"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Da Campanha " O Petróleo É Nosso " aos Desafios do Pré-Sal



Por: Luiz Paulo Vellozo Lucas

A história da indústria do petróleo no Brasil é marcada por dois períodos. No embalo da campanha “O Petróleo é Nosso”, o primeiro teve início com a Lei n.º 2004 de 1953, que criou a Petrobras e deu à empresa o monopólio da exploração, produção, refino e transporte da commodity e seus derivados no país.


O segundo período, reflexo do processo de abertura econômica e de reforma do Estado, começou em 1995 com a aprovação da Emenda Constitucional n.º 5, que permitiu a exploração por empresas privadas dos serviços locais de gás canalizado. Com a promulgação da Lei n.º 9 478 de 1997, a Lei do Petróleo, culminou a definição do novo marco regulatório do setor.


Ainda em 1995, a Emenda Constitucional n.º 9 tornou flexível o monopólio da Petrobras e permitiu a atuação de grupos privados em toda a cadeia do segmento econômico.Ao longo de pouco mais de meio século, o Brasil foi considerado um país dotado de poucas reservas e, portanto, condenado à condição de importador da commodity. Atingiu a auto-suficiência em 2006. E agora sonha com a possibilidade de entrar para o seleto grupo dos grandes exportadores, depois da descoberta das expressivas reservas do pré-sal.


O presente artigo traz um breve histórico da indústria petrolífera no Brasil: da fundação da Petrobras até a quebra do monopólio estatal na década de 1990. Em seguida, apresenta avaliação dos resultados obtidos com a mudança do marco legal. Por fim, lista as oportunidades e desafios do pré-sal para o futuro do país diante de um cenário de crise financeira internacional.Do início ao fim do monopólio.


Criada em 1953 pela Lei nº 2004, sancionada pelo presidente Getúlio Vargas no dia 3 de outubro daquele ano – data de aniversário da Revolução de 1930 –, a Petrobras iniciou suas operações em 1954. A empresa nasceu com a responsabilidade de promover as pesquisas de petróleo e realizar todas as operações do setor no país, como produção, transporte, refino e comércio de petróleo e derivados.


O processo de exploração e produção de petróleo no Brasil pode ser dividido, de modo geral, em três fases bem delimitadas. A primeira delas, denominada fase terrestre, inicia-se com a própria criação da Petrobras e vai até 1968, quando começam as explorações no mar.


O período acabou marcado pelo chamado Relatório Link, conjunto de cartas do geólogo americano Walter Link, ex-funcionário da Standard Oil of New Jersey, para a direção da Petrobras. De acordo com Link, o Brasil não possuía reservas economicamente viáveis nas bacias terrestres. Deveria, portanto, voltar-se para o mar.Durante quase uma década, Link foi o responsável pelo Departamento de Exploração da estatal. A opinião causou grande polêmica em um período caracterizado pelo nacionalismo exacerbado.


A partir de 1968, o país intensificou as atividades em áreas marítimas. No princípio, a exploração concentrou-se nas bacias localizadas no Nordeste. Em 1973, com o primeiro choque do petróleo, quando o valor do barril passou de US$ 2 para US$ 10 a preços da época, o Brasil teve de buscar alternativas para a importação da commodity em larga escala, pois o cenário de oferta abundante e preços baixos ficara no passado.


Vale lembrar que o Brasil vivia a fase do chamado “milagre econômico”, com taxas de crescimento acima de 10% do pib, o que resultava em aumento da demanda por petróleo. Sem recursos para manter os níveis de compra no mercado internacional e sem reservas conhecidas, a Petrobras manteve o foco no Atlântico, onde havia perspectivas de se encontrarem novas jazidas.Em 1974, ocorreu a primeira descoberta comercial na bacia de Campos. A partir daí, houve intensificação de atividades na área, resultando em vários campos em águas rasas, com lâminas d’água inferiores a 400 metros.


Até 300 metros de profundidade, a exploração pode contar com o auxílio de mergulhadores. Depois disso, todo o processo tem de ser feito por meio da robótica. Com a fronteira das jazidas cada vez mais distante da costa e em profundidades sempre maiores, o país acabou por figurar na vanguarda do desenvolvimento tecnológico para produção e exploração em águas cada vez mais profundas.No entanto, o óleo extraído das reservas da bacia de Campos era pesado para o perfil das refinarias instaladas no país. O fato tornou-se novo desafio para a Petrobras. Por meio do projeto “Fundo de Barril”, a estatal conseguiu fazer com que as refinarias operassem com 85% de óleo nacional.


O segundo choque do petróleo em 1979, quando o valor do barril chegou a US$ 35 a preços de então, obrigou o país, mais uma vez, a se voltar para o oceano em águas cada vez mais profundas. O quadro externo também incentivou o investimento em fontes alternativas de energia. O Pró-álcool é um exemplo. Mais tarde, o programa viria a se tornar o embrião das pesquisas em biocombustíveis.Mesmo em cenário adverso, a produção offshore permitiu que o país alcançasse a meta de produzir 500 mil barris de petróleo por dia em 1984, com um ano de antecedência.


Desde então, o país vive a terceira fase de exploração e produção, denominada de marítima de águas profundas. O período teve início com a descoberta dos campos de Albacora, no final de 1984, e de Marlim, no início de 1985. Os dois campos estão localizados em águas profundas, com lâmina d’água acima de 400 metros.


Segundo Fernández e Pedrosa, no trabalho citado, as atividades na área permitiram a descoberta de novos campos gigantes em águas ultraprofundas (com lâmina d’água acima de mil metros), como Albacora Leste (1986), Marlim Leste (1987) e Marlim Sul (1987).


Contudo, o contrachoque do petróleo registrado em 1985, com o preço do barril em torno dos US$ 15, criou dificuldade na obtenção de capital para investimentos na área. O desenvolvimento desses campos só se tornou possível após 2001, depois de superadas as limitações técnicas e asseguradas as fontes de recursos.Do novo marco legalà auto-suficiência.


A Constituição de 1988 manteve o monopólio da Petrobras, mas introduziu a idéia de um órgão regulador para o setor. Isso despertou a empresa para a necessidade de se preparar para os novos tempos.Depois de 35 anos de criação, a estatal lançou o seu primeiro plano estratégico em 1989. O projeto tinha como diretrizes as necessidades de investimento em eficiência, competitividade, recursos humanos e tecnologia, além da integração do processo produtivo (upstream e downstream). A proposta revelava diretrizes que se contrapunham aos princípios adotados por uma estatal monopolista.


Nos anos 1990, dentro do contexto da reforma do Estado, inicia-se uma nova fase institucional para o setor. Em agosto de 1995, a Emenda Constitucional n.º 5 permitiu que os serviços locais de gás canalizado fossem explorados por empresas privadas. Em novembro daquele mesmo ano, a Emenda Constitucional n.º 9, que flexibiliza o monopólio da Petrobras e permite a atuação de empresas privadas em todos os elos da indústria do petróleo, intensificou o processo de reestruturação setorial, que culminaria com a Lei n.º 9 478, em 1997.


O novo marcou legal manteve o monopólio da União sobre as reservas de petróleo, gás e demais atividades da cadeia produtiva. No entanto, as atividades de exploração e produção passaram a ser regidas por contratos de concessão firmados entre a Agência Nacional do Petróleo (anp) – autarquia criada pela lei para promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades do setor – e as empresas vencedoras das licitações de blocos promovidas anualmente. A Petrobras teve garantido o direito sobre os campos em produção e as áreas em que tivesse realizado investimentos na exploração.


A anp tornou-se o braço da União para realizar os poderes de concessão, fiscalização e regulamentação. O modelo regulatório instituído obteve, ao longo dos últimos onze anos, os resultados esperados: atração de novos investimentos, maior participação dos entes federativos sobre as receitas geradas pelas atividades do setor e, sobretudo, o fortalecimento da Petrobras.Submetida à concorrência, a empresa foi oxigenada. Assimilou novas práticas. Inovou na sua gestão. Construiu novas parcerias. Mudou a sua forma de relacionamento com o governo federal. Aprimorou práticas de responsabilidade social e de cuidados com o meio ambiente, aumentando a transparência em relação ao mercado.


Já não mais protegida sob o guarda-chuva do monopólio legal, a estatal adquiriu maior relevância internacional. O próprio Estado passou a utilizar menos a empresa como instrumento político e procurou aproveitar melhor os fluxos de lucros, dividendos, impostos e participações governamentais pagos pela empresa .


Por essas razões, o processo de abertura do setor no Brasil é reconhecido internacionalmente. Ele se destaca pela transparência e pela estabilidade de regras, elementos que possibilitam aos agentes econômicos previsibilidade e planejamento de longo prazo. Depois dessas mudanças, o setor aumentou consideravelmente sua participação no pib, crescendo sempre acima da média.


A Tabela 1 apresenta dados do setor de petróleo e gás, comparando os anos de 1997 e 2007:Vale lembrar que a lei foi aprovada sob forte oposição dos que hoje estão no governo, a exemplo do que ocorreu com outras reformas estruturais. Dizia-se à época que quebrar o monopólio era franquear as riquezas brasileiras a investidores estrangeiros, em prejuízo da nação. Os fatos mostraram o contrário. Não apenas o país tornou-se um produtor mais relevante de petróleo, como a própria Petrobras tornou-se mais eficiente.


Dez anos depois da abertura do setor, existem hoje mais de 70 grupos econômicos atuando em exploração e produção de petróleo e gás no país, dos quais boa parte de origem estrangeira. A média diária de produção cresceu 120% no período.Como se vê, o Brasil ganhou muito ao se abrir à concorrência externa e permitir que investidores privados ingressassem em áreas antes cativas do Estado – algo que a ideologia do atual governo sempre execrou.


Em resumo, o novo marco regulatório foi idealizado para criar regras claras à participação dos agentes nas atividades anteriormente desempenhadas de modo exclusivo pela Petrobras. O objetivo era promover a entrada de novos atores no setor, fomentar a competição e atrair novos investimentos. Os números demonstram o sucesso da lei.


O padrão de contrato de concessão adotado pelo novo modelo prevê a apropriação pela sociedade – por intermédio da União, dos estados e dos municípios – de parte da renda obtida pela produção de petróleo e gás. São as participações governamentais, mecanismo adicional às obrigações tributárias previstas legalmente.


A Lei n.° 9 478 alterou substancialmente esse mecanismo para ampliar a fatia governamental sobre a renda auferida nas atividades de exploração e de produção, regidas pelos contratos de concessão, conforme o quadro abaixo:(...)


O bônus de assinatura é pago pelo vencedor do leilão das áreas concedidas para exploração. O valor é repassado integralmente à União. Conceitualmente, o bônus precifica o risco exploratório associado ao bloco e à bacia ofertados. Já o pagamento pela ocupação ou retenção de área refere-se aos valores pagos por quilômetro quadrado retido pela concessionária durante a fase de exploração e de produção. O montante também acaba repassado integralmente para a União.


Os royalties recaem sobre a renda bruta da produção e pode variar de 5% a 10%, sendo hoje de 9,7% na média ponderada. Os valores da renda bruta são calculados em função do preço internacional do barril e do câmbio. Representam uma compensação financeira pela exploração de um recurso mineral não-renovável.


As participações especiais são aplicadas a campos de grande volume de produção, ou de grande rentabilidade. Recaem sobre a renda líquida de acordo com alíquotas progressivas que variam em função do volume de produção de um determinado campo. Expressam a captura financeira pelo Estado de parcela da rentabilidade das atividades de produção no setor de petróleo, como faz o Imposto de Renda.


Os royalties e as participações especiais contemplam União, estados e municípios, em percentuais distintos, conforme apresentado na Tabela 4. Repartem-se aproximadamente na proporção de 50% para União e 50% para estados e municípios. Pode-se observar que o total da distribuição das participações governamentais entre União, estados e municípios depende significativamente do valor do bônus de assinatura auferido na licitação anual, uma vez que estes são repassados integralmente à União.


Da transformação na indústria do petróleo resultou o crescimento quase exponencial da participação do governo nas receitas do setor. Considerando royalties, participação especial, bônus de assinatura e pagamento por retenção de área, ela somou mais de R$ 82 bilhões desde 1998 até o ano passado.A evolução das Participações Governamentais, desde a promulgação da Lei, e a evolução de sua distribuição entre os entes federativos são apresentadas nas Figuras 1 e 2.


Diante do cenário de aumentos de produção, investimentos e participações governamentais, a produção nacional atingiu a auto-suficiência em meados de 2006 com o início das operações da plataforma P-50 no campo Albacora Leste, na bacia de Campos. A produção nacional chegou a 1,85 milhão de barris, superando pela primeira vez a capacidade de processamento das refinarias.O resultado – a despeito da estratégia do Planalto de vender a tese de que a auto-suficiência reflete ações adotadas a partir de 1º de janeiro de 2003 – apenas ratifica a importância e o sucesso do marco regulatório.


Mais: representa décadas de trabalho de exploração e produção durante sucessivos governos.Mas na prática, mesmo com toda a comemoração do governo, ainda temos de importar óleo leve e continuamos tendo déficit na conta petróleo. Em agosto deste ano, o Brasil teve de importar US$ 818 milhões em petróleo, por exemplo.


As oportunidades e desafios do pré-sal


De forma semelhante ao período da campanha “O petróleo é nosso”, há mais de meio século, o tema está de volta à ordem do dia. Depois do anúncio da descoberta da existência de bilhões de barris de petróleo no campo de Tupi – extensa área localizada na camada de sal do Oceano Atlântico que vai do Espírito Santo a Santa Catarina – em meados do ano passado, o petróleo voltou à ribalta nacional. E mais uma vez, o atual governo arvorou-se de único responsável pela descoberta.Na verdade, os esforços exploratórios nos blocos do pré-sal tiveram início com a segunda rodada de licitações da anp, realizada em 2000. Portanto, ainda no governo passado. Durante o período do monopólio estatal não foram realizadas atividades exploratórias significativas nessa área. No entanto, o novo cenário, a partir das recentes descobertas no pré-sal, estimulou o debate quanto ao modelo regulatório do país.


As atividades de exploração e produção de petróleo e gás são regidas internacionalmente por três modelos principais: contrato de concessão, contrato de partilha e prestação de serviços. No contrato de concessão (adotado no Brasil), o monopólio dos recursos naturais é da União, mas o risco da exploração é da concessionária, que em caso de sucesso torna-se proprietária do óleo produzido pelo período de vigência do contrato.


O país recebe compensações financeiras, por meio das participações governamentais e de bônus de assinatura que precificam o risco exploratório.


O processo é altamente transparente e permite o planejamento da utilização de áreas para exploração, inclusive à luz de definições estratégicas de políticas públicas.Já no contrato de partilha, o custo do risco exploratório é da empresa contratada. Em caso de sucesso da empreitada, a empresa desconta os custos de exploração e de desenvolvimento da produção do óleo, que é repartido entre a empresa e a União em percentuais preestabelecidos. De modo geral, os custos no modelo de partilha são maiores.


Na prestação de serviços, o plano de trabalho é definido entre a empresa operadora e o Estado. O pagamento à empresa é realizado em dinheiro e o óleo fica nas mãos do Estado, que é responsável por sua comercialização. A prestação de serviços é o modelo adotado por México e por Irã, por exemplo.


O debate sobre o tema tem despertado paixões, deslocando o foco da discussão para o modelo regulatório, quando a grande questão – do ponto de vista da sociedade – está na fatia apropriada pelo Estado da renda oriunda da produção de um bem não-renovável.O modelo regulatório utilizado não determina a fatia apropriada. A apropriação maior ou menor pode se dar em qualquer modelo. Essa deveria ser a questão central do debate.


A passagem de um modelo monopolista em toda a cadeia para uma realidade concorrencial exige um processo contínuo de ajustes com vistas ao máximo ganho para a sociedade. No entanto, sob a retórica da defesa do interesse nacional, a mudança no modelo como um todo pode fazer o país voltar no tempo, andar na contramão da tendência internacional e paralisar o desenvolvimento do setor, estratégico para o crescimento da economia.


Não se trata, portanto, de buscar subterfúgios para – diante da nova realidade representada pela descoberta do pré-sal – alterar o cerne de um modelo em que as atividades de exploração e produção se fazem por licitação transparente e sob contratos de concessão.De fato, algumas condições mercadológicas e tecnológicas se alteraram desde a entrada em vigor do marco legal pós-monopólio. Mas os ajustes à nova realidade podem ser feitos sem mudança do conteúdo da lei em vigor. A variação do preço internacional do petróleo e o volume estimado das recentes descobertas na camada pré-sal levam à necessidade de revisão da fatia governamental auferida nas atividades de produção de petróleo e gás, em função da alta rentabilidade.


A lei contempla essa possibilidade: a participação especial, regulamentada por decreto presidencial, pode ter suas alíquotas ajustadas levando-se em conta todos os elementos da rentabilidade.


Acresce que o bônus de assinatura, que precifica o risco, tende, pelo processo de concorrência, a apresentar valores mais elevados onde o risco exploratório for menor, como na camada do pré-sal.Diversas propostas foram apresentadas para a destinação dos recursos das participações governamentais associadas à exploração das jazidas dessa camada. Nenhuma delas é incompatível com o modelo de contrato de concessão. Obstáculo, se houver, será o contingenciamento de recursos para fins de geração de superávit primário. É essa prática que impede a efetiva aplicação de recursos com base em destinações preestabelecidas em lei.


O modelo atual tampouco dificulta o planejamento de longo prazo relativo à utilização das reservas do país. Para isso, existe o Conselho Nacional de Política Energética.


Enfim, todas as condições estão dadas para, mantida a estabilidade atual, continuar atraindo investimentos, melhorar o conhecimento de nosso subsolo e fortalecer ainda mais os orçamentos dos entes federativos com novos recursos oriundos da renda petróleo.


Conclusões e perspectivasLogo após o anúncio da descoberta das reservas da camada pré-sal, o governo retirou da nona rodada de licitação de blocos da anp as áreas de pré-sal localizadas nas bacias de Santos, Campos e Espírito Santo. A decisão veio a reboque de estimativas otimistas e prematuras. A Petrobras chegou a estimar um volume de oito bilhões de barris apenas em Tupi e de mais de 70 bilhões de barris no pré-sal das Três Irmãs.


Se os cálculos estiverem corretos, as reservas brasileiras passariam a figurar entre as dez maiores do mundo, atrás apenas dos países do Oriente Médio, da Rússia, da Nigéria e da Venezuela.Diante desse cenário de euforia, o governo conseguiu transformar uma boa notícia em problema e ainda vendeu para a população a idéia de que todos os males do país serão resolvidos com os recursos do pré-sal.


Sem saber para onde caminha o setor, os investimentos em petróleo no Brasil entraram em compasso de espera antes mesmo de os efeitos da crise financeira internacional atravessarem o Atlântico. Como no restante da economia, a crise pegou o governo desprevenido também no que se refere ao pré-sal.


Já antes do anúncio da descoberta de Tupi, a oitava rodada de licitações fora suspensa por decisão judicial, tomada em 2006. Posteriormente, a liminar foi derrubada, mas o governo seguiu sem definir como e quando retomará a rodada porque nela estão dez blocos localizados nas “franjas” do pré-sal. Nesse cenário de crise internacional, fica claro o prejuízo que o governo causou ao retirar a área do pré-sal dos leilões da anp no momento em que o preço do barril do petróleo batia sucessivos recordes.


Mais uma vez, o governo Lula perdeu o bonde da história.


A verdade é que as reservas da camada pré-sal estão localizadas a mais de seis quilômetros do nível do mar. Em média, as jazidas se encontram sob dois mil metros de lâmina d’água, mais dois mil metros de rocha, além de outros dois mil metros de pré-sal. Isso sem falar que alguns campos estão a mais de 300 quilômetros da costa.


Qualquer atividade nessas circunstâncias não é trivial, ao contrário do que fazem crer os discursos ufanistas de nossas autoridades. Embora, diga-se, exista toda a tecnologia desenvolvida no país para exploração em águas ultraprofundas, reconhecida internacionalmente.


O desafio de explorar o pré-sal ultrapassa a fronteira da tecnologia encontrada hoje no mundo. Estamos diante de um desafio semelhante ao de desenvolver programas nucleares ou de viagens espaciais. Uma das dificuldades é enfrentar a composição geológica das áreas a serem perfuradas.


A profundidade é outro problema, que faz aumentar a pressão e a temperatura. A cada 30 metros de profundidade, a temperatura aumenta um grau centígrado. A seis mil metros de profundidade, encontram-se temperaturas de, no mínimo, 180 graus centígrados.Esses são apenas alguns dos desafios a serem superados para que as empresas possam extrair o petróleo submerso em condições economicamente viáveis. O país ainda não tem tecnologia para isso. O desafio não é apenas da Petrobras ou das empresas que atuam no setor. O sucesso ou o fracasso devem ser compartilhados.


Outro ponto fundamental são as restrições de ordem econômica. Como conseguir recursos para transformar o pré-sal em riqueza para os brasileiros, sobretudo nesse momento de crise financeira internacional?


Assim como as estimativas do volume das reservas, as cifras necessárias para exploração do pré-sal variam bastante.Há apenas um consenso: o valor será expressivo. Os números vão de US$ 600 bilhões a US$ 1 trilhão, algo entre 40% e 60% do pib. Vale lembrar que, neste momento de volatilidade dos ativos, fica difícil fazer qualquer previsão.


Nesse cenário de incertezas, é possível fazer apenas uma afirmação precisa: o pré-sal, após investimentos da ordem de bilhões de dólares, levará alguns anos para ser explorado de modo economicamente viável e em quantidades significativas.


Desse modo, estamos na fase em que o projeto de exploração e produção requer trabalho árduo e investimentos expressivos, que ainda estão longe da fase de retorno. Para isso, o fundamental nesse momento é a manutenção do marco legal. A hora é do trabalho da formiga e não do canto da cigarra.


Eloi Fernández e Oswaldo Pedrosa, “Exploração & Produção: Diagnóstico e Propostas”, em Adriano Pires, Eloi Fernández y Fernández & Julio Bueno (orgs.), Política Energética para o Brasil: Propostas para o Crescimento Sustentável, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.
Adriano Pires & Leonardo Campos Filho, “A Abertura do Setor Petróleo e Gás Natural: Retrospectiva e Desafios Futuros”, em Fabio Giambiagi, José Guilherme Reis & André Urani (orgs.), Reformas no Brasil: Balanço e Agenda, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.

Dez Mitos Sobre defesa Nacional no Brasil


Por: João Paulo Soares Alsina Jr.


Este artigo aborda o que se poderia chamar de incompreensão generalizada sobre as questões de defesa nacional




A idéia demito é empregada no sentido adquirido no senso comum: o de argumentação falaciosa que possui relevância em vista de sua ampla aceitação em um determinado contexto social. Procuro demonstrar a inconsistência dos argumentos que sustentam visões dominantes sobre a problemática brasileira de defesa, sem utilizar citações e notas de rodapé.




Mito 1. O Brasil não precisa de Forças ArmadasEsse mito deriva da incompreensão sobre o papel das Forças Armadas prevalecente em amplos setores da sociedade brasileira. Sua origem encontra-se no pacifismo anti-militarista proveniente de duas matrizes não-excludentes:a ingenuidade bem-intencionada e o preconceito puro e simples contra as instituições de Estado que se ocupam da administração da coerção organizada. No primeiro caso, supõe-seque o sistema internacional tende à harmonia de interesses – embora os defensores dessa tese raramente sejam capazes de formulá-la em termos estruturados; no segundo caso, rejeita-se a instrumentalidade das organizações de força nacionais com base em seu suposto papel repressivo e na sua pretensa ausência de função social. Ambas as vertentes desse pacifismo à ou trance, que nega, na prática, a necessidade de defesa da soberania e o papel do aparato militar na construção de sociedades democráticas, são pobres do ponto de vista conceitual. Com freqüência, não passam do nível do preconceito e da ignorância tout court, não estando respaldados pela Carta de 988.




Mito 2. O Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatenteEsse mito merece explicação detida. Suas origens podem ser encontradas em visões, não necessariamente estrutura das do ponto de vista teórico-conceitual, presentes de maneira difusa na mídia, em setores da sociedade civil, no meio diplomático e mesmo nas hostes militares!Qualquer medida de poder combatente – entendido como o quantum de capacidade destrutiva passível de ser aplicado pelas Forças Armadas em um conflito – deve ser sempre comparativa. Neste ponto, o analista depara-se com uma dificuldade de base: como definir os antagonistas com os quais o poder combatente do país deverá ser comparado? A resposta está longe de ser consensual, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do político. Em todo caso, ela terá de ser apresentada a partir de uma posição normativa passível de poucas restrições, uma vez que a Constituição brasileira e a Política de Defesa Nacional (PDN) permitem ampla margem para a interpretação do que constituiria ameaça à soberania e aos interesses nacionais.Portanto,para que se possa afirmar que o Mito dois é de fato mito, faz-se necessário demonstrar a necessidade de o Brasil contar com Forças Armadas com alta prontidão operacional e significativo poder combatente.




A apresentação da teoria que embasa os argumentos apresentados a seguir levaria este texto longe demais. No entanto, vale dizer que ela se fundamenta em inferências analíticas derivadas dos trabalhos de Barry Buzan, OleWaevere David Mares. Abaixo, apresentam-se as premissas que justificam a necessidade de aumento do poder combatente e da prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras:




• o poder militar continua a ser fundamental para a mensuração do poder no plano das relações internacionais. Embora a capacidade de o poder militar servir de suporte em outras áreas de barganha (sua fungibilidade) seja limitada, ela de forma alguma pode ser considerada igual a zero;




• a força armada domina as demais expressões do poder em contextos de interação em que não haja limitações significativas ao seu emprego;




• o poder militar pode ser utilizado tanto coercitiva quanto persuasivamente Logo,ele constitui uma ferramenta útil para a consecução dos interesses de um Estado específico;




• a imprevisibilidade de um sistema internacional de contornos indefinidos, a interconexão em tempo real permitida pelos meios de comunicação,os fluxos de pessoas e mercadorias entre Estados, os problemas ambientais de escala planetária, a diminuição do custo de utilização da força armada devido ao gigantesco gap tecnológico entre exércitos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre outros fatores,fazem com que a eclosão e a escalada dos conflitos interestatais se processe de modo acelerado;




• logo, as Forças Armadas brasileiras precisam possuir alta prontidão operacional de modo que estejam prontas a dar resposta imediata a contingências que atentem contra a soberania e os interesses brasileiros. Da mesma forma, a alta prontidão justifica-se como fator dissuasório e de projeção internacional do Estado;




• como a garantia da soberania é atributo das Forças Armadas, estas devem estar prontas a impor custos elevados a qualquer Estado que pretenda coagir o Brasil militarmente – seja de modo explícito ou velado;• tendo em vista a atual inexistência de contencioso sou de séria incompatibilidade de valores entre o Brasil e os países mais poderosos do Ocidente – aqueles que teriam condições de empreender ações do tipo mencionado no item anterior –, bastaria ao país ser capaz de mobilizar poder combatente suficiente para ele varacima de zero o custo de qualquer ação como a citada no item acima;




• em contrapartida, as Forças Armadas também precisam garantir a supremacia militar brasileira no subcontinente, forma de demonstração da vontade nacional de liderar o processo de integração regional.Em vista do que precede, afirma-se que se trata de mito a idéia de que o Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente. Nessa linha, proceder-se-á à enumeração dos argumentos que estão por trás do Mito 2,de acordo com uma versão estilizada, própria a cada um dos atores que se ocupam de reproduzi-lo.A mídia não se pronuncia sobre o projeto de forças brasileiro e o nível desejável de prontidão operacional das Forças Armadas. Praticamente não há discussão pública sobre esses temas no Brasil.




No entanto, com freqüência, programas de aquisição de sistemas de armas são avaliados a partir de uma perspectiva economicista, que se ocupa exclusivamente de ressaltar o valor da transação. Não raro, esse valor é cotejado com a resultante do investimento caso fosse aplicado na área social. Decorre desse nível de superficialidade no tratamento do tema a inferência difusa de que o aumento do poder combatente e da operacionalidade das Forças Armadas não constituem objetivos socialmente válidos.




A representação política da sociedade civil pouco interesse demonstra em acompanhar e fiscalizar os assuntos militares. Essa abdicação de controle dá ensejo a todo tipo de distorções – circunstância inerente às burocracias desprovidas de supervisão. Os temas relacionados coma prontidão operacional e o poder combatente das forças são praticamente estranhos aos parlamentares brasileiros.




À retórica de valorização das Forças Armadas corresponde a ausência de interesse em destinar recursos para um setor não-identificado com os imperativos do clientelismo e da patronagem. Tudo isso ocorre em um contexto de profunda apatia da sociedade civil em relação às questões castrenses. Estruturada conceitualmente a partir da apropriação seletiva do legado de Rio Branco, a diplomacia brasileira não encara o poder militar como ferramenta essencial de projeção dos interesses nacionais. Isso se deve a variadas razões, sendo a mais saliente delas o fato de que, ao longo do século xx, o Itamaraty jamais pôde contar com um aparato militar que lhe permitisse maior latitude de atuação. Ademais, a retórica relacionada com a identidade internacional brasileira como a de uma potência pacífica limita a utilização clausewitziana da força armada.




Logo, o plano declaratório da política externa não é conducente ao incentivo ao aumento do poder combatente das Forças Armadas. Mais do que isso, a possibilidade desseaumento é suficiente para suscitar temores de desequilíbrio do balanço estratégico regional e de eventuais conseqüências negativas no que se refere à percepção do Brasil por parte de seus vizinhos .




Os próprios militares não raro agem de maneira contrária ao incremento do poder combatente e da prontidão operacional das instituições a que pertencem Essa postura pode ser identificada em três circunstâncias distintas: quando existe a possibilidade de um trade-off entre o aumento de poder combatente e a manutenção ou ampliação de benefícios corporativos (salários, aposentadorias, pensões etc. );quando alguma modificação organizacional coloca em perigo a autonomia corporativa das forças singulares (por exemplo,o processo de criação do Ministério da Defesa); e quando a prioridade da instituição não é o incremento de poder combatente per se,mas a consecução de algum outro objetivo (preservação da ordem interna,no caso do Exército; desenvolvimento científico, tecnológico e da infra-estrutura aeroespacial,no da Aeronáutica,por exemplo)Mito 3. O Brasil não deve incrementar seu poder militar sob pena de provocar desequilíbrio estratégico na América do Sul e fomentar corridas armamentistas




O conceito de equilíbrio estratégico, ao contrário do que supõe-seu uso vulgar, é controverso do ponto de vista acadêmico. Torna-se ainda mais difícil falar em equilíbrio em uma região como a América do Sul, que se notabiliza por ser uma das menos armadas do mundo. A baixa capacidade de projeção de poder das Forças Armadas da região,acoplada aos limita dos estoques de armamentos,acrescenta uma nota adicional de dificuldade em supor a existência de um equilíbrio estratégico que seja instrumental para a manutenção de relações amistosas entre os Estados sul-americanos. Na melhor das hipóteses,poder-se-ia falar em um equilíbrio na irrelevância,termo em si contraditório, pois a essência da tese defendida pelos partidários do equilíbrio estratégico é a crença realista de que a balança de poder garantiria a paz enquanto permanecesse ajustada Ora,é difícil sustentar que a ausência de conflitos recorrentes na América do Sul se ja o resultado da operação da balança de poder. No máximo,esse poderia ser considerado um entre outros fatores que explicam tal circunstância.Corolário da suposição de que o balanço estratégico seria instrumental para a manutenção da paz é a tese de que corridas armamentistas adviriam de eventual desequilíbrio.




Novamente, trata-se um tema controverso como se fora um dado inequívoco da realidade . Os partidários dessa suposição raramente consideram que não há parâmetros consensuais para diferenciar esforços de reaparelhamento militar e corridas armamentistas. Da mesma forma,desconsideram as diferenças de percepção decorrentes da existência de uma estrutura social das relações entre os Estados da região mais tendente ao conflito ou à cooperação. Com efeito,iniciativas de modernização militar podem ser vistas como corridas armamentistas ou reaparelhamento corriqueiro, de acordo com o nível de confiança mútua existente.




Esse fato parece escapar aos que temem corridas aos armamentos em conseqüência de desequilíbrios estratégicos. A estes escapa, ainda, a dimensão da política doméstica – essencial para a tradução de inputs externos em ações internas – e da viabilidade material de uma reação ao que se conceba como desequilíbrio militar. Assim, a dinâmica da política doméstica e a disponibilidade de recursos modularão a reação de um país ao que entende ser um aumento de capacidades militares por parte de seu vizinho . Mesmo que as elites dirigentes de um país.




A entendam que a nação B está a ponto de adquirir vantagem militar considerável, isso não significa que terão coesão, vontade ou capacidade de reagir a essa circunstância . Portanto,o modelo ação-reação implícito na idéia de corrida armamentista não se sustenta empiricamente, pois não pode ser generalizado.




Logo, não é possível antever a priori reações negativas a um incremento do poder militar brasileiro Ao contrário, pode-se supor que essas reações, consubstanciadas em corridas armamentistas, não ocorrerão. Isso porque prevalece um ambiente de distensão entre o Brasil e seus vizinhos, além do fato de que nenhum deles teria condições de acompanhar os esforços de reaparelhamento brasileiro mesmo que entendessem assim proceder, uma vez que o Brasil pode dispor de recursos mais abundantes do que todos eles. Conclui-se que a tese que encara o fortalecimento de capacidades militares como prejudicial às relações brasileiras com os países lindeiros não possui solidez. Ela supõe como certos efeitos que são duvidosos e que não estão respaldados pela experiência regional recente .




De outra parte,subjaz ao mito em questão a desconsideração pela influência que os planos hemisférico e global exercem sobre a política de defesa. Ainda que o Brasil,na condição de potência regional militarmente débil, não exerça papel sistêmico importante no que se refere à segurança internacional, isso não quer dizer que os desenvolvimentos globais não afetem o país. As recentes descobertas de petróleo no litoral sudeste provavelmente aproximarão o Brasil de um dos mais tradicionais eixos de conflito entre Estados: a disputa por recursos energéticos. Desconsidera respossibilidade equivale a agir de modo autista.




Logo, o Mito três é ainda mais falacioso por supor que a inserção internacional de segurança do país limitar-se-ia ao espaço sul-americano.




Mito 4. As Forças Armadas brasileiras possuem poder de dissuasão adequadoEssa idéia é sustentada por dois grupos distintos: aqueles que pouco conhecem sobre as Forças Armadas e aqueles que crêem que aposição internacional do Brasil recomenda a manutenção de um baixo perfil militar – supostamente adequado à realidade de país em desenvolvimento . O primeiro grupo sustenta essa posição baseado em uma visão nacionalista ingênua e irrealista, que entende que as Forças Armadas representam uma instituição imaculada – centrada nos valores do patriotismo, da retidão moral, da abnegação etc..




Essa visão, contudo, não merece ser tratada em detalhe. O segundo grupo, por sua vez, poderia ser subdividido em vários subgrupos. O que une todas as vertentes que gravitam em torno da idéia de que o perfil estratégico brasileiro estaria adequado à sua estatura internacional é a concepção de que o país não pode aspirar a ser mais do que atualmente é:Estado em desenvolvimento não assolado por ameaças externas prementes,fraturado por seriíssimo problema de insegurança pública,debilitado por gravíssimas desigualdades sociais etc . Essas vulnerabilidades tornariam impossível a adoção de um perfil distinto do hoje prevalecente no plano militar. Ora, não se pode negar as debilidades brasileiras.




No entanto, a visão descrita acima encerra um notável derrotismo, além de não considerar as contradições inerentes à política de defesa levada a cabo no presente. Se se considera que o perfil estratégico nacional é adequado, deve-se acreditar, por analogia, que a aplicação dos recursos destinados à defesa é satisfatória. Uma pesquisa superficial sobre os países que mais investem em defesa no mundo e seus respectivos arsenais indicará que esse não parece ser o caso. Sinteticamente, o Brasil encontra-se entre os dezesseis países que mais investem em suas Forças Armadas em termos absolutos




No entanto, há um abismo em termos de capacidades militares entre o nosso país e qualquer um dos quinze que se encontram à sua frente no ranking




O mesmo ocorrendo em relação aos cinco que se situam logo atrás dele Isso se processa pelo fato de que mais de 80% do orçamento da defesa se destina ao pagamento de salários, aposentadorias e pensões. Nessas condições, caso fossem implementadas reformas que diminuíssem gastos com pessoal, mas mantivesse no mesmo orçamento, haveria possibilidade de aumentar os investimentos no aparelhamento das Forças Armadas; o que, ipso facto,negaria a tese de que o Brasil não poderia possuir capacidades militares mais importantes do que as atuais.




Assim,oderrotismoparalisantedaquelesquecrêemnadapoderserfeitonãosóémenos realista do que parece como também referenda um estado de coisas que é extremamente negativo, ou seja:o país investe tanto quanto muitos dos Estados melhor aparelhados em termos militares sem que obtenha retorno semelhante ao alcançado por estes últimos.




Mito 5. As Forças Armadas devem cumprir seu papel social por meio de ações cívico-sociais e da manutenção do sistema de recrutamento universal obrigatórioPor trás dessa visão, encontra-se mais ou menos formalizada a idéia de que o Brasil pode prescindir de Forças Armadas como instrumentos de garantia da soberania nacional Essa rationale supõe que:




• não haveria ameaças externas contra as quais o Brasil precisasse se preparar militarmente;




• as Forças Armadas, nesse contexto, precisariam “ser úteis”ao país por meio de ações não diretamente relacionadas com a preparação para a guerra;




• diante das grandes desigualdades sociais e da tibieza da presença do Estado em setores importantes da vida nacional,uma forma de conferir utilidade às Forças Armadas seria a de empregá-las nas chamadas ações cívico-sociais;




• nessa mesma linha, a ampliação do recrutamento de jovens das camadas mais desfavorecidas da população serviria como forma de inculcação de valores cívicos e de transmissão de conhecimentos básicos.O serviço militar obrigatório funcionaria, então, como um instrumento civilizatório.




De início, há um problema central relacionado com esse tipo de perspectiva: a Constituição Federal Esta estabelece que uma das duas funções precípuas das Forças Armadas é a defesa da soberania nacional Logo,do ponto de vista legal,estas não podem abdicar dessa tarefa. Ocorre que o assistencialismo relacionado com a perspectiva mencionada encontra-se em direta contradição com a tarefa de defesa da soberania. Isso se dá porque existe um conflito entre a natureza das funções aludidas A guerra moderna implica a necessidade de forças detentoras de alta prontidão operacional,capazes de atuar de modo coordenado com os demais ramos das Forças Armadas, tecnologicamente atualizadas, flexíveis .




Essas características requerem a existência de oficiais e praças altamente qualificados – tanto em termos de capacitação intelectual e técnica quanto de adestramento. Recrutas temporários de baixa instrução não têm nenhuma condição de atender aos requisitos para a formação de um soldado apto a operar no campo de batalha digital contemporâneo.




Não resta dúvida de que a lógica do Mito cinco conduz a uma contradição fundamental de quase impossível resolução Portanto, a manutenção de Forças Armadas cuja estrutura organizacional não privilegia a preparação de profissionais adaptados às exigências da guerra contemporânea significa insistirem um modelo que, a um só tempo, não elimina as desigualdades sociais e não proporciona ao país forças aptas a garantir satisfatoriamente a defesa da soberania nacional.




Mito 6. O orçamento militar brasileiro é baixo




Mito 7. As Forças Armadas podem colaborar decisivamente no combate à criminalidade, o que lhes conferiria utilidadeEsse mito é uma variante especialmente grave do Mito 5 Os partidários dessa tese acreditam que o emprego das Forças Armadas em substituição ou complementação às polícias seria capaz de resolver ou minorar os problemas relacionados com a criminalidade, conferindo utilidade àquelas Há diversos problemas envolvidos nesse tipo de mitologia O primeiro deles é o que se refere aos aspectos legais.




Não há no Brasil legislação que proporcione às Forças Armadas garantias suficientes para que tal tipo de atuação possa desenrolar-se de maneira juridicamente segura e eficaz – tanto no que toca às prerrogativas dos agentes do Estado, os soldados, quanto na definição da cadeia de comando entre militares federais e polícias estaduais.




O segundo é o que se refere à eficiência desse tipo de atuação As intervenções realizadas até o presente demonstram que o emprego das Forças Armadas proporciona tão-somente uma sensação temporária de segurança. Não sendo possível manter grandes efetivos militares 24 horas por dia, sete dias por semana, nas ruas, a insegurança volta a aflorar assim que os soldados são retirados de suas posições. Deve-se ressaltar, ademais, que a maioria desses últimos é formada por recrutas não-instruídos em aspectos básicos das tarefas policiais.




O terceiro aspecto é o relacionado com a flagrante incompatibilidade entre as missões de segurança pública e de defesa da soberania nacional. Assim, a convivência de demandas profissionais tão distintas em uma mesma instituição, em essência o Exército, faz com que esta não seja capaz de desempenhar nenhuma delas com a proficiência ideal. O quarto aspecto é o que diz respeito à exposição das Forças Armadas à corrupção decorrente de seu emprego em missões de caráter policial. Resta claro que esse é um risco não-desprezível, que colocaria em perigo instituições ainda preservadas da infiltração pelo crime organizado.




Mito 8. As Forças Armadas devem visar o desenvolvimento da Nação, aceitando trocar poder combatente imediato por projetos de desenvolvimento científicotecnológico de prazo incertoA noção de que o Brasil vive em um paraíso kantiano no plano de suas relações exteriores dá ensejo à visão de que o país pode dar-se ao luxo de trocar poder combatente imediato por iniciativas de desenvolvimento científico e tecnológico de prazo incerto (por exemplo, o Veículo Lançador de Satélites – vls – e o submarino de propulsão nuclear). Segundo esse raciocínio, a ausência de percepção de ameaças externas iminentes permitiria que se investissem os parcos recursos destinados à aquisição de sistemas de armas em projetos nacionais de desenvolvimento tecnológico – alguns deles não – relacionados diretamente com a produção de armamento, como no caso do vls .




Esse tipo de mitologia esbarra em três aspectos da realidade contemporânea . Em primeiro lugar, parte da premissa controversa deque as Forças Armadas brasileiras não precisariam de alta prontidão operacional – que incluia posse de armamento pronto a ser utilizado Em segundo lugar, o trade-off poder combatente imediato versus desenvolvimento tecnológico de longo prazo encontra um obstáculo insuperável na ausência de recursos para a rápida conclusão dos sistemas de armas pretendidos.




Assim, a ausência de recursos dá origem alonguíssimos ciclos de desenvolvimento,o que resulta na produção de armamento inevitavelmente obsoleto em comparação com o que se fabrica nos principais países inovadores. Essa circunstância acaba por limitar a utilidade e a capacidade de exportação de tais sistemas de armas – ultrapassados antes mesmo de nascerem. Em terceiro lugar,a baixa capacidade e aquisição desses sistemas pelas Forças Armadas brasileiras acaba tornando seus custos de produção proibitivos e desincentivando a consolidação de um parque nacional de material bélico capaz de fornecer armamentos atualizados às forças singulares.




O quadro acima descrito revela o caráter problemático da manutenção de visões desenvolvimentistas que acabam por gerar efeitos duplamente perversos: não contribuem decisivamente para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, tampouco provêem os sistemas de armas necessários para garantir a adequada prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras. Exceção parcial a esse modelo é a representada pelo projeto naval nuclear, que, se, por um lado, deu ao país o domínio tecnológico do ciclo completo do enriquecimento de urânio, por outro, não foi capaz até o momento (30 anos depois de seu início!) de produzir o reator necessário à propulsão de submarinos .




Mito 9. A política externa de um país periférico como o Brasil não precisa estar respaldada por poder militar apreciável – sendo este somente útil no que concerne às operações de manutenção da pazEste mito é uma variação sobre o tema dos mitos anteriores Parte do pressuposto deque a força armada não é útil ou utilizável por parte de um país como o Brasil . Naturalmente, também vem embutida nessa perspectiva a noção de que o plano internacional tenderia ao kantianismo ou de que, mesmo que não tendesse, o país nada poderia fazer para resguardar seus interesses por meio de instrumentos militares.




A exceção a essa regra seria a das operações de manutenção da paz da ONU. Por não envolverem o uso direto da força e por possuírem caráter essencialmente humanitário, esse tipo de operação constituiria uma forma válida de afirmação internacional do Brasil Ademais, por não serem muito exigentes em termos de preparação militar e de meios materiais, poderiam ser desempenhadas por nossas Forças Armadas –o que reiteraria o comprometimento nacional com os esforços em prol da paz, legitimando as pretensões brasileiras de ocupar assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas .




Embora não haja dúvida deque a participação em operações do gênero tenha como efeito o aumento do prestígio e da visibilidade internacional do Brasil,não se pode negligenciar os aspectos potencialmente negativos derivados da especialização das Forças Armadas em operações de manutenção da paz. Em primeiro lugar, é por demais duvidosa a premissa de que esse tipo de operação possa vir a constituir o cerne da política de defesa brasileira – por inúmeras razões, entre as quais a da dimensão do contingente militar brasileiro. Em segundo lugar,não é consensual a visão de que a participação nelas possa por si só influenciar a comunidade internacional a aceitar o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança .




Em terceiro lugar,é controversa a suposição de que as operações de manutenção da paz possam ser instrumentais para aumentar a prontidão operacional das Forças Armadas – tendo em vista a ausência de identidade entre esse tipo de operação e as tarefas de defesa da soberania Em quarto lugar, deve-se mencionar que o caráter para policial de operações desse tipo pode contribuir para reforçar as correntes de opinião que enxergam no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública uma espécie de bala de prata para a resolução dos problemas de criminalidade registrados no Brasil .




Em quinto lugar, a utilização das operações de manutenção da paz como argumento em favor do aparelhamento e da modernização das Forças Armadas constitui uma faca de dois gumes, isso porque reforça a percepção de que Marinha, Exército e Aeronáutica não teriam papel relevante a exercerem termos de segurança militar externa (defesa stricto sensu).Em resumo,as operações de manutenção da paz não podem constituir o alfa e o ômega da política de defesa,sob pena de se negligenciara capacidade de defesa brasileira.




Mito 10. As questões de defesa não são prioritárias e, portanto, não há necessidade de maior integração entre as Forças Armadas por meio de um Ministério da Defesa forte e atuanteEsse mito vem sendo propalado de maneira intermitente pelo estamento militar como forma de preservar sua autonomia corporativa, tendo sido utilizado durante o processo de redação da Carta Magna de 988 e as discussões que deram origem ao I Plano de Defesa Nacional,em 996,e ao Ministério da Defesa,em 999. Ele é desmentido pelos conflitos militares recentes e pela prioridade que os países desenvolvidos vêm atribuindo ao fortalecimento da capacidade de articulação de seus respectivos ministérios da defesa e ao incremento da interoperabilidade de suas forças.




A noção contemporânea de guerra baseada em redes, por exemplo, contradiz cabalmente a idéia de que cada ramo das Forças Armadas pode atuar de modo isolado dos demais.Portanto, não resta dúvida de que somente um md forte e atuante poderá exercera direção necessária ao atingimento da meta de garantira interoperabilidade das forças, a eficiência na aplicação dos recursos disponíveis, a aderência às diretrizes emanadas do poder político,bem como a coordenação eficiente da política de defesa com a política externa brasileira.




Conclusão




A enunciação dos dez mitos demonstra a indigência do debate público sobre política de defesa no Brasil Enquanto a sociedade brasileira em geral e as suas elites dirigente sem particular não forem capazes de encarar de maneira madura as questões relacionadas coma defesa nacional, o país continuará atolado em terreno pantanoso Isso porque, sem direção política clara, sem definições precisas sobre suas atribuições, sem meios mínimos para garantira soberania da nação, as Forças Armadas (em especial o Exército)são cada vez mais empurradas para as tarefas de garantia da lei e da ordem.




Parece evidente que às forças singulares restará, ceteris paribus, apenas o papel de intervenção no campo da segurança pública – uma vez que a incapacidade de atuar no plano da defesa elimina a possibilidade de que esse papel seja sustentado como útil do ponto de vista de sua legitimidade social Levando em conta o que precede, a essência do problema relacionado com o lugar das Forças Armadas em uma sociedade desigual como a brasileira poderia ser resumido de modo singelo: a incompreensão generalizada sobre a funcionalidade social das instituições responsáveis pela administração da coerção coletivamente organizada conduz à sua utilização errática.




Senão se compreende que o cerne da função social exercida pelos militares é justamente sua capacidade de provimento de segurança militar externa (defesa), mantém-se aberta a caixa de Pandora da transformação de funções subsidiárias (substituição das polícias em situações várias, apoio a ações assistenciais etc.) em primordiais.




É preciso, portanto, que se alertem os formadores de opinião sobre o extremo perigo que o Brasil corre ao optar na prática – ainda que não na teoria – pela utilização das Forças Armadas no campo da segurança pública Exemplos abundam sobre a inconveniência e a ineficiência do emprego dos militares em tarefas policiais ou para policiais. Se o país pretende combater a criminalidade, não será uma (falsa) solução de emergência – o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem – que lhe permitirá dar conta da questão.




O difícil encaminhamento do problema da segurança pública será alcançado se, e somente se, o governo federal, juntamente com os estados,for capaz de empreender um amplo processo de reforma das instituições que têm a atribuição primária de combater o crime (polícias,sistema carcerário,sistema judicial etc. ) Essa reforma é extremamente complexa, tanto do ponto de vista burocrático quanto do político . No entanto, terá de ser levada a cabo,sob pena de o Estado perder jurisdição sobre parcelas crescentes do território nacional,que seriam dominadas pelo poder paralelo do crime organizado.




Note-se,de outra perspectiva,que o Brasil não se encontra idilicamente isolado do mundo e que sua crescente importância no campo da energia,eixo tradicional dos conflitos interestatais, poderá expor o país a pressões externas de variados tipos Essas pressões podem dar se, inclusive, no campo militar . Somente essa circunstância deveria ser o bastante para que os tomadores de decisão conferissem atenção especial à política de defesa Ocorre que as preocupações brasileiras no campo da segurança internacional não podem restringir-se apenas ao aspecto energético.




Deve-se considerar também as implicações de uma ampla gama de fatores eventualmente perturbadores da lógica de baixa conflitividade entre os Estados prevalecente no sistema internacional contemporâneo. São eles:• a diminuição do custo de utilização da força causada pelo aumento contínuo do abismo tecnológico entre as forças armadas de Estados desenvolvidos e em desenvolvimento (o que permitiria que as grandes potências viessem a utilizar seu poder militar contra Estados fracos militarmente com total impunidade);




• o aumento da conflitividade sistêmica causado;pela disputa por recursos escassos em um contexto de degradação ambiental crescente;• instabilidade crônica no complexo de segurança regional sul-americano causada pelo aprofundamento das contradições sociais e pela fragilidade institucional dos países que o compõem;• disputas pelo acesso a recursos produzidos ou contidos em território brasileiro (petróleo, biocombustíveis, água doce, alimentos,material genético etc. );




• disputas sobre eventual opção brasileira em desenvolver tecnologias de uso dual;




• disputas sobre questões relacionadas com os direitos humanos de minorias indígenas, passíveis de serem instrumentalizadas contra o Brasil;• ameaça à integridade física e à propriedade de populações brasileiras residentes em áreas de fronteira onde haja instabilidade política e social;




• infiltração,em território nacional,de células de grupos terroristas (em especial de organizações hostis à superpotência);• associação entre grupos terroristas estrangeiros e o crime organizado doméstico.Tendo em conta o cenário esboçado, o Brasil encontra-se diante de um impasse. As Forças Armadas nacionais custam ao erário uma soma não desprezível de recursos.




No entanto, esses recursos não se traduzem em capacidade de dissuasão convencional aceitável, tampouco em forças aptas a dar conta satisfatória da garantia da lei e da ordem Ainda que a discussão sobre o que fazer para modificar o atual status quo não esteja contemplada neste artigo, surge de maneira inequívoca a idéia do que não se deve fazer.




Empregar Marinha, Exército e Aeronáutica em tarefas policiais e para policiais é o que se deve evitar a todo custo. Esse tipo de emprego praticamente assegura a materialização de dois fenômenos profundamente indesejáveis: a corrupção das forças constitucionalmente responsáveis pela defesa da soberania nacional (expostas ao convívio com a marginalidade) e a não-resolução da crise da segurança pública (ao manter indefinidamente esquemas paliativos de intervenção que não atacam o cerne do problema)Cabe a indagação:é isso que desejamos para o Brasil?

Sobre o Conceito de Interesse Nacional





Por: Renato Janine Ribeiro


O interesse nacional é um conceito ou uma noção? Esta questão me veio à mente a partir de um esboço inicial, que circulou entre os membros do conselho, do editorial do primeiro número de nossa revista. Para quem vem da filosofia, o conceito é quase sempre preferível à noção. O que caracteriza o conceito é que ele é preciso e a noção, imprecisa. Noções são vagas, rudimentares, polissêmicas, ambíguas, induzem ao erro. Já o conceito é elaborado com rigor. Ele é produtivo. Se conceituamos algo, temos elementos para construir um pensamento sério sobre o assunto. Portanto, até por formação profissional, eu preferia lidar com o conceito e não com a noção.




Mas o que seria o conceito de interesse nacional? Comecemos pelo substantivo, interesse. Com essa denominação ou outras, ele desempenha papel decisivo na construção do pensamento político moderno. No século XIX, será chamado, por vários, de “interesse bem compreendido”. Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville utilizam essa expressão, entre outros. Sua convicção é que, se compreendermos bem nosso interesse, não agiremos de maneira errada ou contraproducente. Assim, um conhecimento adequado do que é vantajoso para nós implica toda uma linha de ação, um road map, como diríamos hoje. Exemplos são fáceis. Se percebo que determinado investimento é péssimo, evito-o. Se um candidato coloca em risco o que eu prezo – que podem ser os meus bens, ou os meus valores éticos, ou seja, os bens ou o bem, os valores monetários ou os valores morais –, não lhe dou meu sufrágio. Finalmente, se um relacionamento começa a causar infelicidade bem superior à felicidade por que ansiamos, e não há sinal de que possa melhorar, procuro cortá-lo (aqui, porém, é que os limites da ação segundo o interesse se fazem sentir mais, isto é, quando o interesse e o afeto se contradizem; não é esse, porém, o tema do presente artigo). Em suma, o interesse não exclui o risco, nem prevalece pela sua só racionalidade, mas efetua um cálculo cuidadoso das vantagens e desvantagens que um curso de ação trará.




A violência e o interesse “bem compreendido” em Hobbes




Possivelmente a origem dessa idéia, ainda sem esse nome, está em Thomas Hobbes. O autor do Leviatã sustenta que uma série de condutas já prezadas em sua época e sociedade – e que acabarão sendo valorizadas desde então, como a liberdade individual, o anseio de ter sua voz ouvida nas coisas políticas e outras reivindicações análogas – concorrem na verdade para desfazer o laço social. Hobbes está convicto de que o conflito tem uma potência ilimitada de ampliação, e que portanto corrói – ou corrompe – os elos que mantêm uma sociedade unida, e que dependem de esta ter um único locus soberano, um só poder a controlá-la. Qualquer dissidência ameaça assim prosseguir ad infinitum. Daí que seja atribuição primordial do governante conter a divergência, ou pelo menos sua expressão. Sabemos bem que, historicamente, Hobbes “errou”. As sociedades em que o laço social hoje parece melhor funcionar são justamente aquelas sociedades que permitem a expressão livre da divergência – ainda que, a rigor, o laço social jamais funcione muito bem nas sociedades modernas, individualistas. A não ser que restabelecêssemos os modos de articulação social do passado, em que se tendia a uma certa clonagem dos indivíduos em poucos modelos, incomparavelmente menos numerosos dos que hoje aparecem a nosso dispor, o melhor que temos na modernidade – uma modernidade, aliás, que Hobbes é um dos primeiros a anunciar – é a aceitação de que se expressem as diferenças.




Pois bem, feita a ressalva do erro de Hobbes, ao prever para a boa relação inter homines o que acabou não sendo tão necessário nem tão possível, o fato é que o modo, a forma, a Gestalt de seu argumento é que as ações humanas podem contrariar o que é melhor para nós. Ações são governadas por opiniões, entende ele, como todo o seu tempo, e por opinião compreende não o que nós assim nomeamos – a simples doxa ou, após Freud, a expressão consciente – mas, sim, o que hoje chamaríamos, emprestando o termo da psicanálise, a convicção inconsciente. É no inconsciente das pessoas então que teríamos de mexer, a fim de termos uma sociedade que escape do suicídio. Pois é impossível impedir um Estado de ser morto propriamente, isto é, pela guerra externa, mas é possível adiar indefinidamente sua morte por debilidade interna. Ora, o que mais leva as sociedades a se autodestruírem é uma série de crenças, das quais aqui podemos elencar as principais. Uma é a opinião de que os indivíduos têm liberdade em face do soberano. Outra, a de que o soberano nos deve obrigações ou contas. Terceira, a de que ele pode ser destituído por nós ou sequer limitado por nossa ação ou vontade. Hobbes se alonga mais, mas o resumo é este: é perigoso tudo o que possa erodir a obediência devida àquele que concentra, em si, o poder. Contudo, o que aqui nos interessa não é debater se a história lhe deu ou não razão nisso (já sustentamos que não), mas, sim, a forma que consiste em estabelecer o que podemos chamar duas equações opostas:




1. equação virtuosa: da opinião obediente se infere a ação também obediente, que é a que melhor atende aos interesses do indivíduo, ou seja, a preservação de sua vida e a sua prosperidade;




2. equação viciosa: da opinião dissidente decorre a ação divergente, que embora muitas vezes egoísta, se equivoca quanto aos verdadeiros interesses do indivíduo.




É importante esclarecer que, para Hobbes, por mais que ele celebre o Leviatã ou o Estado regido por um único soberano, o referencial de legitimidade é sempre o indivíduo. Se é instituído um Estado sem oposição, se o governante deve poder tudo, isso não quer dizer que o poder se construa em benefício do soberano – o que o pensamento político condena, desde a Antiguidade, sem exceção – ou que seus detentores tenham um mandato de origem divina. Na verdade, e é isso que fará os supostos beneficiários da teoria hobbesiana se insurgirem contra ela, o poder se justifica sempre em termos humanos, muito humanos. Ele nos controla com um único propósito: o nosso bem.




Hobbes não chega, talvez, a nos infantilizar de forma explícita, até porque, se nosso bem for clara e incontestavelmente alvejado, recuperamos a liberdade em face do governante. Com efeito, se o soberano mandar matar alguém de nós, ele por um lado tem todo o direito a fazê-lo, seja ou não justa a sua decisão; por outro lado, a pessoa por ele condenada tem todo o direito a defender-se, tenha ou não merecido legalmente a morte. O anseio de não padecer uma morte violenta e precoce foi o que levou todos a aceitarem a autoridade soberana do governante. Mas, pela mesma razão, o risco de um de nós vir a sofrer a morte violenta a mando do soberano, mesmo que merecida, restitui a este um (e só a ele) o direito de resistir ao governante. Em resumo, o Estado é instituído para este fim muito específico, que é o de preservar nossa vida. O governante não está obrigado a respeitá-la, e em vários casos executar alguém pode ser o meio, pelo menos naquele tempo em que forcas havia em todas as cidades, de salvar a vida da maioria, mas a lógica de sua ação deve caminhar no rumo de preservar o máximo possível de vidas, e além disso melhorá-las. Ora, é aqui que incide o interesse de cada um.




Recordemos o estado de natureza hobbesiano. Sabe-se que não tem sentido histórico, ou pré-histórico: ele é a condição a que todos tendemos, caso não sejamos controlados por um poder “capaz de manter a todos em reverente temor”, em awe, a belíssima palavra cujo som coincide com o do ó, à mesma época celebrado num dos mais fortes sermões do padre Antonio Vieira. Ora, o problema no estado de natureza não é que as pessoas sejam más e precisem ser contidas a todo custo. O cerne do estado de guerra de todos contra todos é, apenas, que não sabemos o que o outro quer. Essa é a segunda causa da guerra natural entre os homens, e é aquela que a generaliza. A primeira causa é mais simples: que uns desejem apropriar-se do que outros ocupam. Se dissermos, em nosso tempo, que os ladrões, os membros de quadrilhas, os seqüestradores convertem nossa sociedade num campo de conflito generalizado, que fazem de nossas cidades o palco de uma guerra civil, faremos que sim com a cabeça sem precisar usar muito esta última, a não ser, claro, para o movimento físico. Mas não é isso o interessante. Perderemos a lição hobbesiana se nos contentarmos com isso.




A novidade de Hobbes é outra: o problema não são os ladrões, os criminosos de verdade. Esses constituem minoria. Se soubéssemos quem são, como seria fácil! Mas não sabemos. Todos podem ser, ou tornar-se, criminosos, ou ameaçar aos outros. Por isso, nós nos acautelamos, nós nos precavemos. A forma definida – a Gestalt, mais uma vez – que assume essa cautela é a prevenção. Atacamos aquele que imaginamos que nos vá atacar. Definimos perfis de possíveis criminosos – em nosso país, hoje, o pobre, o preto. Tratamo-los mal. Em certos casos, eles até são agredidos – e mortos – em função do crime que teriam praticado . Nos dias de hoje, isso significa também a construção de barreiras, de equipamentos de vigilância, de condomínios fechados: desconfiamos. Como temos, apesar de tudo, um Estado que funciona minimamente, é raro que passemos – nós, indivíduos – da suspeita ao assassinato. Mas sabemos que parte da polícia age deste modo. Sabe também, pelo menos quem viu Tropa de Elite sem anestesiar o raciocínio, que a maior parte da sociedade parece aprovar esse procedimento que se baseia na segunda causa hobbesiana de guerra: na dúvida, atacar até de forma letal quem parece poder nos ameaçar.




Os mais refinados irão mais longe. Pois, se a pessoa de catadura criminosa já desperta nossa suspeita e por vezes nossa agressão “preventiva”, resulta lógico que os criminosos mais competentes e por isso mesmo mais ameaçadores deverão ter a cautela de cuidar da própria aparência. Ou seja, tolo é o criminoso que aparenta ser criminoso, enquanto prudente é o que se cerca de cuidados e exibe todos os sinais externos de inocência, requinte, classe. Ora, por isso mesmo quem vá atrás dos criminosos – ou dos suspeitos – fará melhor o seu trabalho se priorizar, não o criminoso vulgar, mas aquele que em nada parece ser criminoso. Em outras palavras, se radicalizarmos a desconfiança hobbesiana, deveremos desconfiar sobretudo de quem é mais próximo de nós, mais simpático conosco, mais deferente. Espanta então que Stálin, por exemplo, de tempos em tempos sacrificasse uma cota de colaboradores próximos? Que dissesse, quando Krupskaia ensaiou contestá-lo, que “talvez devamos arrumar uma outra viúva para Lênin”? Que mantivesse Molotov como o segundo homem no Estado soviético, ao mesmo tempo que mandava a esposa que seu ministro tanto amava para os campos de concentração? Que, em 1941, refugiado em sua datcha após a invasão – com que não contava, pelo menos àquela data – da URSS pelos exércitos nazistas, sem dizer palavra dias a fio, aturdido pelos fatos, ao receber depois de algum tempo a visita do Politburo, que vinha servilmente pedir-lhe que assumisse a direção da guerra, ele receasse que seus cães de guarda estivessem vindo depô-lo e matá-lo? Se as relações entre as pessoas se pautam pela guerra, essa é fruto da desconfiança; nada a ver com a guerra externa; nela, sabemos quem é inimigo, quem é aliado; mas, na guerra civil, irmão mata irmão.




O interesse é a forma de introduzir racionalidade nesse convívio. O perigo para o interesse verdadeiro, na sociedade, é que a desconfiança tome conta de nossas relações. Aí não teremos mais salvação. “Nos momentos piores, você só pode contar com a família”, essa frase foi pronunciada inúmeras vezes durante os anos de chumbo. As relações de família forjariam elos mais fortes do que os de partido, do que os econômicos, do que quaisquer outros. Mesmo elas, porém, podem ver-se ameaçadas. Os despotismos tentam fazer que o filho denuncie o pai – e não é fortuito que, ao cair o poder soviético em 1991, a multidão moscovita tenha simbolizado o seu ódio na figura do pequeno Pavel Morozov, que tinha denunciado o pai por armazenar grãos, causando a morte do seu progenitor. O que a multidão não admitia mais era que o Estado e o partido passassem acima de relações, como as de afeto e sobretudo as do cuidado, que a paternidade, a maternidade, a filiação e a irmandade mais simbolizam, que são mais permanentes que o Estado e o partido, e que devem superar as divergências que acaso nos separem ao longo da vida. Mas a modernidade construiu, além da família, que é invenção muito mais antiga, um artefato adicional para conservar os laços sociais – e este é o interesse bem compreendido.




“Bem compreendido” é quase uma redundância. Se defendemos o interesse, é porque o compreendemos, conhecemo-lo. Mas o interesse é antes de mais nada racionalmente estabelecido. Se o leitor de Hobbes for atento, verá que temos dois pratos na balança: por um lado, a vida curta, pobre, solitária, bruta e cruel (ou seja, a morte violenta); por outro, a segurança no interior do Estado, cuja função policial torna as ações do outro previsíveis. No lugar daquela insegurança radical, em que jamais eu saberia o que passa pela mente alheia, passo a ter uma possibilidade de previsão – porque quem me agredir corre o risco de bailar na forca e, por isso, mesmo que o outro continue agressivo ou cheio de ódio, sua ação será contida.




O Estado não muda a natureza humana. Quem é agressivo continuará a sê-lo. Mas é certo que sua tendência a agredir os outros será regulada. Então, não só haverá menos criminosos, mas haverá menos receio do crime, menos antecipação, por parte das possíveis vítimas, do crime que possa ser praticado, menos agressões preventivas. A agressão será reduzida a proporções administráveis. Eis a lógica de toda a prédica hobbesiana em favor do Estado. Ele não contém a violência só por ter a polícia. Ele a contém porque a polícia e todo o aparelho de controle tornam previsíveis os homens entre si. Permitem que saibamos, com grau muito elevado de certeza, o que o outro fará ou não fará, em termos do que me possa prejudicar na vida, no corpo ou na fortuna. A própria polícia pode, assim, ser mais comedida. Na verdade, se quisermos ir longe no assunto, diremos que o Estado hobbesiano reduz não só a violência comum, dos ladrões, dos “maus”, se quisermos usar esse termo – mas a violência pior, a que se generaliza, a dos “bons”.




O capitalismo e a quantificação dos interesses




O passo seguinte na definição de interesse é dado ao longo do século XVIII. Hobbes vê o interesse sob forma binária: há a vida e há a morte violenta. Se não desejamos esta segunda, optamos pela vida. Mas essa opção é apenas qualitativa. Não é passível de quantificação. Não sabemos quanto duraria, naturalmente, uma vida. Estamos diante de um par de opostos, de um sim e um não. Um salto notável se dará quando o século seguinte ao seu se puser a mensurar o interesse. É essa a enorme contribuição que o capitalismo dá à pacificação das paixões. Se o interesse civiliza, se a preocupação com as conseqüências de nossas ações, sobretudo aquelas que emanam de nossas paixões, faz que consagremos maior importância ao interesse (no caso hobbesiano, de preservar a vida), o arremate desse processo se dará quando pudermos comparar os ganhos e perdas de cada lado da balança. Por assim dizer, os pratos da balança hobbesiana não permitem gradação. É tudo ou nada, morte violenta ou vida. A balança setecentista introduzirá graus, pesos. Podemos medir e ponderar quem ganha mais, quem perde, ou, melhor, quando o mesmo sujeito ganha ou perde – e quanto. Este “quanto” não existia, para Hobbes. Ele será, porém, o eixo de uma sociedade em que a economia prevaleça. Ou, dizendo de outro modo: quando o pensamento político desistir da obsessão hobbesiana com os antagonismos, quando passar a aceitar o conflito e a divergência, ele poderá também admitir que não há apenas os dois pratos da balança, morte e vida, mas que há um dégradé, uma graduação, uma gradação, que nos permite sair do par de opostos radicais, aquele que merece todo o nosso apoio e aquele que requer toda a nossa condenação, como era para Hobbes; e reconheceremos que várias opções são legítimas, mesmo que continue havendo extremos. Para nosso filósofo, só havia os extremos. Para o século XVIII, com sua economia mais capitalizada, matizes surgem, que são valores médios e intermediários, ganhos que se mesclam com perdas. Para os séculos vindouros, com sua política mais democrática, matizes se consolidam, que nos fazem calcular o que ganhamos e o que perdemos, sabendo que são poucas as perdas ou ganhos radicais.




Isso, quanto ao interesse. Ele calcula. Ele racionaliza. Ele pacifica. Ele se consolida graças ao capitalismo. Uma frase notável de Albert Hirschmann: não é espantoso que exatamente a luta mais “divisível” (ele assim chama aquelas em que compromissos são possíveis, meios termos, dois terços de termo, um terço de termo) tenha passado por tanto tempo, mercê do comunismo, como uma luta radical, de morte, a saber, a luta entre patrão e empregado. Lutas indivisíveis são, por exemplo, as racistas e de modo geral as movidas pelo preconceito. Mas, quando se trata de dinheiro, a divisão – isto é, o compromisso, que decorre da negociação e culmina num acordo – é de regra.




Quando o interesse se torna nacional




E quanto à nação? Como se torna nacional o interesse? Porque lidamos com o interesse, até aqui, do ponto de vista do sujeito individual. A este o interesse pacifica e civiliza. Mas, no caso da nação, ela não requer a mesma pacificação. Este ponto já suscitei, em outro lugar, no tocante a Hobbes: se o Estado é um “homem artificial”, e se a guerra entre os Estados aparece como modelada na guerra inter homines, há uma enorme diferença, porém. A guerra entre indivíduos – que Hobbes teoriza sob este nome mas, na verdade, é uma guerra civil, geralmente movida pelo clero – leva à morte. Mas a guerra entre Estados é produtiva. Ela poderia chamar-se mercantilismo. Por isso, o interesse dos indivíduos está em se submeterem a um Estado, mas o interesse dos Estados não consiste em se unirem sob um Estado mundial ou uma liga das nações. Eles, confrontando-se, geram riquezas. Nós, nos batendo, só engendramos morte. A nutrição e de modo geral “a vida” de um Estado (tema do cap. XXIV do Leviatã) estão ligadas justamente a essa guerra sob certo controle. Portanto, o interesse nacional não exigiria a mesma paz que o interesse individual.




Mas nos precipitamos. Melhor, antes, tratar da nação. Na história do pensamento político, temos aqui um problema que não é de pequena monta. No século XVII, de certa forma se consolida o que chamamos de “Estado nacional”. Uns o fizeram bem antes, como Portugal. Outros, mais tarde, como Alemanha e Itália. Outros passaram por crises sérias, fortes na Idade Média, como a Inglaterra, mas enfraquecendo-se depois. De todo modo, o fato é que Estados de dimensão média – nem cidades, nem impérios – se tornam paradigmáticos entre o século XVII e em certa medida o XVIII. É a essa dimensão intermediária que damos, impropriamente, o nome de Estados nacionais.




Com efeito, os Estados nacionais não são impérios e renunciaram à ambição de que um deles, um único, governe o mundo inteiro; mesmo que o sol nunca se ponha nos domínios dos reis Habsburgo de Espanha, e mais tarde no dos reis hanoverianos da Inglaterra, o império não é mais um sonho de consumo viável. Os impérios português e espanhol entraram em decadência em tempo relativamente curto. Mas, se mal restam impérios, nações ainda não há. Elas serão uma criação típica do século XIX.




Na maior parte dos casos, para haver nação, é preciso haver uma língua, de preferência posta por escrito e amada. Já no século XVI, a Reforma protestante favorecera a fixação de várias línguas até então desprovidas ou malprovidas de escrita, de gramática, de dignidade. Esse processo se repetirá com a Revolução Russa, que dará a vários povos vassalos dos czares a escrita, geralmente em caracteres cirílicos. Entre as Noventa e Cinco Teses e a tomada do Palácio de Inverno, o papel de fixar uma nacionalidade – que, aliás, não era a meta nem de Lutero nem de Lênin – será assumido pelo empreendimento romântico. Uma língua escrita, no caso, não é nem o meio para os fiéis entenderem o que quer o Criador, nem para os humilhados da Terra entenderem a revolução; é o modo de afirmarem uma cultura própria, de preferência com canções, músicas, contos. É difícil uma nação moderna, na virada do século XVIII para o XIX, sem a crença romântica em algum tipo de Volk. Isso se alonga no tempo. Quando Smetana compõe o Moldávia, ou Bela Bartok vai atrás das melodias populares, é disso que se trata.




Os Estados nacionais surgem então antes das nações. Desnecessário dizer que a ninguém ocorreria, enquanto eles nasciam, chamá-los de Estados nacionais. Eram os Estados do rei de França, por exemplo, ou o reino da Inglaterra. Em alguns casos, uma única língua imperava – o inglês, digamos. Na França, não. O rei absoluto podia tolerar os idiomas minoritários. São os jacobinos que partem em guerra contra os patois, os dialetos, as línguas locais. “O bretão é a língua do atraso”, eis a convicção de muitos dos que, na década de 1790, vão à luta contra os rebeldes da Vendéia e, mais que eles, contra a Bretanha inteira. Mas o que dará força ao “Estado nacional”, duzentos anos depois de instituído, é essa injeção de amor, de afeto, com freqüência mesclado de ódio ao diferente, ao estrangeiro, que o romantismo institui.




A insegura nacionalidade brasileira




Mesmo no Brasil, enquanto se travavam guerras genocidas contra diferentes etnias indígenas (como os botocudos, a quem o príncipe regente ordena atacar, em carta de 13 de maio de 1808), seus atavios servem à jovem coroa dos Trópicos. O imperador, com seu manto de tucano, os índios decorando a iconografia imperial, os romancistas como Alencar celebrando com mais facilidade o índio do que o negro, o nosso grande autor de óperas escrevendo um Schiavo que não é africano mas ameríndio, todos eles celebram esse referencial da nacionalidade. Podemos matá-lo, mas nossa imagem-chave é a dele. Isso, por sinal, configura um certo trauma de nascença na sociedade brasileira: nossa simbologia própria está ligada ao que exterminamos, em especial, os índios e as matas. Celebramos o verde no hino e na bandeira, o índio na literatura e em parte da iconografia oficial, mas o lugar paradigmático do indígena é o de Iracema: anagrama de América, apaixonada pelo primeiro português a aportar em sua região do continente, dá-lhe um filho e morre – legitimando dessa maneira a posse do território pelo invasor, pelo menos enquanto tutor do herdeiro da terra, Moacir, “filho da dor”, traduz Alencar .




Nação é assim termo de dois gumes. Há nações que se constituem gloriosas: o inglês, o francês, mais tarde o alemão e o italiano. Nunca, aliás, a Itália moderna terá sido tão gloriosa quanto ao se unir, na improvável união de esforços entre o habilidoso Cavour e o corajoso Garibaldi. E há outras em que o sentimento nacional vem marcado de incerteza, de insegurança, como em nossos países americanos, nos quais a identidade que se forja geralmente soma o poder em mãos do branco, a iconografia celebrando o índio, nem por isso menos exterminado, e o desprezo pelo africano, explorado sem sequer a contrapartida simbólica que ele irá adquirir ao longo do século XX – e que, por sinal, não põe fim, enquanto se louva sua música e sua culinária, à exploração e à discriminação.




Nossa nacionalidade é muito mais dividida do que a dos países europeus. Na Europa foi possível, embora a cada unificação nacional houvesse minorias que pagassem uma conta por vezes cara, proclamar unidades mais firmes, não só (ou não tanto) por maior proximidade étnica, mas também (ou sobretudo) por uma convergência social crescente, que fez, ao longo do século XX, a miséria tornar-se exceção e a própria pobreza, minoritária. No Brasil e nas Américas, não só houve o extermínio do diferente, como na grande maioria dos países também a conservação de uma forte desigualdade social, o que certamente torna o sentido de nação bem diferente para nós do que para os europeus. Some-se a isso que, pelo menos no Brasil, as diferenças étnicas e regionais não atingem, pelo menos desde muito tempo, o relevo que têm nos países em que se conserva uma maioria populacional de origem e identidade indígena. Assim, são desenhos bem diferentes os de nação hoje existentes.




No próprio mundo desenvolvido, há enorme diferença entre a forma como a França concebe sua nacionalidade, fortemente assentada na língua e na cultura a ela ligada, a Alemanha, que só há pouco tempo abriu exceções a uma idéia de nacionalidade fundada no sangue e não no lugar de nascimento, e os Estados Unidos, para os quais a língua tem tão pouca importância na nacionalidade que sequer possuem um idioma oficial. Por isso, se terminamos a parte anterior levantando a questão do interesse, e de como o interesse dos Estados é diferente do interesse dos indivíduos (porque o destes, hobbesiana e classicamente falando, aponta para a paz, a vida, e depois para os ganhos, enquanto o daqueles aponta para os ganhos, mas nesse rumo não dá a mesma importância crucial à paz e à vida), aqui cabe resumir a questão do adjetivo nacional: o interesse nacional será bem diferente conforme tratemos de nações de um ou outro perfil. Quando, por exemplo, as lideranças políticas catalãs afirmam que “a Espanha não é uma nação, a Catalunha o é”, têm razão, mas ao preço de separarem Estado e nação, o que por sinal é mais correto ainda – mas é claro que em seu horizonte está a idéia de fundar um Estado catalão independente de Madri, que se reporte diretamente à União Européia.




O debate sobre o interesse nacional: conceito ou noções?




O interesse nacional, como conceito, pode ser entendido como a promoção do interesse de um Estado independente pelos seus cidadãos ou governantes, reduzindo enormemente a parte das paixões no trato social. Aqui não importa tanto se o interesse está no nacionalismo acerbo ou na globalização sem salvaguardas; o que conta é que os que defendem uma posição ou outra – e também as intermediárias – acreditem que assim melhor atendem ao interesse nacional. O que é decisivo é que as partes não se iludam pela força dos afetos desabridos. Ora, esse traço traz certas conseqüências. A discussão sobre o interesse nacional supõe então uma racionalidade, uma lógica, de modo que, mesmo quando se torne aquecida, antagônica, as diversas partes estejam apelando a uma razão que, supõe-se, compartilham. Daí também que, numa forma que não é rara, a discussão sobre o interesse nacional se concentre nas questões econômicas. A economia é a forma acabada do interesse. Contudo, daqui decorrem dois problemas.




O primeiro é que a economia, como a conhecemos, tende a despolitizar o debate. Os conceitos dela, pelo menos como são praticados entre nós, apontam para um conjunto de dados inescapáveis. Não há como ter déficit nas contas públicas, sem sérios prejuízos; não há como espantar os investidores, sem graves problemas; não há como desenvolver políticas mais radicais, sem se colher o fruto perverso da pobreza que se expande em vez de se reduzir. Esses argumentos têm seu quê de razão, mas quando são radicalizados terminam por deixar disponível uma única opção. Ora, essa posição extrema não pode ser aceita se nos pautarmos pelo debate. A ser correta essa visão, só caberia enunciar, enxergar, expressar o interesse nacional.




Contudo, a própria composição do conselho desta revista deixa claro que ele se compõe de pessoas de posições diferentes e até mesmo opostas, não só no que tange ao interesse nacional em face dos demais países, mas também no que se refere ao interesse nacional no próprio país. É certo, por outro lado, que ninguém no corpo editorial defende a pobreza ou a miséria; mas também temos, aqui, divergências que levam alguns a considerarem que a política defendida por outros gera, mesmo sem o querer, efeitos contrários aos que eles pretendem.




Em suma, se desejamos criar ou manter um espaço de debate, torna-se necessário, primeiro, delimitar um conjunto de pontos comuns – que estão na defesa do interesse nacional, ou seja, da independência do país, o que quer que entendamos por ela, da sua maior prosperidade e da maior justiça social interna – mas também, segundo, entender que o acordo sobre essas palavras não implica um consenso sobre o que elas significam. Justiça social pode ser a expropriação dos meios de produção – embora hoje muito poucos a defendam – ou a redução da desigualdade que o capital gera, mediante mecanismos indiretos como a tributação dos excessos. Ou seja, podemos discutir justamente porque, dos conceitos, retemos o mínimo necessário (independência, prosperidade, justiça social), e deixamos que eles ajam como noções, as quais preenchemos de distintas maneiras, com distintos significados. Se conseguirmos fazer isso, o passo terá sido importante, no sentido não tanto de conceituar o interesse nacional, mas no de, pelo debate, fazer que ele avance, que as posições mudem, que um país pouco afeito ao debate consiga caminhar na direção de respeitar o outro e de aprender com o divergente.




O segundo problema é intrínseco à própria idéia de interesse. Não é totalmente diferente do primeiro, que consistia na exclusão do político quando ocorre uma hipertrofia econômica do interesse, mas tem suas peculiaridades próprias. É que o interesse supõe um sujeito desprovido de paixões. É no silêncio dos afetos, ou pelo menos no abafamento de sua exaltação, que o interesse prospera. Mais que isso, o sujeito desprovido de paixões deprecia o que dele diverge como se fosse irracional. Há, em quem defende o interesse, certo desapreço pelos divergentes, em boa parte porque estes últimos não seriam plenamente racionais e se estariam deixando guiar pelas paixões. Ora, como já dissemos no começo, uma coisa é escolher o melhor investimento financeiro com base no interesse, no cálculo, na razão – outra é adotar o mesmo caminho quando se trata das escolhas amorosas e afetivas. Pessoas de extraordinária capacidade de escolha econômica ou política muitas vezes sucumbem quando falam os sentimentos. E não resolve a questão dizer que estes são, por definição, irracionais. Porque dessa maneira apenas reconhecemos a limitação do campo dominado pelo interesse. Ora, se o interesse não dá conta do que são as paixões, os afetos, então ele não cobre o espectro das coisas que os humanos fazem. Ele se refere somente a uma parte do mundo humano, da nossa ação. Pode ser uma parte decisiva. É ela que constrói boa parte da nossa relação respeitosa com o outro. É ela que sustenta boa parte do laço social. É ainda ela que dá os fundamentos econômicos para desenvolvermos uma série de escolhas que, porém, nada têm de econômico. Enfim, tudo isso posto, os fins que nos propomos, as metas que adotamos, são em si mesmas menos suscetíveis à linguagem do interesse. Este diz respeito mais a meios do que a fins. Mas será que o interesse nacional é do mesmo tipo que o interesse em geral, do que o interesse nu? Vesti-lo, não com a nacionalidade, mas com a condição do Estado independente, é transformá-lo em algo que não é apenas meio – mas também fim. Estamos procurando, aqui, uma interlocução.




Por isso é que, talvez, devamos partir do interesse nacional como conceito para, contentando-nos com um mínimo nele – o que tentamos acima expor, com suas qualidades e limitações –, desenvolver depois disso uma variedade de concepções a seu respeito. Ou seja, conceito é o núcleo duro, mas leve; noções são as divergências que o rodeiam. Se formos muito longe no conceito, não admitiremos a diferença, a discussão. Poderemos acabar até na geopolítica conservadora. Se, por outro lado, nos satisfizermos com a noção, não iremos além de opiniões de pobre fundamento. O melhor é unir o rigor que o conceito traz e a liberdade que as noções permitem. Pelo menos, é o que podemos aqui sugerir.




Para concluir, o interesse não dá conta de tudo o que um Estado independente quer ou deseja. O risco de pensarmos em termos de interesse para os Estados, como aliás para todas as pessoas, individuais ou coletivas, físicas ou jurídicas, é que delas exijamos uma racionalidade que deixa algo de lado. Não quer dizer que esse elemento abandonado seja bom. Um exemplo, entre muitos, é o da Rússia de 1914, onde, com exceção de Rasputin e de Lênin, todos queriam a guerra com os austríacos, em defesa dos eslavos do Sul – e no entanto o interesse russo ditava a paz, porque o país não tinha condições, como de fato não teve, de enfrentar as Potências Centrais. Contudo, uma política movida só pelo interesse, que ignorasse os sentimentos pan-eslavos tão fortes na época, não disporia da menor chance de sucesso. Esse é um exemplo em que o antagonismo entre o interesse e o que o excede causa um final trágico – milhões de mortos, para dizer o mínimo. Mesmo assim, o exercício de pensar – e promover – o interesse do nosso Estado vale a pena. A razão é um bom fator para o debate.




•Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Politica na USP, e autor, entre outros, dos livros Ao Leitor sem Medo – Hobbes Escrevendo Contra seu Tempo (Editora UFMG), A Sociedade Contra o Social – o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia da Letras, Prêmio Jabuti 2001), A Universidade e a Vida Atual – Fellini Não Via Filmes (Elsevier/Campus) e O Afeto Autoritário – Televsão, Ética, Democracia (Ateliê Editorial).