"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 25 de junho de 2016

O conservadorismo de cada Casa do Congresso


“O fato é que, do ponto de vista dos progressistas e humanistas, as duas Casas têm pautas refratárias ao ideário dos movimentos sociais e sindicais, que defendem avanços políticos, econômicos e sociais e exigem um Estado forte, capaz não apenas de regular, mas também de competir em setores estratégicos – petróleo, energia, sistema financeiro, etc – com o setor privado como forma de evitar monopólios e cartéis contra o interesse nacional.”


Muito já se falou e tem se falado do caráter conservador do Congresso eleito em 2014, porém nada se disse a respeito das características do conservadorismo de cada uma das Casas do Poder Legislativo Federal. Câmara e Senado possuem composição e agendas distintas, que merecem ser analisadas para melhor compreensão da razão da demora na aprovação das matérias.

A Câmara dos Deputados, com mais da metade de sua composição organizada em torno de bancadas informais – como a evangélica, a da bala ou da segurança, a da bola e do boi (agronegócio) – forma uma espécie de “centrão” que prioriza práticas tradicionais e conservadoras, sobretudo em relação aos aspectos morais e sociais, à defesa da família e à intolerância a ideias mais liberalizante quanto aos direitos civis e humanos.

O Senado, por sua vez, apresenta um perfil mais liberal do ponto de vista econômico do que conservador em relação a valores morais e sociais. Sua composição, formada majoritariamente de empresários, tem se dedicado à modernização dos códigos de processo e da agenda econômica, particularmente em relação à abertura da economia e à redução da presença do Estado na economia e menos à limitação dos direitos civis e humanos.

Quem se der ao trabalho de analisar as proposições debatidas ou examinadas nas duas Casas do Congresso na atual legislatura vai constatar facilmente o que se afirma nos parágrafos anteriores.

A título de ilustração, pode-se lembrar que a Câmara dos Deputados tem pautado uma série de medidas que reforçam esse perfil conservador, como, por exemplo, os pedidos de CPIs e investigações sobre a UNE e os movimentos sociais, bem como o patrocínio de várias proposições que promovem retrocessos em direitos sociais e atentam contra direitos das chamadas minorias, especialmente assalariados, mulheres, jovens, indígenas, etc.

Em relação aos projetos, basta lembrar o da terceirização, que ataca direitos dos trabalhadores não-terceirizados; o do estatuto da família, que nega direitos à formação de famílias que não sejam constituídas exclusivamente por um homem e uma mulher; o que regulamenta a PEC do trabalho escravo, modificando o conceito de trabalho degradante; o que trata do Estatuto do Nascituro; a PEC de redução da idade penal; a PEC de demarcação das terras indígenas; a PEC que reduz de 16 para 14 anos a idade para ingresso no mercado de trabalho; e a PEC que autoriza as igrejas a ingressarem com ações de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, dentre outros.

Já no Senado, a prioridade tem sido os projetos que tratam da abertura da economia, como o que retira da Petrobras a condição de operadora única e a desobriga de participar com pelo menos pelos 30% nas descobertas do pré-sal; o que trata da governança das empresas estatais, retirando delas a possibilidade de contribuir com políticas sociais; o do estatuto jurídico dos fundos de pensão, restringindo a participação dos participantes em seus conselhos e direção; e a PEC que derruba o licenciamento ambiental para projetos de infraestrutura.

A comprovação de que o Senado é mais liberal, do ponto de vista econômico, do que conservador em relação a direitos e valores, são: a rejeição do financiamento empresarial de campanha, a recusa em aprovar a PEC da redução da idade penal e a promoção de um debate mais acurado do projeto da terceirização.

A leitura da composição e das práticas do atual Congresso revela uma grande contradição, que consiste no fato de que a representação do povo, a Câmara dos Deputados, é mais conservadora, do ponto de vista dos direitos sociais, civis e humanos, do que o Senado, que representa a Federação, cuja formação, historicamente, era mais conservadora do que a Câmara dos Deputados.

O fato é que, do ponto de vista dos progressistas e humanistas, as duas Casas têm pautas refratárias ao ideário dos movimentos sociais e sindicais, que defendem avanços políticos, econômicos e sociais e exigem um Estado forte, capaz não apenas de regular, mas também de competir em setores estratégicos – petróleo, energia, sistema financeiro, etc – com o setor privado como forma de evitar monopólios e cartéis contra o interesse nacional.


Antônio Augusto de Queiroz*


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Presidencialismo de coalizão exige cláusula de desempenho para o Congresso


O termo presidencialismo de coalizão foi utilizado pela primeira vez durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 em um texto do cientista político Sergio Henrique Abranches (ABRANCHES, 1988, p. 5 a 34). Ao cunhar a expressão, ele procurou mostrar que a Constituição Brasileira de 1988 trazia novidades que poderiam gerar uma democracia praticamente ingovernável. 

Para o autor, o presidencialismo, modelo no qual a eleição do governo ou do presidente da República se daria de forma dissociada da eleição para o Parlamento, faz com que o presidente da República não seja detentor de uma maioria no Congresso Nacional ou que o partido que venha a eleger o presidente não eleja uma maioria no Legislativo. 

Tudo isso aliado ao sistema eleitoral proporcional de listas abertas geraria ainda mais problemas, porque nosso sistema proporcional levaria à proliferação de partidos políticos. O que Sérgio Abranches estava a dizer é que o sistema proporcional de listas abertas para eleição da Câmara dos Deputados geraria um Congresso Nacional habitado por uma miríade de partidos políticos. Tais partidos, em geral, seriam frágeis ou débeis eleitoralmente, possivelmente com presidente também não muito forte por não ser detentor de maioria para governar. 

Eis a razão por que o diagnóstico de Abranches – ainda à época da Constituinte de 88 – era aquele de uma democracia ingovernável, ou de difícil estabelecimento de governo. 

Lamentavelmente e com raras as exceções, o debate sobre sistema de governo no Brasil, após o plebiscito de 1993, ficou bastante esvaziado, pelo menos no meio jurídico, mas teve continuidade entre os cientistas políticos, os quais, em grande número, rebateram os argumentos de Abranches. 

A partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, os cientistas políticos passaram a fazer uma leitura sobre o funcionamento do sistema baseada em dados estatísticos por eles recolhidos – o que aqui convém chamar de revisão empírica do funcionamento do presidencialismo de coalizão – e chegaram à conclusão de que, apesar do diagnóstico catastrófico de Sérgio Abranches, nosso modelo funcionava. 

Contrariando as projeções de Abranches, os cientistas políticos brasileiros, capitaneados por Fernando Limongi, Argelina Figueiredo e outros, chegaram à conclusão no sentido de que os governos FHC e Lula foram eficientes, atingindo taxas de sucesso relativamente altas. O que significa dizer que as iniciativas legislativas e, portanto, de implementação de políticas públicas, tanto no governo de Fernando Henrique quanto no de Lula, foram aprovadas no Congresso Nacional. 

Chegaram a números muito otimistas – cerca de setenta a oitenta por cento – de aprovação no Congresso Nacional das medidas legislativas apresentadas pelos governantes. 

Dentro da visão desses cientistas políticos, o Brasil foi governado durante todos esses quatro mandatos com taxas de sucesso próximas às dos parlamentarismos europeus. Para esses autores, a teoria política diz que um sistema de governo funciona, de forma geral, adequada e eficientemente, quando o sistema eleitoral gera parlamentares cuja atuação seja nacional e que possibilite apoio ao governo. 

Sustentam, por exemplo, que mesmo em países como a Inglaterra, em que há um sistema majoritário com eleições por distritos, os debates nos distritos, em função de haver partidos políticos muito bem definidos, refletem um debate nacional entre os partidos políticos, de modo que mesmo o voto distrital não impede que os candidatos e parlamentares revelem em seus debates locais o ambiente político nacional. 

O fato é que para Sérgio Abranches isso seria muito difícil em um país como o Brasil, que adota o sistema proporcional de listas abertas, o que levaria a uma enorme fragmentação partidária. 

No entanto, cientistas políticos que fizeram uma revisão empírica do funcionamento do modelo, não comungaram desse pessimismo. Afirmaram haver meios de nacionalizar a atuação parlamentar no sistema de presidencialismo de coalizão. 

Essa visão otimista considera que o sistema eleitoral proporcional de listas abertas dificulta que parlamentares alcancem uma atuação nacional. Normalmente, eles atuam visando à reeleição e, para isso, agradam o eleitorado para que possam continuar com chances de se reelegerem. 

O que acontece nesse sistema de listas abertas é que o parlamentar, raramente, conseguirá sozinho bater o quociente eleitoral. Significa dizer que um parlamentar com votos recebidos de eleitorado especifico não conseguirá votos suficientes para se eleger e as listas abertas é que lhe possibilitariam transferências de votos de outros candidatos do mesmo partido político ou, no caso do Brasil, da mesma coligação eleitoral a que ele pertença. 

Cerca de noventa por cento dos parlamentares eleitos não conhecem com exatidão seus eleitores, não sabem exatamente com quais votos foram eleitos porque recebem votos emprestados de outros candidatos do mesmo partido ou de outros candidatos da mesma coligação eleitoral – que pode englobar uma série de partidos. Assim, a atuação parlamentar tende a ser aquela em que buscam conhecer ou construir o seu eleitorado durante o mandato e, para isto, precisam associar-se ao prestígio presidencial. Aqui está a primeira hipótese de nacionalização da atuação parlamentar: a associação do parlamentar ao prestígio presidencial. 

Os parlamentares tendem a se colocar ao lado do Presidente da República – já que ele é a única figura política eleita nacionalmente no presidencialismo. 

O parlamentar, cada um em seu reduto eleitoral, procura acompanhar o Presidente em suas aparições públicas. Essas exposições, aliadas a inaugurações de obras em seu reduto eleitoral, por exemplo, é que constroem, edificam e fortalecem o eleitorado daquela determinada região. 

Segundo os cientistas políticos, isso é uma nacionalização da atuação porque o presidente exige em troca dessa associação que os parlamentares aprovem, no Congresso Nacional, sua agenda de governo. Eis aqui, portanto, o Congresso Nacional como colaborador do governo na aprovação da agenda governamental. Dessa forma, aquele Congresso habitado por uma miríade de partidos passa a colaborar para aprovação da agenda presidencial. 

Além dessa possibilidade de nacionalização, existe a liberação de emendas parlamentares ao orçamento – apontada por muitos cientistas políticos como importante no sistema de governo brasileiro. É interessante que os parlamentares façam suas emendas ao orçamento e que o Presidente da República negocie com eles, ou com os partidos políticos, a liberação ou a execução dessas emendas orçamentárias. 


Esse processo de negociação permite que o presidente, em contrapartida à execução de emendas orçamentárias, exija a fidelidade do parlamentar, muito importante nesse sentido de possibilitar que o presidente governe ou que o Congresso Nacional aprove as medidas do Presidente da República. 

Dentro dessa revisão empírica do funcionamento do presidencialismo brasileiro, o Presidente da República detém o poder de agenda, pois ele diz o que, quando e de que modo deve ser feito. 

O Presidente mantém, no presidencialismo de coalizão, este poder de agenda com base na intensa atividade legislativa do poder executivo, como detentor de iniciativas legislativas privativas e por meio da edição de medidas provisórias. Com isso, ele consegue um primeiro fator de controle da agenda política no sistema de governo. 

Cabe lembrar que os cientistas políticos fazem um diagnóstico otimista do modelo brasileiro, tendo como base a Emenda Constitucional 32, de 2001, que trazia em seu bojo uma sistemática de trancamento da pauta do Congresso Nacional a partir da edição de medidas provisórias não votadas pela casa legislativa no prazo de 45 dias. Assim, com uma sucessão de medidas provisórias editadas por parte dos presidentes, em especial Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, ficava fácil controlar a pauta do Congresso Nacional, que se tornava refém da votação das medidas provisórias editadas. O presidente mantinha, dessa forma, o controle da agenda do Congresso Nacional. 

Outro fator relevante desse modelo é a formação do gabinete de ministros. Contrariamente ao presidencialismo americano, o presidencialismo brasileiro prevê ou possibilita que os Ministros de Estado do Poder Executivo sejam provenientes do Parlamento. Isso representa a comunicabilidade entre os poderes, de modo que os principais ministros são parlamentares indicados pelos partidos da base governista. 
Além disso, há uma sistemática regimental nas casas do Congresso Nacional que é a previsão de lideranças dos partidos, do governo, da minoria, da oposição etc. Essa sistemática de líderes partidários ou de blocos parlamentares de apoio ao governo, que são vistos pelos cientistas políticos como representantes do governo dentro do Congresso, permite que o Presidente da República negocie com os líderes partidários – o que diminui sobremaneira os custos da negociação política. 

A formação de gabinetes com a comunicabilidade entre membros do Poder Legislativo e do Poder Executivo, ao lado da edição de medidas provisórias com possibilidade de trancamento de pauta ou que confira ao Presidente da República poder sobre a pauta do Congresso Nacional foram fatores relevantes para o otimismo desses cientistas políticos quanto ao funcionamento adequado do presidencialismo de coalizão brasileiro 

Algumas críticas, no entanto, podem ser feitas ao modelo, bem como se pode afirmar que modificações relevantes estão enfraquecendo as bases do presidencialismo de coalizão. 

Foi aprovada recentemente no Brasil uma emenda constitucional, a de número 86, de 2015, que torna as emendas dos parlamentares ao orçamento obrigatórias ao Poder Executivo. Além de muito recente e de possuir uma série de regramentos, ainda não se sabe como funcionará e qual será seu impacto na relação parlamentares-governo. Pode-se prever, no entanto, que o poder de barganha do Presidente da República na execução das emendas parlamentares ao orçamento tende a acabar ou a diminuir muito, por serem obrigatórias ao Poder Executivo, no todo ou em parte. Nesse contexto, um dos pilares do presidencialismo de coalizão, que seria a barganha por meio da liberação ou da execução de emendas orçamentárias de parlamentares, tende a ruir. 
Outro importante pilar de sustentação do presidencialismo de coalizão é o poder de agenda detido pelo Presidente da República em razão de sua atividade legislativa, em especial por meio da edição de medidas provisórias. Este também sofreu considerável prejuízo porque, em meados de 2009, no finalzinho do governo Lula, o então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, propôs à Casa uma nova interpretação do instituto da Medida Provisória na Constituição, que fosse capaz de liberar a pauta do Congresso Nacional. 

Essa interpretação acabou, na prática, com a sistemática de trancamento da pauta do Congresso Nacional a partir da edição de medidas provisórias pelo Presidente da República. 

A interpretação do presidente da Câmara foi impugnada pelos líderes de oposição por meio de um mandado de segurança, cujo julgamento, no Supremo Tribunal Federal, ainda não terminou. 

A maioria dos votos proferidos até o momento acompanhou o relator, ministro Celso de Mello, conferindo apoio à interpretação dada pro Michel Temer, no sentido do destrancamento da pauta. Isto libera o Congresso e faz com que o Presidente da República perca outra influente forma de controle da agenda do parlamento. 

A liberação da pauta do Congresso Nacional à votação de proposições legislativas de interesse do próprio Congresso permitiria o ressurgimento de uma agenda legislativa do Parlamento, dissociada da agenda do Planalto. Essa interpretação, veiculada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, jogou por terra outro pilar do presidencialismo de coalizão: o poder sobre a agenda do Congresso Nacional. 
Certo é que a partir daí houve uma diminuição sensível no número de edição de medidas provisórias. No governo da presidente afastada Dilma Rousseff isto se revelou perceptível. 

Questões de caráter subjetivo, relacionadas à Presidente Dilma, levaram à certeza de que ela não trabalhava bem os outros elementos essenciais ao funcionamento do presidencialismo de coalizão, tais como a cooperação à nacionalização da atuação dos parlamentares e a capacidade de mantê-los como aliados políticos – realizando aquele processo de associação do prestígio presidencial às atividades parlamentares. Também não se trabalhava bem no governo Dilma os elementos de negociação com as lideranças partidárias no Congresso Nacional, o que elevava os custos de manutenção da coalizão de governo. 

Isso tudo associado permite que se avance no diagnóstico e que se afirme que alguns dos pilares do nosso sistema de governo, essenciais para o sucesso dos governos Fernando Henrique e Lula, já não existem formalmente, e não se fizeram presentes durante o Governo Dilma Rousseff. Além disso, o presidencialismo de coalizão depende de certo grau de entendimento dele mesmo para que o presidente consiga atuar nas brechas que o modelo impõe. 

Diante do exposto, pode-se dizer que o contra diagnóstico otimista dos cientistas políticos no sentido de que o presidencialismo de coalizão brasileiro funcionava adequadamente não parece correto. Pode-se dizer que funcionou razoavelmente bem em termos de taxas de sucesso porque os governos FHC e Lula conseguiram governar, mas a custos bem elevados. 

Desde o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva houve um estímulo à proliferação de partidos políticos. Temos, hoje, cerca de 30 com representação no Congresso. De modo geral, essa proliferação impede que os eleitores, mesmo os mais esclarecidos, consiga visualizar a relação entre governo e oposição. Essa miríade de partidos políticos impede a visualização da dicotomia essencial à democracia e que possibilita a competição partidária razoavelmente inteligível pelo eleitor. 
O fato é que se o Brasil mantiver o presidencialismo como sistema de governo, faz-se necessária a aprovação de alguma fórmula de cláusula de barreira ou de desempenho para que se diminua sensivelmente o número de partidos e para que se volte a ter alguma nitidez sobre a relação governo/oposição. 

Para finalizar, lembro que se deve ter em mira a ideia de que, para o Brasil, melhor seria inverter a equação democrática. Ou seja, não elegermos um Presidente que se coloque, depois de eleito, à caça de uma maioria parlamentar, mas evoluirmos para um parlamentarismo de verdade, de modo que o governo resulte da maioria parlamentar oriunda das urnas. 

Sérgio Antônio Ferreira Victor 
 Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília e do Instituto Brasiliense de Direito Público, membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. 


O problema do poder na Constituição da República de 1988


A disciplina dos poderes é um elemento central em todas as Constituições. Seja na separação dos poderes entre diversos órgãos, seja na separação territorial dos poderes, trata-se, sempre, de um dos pontos mais importantes de todas as Constituições. Não é por acaso que o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirma que uma sociedade que não contém regras sobre uma separação de poderes não tem uma Constituição

E o sistema de checks and balances da Constituição dos Estados Unidos, e sua inter-relação com o federalismo, é um dos dois pilares daquele documento, a própria declaração de direitos sendo um conjunto de emendas que alguns dos founding fathers consideravam desnecessário, tamanha a certeza que tinham de que a mera mecânica de poderes desenhada por eles seria suficiente para garantir a moderação do governo. É sobre essa interface, do tratamento jurídico do poder e da Constituição, que pretendo fazer uma reflexão nesta coluna, para chegar, no final, à questão do poder na Constituição de 1988. 

Seguindo alguns ensinamentos do Direito Constitucional francês, vamos propor algumas distinções antes de entrar no assunto propriamente. Primeiro, vamos distinguir entre Constituições cujas regras são derivadas de um princípio político básico e as Constituições que aparecem mais como um conjunto de regras que, depois, são interpretadas para dar alguma aparência de conjunto. A distinção se baseia em comentário relativamente lateral de Michel Troper em sua tese de doutorado. Segundo, vamos seguir as propostas para uma teoria do Estado de Olivier Beaud nas quais ele afirma que o fenômeno estatal só pode ser apreendido em sua totalidade se estivermos atentos para duas características do Estado: a soberania e a institucionalidade. De um lado, a soberania é o elemento que descreve a ruptura na fundação do Estado, o caráter supremo do poder que cria o Estado, o poder do pacto social, a força do pensamento político. De outro, as instituições refletem a continuidade, as relações de poder concretas na sociedade, as dificuldades de instituir um Estado completamente novo que o elemento da soberania parece querer ocultar. 

Colocando essas duas propostas teóricas, de Michel Troper e de Olivier Beaud, juntas, proponho olharmos as Constituições brasileiras sob o seguinte prisma. De um lado, teríamos Constituições em que predominou o elemento da soberania. De outro, as Constituições em que predominou o elemento institucional. Nas Constituições em que predominou a soberania, a ruptura se sobressai relativamente à continuidade, o poder criador supera os limites à inovação institucional. Nessas Constituições, retomando Troper, parece haver um compromisso com princípios político-constitucionais a partir dos quais são deduzidas as regras que, ao final, vão dar o desenho constitucional positivo da separação de poderes. Já nas Constituições em que predominou o elemento institucional, a continuidade supera a ruptura. A separação dos poderes parece ser menos deduzida de princípios e mais o reflexo de experiências institucionais passadas, aprimoramentos de práticas institucionalizadas. 

Minha proposta é dividir as Constituições brasileiras em Constituições soberanas e Constituições institucionalistas, sempre de acordo com essa mescla dos comentários teóricos de Troper e Beaud. De forma ainda experimental, proponho que sejam vistas como soberanas as Constituições de 1824, 1891, 1934 e 1937, e como institucionalistas as de 1946, 1967 e 1988. 

A Carta de 1824 pode ser classificada como soberana por ser um documento que reflete um compromisso doutrinário com a monarquia liberal. Esse compromisso é anterior à Carta em si e pode ser comprovado por meio do estudo de diversos documentos que ajudaram a consolidar a independência do Brasil. Em certo sentido, a independência do Brasil se fez contra o liberalismo excessivo da Constituinte de Portugal, e isso se reflete na Carta de 1824, notadamente na existência do poder moderador. O próprio Pedro I dá as diretrizes da carta na sua exposição de motivos ao anteprojeto de Constituição. 

Na mesma linha, a Constituição de 1891 também pode ser colocada entre aquelas que propusemos chamar de soberanas, à falta de nome mais adequado. Também ela reflete compromissos doutrinários prévios com a forma do Estado e a forma de governo. Pouco importa o fato, ou o boato, de que ela seria uma cópia da Constituição norte-americana. Havia um compromisso com a instituição de uma nova forma de governo, a República, e com um Estado diferente, a federação de tipo dualista. Na assembleia constituinte, embora houvesse oposição, os defensores desse novo modelo conseguiram reunir força suficiente para produzir um texto jurídico que, no geral, refletia aquelas ideias. 

A Constituição de 1934 rompe com o paradigma liberal das Constituições anteriores. No campo das relações dos poderes, ela alterou profundamente as funções do Senado Federal (artigo 88 e seguintes) e instituiu a representação classista (artigo 23). Também foi ela que criou o sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados (artigo 23). O Poder Judiciário foi fortalecido, notadamente com a criação da Justiça Eleitoral. Na distribuição territorial do poder, ela acabou com o federalismo dualista e instituiu o federalismo cooperativo, com uma distribuição de competências concorrentes (artigo 5º, parágrafo 3º). Essas alterações se inseriam em um ambiente de forte crítica às instituições liberais, consideradas inadequadas para o Brasil. A esse ambiente ideológico correspondeu uma Constituição que aumentava os poderes da União Federal, do Judiciário e do presidente da República, enquanto o legislativo de tipo liberal foi enfraquecido. 

Em 1937, produz-se a Constituição mais autoritária de nossa história. Aquela Constituição, no entanto, não era autoritária apenas por acidente. Seu autoritarismo refletia um compromisso teórico. Reflexões políticas e sociológicas da época defendiam aquele modelo como o único adequado para o Brasil. Ela fortaleceu ainda mais os poderes do Presidente da República, limitou a proporcionalidade na representação dos estados, fortaleceu o Judiciário, e, na sua vigência, deu-se ao processo civil a concepção “autoritária” defendida por Francisco Campos. 
Com a Constituição de 1946, teria início o período das Constituições institucionalistas. 

Em muitas medidas, ela procede a um rearranjo institucional das experiências anteriores, reaproveitando elementos da Constituição de 1891 e da de 1934. Durante a sua vigência, há um inegável reforço do Poder Judiciário, no qual se destaca a consolidação, com a criação de vasta jurisprudência, do uso do mandado de segurança como mecanismo por excelência do controle judicial dos atos administrativos. Contudo, em termos de inovações nas relações entre Poder Executivo e Poder Legislativo, ela é bastante tímida, o mesmo acontecendo com a distribuição territorial do poder. Mais do que formar um conjunto de regras deduzidas a partir de uma ideologia, a Constituição de 1946 aproveita experiências institucionais anteriores. Entre esses aproveitamentos, está o sistema proporcional para a eleição da Câmara dos Deputados. E entre as inovações, o multipartidarismo. A tendência à consolidação do modelo de “presidencialismo imperial” já se manifestou sob aquele regime. A combinação desses três elementos seria repetida em 1988, dando origem ao modelo do “presidencialismo de coalizão”, sistema adotado pela nossa Constituição em vigor e que enfrenta sérias críticas no momento. 

A Constituição de 1967 é problemática para a classificação aqui proposta. É preciso lembrar que ela foi a Constituição do regime militar, cuja obra negativa ainda hoje repercute na nossa política. Contudo, ela não foi uma Constituição autoritária por princípio, como a de 1937. Foi mais a sua prática, cumulada de exceções, que serviu ao autoritarismo militar da época. Dito isso, entendo que, na lógica do tratamento dos três poderes e do federalismo, ela pode ser listada entre aquelas que poderíamos chamar de institucionalista, para ressaltar o elemento da continuidade, em detrimento da soberania e da ruptura. Não havia, por trás das suas normas, uma concepção ideológica constitucional desenvolvida, como houve na Constituição de 1937, mas uma determinação de reação ao que era percebido como um risco decorrente do cenário de polarização política da Guerra Fria. A continuidade, no caso, ficou por conta da tendência de centralização federal e do fortalecimento do Poder Executivo. Um outro elemento, no entanto, deve ser lembrado: a progressiva equipagem do Poder Judiciário para exercer um papel de controle do Estado. 

Feita essa abordagem histórica extremamente sucinta das Constituições brasileiras, passo à Constituição de 1988. Pela repetição do tratamento estrutural dado às relações entre os poderes e ao federalismo, considero que se trata de uma Constituição institucionalista, na qual há mais elementos de continuidade do que de ruptura e na qual não nos parece ter sido seguido um princípio de ideologia constitucional. Evidentemente, ela tem princípios, mas o tratamento dado às instituições que repartem o poder é, claramente, decorrente de experiências constitucionais prévias que, possivelmente, foram consideradas positivas. Assim, na repartição de competências entre os entes federados, a tendência de concentração de poderes na União permaneceu. Da mesma forma, as relações entre Legislativo e Executivo, os mecanismos de seleção dos representantes do povo, o multipartidarismo, tudo isso reflete experiências do passado. O fortalecimento sem paralelo do Poder Judiciário, por sua vez, também reflete uma tendência que já vinha se manifestando desde, pelo menos, a Era Vargas. 

Essa Constituição criou, a partir de elementos de continuidade existentes num ou noutro de nossos regimes constitucionais vigentes desde 1934, o regime do presidencialismo de coalizão, que ora dá sinais de esgotamento. Minha proposta é, a partir da sugestão de classificação aqui esboçada, chamar a atenção para o fato de que esse regime não foi desenhado a partir de uma visão global de ideologia constitucional, mas desde uma tentativa de compor uma união de forças políticas, resultando na repetição de fórmulas institucionais já conhecidas e que, ao que tudo indica, faziam consenso no momento de transição da ditadura para a democracia. Agora, no entanto, talvez seja o momento de repensar o tratamento dado ao poder na Constituição de 1988 desde uma perspectiva mais ampla, contemplando a imaginação de um regime que rompa com esses elementos do presidencialismo de coalizão, como o sistema proporcional para eleição de deputados federais, o multipartidarismo sem critérios corretivos, e o excesso de poderes do presidente da República. Em outras palavras, o momento pode ser propício para novas reflexões constitucionais ancoradas em uma concepção mais profunda do lugar do Estado e do poder político nas nossas vidas. 


Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).