade de todas as outras leis e tipificada pela necessariedade, defende que a Constituição formal (jurídica) não tem valor porque são os fatores reais de poder vigentes em determinado país que possuem a força ativa e irradiante de promover a organização social e a efetividade (ou não) dos direitos. Nessa leitura, o texto normativo apenas será eficaz se reproduzir fielmente as normas não escritas que imperam na realidade social.

Opondo-se a tal concepção realista da Constituição, denegatória da autonomia do Direito e de sua força normativa em face das relações de poder, Hesse propõe três questões fundamentais que, respondidas, trariam luz à questão. São elas:  “1º) Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional?; 2º) Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional? 3º) Não seria essa força senão uma ficção necessária para o constitucionalista, que tentar criar a suposição de que o direito domina a vida do Estado, quando, na realidade, outras forças mostram-se determinantes?”.

Ao respondê-las, Hesse, reconhece a existência de condicionamento recíproco entre a Constituição jurídica e a realidade político-social. Elas não podem ser tomadas isoladamente, sob pena de levar “quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento de realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo”.

Considerado esse condicionamento, o professor alemão propõe que entre as teses puramente formalistas ou exclusivamente realistas há um terceiro caminho, o da pretensão de eficácia,  que se alicerça na ideia de que toda Constituição possui uma essência que deseja ser realizada, respeitando-se as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais.

Para o autor, a “pretensão de eficácia” é elemento autônomo que vem associado às condições de sua realização e faz com que a Constituição não seja mera expressão do “ser”, mas constitua também um “dever ser” porque procura imprimir uma ordem e conformação à realidade política e social.

A Constituição jurídica estabelece uma relação de coordenação com a realidade e sua força normativa reside na capacidade de realizar sua pretensão de eficácia. Por isso, deve converter-se em força ativa e impor tarefas, ainda que respeitando a situação histórica concreta e suas condicionantes.

Essa força ativa depende da consciência geral em que esteja presente a “vontade de Constituição”, ou seja, a vontade de concretizar a ordem constitucional independente dos juízos de conveniências.

A “vontade de Constituição” se origina, primeiro, na “compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme”. Implica, também, no entendimento de que essa ordem não é apenas legitimada pelos fatos, mas demanda um constante processo de legitimação e apenas será eficaz com o concurso da vontade humana.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento de forma ótima da força normativa da Constituição deve observar alguns pressupostos. Primeiro, ela será maior quanto mais o conteúdo corresponder aos elementos sociais, políticos e econômicos do presente. A Constituição deve também possuir capacidade de maior adaptação às mudanças das condições fáticas, o que impõe que ela se limite a poucos princípios fundamentais e não se apoie apenas em uma estrutura unilateral,conciliando estruturas contrárias;

Além do conteúdo, a práxis – entendida como “vontade de Constituição” compartilhada por todos os partícipes da vida constitucional – é decisiva para o desenvolvimento ótimo da sua força normativa. Ela demanda sacrifícios para que haja o respeito à Constituição e impõe que sejam repelidos impulsos de reforma constitucional fácil, ainda que momentaneamente mais cômodos.

Também a interpretação contribui decisivamente na consolidação da força normativa da constituição. O intérprete deve buscar a melhor adequação do sentido das proposições normativas observando as condições reais dominantes no contexto em que se apresenta.

Para Hesse, é importante que a interpretação mude quando haja mudança nas relações fáticas (mutação constitucional), respeitando, todavia, os limites estabelecidos pela proposição jurídica.

O princípio factibilidade e o incremento da pretensão de eficácia da Constituição

O princípio factibilidade é uma ideia emprestada da proposta apresentada por Enrique Dussel na obra Ética da libertação – na idade da globalização e da exclusão. Nela o filósofo argentino elabora um consistente fundamento teórico para a conciliação entre as exigências de conteúdo material e validade formal na formulação normativa da ação ética. Contudo, para além da conformação do princípio ético-material universal com o princípio de validade formal ali esboçado, Dussel verifica que é preciso que o agir ético e suas normas sejam concretizados no mundo real, empírico, produzindo efeitos bons e úteis – daí a necessidade do terceiro princípio ou momento de realização ética – o da operabilidade ou factibilidade.

E justamente esse terceiro princípio revela uma abordagem que pode gerar interessantes consequências no estudo da pretensão de eficácia da Constituição e sua justificação racional, já que diz respeito justamente à possibilidade ou impossibilidade do objeto prático da norma ética, regida pelas condicionantes econômicas e tecnológicas do ambiente em que é formulada.

Em sua leitura, Dussel recorre às formulações de Franz Hinkelammert. Este autor, ao constatar a incapacidade humana para alcançar conhecimentos perfeitos, afirma o princípio geral empírico da impossibilidade enquanto categoria das ciências sociais, de acordo com o qual o possível é o resultado da submissão do impossível ao critério de factibilidade, de modo que os deveres ético-normativos são exigíveis dentro dos quadros de factibilidade da ação proposta.

Nas palavras de Hinkelammert, “...qualquer imaginação da ‘melhor sociedade possível’ tem que partir da ‘melhor sociedade concebível’. (...) Por isso, o conteúdo do possível é sempre algo impossível, mas que dá sentido e direção ao possível, em cujo quadro se apresentam as valorações arbitrárias.Ou seja, todo possível existe em relação a uma plenitude impossível, em referência à qual é experimentado e argumentado o quadro do possível”.

A partir dessa base, Dussel defende que o princípio operabilidade/factibilidade trabalhe com uma racionalidade estratégica que, desde a consideração do horizonte ideal, enfrente o problema da efetividade normativa a partir de diversos níveis de factibilidade.

São eles os níveis da:
i) impossibilidade lógica;
ii) possibilidade lógica: impossibilidade empírica;
iii) possibilidade empírica: impossibilidade técnica (não factibilidade);
iv) factibilidade técnica: impossibilidade econômica etc.;
v) possibilidade econômica etc.: impossibilidade ética;
vi) possibilidade ética: princípio da operabilidade;
vii) processo efetivo de realização;
viii) conseqüências a curto prazo e longo prazo (institucionalidade);
ix) processo de legitimação e coerção legal.

Guardando as diferenças e a necessidade de adequações das categorias, a análise desses níveis, ou melhor, dessas regras oriundas do princípio geral de factibilidade, inspira a delimitação de critérios a serem considerados em uma teoria da pretensão de eficácia da decisão em sede de jurisdição constitucional.

Com efeito, em atendimento ao nível (i), uma norma ou decisão constitucional, para ser eficaz, deve primeiro ser logicamente válida – do ponto de vista interno (não conter contradições performáticas) – e externo (coerência e consistência em relação à Constituição).

Pelo critério (ii), a decisão, ainda que lógica e normativamente possível, não pode ser empiricamente impossível.  Por exemplo, o direito à saúde é normativamente válido mas não é empiricamente possível que uma decisão determine que pessoas não fiquem doentes.

Superadas as etapas iniciais, o terceiro critério impõe que a decisão seja tecnicamente possível – p. ex., não adianta, com base nas duas primeiras regras condenar o Estado a tratar um paciente de doença grave – o que em tese é possível empiricamente – mas o estado-da-arte da técnica médica não permite que o tratamento seja eficaz. Imagine o caso de um cidadão portador do vírus HIV que tivesse proposto uma ação no ano de 1989 exigindo medicamentos que curem sua doença, quando a eficácia dos tratamentos ainda era muito rudimentar e duvidosa.

Aqui, lembrando Hesse, a interpretação deve se adaptar às mudanças nos condicionamentos técnicos – veja-se que, dez anos depois, a mesma decisão seria possível ante à evolução das técnicas de controle da doença com os coquetéis antivirais.

O quarto critério diz respeito à superação da factibilidade técnica, mas limitação em face da impossibilidade econômica. Neste ponto, a interpretação da impossibilidade econômica deve ser restritiva e devidamente demonstrada. Há que se considerar também – mais uma vez observando a exigência hessiana de adaptação às transformações nas condicionantes fáticas – que o desenvolvimento de novas tecnologias e métodos de produção bem como as políticas estatais podem levar ao barateamento dos produtos/medidas demandadas e permitir com que haja possibilidade econômica. Retomando o exemplo concreto do coquetel anti-HIV,  ficou claro que a possibilidade de produção em massa dos medicamentos aliada a medidas governamentais (quebra de patentes e produção em laboratório públicos) fez com que fosse superada a impossibilidade econômica de fornecimento universal aos cidadãos que dele necessitavam.

Já o critério previsto na regra (v), uma vez adaptado à teoria do direito, parece indicar que mesmo uma norma válida, possível empírica, técnica e economicamente, pode, em situação muito excepcional,  deixar de ser aplicada ante à perspectiva de gerar uma decisão insuportavelmente injusta. Aqui se manifesta o problema da derrotabilidade da norma positiva em face de princípio moral, questão de alta controvérsia, merecedor de análise mais profunda incompatível com este espaço.

Por sua vez, configurado primeiro estágio de operabilidade (item vi) o parâmetro indicado em (vii) importa em consideração do modo de efetivação da decisão, enquanto que o (viii) diz respeito às consequências, especialmente as institucionais – aqui é possível vislumbrar os efeitos de uma decisão constitucional de índole substancial no controle do orçamento público ou mesmo na estrutura de separação dos poderes.

O último critério, o (ix), traz à luz o problema da eficácia prática ante o caráter imperativo do Direito, isto é, a ordem judicial necessita ser cumprida, normalmente pelo reconhecimento de sua legitimidade e autoridade ou, de maneira anômala, pelos mecanismos de coerção legal, sob pena de configurar mera decisão figurativa, de caráter retórico-simbólico.

Essas diretrizes sedimentam a ideia da eficácia progressiva das normas constitucionais protetoras dos direitos fundamentais e sociais (inclusive com cláusula de proibição de retrocesso), sem recair em falácias argumentativas que, através do culto de conceitos abstratos de “dever-ser” acabam por ignorar a realidade e negar a efetividade a direitos constitucionalmente garantidos com base em argumentação vazia ou desprovida de qualquer comprovação empírica.

Por isso, a substituição da negação pela afirmação com eficácia progressiva nos diferentes níveis/critérios,propicia maior aplicação, in concreto, das normas constitucionais na realidade das pessoas, notadamente se houver a consciência da pretensão de sua eficácia aliada à vontade de Constituição.

Marco Aurélio Marrafon 

Paradoxos atuais e individualismo sem limites pervertem a democracia


Tempos paradoxais

Ao estudarmos as características da civilização atual, aprendemos com Gilles Lypovetsky que os pilares da modernidade estariam hipertrofiados, de modo que vivemos a época do hiperindividualismo, da hiperciência e do hipermercado. Contudo, de outro lado, considerável parcela de pensadores contemporâneos defende leituras diametralmente opostas e postulam a existência de uma crise da subjetividade e da racionalidade moderna, típicas do que se denomina de período pós-moderno.

Assim, a filosofia e a ciência passaram a ser caracterizadas pela complexidade e fragmentação, onde não mais subsiste uma fundamentação metafísica clássica que dê conta do todo. Teria se instaurado um ambiente niilista, no qual a verdade é uma metáfora do intelecto, perdendo sua superioridade ante ao erro.

Nesse contexto, revela-se a impossibilidade de se compreender o humano e explicar o mundo a partir de um único sistema filosófico, de modo que as noções de provisoriedade, temporalidade e comprometimento histórico do saber ganham força, mostrando que vivemos um momento de crise ou de transição paradigmática, conforme terminologia consagrada de Thomas Kuhn.

E os paradoxos multiplicam-se. Em época tão rica, propícia para a criatividade e para a livre de produção de ideias, ou seja, para o exercício da liberdade individual, a dissolução tecnológica da privacidade faz com a essa liberdade sofra grande controle social. Ideias tidas como inconvenientes são ridicularizadas. Reproduzem-se nas redes sociais mensagens e “memes” linchando pessoas e queimando reputações.
Vivemos em um país democrático, mas professores dão aulas medindo palavras, temerosos com as consequências de suas falas. Qualquer mal-entendido ou dissabor ofende e tem potencial para gerar processo judicial. Dissolve-se a autorictas. Tudo é permitido e nada é permitido. Justamente por ser tudo permitido, a ausência de limites aniquila a liberdade do próximo.

Mundo sem limite

Na tentativa de entender esses fenômenos, os psicanalistas, em especial Jean-Pierre Lebrun e Charles Melman, fazem o diagnóstico de que há uma nova formação da economia psíquica, promotora de um mundo sem limite.

Na obra Um mundo sem limite — ensaio para uma clínica psicanalítica do social, Lebrun explica que essa situação é oriunda da perda do que se entende, em psicanálise, por figura do Pai (que não é necessariamente pessoa física, mas antes o lugar do limite, a função da castração que, ao mesmo tempo, institui a ordem psíquica do sujeito e fixa o desejo).

Como decorrência, há um esvaziamento de autoridade que tem proporcionado o que, segundo Melman, pode ser pensado como uma nova economia psíquica, isto é, um modo egocêntrico de pensar, viver, trabalhar, relacionar-se com a família e com as instituições sociais, assentado na exibição do prazer, que é buscado a qualquer preço.

Ora, na leitura psicanalítica clássica, a formação do sujeito se dá com a interdição/limite imposto pelo Outro, negatividade que gera ausência e, ao mesmo tempo, desejo. Nesse processo, baseado no recalque, o sujeito cresce e amadurece socialmente. Já a nova economia psíquica é caracterizada por uma lógica que evita a subjetivação, o desprazer, abrindo o primado das sensações sobre os limites sociais e, assim, inibe a formação para a cidadania.

Em um mundo sem limites, qualquer forma de desprazer (ainda que imediato, temporário e educativo) é rechaçada, pois importa o gozo-espetáculo, o amor midiático e, para alcançá-lo, todos os meios são permitidos, até mesmo o imbróglio, a fraude.Nesse novo quadro, não há mais referenciais éticos que direcionem as condutas das pessoas.

Uma democracia pervertida

No campo sociológico, o individualismo originado da perda da subjetivação clássica gera um forte relativismo ético que se verifica no pluralismo axiológico, multiculturalismo com grande diversidade nas expectativas normativas e o reconhecimento geral do aumento da complexidade sistêmica, formando um conjunto de fatores que consome a possibilidade de tradições estáveis e impede a formação de uma imagem antropológica coerente do homem atual. Daí a resistência ao cumprimento de regras sociais básicas e o excessivo egocentrismo de muitos que possuem grande dificuldade de lidar com o “não”. “O céu está vazio” e “não há mais impossível”, diz Melman.

A partir desses pilares, a nova economia psíquica tem levado a profundas consequências no modo de realizar a democracia. Na obra A perversão comum — vivendo juntos sem o outro, Lebrum conclui que houve a morte da sociedade hierárquica e, nesse contexto, o coletivo não serve mais à castração, ao lugar do Outro. Operou-se, assim, a dissolução entre o singular e o coletivo sem que houvesse novo substituo ao individualismo que ele diagnostica como perverso.

Perverso porque, conforme suas palavras, “a perversão é uma estrutura psíquica que visa essencialmente à satisfação. Ela se serve do outro, sem perguntar o ponto de vista, se estar de acordo, o que quer que seja. Ela desmente também a diferença de sexo ou de geração. Esse é o perverso doente. Mas hoje existe essa noção de perversão que pode também designar sujeitos sem serem doentes, mas organizados por este funcionamento. Trata-se de uma tendência, sem que haja uma patologia” (disponível neste link).

Forma-se, assim, o neosujeito que, ante ao vazio da existência e a ausência de limites, busca grande quantidade de sensações intensas, aderindo de maneira incontrolável à lógica do consumo (da ostentação?).

Essa conduta, uma vez generalizada, ocasiona a perversão comum que solapa as possibilidades de uma democracia forte, já que, com o esfacelamento do coletivo, prevalece o espírito de facção, a defesa irrestrita de próprios interesses, por mais fugazes e imediatos que sejam. Eis uma das chaves da intolerância, da indiferença com as vítimas do sistema, da negação/encobrimento do diverso/diferente. Uma democracia em que se vive junto, sem o outro.

Todavia, essa tensão com o outro é inevitável e imprescindível para uma democracia saudável. Não há possibilidade eficaz de representação legítima em uma sociedade hiperfragmentária formada por neossujeitos, com plena dificuldade de aceitar regras.

Como consequência promove-se grave crise de legitimidade nas instituições e torna-se bastante problemática a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais, que perdem legitimidade em função da distância entre “ser” e “dever-ser”.

Sem referenciais éticos e limites compartilhados socialmente, prevalece o individualismo — correto é fazer aquilo que eu acredito que seja correto — donde a grande dificuldade da imposição de normas, seja ela a reprovação por insuficiência no rendimento acadêmico, a proibição de se espancar mendigos ou atear fogo em índios ou mesmo a compreensão de que direitos fundamentais também admitem restrições e que, não é porque se tem uma boa causa, que grupos minoritários podem fazer tudo que desejam, causando transtorno e prejuízos a milhares de pessoas.

Daí o desafio da era contemporânea: fazer com que o sujeito encontre seus limites e reconheça seu laço com o coletivo a partir de sua singularidade e sem recorrer à tradicional estrutura hierárquica. É o que Lebrun chama de uma nova responsabilidade sujeito — com os outros, sem perversão — pois a responsabilidade apenas será eficaz se comprometida com a dimensão coletiva e a subjetividade do próximo.

Nesse processo, penso que a reconstrução da legitimidade normativa e o resgate da importância de se observar regras gerais é um sofrimento que não pode ser dispensado.

Confusão de funções e submissão ao Executivo agravam crise do Congresso

Anteriormente procurei apresentar o diagnóstico do modelo atual de organização psíquica “sem limites”. Ele tem formado o neosujeito, que tem dificuldade de lidar com regras em um mundo hiperindividualista, e gerado disfunções na democracia contemporânea.

Anotei que um dos efeitos imediatos desse ambiente de alta fragmentação de valores e complexidade social era a grave crise de legitimidade das instituições, pois aumentou a tensão entre “ser” e “dever ser”, entre a adequação das convicções individuais a sistemas normativos gerais.

Na reflexão de hoje avançarei nessa temática, com especial foco na crise de representação política que atinge de modo mais intenso o Congresso Nacional, enquanto locus de materialização normativa da vontade democrática em um sistema político e eleitoral que tenta aliar presidencialismo de coalizão com as exigências de bem-estar social constitucionalmente determinadas.

Descrença nas instituições

A democracia representativa liberal clássica apresenta sinais de esgotamento. Partidos políticos parecem ter perdido o controle da agenda política e do atendimento das demandas públicas. É notável sua dificuldade de agregar e canalizar os votos recebidos de modo a organizar as lutas sociais com objetivos de transformação. Por isso, revelam-se necessários urgentes mecanismos de renovação e oxigenação.

Mesmo os sindicatos têm sofrido questionamentos contundentes acerca de sua representatividade. Tem se tornado comum a chamada “quartelada sindical”, isto é, a ação de grupos de pessoas sindicalizadas, em geral minoritários, que, na defesa de seus interesses, não seguem as deliberações coletivas. Agem da maneira que melhor lhes convém — vale tudo em nome do seu/meu direito —, não raro em prejuízo da manutenção de serviços essenciais à população, gerando impasses na solução de conflitos e tornando impraticável a negociação entre o setores envolvidos, o que prejudica os próprios trabalhadores.

Nesse contexto, a crise de legitimidade do Congresso Nacional brasileiro completa um perigoso quadro de descrença nas instituições que pode servir de pretexto para a ascensão de ideias autoritárias.

Podemos notar os sinais dessa crise i) no acesso ao Poder Legislativo (o sistema proporcional combinado com grande número de partidos e permissão de coligação tem sofrido severos questionamentos); ii) na análise dos extratos sociais e econômicos dos representantes em relação aos representados (o que de imediato revela a baixa representação da comunidade negra e das mulheres); iii) no funcionamento da instituição em si, no âmbito do sistema político nacional.

Cada um desses tópicos de investigação demanda estudos profundos. Por ora, farei um novo recorte: enfatizarei o terceiro ponto, relativo ao exercício satisfatório de suas competências constitucionais.

O Parlamento moderno possui funções básicas de controle e fiscalização, além da atividade legislativa propriamente dita. Em geral, no Estado de Direito cabe ao Legislativo: i) aprovar e controlar o orçamento público e sua execução; ii) fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros, combatendo a corrupção; iii) atuar como juiz em situações atípicas (p.ex. impeachment do Presidente da República); iv) promover investigações parlamentares (p. ex. CPIs); v) discutir grandes temas nacionais, levando demandas populares ao Executivo ; vi) inovar legislativamente no sistema constitucional, considerada sua função típica.

Já há aqui um primeiro apontamento em relação à transformação dos representantes parlamentares em legisladores. O cientista politico Giovanni Sartori lembra que na origem do Parlamento moderno, a ideia de onipotência do legislador não significava grande discricionariedade na criação de leis. Tanto no modelo ingles do rule of law quanto na democracia francesa de índole rousseauniana, o Legislativo deveria concretizar o direito previamente existente por meio de leis que seriam muito mais reveladas do que propriamente criadas — inclusive, a fase do law making era precedida de uma etapa mais teórica, do law finding.

Na visão do professor italiano, além de sobrecarga das demandas normativas — que se não forem atendidas levam à insatisfação e à falta de legitimidade da instituição —, o câmbio de paradigma sobre o significado do papel legislativo do Parlamento causou grande confusão de funções e perda da eficácia do que é especificamente a função parlamentar.

Para o autor, essa mudança promoveu efeitos negativos. Os parlamentos absorveram a função de criar o direito e promoveram inflação legislativa, permitindo a afirmação de uma concepção voluntarista do fenômeno jurídico aliada à ideia de que governar é igual a legislar: “O Parlamento adquiriu a atribuição de legislar sobre uma enorme quantidade de procedimentos de natureza particular, administrativa ou mesmo meramente regulamentar. Daí o governo se sente obrigado a governar legislando – prática que equivale a mal governar e mal legislar”.

Assim, conclui que “o princípio de governo controlado e submetido às leis se transformou no princípio bem distinto de governar por meio de leis, multiplicando-as e inflacionando-as”.

Dominação da agenda pelo Executivo

Além do potencial de crise gerado pela sobrecarga de funções e confusão de seu papel institucional, o presidencialismo brasileiro (considerado de coalizão), combinado com um modelo político típico de Estado de Bem-Estar Social, fez com que o modo de produção legislativa se adaptasse às exigências do projeto constitucional instituído em 1988 e tornasse necessária grande participação do Chefe do Executivo na produção legislativa.

A Constituição de 1988 estabeleceu um leque muito abrangente de direitos fundamentais de natureza social, além daqueles da clássica concepção liberal. Tais direitos sociais envolvem direitos de participação e obrigações que o Estado deve prestar à população. Isso faz com que haja maior demanda de atuação positiva do Executivo na realização de políticas públicas que garantam a eficácia desses direitos.

Assim, em oposição ao Estado liberal, com maior centralidade do Poder Legislativo, o Estado de Bem-Estar social legitima a atuação preponderante do Executivo, atribuindo grande responsabilidade governamental ao Presidente da República, que passa a participar do processo legislativo fazendo uso do amplo rol de competências exclusivas na iniciativa de leis (art. 84 da Constituição) e das medidas provisórias (artigo 62).

Além disso, por meio das coalizões partidárias, o presidente utiliza os partidos aliados e o seu próprio como instrumentos de aprovação dos projetos de leis que atendam aos interesses governamentais.

A pauta do Parlamento passa, então, a ser dominada pela agenda do Executivo e, se o Congresso exercer constantemente seu poder de veto, instaura-se uma grave crise de governabilidade, com impasses entre os poderes e paralisação da máquina estatal.

Para que isso não ocorra, por vezes temos presenciado estratégias de cooptação parlamentar que ultrapassam as razões públicas – mais um motivo para a crise de legitimidade — mas que têm garantido ao Executivo alto controle da elaboração normativa, tanto em relação à taxa de sucesso (isto é, percentual de projetos de interesse do governo aprovados pelo Congresso Nacional) quanto em relação à taxa de dominância da agenda política (relativo ao índice de aprovação dos projetos de iniciativa do governo em comparação àqueles de iniciativa de outros atores políticos levados à deliberação e à votação).

Nos cálculos de Limongi relativa ao período de 20 anos contados a partir do fim do regime militar, “A disciplina média da base do governo — proporção de deputados filiados a partidos que receberam pastas ministeriais que votaram em acordo com a indicação expressa do líder do governo — é de 87,4% nas 842 votações ocorridas no período. A variação entre presidentes é pequena: a menor média foi registrada sob Sarney, com 78,4%, e a maior, 90,7%, no segundo governo de Fernando Henrique. O governo Lula, para dissipar falsas imagens, contou com apoio médio de 89,1% dos deputados da base do governo em 164 votações.” (Disponível aqui)

Estudos do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP — NUPPs, em especial a análise dos dados pesquisados por José Álvaro Moisés, mostram resultados semelhantes: a taxa de dominância ultrapassa 85% e a taxa de sucesso é ainda mais alta. (Disponível aqui)

No contexto brasileiro, a sobrecarga (e confusão) de funções é um dos fatores que fazem com que o papel de controle e fiscalização não seja adequadamente cumprido e, no plano legislativo, prevalece a dominação da agenda parlamentar pelo Executivo.

Daí a crise da função legislativa do Parlamento que deixou, há muito, de ser o locus adequado de produção normativa legítima e democrática, dando lugar forma de governo calcada no Poder do Executivo.

As estratégias de cooptação parlamentar não raro oportunistas e baseadas em pactos nada republicanos, contribuem para esse quadro de descrença e ausência de legitimidade institucional.

Isso não significa, porém, sua inutilidade ou a defesa da implantação de democracia direta e plebiscitária. Repensar mecanismos de aproximação e diálogo com a sociedade e resgatar a complementaridade entre democracia participativa e representativa são caminhos mais promissores.

Marco Aurélio Marrafon é presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, Professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Advogado.