terça-feira, 30 de agosto de 2016

O “modelo Cingapura” de desenvolvimento nacional




Pedro Valls Feu Rosa

“O que falta, afinal, ao Brasil? Nosso povo é um dos mais criativos e afáveis do planeta, e vivemos sobre um solo riquíssimo – assim, onde temos errado? Quais mudanças devemos buscar?”

Cingapura é um pequeno país lá do Oriente, totalmente desprovido de recursos naturais, habitado por 3,8 milhões de pessoas. Em 1965, quando conquistou sua independência, apresentava alguns dos piores indicadores de desenvolvimento humano do mundo.

Naqueles dias difíceis o desemprego rondava a casa dos 14% e o Produto Interno Bruto (PIB) “per capita”, em valores correntes de mercado, era de magros US$ 516. Menos de 50 anos depois, este país comemora um índice de desemprego de 2%, contra 5,8% do Brasil. Seu PIB “per capita” é de espantosos US$ 51.162,00 – contra US$ 12.079,00 do Brasil (dados do FMI relativos a 2012).

Atualmente, Cingapura tem um dos maiores aeroportos do planeta, no qual pousam aeronaves de mais de 100 companhias aéreas que voam para umas 200 cidades ao redor do mundo. Sua empresa nacional, a Singapore Airlines, é uma das mais conceituadas e importantes do mundo.

Enquanto isso, dados de 2010 apontam que, considerados todos os aeroportos nacionais, somos visitados por apenas 42 companhias aéreas estrangeiras, que nos ligam a uns 30 países. Para complicar, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil, mais de 70% do transporte de passageiros do Brasil para o exterior já estão nas mãos destas empresas estrangeiras.

O porto de Cingapura é um dos mais movimentados do mundo: por ele passam 20% dos contêineres e 50% da oferta de petróleo bruto do mundo. Enquanto isso, numa relação de 144 países feita pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 135ª posição no item “qualidade dos portos”. Só para que se tenha uma noção, nos portos brasileiros o embarque de uma tonelada de mercadorias custa em média US$ 12, contra US$ 5 em Cingapura.

Acredite: a pequena Cingapura negociou uma extensa rede de 18 acordos de livre-comércio bilaterais e regionais com 24 países, incluindo EUA, China, Índia, Japão, Coreia do Sul, Chile, Panamá e Peru. Enquanto isso, nos últimos 20 anos, o imenso Brasil celebrou apenas 3 acordos de comércio – com Israel, Palestina e Egito. Para piorar, li que apenas o celebrado com Israel estaria em vigor – dados de fevereiro de 2013.

Eis aí, apresentada sem retoques, uma realidade digna de reflexão. O que falta, afinal, ao Brasil? Nosso povo é um dos mais criativos e afáveis do planeta, e vivemos sobre um solo riquíssimo – assim, onde temos errado? Quais mudanças devemos buscar?

A resposta, aparentemente, é simples e tem sido muito repetida: saúde, educação, obras em infraestrutura etc. Pode ser. Mas prefiro ficar com outra menos conhecida e debatida, segundo a qual o que nos tem faltado é segurança pública e jurídica – e eis aí o grande segredo de Cingapura.

É simples: ninguém investirá em uma terra cujos índices de criminalidade sejam altos e na qual o exercício de qualquer direito seja duvidoso. Falamos de dois aspectos básicos, dos quais depende todo o resto – educação, infraestrutura, saúde etc.

Ora, não adianta investir em educação quando as escolas estão sitiadas pelo crime e os professores intimidados. Não nos serve investir pesadamente em infraestrutura quando os recursos são desviados quase que impunemente. Não funcionarão bem acordos de livre-comércio quando nossas estruturas legais não garantirem o pleno exercício de todos os direitos neles previstos. Esqueçamos qualquer estímulo ao comércio e à indústria quando a insegurança fala mais alto. E daí em diante.


Temos pedido mudanças para o Brasil. Que elas comecem pelo fortalecimento da lei e da Justiça, e o resto virá atrás – como mágica.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Divorciados da história


Adalberto Piotto

 “Não sei se por omissão, preguiça ou esperteza, querem a todo custo manter a versão jocosa de que o Brasil deu errado. Pura conveniência. Assim, não precisam mudar o discurso, arregaçar as mangas e pensar pra valer sobre o novo”

Recentemente, convidado a falar sobre realidade brasileira, por convicção de forma e conteúdo, coloquei o rame-rame político dos jornais para o lado de fora da sala e me dediquei a uma análise aprofundada de nossa sociedade.

Os convites vieram de um grupo de executivos de entidades setoriais e estudantes e outro de um grupo de jovens liberais. Ambos de movimentos sociais legítimos que pretendem aumentar o debate sobre este país. É salutar que haja essa exposição de ideias e que as pessoas se exponham.

Aliás, é muito bom que a discussão sobre nós se alastre por todos os cantos sociais. Não há ideia se não for exposta, discutida, assim como não há debatedor oculto. Mas é necessário que seja real, com honestidade intelectual, pra brasileiro ver, entendendo que somos vários e diversos.

Por isso, a essência de minha tese, que abordei com os dois grupos e a descrevo aqui, é que temos um grande problema que se sobrepõe a todos os outros quando pretendemos falar de presente e de futuro no Brasil.

Somos divorciados de nosso passado. Vejo isso desde os meus primeiros anos escolares e continuo a presenciar esse desapreço no pouco ou nenhum interesse da maioria por datas cívicas, históricas, bustos e monumentos espalhados pelas cidades.

Sofro a cada vez que falo dos soldados brasileiros que lutaram na Segunda Guerra. É tanta desinformação e desejo de diminuir o esforço e a coragem deles que tenho que aumentar o tom ao perguntar ao público: “Você já foi à guerra? Sabe a dor de uma guerra e os traumas que ela traz?”. Normalmente, ganho o silêncio envergonhado como resposta.

O cético do presente não resiste à verdade da história.

Por isso, insisto: divorciar-se do passado não dá certo. Lógica e semanticamente não teríamos chegado aqui sem ele. Simples e eloquentemente assim.

E como o divórcio brasileiro é litigioso, põe-se a culpa no outro. A média dos brasileiros, independentemente da classe social, portanto a maioria equilibrada de nós, põe a culpa no passado para justificar as omissões presentes dos contemporâneos, de falhas nossas, ausências, omissões, incompetências. Uma mania de nenhuma nobreza que consegue levar nada a lugar nenhum, apenas reafirmar o marasmo que justifica a inação dos pouco corajosos de agora.

E o fato de termos problemas com nosso passado não nos permite que criemos heróis, que os exaltemos na posteridade, que seus exemplos nos inspirem. Nossa admiração é efêmera. Raramente passa por gerações.

Desconfiamos de nossa história e duvidamos das intenções de seus protagonistas. O “Descobrimento” foi por acaso ou uma armação, a “Independência”, um acordão caro, a “República” veio atrasada e por isso teria menor valor. E é nessa toada que vamos diminuindo a importância e o trabalho de quem nos antecedeu e nos trouxe até aqui.

Não demorará até que alguém questione o mérito até dos medalhistas brasileiros nos Jogos do Rio, sobretudo os do futebol e os de modalidades da “elite”. Dirão que a Alemanha não era tudo isso, que os jogadores brasileiros são milionários – e pelo sucesso deles se distanciam do biótipo social do que essa gente medíocre chama de “o real povo brasileiro”-, ou ainda que certas modalidades não têm inserção da maioria, que são esporte de “rico”, reproduzindo esse indigente argumento da luta de classes.

E haverá críticas aos que se tornaram militares, como se atletas brasileiros não fossem ou fossem algo menor. Há ainda entre muitos pensadores e jornalistas deste país, que enfrentaram a letal ditadura dos anos 60, 70, e que tiveram comportamento heroico ao lutar pela liberdade, um preconceito com as Forças Armadas do presente. Renegam sua importância social, a modernização de sua conduta, seu comprometimento e sua inalienável importância, inclusive social, ao país. O divórcio não deveria significar desejo que o outro seja infeliz ou não possa melhorar.

Precisamos de ambos.

A se manter esse modo de pensar, não haverá no futuro uma palavra sobre uma gota de suor dos que protagonizaram vitórias para e pelo Brasil. Reconhecer méritos e heróis tirar-lhes-ia o comodismo pseudointelectual de que nascemos para dar errado. Dar certo faria essa gente ter de pensar, trabalhar. Deve provocar calafrios neles.

Volto aos fatos históricos para deixar claro que não questiono o bravo trabalho de historiadores que buscam algo além das versões oficiais. Por isso mesmo, questiono, por razões semânticas e de mérito, de realidade, a versão quase hegemônica de alguns historiadores que não reconhecem o mérito do avanço que esses acontecimentos nos trouxeram, por não se colocarem na pele do outro no tempo em que protagonizaram as mudanças e relativizarem as condições da época dos fatos. Com isso, deixam de reconhecer o talento, o trabalho, o esforço, com erros e acertos, de todos os povos que fizeram este país. Comprometem o orgulho que deveríamos sentir ao macular cada capítulo de nossa história diminuindo seus feitos.

Não se pode ignorar que fomos vitoriosos. A se levar em conta as barreiras que outros superaram pra que chegássemos até aqui, convenhamos, fomos vitoriosos. E as vitórias, mesmo as de guerra, deixam sequelas e muito por reconstruir, mas nos dão a soberania da decisão de como fazer.

Houve lutadores, muitos hercúleos, muitos heróis anônimos que não poderemos reverenciar. Outros conhecidos que teimamos em não reconhecer porque a média da gente deste país tem um bloqueio beligerante contra o sucesso do outro, o sucesso de seu país, o ato de reconhecer que houve avanços, que se deu certo também nesta Terra de Santa Cruz.

Não sei se por omissão, preguiça ou esperteza, querem a todo custo manter a versão jocosa de que o Brasil deu errado. Pura conveniência. Assim, não precisam mudar o discurso, arregaçar as mangas e pensar pra valer sobre o novo. Perder o discurso deve doer. Mas não vou lhes ofertar morfina. A história real não oferece tal benefício.

E há problemas ainda por resolver neste país? Certo que há. E muitos. A turbulência do contemporâneo sempre parece maior, daí essa sensação de desalento, de males intransponíveis que, tenha certeza, os do passado também sentiram e não sucumbiram.

A dor do passado só parece menor porque passou e não foi em você.

Esses problemas que temos são os do presente, os nossos desafios, os de agora.

Muitos, sim, doloridos, que só ficarão maiores e mais latejantes se não os enfrentarmos, sob o risco de gerações futuras colocarem a culpa no passado.

E, na lógica semântica, o passado do futuro é você.


Presente?

sábado, 20 de agosto de 2016

Religião em declínio, secularismo em ascensão




Em uma onda contínua de estudos recentes, olhando para vários países ao redor do mundo, todos mostram a mesma coisa: a religião está em declínio. Da Escandinávia à América do Sul e de Vancouver para Seul, o mundo está enfrentando uma onda sem precedentes de secularização. De fato, como confirma um relatório recente do National Geographic, a mais nova religião do mundo é: Sem Religião.

Considere os fatos mais recentes:

Pela primeira vez na história norueguesa, há mais ateus e agnósticos do que os crentes em Deus;

Pela primeira vez na história britânica, existem hoje mais ateus e agnósticos do que os crentes em Deus. E as taxas de frequência à igreja no Reino Unido estão em baixa, menos de 2% de homens e mulheres frequentam a igreja em um domingo qualquer;

Uma pesquisa recente descobriu que 0% dos islandeses acreditam que Deus criou a Terra. Isso está correto: 0%. E considerando que há 20 anos, 90% dos islandeses alegou ser religioso, hoje menos de 50% afirmam ser;

Cerca de 70% dos holandeses não são afiliados a nenhuma religião e, aproximadamente 700 igrejas protestantes e mais de 1000 igrejas católicas podem ser fechadas dentro dos próximos anos em todo o país, devido à baixa participação;

De acordo com um recente eurobarómetro, 19% dos espanhóis, 24% dos dinamarqueses, 26% dos eslovenos, 27% dos alemães e belgas, 34% dos suecos e 40% dos franceses, afirmam não acreditar em “qualquer tipo de espírito, Deus ou força vital”;

Nos Estados Unidos, algo entre 23% e 28% dos adultos americanos não têm nenhuma afiliação religiosa e os chamados “sem religião” não estão apenas crescendo em número, mas eles estão se tornando cada vez mais seculares em suas crenças e comportamentos;

Entre a geração y – americanos na faixa dos 20 anos – mais de 35% são não-religiosos, constituindo o maior coorte de homens e mulheres seculares na história da nação;

No Canadá, em 1991, 12% dos adultos afirmaram não ter “nenhuma religião” – hoje isso chega a 24%;

Na Austrália, 15% da população afirmou não ter religião em 2001, hoje o número chega a 22%;

Na Nova Zelândia, 30% da população declarou não ter nenhuma religião em 2001, mas esse número subiu para 42% em 2013;

Na América do Sul, 7% de homens e mulheres no México, 8% no Brasil, 11% na Argentina, 12% em El Salvador, 16% no Chile, 18% na República Dominicana e 37% no Uruguai são não-religiosos – são as mais altas taxas de secularidade latino-americana já registrada;
No Japão, cerca de 70% dos adultos afirmaram manter crenças religiosas pessoais há sessenta anos, mas hoje, esse número caiu para apenas cerca de 20%; Em 1970, havia 96.000 templos budistas em todo o Japão, mas em 2007, havia 75.866 – e cerca de 20.000 deles eram de um grupo de pessoas encarregadas de organizá-lo, sem sacerdotes residentes. Na década de 1950, mais de 75% dos tinham um kamidana (altar xintoísta), mas em 2006 este número diminuiu para 44% em todo o país e apenas 26% nas grandes cidades;

Enquanto 11% dos sul-coreanos eram ateus em 2005, que aumentou para, pelo menos, 15% anos mais tarde e a porcentagem de sul-coreanos que se descrevem como religiosos caiu de 58% para 52% na última década;

Mais de 50% dos adultos chineses são seculares (embora em ditaduras comunistas seja difícil estimar uma porcentagem válida de religiosidade das pessoas);

Na África, a religiosidade continua alta, não há uma indicação crescente da irreligião: mais de 5% em Gana afirmam não ter nenhuma religião, 9% das pessoas em Madagascar e Tanzânia e 11% das pessoas no Gabão e Suazilândia são não-religiosos;

Aproximadamente, 20% dos bechuanos afirmam agora não ter qualquer religião;

Mais de 20% dos jamaicanos são não-religiosos.

Muitas outras nações contêm populações significativas de pessoas não-religiosas, como a Eslovênia, Israel, Finlândia, Hungria, Rússia, Azerbaijão, Cazaquistão, etc. -, mas aqui não é possível um colapso de nação por nação. Basta dizer que a maioria dos países têm experimentado notáveis graus de secularização durante o século passado, e pela primeira vez na história do mundo, agora existem muitas sociedades onde ser secular é mais comum do que ser religioso.

Embora apoiar abertamente o ateísmo seja, por vezes, punível em alguns países de maioria muçulmana – de fato, em 13 nações islâmicas, o ateísmo é um crime que justifica a pena de morte – ainda existem inúmeros sinais do crescimento do secularismo em todo o mundo muçulmano, embora os números confiáveis sejam difíceis de encontrar.

Finalmente, o grande número de homens e mulheres seculares no planeta Terra é sem precedentes – de acordo com as estimativas mais recentes do Pew Research Center, havia mais de 1.1 bilhões de não-religiosos no mundo em 2010, e esse número deverá aumentar para mais de 1.2 bilhões até o ano de 2020.

Será que essa onda de secularização continuará a aumentar sobre o planeta Terra? É difícil dizer com certeza.

Por um lado, sabemos que a socialização é o motor número um que impulsiona a religiosidade: os filhos são criados para se tornarem religiosos por seus pais religiosos. E assim, à medida que mais e mais pessoas deixarem de ser religiosos, é bem provável que eles não vão criar os seus filhos para serem religiosos e, portanto, a disseminação inter-geracional da religião irá enfraquecer nas próximas décadas. Além disso, a secularização está altamente correlacionada com o uso e acesso à Internet. E assim, como a web se torna mais onipresente na vida de mais pessoas, o secularismo continuará a crescer.

Por outro lado, as pessoas religiosas têm mais filhos do que as pessoas seculares. E essas nações hoje com as mais altas taxas de natalidade são as mais religiosas, enquanto que as nações com as mais baixas taxas de natalidade tendem a estar entre as mais seculares – então, demograficamente, em termos de que tem mais filhos, os religiosos têm a vantagem da reprodução. E é por isso que, de acordo com as previsões mais recentes do Pew, o crescimento da secularidade provavelmente irá nivelar dentro de algumas décadas, enquanto que o Islã irá continuar crescendo, tornando-se a maior religião do mundo em 2050.

Mas, por agora, as igrejas estão fechando em todo o mundo, a fé está desaparecendo e homens e mulheres que vivem suas vidas de acordo com os princípios humanistas e valores seculares estão em ascensão.



 Por: Phil Zuckerman

Publicado no Huffpost Religion

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A (im) possibilidade da implementação do sistema parlamentarista através de Proposta de Emenda à Constituição

 por: Ewerton Vinícius de Oliveira e Souza



O artigo trata, através de critérios objetivos, acerca da possibilidade da alteração do sistema de governo atual, presidencialista, para o sistema parlamentarista através de proposta de emenda à constituição.

O Brasil adota o sistema de governo presidencialista desde a constituição de 1988 e, através de plebiscito realizado em 21 de abril de 1993, fora ratificado o sistema de governo adotado, conforme previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Desta feita, cabe sustentar a pertinência atual do estudo pela existência da celeuma, em campo político, social e jurídico, acerca de uma mudança do sistema de governo presidencialista para o sistema de governo parlamentarista, uma vez que especialistas e sociedade divergem sobre a efetividade de ambos os sistemas, presidencialista e parlamentarista, nas circunstâncias sociais, econômicas e políticas do país.

O artigo 60 da Constituição Federal prevê a possibilidade de alteração da carta magna, bem como as restrições materiais explícitas quanto a alteração da referida carta, a exemplo da restrição a alteração das cláusulas pétreas dos direitos e garantias individuais elencados na CRFB/88, dentre outras.

Por sua vez, juristas doutrinadores entendem que o limite material existe também para cláusulas pétreas implícitas na Constituição Federal de 1988, sendo também vedada a tendência a aboli-las.

Na análise proposta pelo seguinte artigo, coube elencar as formas de governo conhecidas, especialmente a do presidencialismo e parlamentarismo, bem como a análise do mecanismo da proposta de emenda à constituição e seus limites formais e materiais, tudo dentro da discussão acerca da possibilidade da alteração do sistema de governo presidencialista para parlamentarista no Brasil.

O SISTEMA DE GOVERNO

Teresa May & Elizabeth II

Em análise ao direito constitucional de forma ampla, considerando as demais cartas magnas conhecidas, são reconhecidos com destaque os sistemas democráticos adotados pelos Estados democráticos. O parlamentarismo e presidencialismo são os dois notáveis sistemas de governo adotados pelos Estados democráticos.

Na definição do jurista constitucional, Cezar Saldanha Souza Junior (2012, p. 685), o sistema de governo é:

é o modo como as instituições do poder público estão arranjadas para viabilizar suas funções específicas no esforço conjunto de atender às exigências do bem comum.

Como referido, os sistemas democráticos de governo mais aplicados e destacáveis são o parlamentarismo e presidencialismo. O sistema parlamentarista de governo se deu através da construção histórica do Reino Unido, enquanto o sistema presidencialista fora apresentado na constituição dos Estados Unidos.

No Brasil, o sistema de governo, até a atual vigente Constituição 1988, é o presidencialismo republicano, entretanto, cumpre salientar que a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 ainda discutia a possibilidade de alterar o sistema de governo.

O sistema presidencialista de governo, tal qual conhecemos e é adotado por nosso ordenamento jurídico, emanou da assembleia constituinte de 1987, a qual definiu a forma republicana e presidencialista, bem como determinou, através do art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que fosse realizado um plebiscito em 7 de setembro de 1993 a fim definir a forma e sistema de governo a vigorar pela CRFB/88, in verbis:

Art. 2º. No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País. (Vide emenda Constitucional nº 2, de 1992)

O plebiscito acabara tendo sua data adiantada e, para tanto, fora realizado em abril de 1993, o qual definiu, através da vontade popular, que a forma de governo a ser adotada pelo Brasil deveria ser a República e que o sistema de governo a ser seguido deveria ser o Presidencialismo.

PRESIDENCIALISMO


O sistema presidencialista que conhecemos está intrinsecamente ligado ao princípio da separação dos três poderes legislativo, judiciário e executivo, idealizado e descrito especialmente por Montesquieu. O ilustre jurista Paulo Bonavides (2001, p. 393) tece comentários acerca da relação do princípio da separação de poderes e o presidencialismo:

Historicamente, é o sistema que perfilhou de forma clássica o princípio da separação de poderes, que tanta fama e glória granjeou para o nome de Montesquieu na idade áurea do Estado liberal. O princípio valia como esteio máximo das garantias constitucionais da liberdade. A Constituição americana o recolheu, tomando-o, por base de todo o edifício político. Da separação rígida passou-se com o tempo para a separação menos rigorosa, branda, atenuada, à medida que o velho dogma evolveu, conservando-se sempre e invariavelmente entre os traços dominantes de todo o sistema presidencial.

No sistema de governo presidencialista adotado pela CRFB/88, o representante do cargo executivo é o Presidente da República, uma vez que vivemos em um sistema republicano. Todo o poder do executivo da união esta em poder do Presidente, assim entende o admirável jurista Alexandre de Moraes (2003, p 420):

Chefia do Poder Executivo foi confiada pela Constituição Federal ao Presidente da República, a quem compete seu exercício, auxiliado pelos Ministros de Estado, compreendendo, ainda, o braço civil da administração (burocracia) e o militar (Forças Armadas), consagrado mais uma vez o presidencialismo, concentrando na figura de uma única pessoa a chefia dos negócios do Estado e do Governo.

Insta salientar que o Presidente da República, em nosso ordenamento constitucional, acumula a função de chefe de estado e de governo, sendo ele responsável pelas relações internacionais do estado brasileiro, bem como a gerência interna do estado. Sobre esta diferenciação, o ilustre jurista Alexandre de Moraes (2003, p. 420) esclarece:

Nosso texto constitucional, expressamente adotou o presidencialismo, proclamando a junção das funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo, a serem realizadas pelo Presidente da República, prevendo-as no art. 84 da Constituição Federal. Assim, como chefe de Estado, o presidente representa, pois nas suas relações internacionais (art. 84, VII e VIII, XIX), bem como corporifica a unidade interna do Estado. Como chefe de Governo, a função presidencial corresponde à representação interna, na gerência dos negócios internos, tanto os de natureza política (participação no processo legislativo), como nos de natureza eminentemente administrativa (art. 84, I, II, III, IV, V, VI, IX a XXVII). Assim, o Chefe de Governo exercerá a liderança da política nacional, pela orientação das decisões gerais e pela direção da máquina administrativa.

Nos termos da CRFB/88, a investidura no cargo da Presidência da República se dá através do voto direto e periódico, sendo o vencedor o que tiver maior contagem de votos, obedecidos os trâmites eleitorais previstos na constituição e também em legislação especial.

 PARLAMENTARISMO


O sistema parlamentarista, pensado pelo cientista político e jurista Paulo Bonavides:

a presença em exercício do governo, enquanto a maioria do Parlamento não dispuser o contrário retirando-lhe o apoio; a repartição entre o governo e o parlamento da função de estabelecer as decisões políticas fundamentais; e finalmente, a posse recíproca de meios de controle por parte do governo e do Parlamento, de modo que o primeiro, sendo responsável perante o segundo, possa ser destituído de suas funções mediante um voto de desconfiança da maioria parlamentar. (BONAVIDES, 1995, p 277)

Seguindo na caracterização e definição do sistema parlamentarista, o mesmo ilustre cientista político e jurista, Paulo Bonavides, em obra diversa complementa:

Definem-se de maneira clara os princípios essenciais e distintivos da forma parlamentar de governo: 

a) a igualdade entre o executivo e o legislativo; 

b) a colaboração dos dois poderes entre si; 

c) a existência de meios de ação recíproca no funcionamento do executivo e do legislativo. (BONAVIDES, 1995, p.277)

No parlamentarismo mais conhecido reside na independência dos poderes, entretanto este mitigado pela dependência do executivo ao legislativo, tendo em vista que o funcionamento de ambos está condicionado à vontade dos dois poderes. Todos os projetos do executivo e decisões governamentais deverão ser avaliados e aprovados pelo parlamento.

Podemos ainda reconhecer espécies do sistema parlamentarista, onde este pode ser uma República Parlamentarista, ou uma Monarquia Parlamentarista, a exemplo do Reino Unido.

A república parlamentarista tem definido um presidente da república, eleito direta ou indiretamente, responsável pela representação internacional da nação e o chefe de estado, e um primeiro-ministro, responsável pela gerência e administração do governo, o chefe de governo, eleito indiretamente pelo parlamento.

Já em análise à monarquia parlamentarista, cumpre salientar que também está presente a figura do chefe de estado e chefe de governo. Na monarquia parlamentarista, o chefe de estado é representado pelo Rei/Rainha, sendo este o representante da nação, enquanto o chefe de governo, responsável pela gerência e administração do governo, é o primeiro-ministro.

No Brasil já passamos por dois momentos históricos em que fora vigente o sistema parlamentarista. Durante o segundo reinado de Dom Pedro II, conhecido como “Parlamentarismo às Avessas”, bem como de setembro de 1961 a janeiro de 1963, após a renúncia de Jânio Quadros.


 O PODER REFORMADOR E A REVISÃO CONSTITUCIONAL



Acerca da possibilidade de reforma da Constituição Federal de 1988, o legislador constituinte fez questão de dar a possibilidade, após cinco anos de promulgada a CRFB/88, de ocorrer uma revisão constitucional, conforme o art. 3º do ADCT, “Art. 3º. A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.” (BRASIL, 1988)

A fim de diferenciar a revisão constitucional da emenda à constituição, o ilustre jurista, Ingo Wolfgang Sarlet, faz a distinção, in verbis:

b) o procedimento previsto para ambas as modalidades de reforma da Constituição é distinto, ressaltando-se a existência de um procedimento mais rígido (art. 60) para as emendas, ao passo que a revisão — ao menos de acordo com a expressa previsão do art. 3.º do ADCT — estaria sujeita a um procedimento bem menos rigoroso e simplificado; (SARLET, 2012, p. 110)

Neste diapasão, podemos aferir que o constituinte impôs uma limitação temporal para a revisão da constituição, sendo esta oportunidade única e ocasionada após o plebiscito que definiria a forma e/ou sistema de governo em abril de 1993.

A finalidade da revisão prevista no artigo 3º do ADCT seria de serviço apenas para adaptar a Constituição ao resultado do referido plebiscito, tendo em vista que o resultado implicaria numa serie de modificações, especialmente no que concerne à organização do Estado e dos Poderes. (SARLET; MARIONI; MITIDIERO, 2012)

Seguinte o disposto no artigo 3º do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, o congresso nacional, entre 01 de março e 07 de junho de 1994 discutiu, aprovou e promulgou o total de seis emendas constitucionais, obedecida a limitação temporal imposta pelo constituinte.

Além da limitação temporal imposta pelo constituinte, o Supremo Tribunal Federal acabou entendendo que a referida revisão deveria respeitar os dispostos no artigo 60, § 4º, in verbis:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO N. 1 - RCF, DO CONGRESSO NACIONAL, DE 18.11.1993, QUE DISPÕE SOBRE O FUNCIONAMENTO DOS TRABALHOS DE REVISÃO CONSTITUCIONAL E ESTABELECE NORMAS COMPLEMENTARES ESPECIFICAS. AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE AJUIZADA PELO GOVERNADOR DO ESTADO DO PARANA. 

ALEGAÇÕES DE OFENSA AO PARÁGRAFO 4. DO ART. 60 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, EIS QUE O CONGRESSO NACIONAL, PELO ATO IMPUGNADO, "MANIFESTA O SOLENE DESIGNIO DE MODIFICAR O TEXTO CONSTITUCIONAL", MEDIANTE "'QUORUM' DE MERA MAIORIA ABSOLUTA", "EM TURNO ÚNICO" E "VOTAÇÃO UNICAMERAL". 

SUSTENTA-SE, NA INICIAL, ALÉM DISSO, QUE A REVISÃO DO ART. 3. DO ADCT DA CARTA POLÍTICA DE 1988 NÃO MAIS TEM CABIMENTO, POR QUE ESTARIA INTIMAMENTE VINCULADA AOS RESULTADOS DO PLEBISCITO PREVISTO NO ART. 2. DO MESMO INSTRUMENTO CONSTITUCIONAL TRANSITORIO. "EMENDA" E "REVISÃO", NA HISTORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA. EMENDA OU REVISÃO, COMO PROCESSOS DE MUDANCA NA CONSTITUIÇÃO, SÃO MANIFESTAÇÕES DO PODER CONSTITUINTE INSTITUIDO E, POR SUA NATUREZA, LIMITADO. ESTA A "REVISÃO" PREVISTA NO ART. 3. DO ADCT DE 1988 SUJEITA AOS LIMITES ESTABELECIDOS NO PARÁGRAFO 4. E SEUS INCISOS, DO ART. 60, DA CONSTITUIÇÃO. 

O RESULTADO DO PLEBISCITO DE 21 DE ABRIL DE 1933 NÃO TORNOU SEM OBJETO A REVISÃO A QUE SE REFERE O ART. 3. DO ADCT. APÓS 5 DE OUTUBRO DE 1993, CABIA AO CONGRESSO NACIONAL DELIBERAR NO SENTIDO DA OPORTUNIDADE OU NECESSIDADE DE PROCEDER A ALUDIDA REVISÃO CONSTITUCIONAL, A SER FEITA "UMA SÓ VEZ". 

AS MUDANCAS NA CONSTITUIÇÃO, DECORRENTES DA "REVISÃO" DO ART. 3. DO ADCT, ESTAO SUJEITAS AO CONTROLE JUDICIAL, DIANTE DAS "CLAUSULAS PETREAS" CONSIGNADAS NO ART. 60, PAR.4. E SEUS INCISOS, DA LEI MAGNA DE 1988. NÃO SE FAZEM, ASSIM, CONFIGURADOS OS PRESSUPOSTOS PARA A CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR, SUSPENDENDO A EFICACIA DA RESOLUÇÃO N. 01, DE 1993 - RCF, DO CONGRESSO NACIONAL, ATÉ O JULGAMENTO FINAL DA AÇÃO. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.(grifo do autor) (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 1993)

Desta feita, esgotado a revisão constitucional prevista pelo constituinte no ADCT, as alterações no texto constitucional apenas podem e devem ser feitas através de emendas constitucionais, estas disciplinadas pelo artigo 60 da Constituição Federal.


A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL


A emenda à constituição é derivada do poder constituinte reformador, instrumento que pode acrescentar, modificar ou suprimir normas do texto constitucional, mas tendo em vista que esse poder reformador é limitado e condicionado de forma expressa/implícita e através dos limites temporais.

O ilustre constitucionalista, Pedro Lenza (2012, p. 578), leciona:

o contrário do constituinte originário, que é juridicamente ilimitado, o poder constituinte derivado é condicionado, submetendo-se a algumas limitações, expressamente previstas, ou decorrentes do sistema. Trata-se das limitações expressas ou explícitas (formais ou procedimentais, circunstanciais e materiais) e das implícitas.

Após todos os trâmites, obedecidos os limites formais, materiais e circunstanciais, o texto da emenda aprovada será incorporado ao texto constitucional, passando a exercer assim força normativa constitucional, entretanto, caso desobedecidos os referidos limites, a proposta poderá ser objeto de controle de constitucionalidade e a emenda objetivada poderá ser declara inconstitucional.

 OS LIMITES FORMAIS DA PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO

Os limites formais da proposta de emenda à constituição correspondem a forma como a matéria será iniciada, discutida e aprovada pelo legislador. Estes limites estão expressamente dispostos no artigo 60, I, II, III e §§ 2º, 3º. E 5º da CRFB/88, in verbis:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. (...)

§ 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. (...)

§ 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. (BRASIL, 1988)

A doutrina e jurisprudência são sedimentadas no entendimento de que a proposta de emenda que for iniciada por autoridade ou pessoa diversa daquelas expressas no artigo 60, I, II e II da CRFB/88, incorre em vício formal subjetivo, eivada então de inconstitucionalidade. Quando diante de vício no trâmite da proposta, artigo 60, §§ 2º, 3º e 5º, considera-se o vício formal objetivo.

 OS LIMITES MATERIAIS DA PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO.

Os limites materiais da reforma da constituição têm como objetivo a preservação de determinados conteúdos da CRFB/88, uma vez que dão relevância à própria identidade da ordem constitucional e preservam as decisões fundamentais do constituinte, a fim de evitar que uma reforma ilimitada e fora do poder constituinte possa ocasionar a destruição da ordem constitucional. (SARLET;MARIONI;MITIDIERO, 2012)

Ainda acerca da limitação material da emenda a constituição, o jurista Alexandre de Moraes esclarece:

Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Tais matérias formam o núcleo intangível da Constituição Federal, denominado tradicionalmente por "cláusulas pétreas".(MORAES, 2003, p. 544)

Logo, a proposta de emenda à constituição apenas pode acrescentar, modificar ou suprimir normas do texto constitucional, caso seja respeitado o limite material, não podendo a emenda versar acerca das cláusulas pétreas, nem mesmo ser tendente a aboli-las.

Os limites materiais das emendas constitucionais são divididos entre os explícitos e os implícitos, estes serão objeto de atenção e discussão nos tópicos seguintes.


 LIMITES MATERIAIS EXPLÍCITOS DA PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO.

As limitações materiais explícitas, também conhecidas como cláusulas pétreas explícitas, ou núcleos constitucionais intangíveis, são normas constitucionais que não podem ser modificadas por emendas constitucionais que tendam a aboli-las, assim o legislador constituinte fez questão de dispor explicitamente acerca dos limites aos quais as propostas de emenda constitucionais deveriam submeter-se.

Os limites materiais do poder reformador, através de emenda à constituição, são conhecidos pela doutrina e jurisprudência de cláusulas pétreas e estas estão definidas e expressas no artigo 60, § 4º da CRFB/88, in verbis:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988)

As cláusulas pétreas explícitas foram dispostas no texto constitucional por decisão de forma expressa no texto constitucional originário, tratam de decisões prévias e vinculantes do constituinte no sentido de definir e vedar a alteração da identidade constitucional.


 LIMITES MATERIAIS IMPLÍCITOS DA PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO


Além das do limite material explícito, a doutrina e jurisprudência majoritária reconhece a existência dos limites materiais implícitos para a reforma da constituição, também entendidas como cláusulas pétreas implícitas.

A doutrina majoritária entende que o rol taxativo disposto no artigo 60, § 4º da Constituição, não constitui uma blindagem necessária para manter a identidade constitucional, o que ensejou na consideração a existência das cláusulas pétreas implícitas.

O próprio legislador constituinte deixou lacunas quanto as vedações dispostas no artigo 60, § 4º da CF, a exemplo do inciso § 4º do referido artigo, quando o constituinte expressou que os direitos e garantias individuais não poderiam ser objeto de propostas de emenda à constituição.

A vedação de proposta que seja tendente a abolir direitos e garantias individuais, por exemplo, deixou aberta a lacuna sobre a propriedade e definição de quais seriam os direitos e garantias individuais das quais o constituinte estaria versando.

Como consequência, a doutrina e jurisprudência entende que os direitos e garantias individuais abarcam também os direitos sociais, bem como boa parte daqueles que estão dispostos no artigo 5º e outros elencados em nossa Constituição Federal.

Neste diapasão, cumpre lembrar a existência e relevância dos limites materiais implícitos. As cláusulas pétreas implícitas que, apesar de não estarem previstas no artigo 60, § 4º da CRFB/88, não podem ser alteradas, muito menos retiradas da carta magna.

Podemos mencionar como outros exemplos de cláusulas pétreas implícitas, reconhecidas pela doutrina, os direitos os artigos 127 e 142 da CRFB/88: “Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente (...)”; “Art. 142. As forças armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições permanentes e regulares (...)”(SILVA, 2012, p. 46)

Neste sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se manifesta por diversas vezes acerca do reconhecimento das cláusulas pétreas implícitas como parâmetro no limite do poder reformador:

[...]1. Com relação a emendas constitucionais, o parâmetro de aferição de sua constitucionalidade é estreitíssimo, adstrito às limitações materiais, explícitas ou implícitas, que a Constituição imponha induvidosamente ao mais eminente dos poderes instituídos, qual seja o órgão de sua própria reforma. [...] (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006)

Neste ínterim, cabe novamente registrar que o limite material implícito tem a função, assim como os limites previstos no artigo 60, § 4º da CRFB/88, de manter a ordem constitucional definida pelo constituinte evitando alterações que possam desconstituir os principais alicerces da carta magna.

SISTEMA DE GOVERNO COMO CLÀSULA PÉTREA IMPLÌCITA


Adentrando ao mérito do presente artigo, cabe nos debruçarmos acerca da discussão recorrente e atual sobre a possibilidade da mudança do sistema de governo vigente no Brasil, o sistema presidencialista, definido pela Constituição Federal de 1988 e depois ratificado pelo plebiscito realizado em abril de 1993, previsto pelo artigo 2º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, in verbis:

Art. 2º. No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.

O legislador constituinte acabou não dispondo taxativamente e expressamente acerca do sistema de governo presidencialista como cláusula pétrea explícita, sendo esta a discussão nuclear do presente artigo, tendo em vista que apenas resta avaliar se o presidencialismo consta como cláusula pétrea implícita, ou se o sistema de governo poderia ser alterado por meio de uma emenda à constituição.

A doutrina amplamente acata a tese acerca da impossibilidade de supressão da forma republicana de governo, bem como do sistema presidencialista, fazendo menção e assim fundamentando que a consulta popular realizada em abril de 1993 passa a corresponder à vontade expressa do poder constituinte originário, não podendo o sistema de governo passar pelo poder reformador. 

Neste sentido, avaliando que o poder constituinte deixou a cargo da vontade popular a escolha do nosso sistema e forma de governo, podemos concluir que, quando fora encerrado o plebiscito de abril de 1993, a vontade do poder constituinte fora resolvida, fazendo do país uma república presidencialista, sendo essa decisão equivalente ao texto constitucional originário.

Além da fundamentação e conclusão retro, é de fundamental importância versar que o sistema de governo presidencialista conta com eleições periódicas e diretas, ou seja, o povo vota e elege diretamente seu representante como presidente da república.

Alterar o sistema presidencialista para o sistema parlamentarista implicaria na supressão da cláusula pétrea do voto periódico e direto previsto no § 4º, II do artigo 60 da CRFB/88, uma vez que no sistema parlamentarista, a figura do chefe do governo seria substituída pela figura do primeiro ministro, este escolhido pelos parlamentares em moldes totalmente diversos dos atuais, ensejando a extinção do voto direto e periódico para presidente da república.

Neste diapasão, eliminar a participação popular direta e periódica na escolha do chefe de governo enseja numa agressão à cláusula pétrea definida no artigo 60, § 4º, II da CRFB/88, restando evidente que nosso sistema de governo é um limite material implícito ao poder reformador, uma cláusula pétrea implícita.

 CONCLUSÃO

O texto constitucional originário é base fundamental para a nosso estado democrático de direito. Mantê-lo blindado em seus principais alicerces é essencial para garantir estabilidade e segurança jurídica de toda a sociedade e suas instituições.

O legislador constituinte embora tenha previsto a possibilidade de modificar o texto constitucional, estava ciente da necessidade de preservar o alicerce de nossa Constituição Federal e, para tanto, elencou taxativamente as cláusulas pétreas do artigo 60, § 4º da CRFB/88, sendo elas fundamentais para limitar o poder reformador das emendas constitucionais.

Emendas constitucionais que versem acerca de mudanças em cláusulas pétreas podem repercutir de maneira conturbada no texto constitucional. A possibilidade de modificar o sistema de governo presidencialista para parlamentarista ofenderia o direito ao voto periódico e direto da população e a separação dos poderes, bem como ensejaria em uma reformulação de textos constitucionais originários, tendo em vista que a carta magna teria que abarcar as exigências normativas do sistema parlamentarista.


Ainda que não esteja elencado de forma explícita no § 4º do artigo 60 de nossa Constituição Federal, o nosso sistema de governo presidencialista é uma cláusula pétrea implícita, uma limitação material ao poder reformador da proposta de emenda à constituição, portanto, resta vedada a emenda constitucional tendente a modificar o atual sistema de governo presidencialista para parlamentarista.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

O segredo da Suécia para combater a corrupção

Família Real da Suécia 


O que faz da Suécia um dos países menos corruptos do mundo? Entenda como desde a década de 70 só houve dois casos de corrupção política naquele país a nível nacional

Texto da jornalista Claudia Wallin, retirado do livro ‘UmPaís sem Excelências e Mordomias’. No trecho abaixo, a jornalista entrevista Gunnar Stetler, responsável pela corrupção no país.

Gunnar Stetler franze a testa, pisca duas vezes e contrai os músculos do rosto, como quem faz um cálculo extraordinário. Percorre os labirintos da memória durante uma longa pausa, e encontra enfim a resposta: nos últimos 30 anos, ele diz, foram registrados apenas dois casos de corrupção entre parlamentares e integrantes do governo na Suécia.

”Tenho apenas uma vaga lembrança”, diz Stetler. ”É muito raro ver deputados ou membros do Governo envolvidos em corrupção por aqui.”

Estamos no escritório abarrotado de arquivos e papéis do promotor-chefe da Agência Nacional Anti-Corrupção (Riksenheten mot Korruption), no bairro de Kungsholmen. A poucos passos dali, na mesma rua Hantverkargartan, fica a sede da temida Ekobrottsmyndigheten, a Autoridade Sueca para Crimes Financeiros. Com o sol de abril que enfim derreteu o gelo de mais um inverno, do outro lado da rua mães passeiam com seus carrinhos de bebê entre os túmulos do jardim da igreja Kungsholmskyrka, um hábito comum que se estende a vários cemitérios-parque da cidade.


Da sua pequena sala, Gunnar Stetler chefia o trabalho de promotores especializados que investigam os principais casos de suspeita de corrupção no país. Casos menos graves são processados a nível regional, nas diversas promotorias distritais que compõem o cerco sueco contra trapaças, tramóias e falcatruas em geral.

Com 1,93m de altura, expressão grave e ar insubornável, Gunnar Stetler é descrito na mídia sueca como o maior caçador de corruptos do país. Entre os casos sob a sua mira em 2013 estava a denúncia de que a operadora de telefonia sueca TeliaSonera teria pago suborno no valor de 337 milhões de dólares para estabelecer operações no Uzbequistão.

”Historicamente, 75 por cento das acusações formais contra crimes de suborno na Suécia terminam em condenações”, diz Stetler.

Nascido em 1949, Stetler ganhou fama após conduzir casos como o de um ex-diretor da empresa sueca ABB, condenado a três anos de prisão em 2005 por ter desviado 1,8 milhão de coroas suecas para uma empresa registrada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas.

”Chega um momento em que uma pessoa não se contenta mais com um Volvo V70, e quer trocá-lo por um Porsche. A ganância é parte do dilema humano”, reflete Stetler.


Para o promotor-chefe, são três os fatores que mantêm a Suécia à margem das listas de países gravemente corruptos: a transparência dos atos do poder, o alto grau de instrução da população e a igualdade social.


O que faz da Suécia um dos países menos corruptos do mundo?

GUNNAR STETLER: Em primeiro lugar, a lei de acesso público aos documentos oficiais. Esta lei, criada na Suécia há mais de duzentos anos, evita os abusos do poder. Se os cidadãos ou a mídia quiserem, podem verificar meu salário, meus gastos e as despesas de minhas viagens a trabalho. 

Meus arquivos são abertos ao público. E acreditamos que, ao colocar os documentos e registros oficiais das autoridades ao alcance do público, evitamos que os indivíduos que exercem posições de poder pratiquem atos impróprios. 

Esta é a razão principal. Em segundo lugar, é preciso citar a lei aprovada na Suécia há cerca de 200 anos [em 1842, nota do autor], que introduziu o ensino compulsório no país e aumentou o nível geral de educação da população.


Qual é o impacto de uma população com maior grau de instrução na prevenção da corrupção?

GUNNAR STETLER: Se uma pessoa não tem acesso à educação, ela não tem condições nem de compreender e muito menos de fiscalizar o sistema. 

Na Suécia, acreditamos que uma sociedade se constrói não a partir do topo, mas a partir da base da população. Portanto, é preciso oferecer uma boa educação a todas as camadas da sociedade. 

A China tem um alto grau de corrupção, mas vem investindo na melhoria do nível de instrução da população. Creio que isto irá, de certa forma, reduzir a corrupção no país.


Com que frequência o seu telefone toca com denúncias de corrupção?

GUNNAR STETLER: Recebo cerca de quatro ligações do público todos os dias. Mas de cada 15 denúncias, em geral apenas uma tem base para caracterizar um caso. A maior parte dos casos se refere a questões de menor dimensão, como quando um funcionário público aceita viajar para um resort a convite de uma empreiteira a fim de facilitar um contrato. Se você é um funcionário público na Suécia, não está absolutamente autorizado a aceitar este tipo de convite. 

Lidamos também com casos de maior envergadura. Acabo de acusar formalmente um dos chefes do Kriminalvården (sistema prisional sueco), que recebeu subornos da ordem de milhões de coroas suecas de uma empresa contratada para construir penitenciárias. Trabalhamos com denúncias do público, da mídia e também de sistemas nacionais de auditoria, como o Riksrevisionen (órgão independente que controla as finanças das autoridades públicas na Suécia).


Qual é o nível de incidência de casos de corrupção política a nível nacional na Suécia, entre parlamentares e membros do Governo?

GUNNAR STETLER: É muito raro ver deputados ou membros do Governo envolvidos em corrupção por aqui.


Qual foi a última vez que isso ocorreu na Suécia?

GUNNAR STETLER: Se me lembro bem (pausa)…talvez tenham sido uns dois casos (pausa)…nos últimos (pausa)…trinta anos.


O senhor quer dizer que desde a década de 70 só houve dois casos de corrupção política a nível nacional?

GUNNAR STETLER: Sim.


Que casos foram esses?

GUNNAR STETLER: Se não me engano (pausa)…há cerca de dez anos (pausa)…um deputado do Parlamento, representante da costa oeste, cometeu um erro (pausa)…tenho apenas uma vaga lembrança.


Se o senhor tem apenas uma vaga lembrança sobre o que seriam os dois únicos casos de corrupção política a nível nacional nos últimos 30 anos, pode-se presumir que não tenham sido grandes escândalos?

GUNNAR STETLER: Sim. Em termos de corrupção política, casos mais sérios ocorrem principalmente nas municipalidades.


Mas a última vez que um político sueco foi condenado à prisão por corrupção foi aparentemente em 1995. 

Isso significa que o grau de corrupção política na Suécia não é em geral grave o suficiente para exigir pena de prisão, ou é um sinal de que o sistema é leniente com políticos corruptos?

GUNNAR STETLER: Na Suécia, em geral, toda punição é leniente.


Como assim?

GUNNAR STETLER: No sistema penal sueco, o princípio básico não é a punição, e sim a reintegração do indivíduo à sociedade. Esta é a nossa tradição. O código penal não prevê punição especialmente dura para casos de corrupção política.


Punições mais severas não são então a resposta para combater a corrupção política?

GUNNAR STETLER: Quem pune políticos corruptos é a opinião pública. Se um deputado ou um funcionário da administração estatal pratica um ato de corrupção, ele será punido severamente pela sociedade, principalmente por ter cometido um erro a partir de uma posição de poder. 

Um deputado, por exemplo, pode ser forçado a renunciar através da pressão da opinião pública e da mídia, mesmo quando não é indiciado formalmente.


Há alguma regra especial para investigar e processar políticos por crimes de corrupção, como a necessidade de obter aprovação do Parlamento ou de algum comitê?

GUNNAR STETLER: Não.


Cabe principalmente à mídia e aos cidadãos fiscalizar o poder, ou a instituições como a que o senhor dirige?

GUNNAR STETLER: Cabe, em primeiro lugar, à imprensa livre. Se a mídia tem acesso aos documentos oficiais, ela poderá agir, juntamente com os cidadãos, para garantir uma sociedade mais limpa. É claro que agentes oficiais, como a Agência Anti-Corrupção, também cumprem um papel importante. Presumo que talvez, no Brasil, os cidadãos não confiem em servidores públicos como eu. Mas na Suécia a maior parte das pessoas confia nas agências do poder público, e uma das razões disso é o fato de que os cidadãos podem supervisionar o que as agências fazem.


Como é o trabalho da Agência Nacional Anti-Corrupção?

GUNNAR STETLER: Nosso foco principal é o suborno. Pode-se dizer que o suborno, tanto na esfera pública como no setor privado, é um câncer para qualquer sistema. Mesmo quando o valor do suborno é muito baixo, ele pode influenciar uma licitação no valor de um bilhão de coroas suecas. 

No setor público, é importante que as compras de bens e serviços sejam realizadas de modo correto. A construção de um novo hospital, por exemplo, pode custar cerca de 1,7 bilhão de coroas suecas (cerca de 260 milhões de dólares). Quando uma agência do setor público lida com um contrato deste porte, é importante que haja uma distância entre a empresa que vai construir o hospital e os funcionários públicos que vão aprovar tal contrato. 

No meu ponto de vista, e penso que a maioria das pessoas na Suécia concorda, é essencial que funcionários públicos não aceitem ofertas ou presentes de nenhum tipo, mesmo os de baixo valor.


Os suecos em geral parecem realmente ter receio da regra que proíbe aceitar qualquer brinde ou presente com valor acima de aproximadamente 400 coroas suecas.

GUNNAR STETLER: Em geral, nenhum funcionário público ou privado na Suécia é autorizado a aceitar brindes ou presentes acima de 300 ou no máximo 400 coroas (entre cerca de 46 e 60 dólares). Na minha posição, não posso aceitar nada.


Nada?

GUNNAR STETLER: Não. Nem mesmo um café com wienerbröd (tipo de pão doce sueco). E não acho que políticos ou funcionários públicos na Suécia aceitam, em geral, o que é considerado como suborno real, ou seja, grandes subornos.


Não acontece?

GUNNAR STETLER: Pode acontecer, mas não é normal. A questão é definir o que é considerado como um suborno. Para alguns, aceitar um convite para jantar ou passar o fim de semana em um resort não configura um suborno. Mas na Suécia, convites deste tipo caracterizam de fato um suborno. Principalmente para aqueles que trabalham no setor público.


Aceitar um convite para jantar pode então ser considerado um crime?

GUNNAR STETLER: Na minha opinião, uma pessoa ou empresa privada não pode convidar um funcionário público para jantar, se há um negócio envolvido entre as duas partes.


Qual é o seu melhor conselho para um país como o Brasil se tornar uma sociedade mais limpa?

GUNNAR STETLER: É preciso compreender que esta é uma tarefa que não pode ser cumprida em 24 horas. Para combater a corrupção, é necessário implementar um sistema de ampla transparência dos poderes estatais, aumentar o nível de educação da população em geral, e promover a igualdade social. A educação é o princípio básico do que chamamos na Suécia de jämlikheten (a igualdade social). E este é também um fator importante na prevenção da corrupção. Parece-me que o Brasil é um país com enormes desigualdades sociais.


Qual a importância da igualdade social neste processo?

GUNNAR STETLER: Se uma pessoa tem que lutar diariamente por sua sobrevivência, para ter acesso a alimentação, escolas e hospitais, a questão do combate à corrupção na sociedade certamente não estará entre seus principais interesses. Mas quando uma pessoa se sente parte da sociedade à qual pertence, passa a não aceitar os abusos do poder.