"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 30 de março de 2013

Teocracia à brasileira


Em um futuro não tão distante, os recém-nascidos saem da maternidade com uma certidão de nascimento e uma conta no Facebook, e Holywood já fez todas as adaptações possíveis de livros para o cinema, incluindo o Manual Básico da Informática (um sucesso de bilheteria). Mas, nesse futuro não tão distante, o Brasil é uma teocracia cristã.

Até que não é nada mal viver nesse país. Se você é um cristão, claro. Afinal, você tem a certeza de que as pessoas no controle estão construindo um país santificado, e é sempre bom morar em um país que será poupado da ira devastadora de Deus no juízo final. Com a vantagem de ter belas praias.

A família é coisa sagrada nessa sociedade brasileira. Desde que seja formada por pai, mãe e filhos. Para impedir que outros arranjos familiares não-abençoados sejam feitos, algumas mudancinhas na Constituição impedem o casamento ou qualquer tipo de união entre pessoas do mesmo sexo. O divórcio também é proibido, pois o que Deus uniu ninguém separa. Nem as próprias pessoas envolvidas no relacionamento.

O Ministério da Família é instituído para cuidar dessas questões. Há campanhas e cartilhas ensinando como criar seus filhos e a família pode sofrer uma intervenção se eles começam a jogar RPG ou ouvir heavy metal que não seja gospel. Pastores atuam como psicólogos que dão suporte à família e resolvem querelas entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e irmãs. Mais ou menos como um programa Casos de Família, só que em um órgão público. E com leitura de trechos da Bíblia em vez de perguntas da plateia.

Não só há crucifixos nas repartições públicas, como há pias de água benta nas entradas, para que aqueles que passam nos prédios do governo possam se benzer e fazer o sinal da cruz. Antes de começar os trabalhos no Senado ou na Câmara, os parlamentares se unem em oração e são ungidos com óleo santo para que possam governar sob os desígnios divinos.

A Bíblia faz parte do material escolar oferecido pelo governo e nem é preciso dizer que nas aulas de ciências os alunos aprendem criacionismo. Teorias que colocam ideias perigosas na cabeça dos jovens são completamente abolidas. De forma que é melhor ser pego com revista de mulher pelada do que ser encontrado com um livro de Darwin ou até mesmo do Stephen Hawking. Suspensão na hora e mais dez Pais Nossos de penitência.

Marcar presença em missas ou cultos não é obrigatório, mas pagar o dízimo é. Além de todos os impostos para saúde, educação e segurança, o dízimo passa a ser um imposto recolhido de todos os brasileiros para as igrejas. O “Deus seja Louvado” impresso nas cédulas não nos deixa esquecer a quem pertence aquele dinheiro. Deixar de pagar o dízimo é crime tanto quanto sonegar o imposto de renda.

O atendimento na saúde melhorou. Como não há médicos para todos, pastores atendem pacientes que podem ser curados em uma sessão de descarrego. Eles ainda não dispensam o trabalho dos médicos; mas se um doente é curado, se alguém que foi baleado consegue sobreviver, se um câncer consegue ser retirado, atribuem a cura ao poder das orações feitas nas salas de cirurgia. Camisinhas e anti-concepcionais deixam de ser distribuídos pelo governo, para não incentivar a promiscuidade. Em compensação, o exorcismo passa a ser um serviço oferecido pelo sistema público de saúde.

As mulheres não têm que andar todas cobertas, como naqueles países bárbaros. Não, imagina. Aqui, elas só são proibidas de usar blusas muito decotadas, saias curtas ou calças justas. Também não podem cortar o cabelo, porque expor o pescoço e a nuca é coisa de mulher vulgar, e cabelo curto demais é coisa de mulher masculinizada — coisas nada boas aos olhos de Deus. Mas é altamente recomendado que estejam sempre lindas em Cristo, bem ao gosto de seus maridos.

A criminalização do aborto é tratada com mais rigor. Mulheres que tentam ou realizam um aborto, não importa o motivo, são presas e depois levadas para serem apedrejadas em praça pública. Às vezes acontece de morrerem nesse processo, mas a defesa da vida deve estar em primeiro lugar, certo? Esse também é o castigo para mulheres adúlteras. Ou que fazem sexo antes do casamento. A submissão da mulher presente na Bíblia passa a ser parte da Constituição e um dos valores mais caros à teocracia do Brasil.

O culto a outros deuses passa a ser ilegal. Terreiros de candomblé são destruídos ou lacrados pela polícia. Já os ateus são presos e afastados da sociedade, para o próprio bem dela. E ainda têm que aguentar a visita diária de um testemunha de Jeová na cadeia tentando lhes converter.

Em vez da Voz do Brasil, as emissoras de rádio passam a transmitir a Ave-Maria. O que é um problema: os evangélicos, apesar de terem sua parte do domínio da mídia, não gostam nada disso. As disputas de poder deixam de ser entre partidos e passam a ser entre as correntes cristãs. Conflitos civis entre evangélicos, católicos e outras denominações eclodem nas ruas. No governo, quem tem a maior bancada garante seus interesses. Sob a proteção de Deus, o Brasil funciona em plena democracia: o que significa que ganha o religioso que gritar mais alto.

Não custa avisar: esse texto não passa de um delírio. Pura ficção. Afinal, uma teocracia à brasileira está bem longe de acontecer, né?

Aline Valek

O Senado e o controle de constitucionalidade



O sistema de controle de constitucionalidade que o Brasil vem construindo no curso e no âmbito de sua República Federativa pode e deve ser dito misto, não porque nele meramente se justapõem, mas porque nele realmente se misturam dois sistemas alhures praticados isoladamente, o difuso (de origem norte-americana) e o concentrado (de origem austríaca), compenetrando um no outro, repercutindo a eficácia de um sobre a do outro, com mútuas e efetivas interações.

Entre ambos, completam-se os institutos, por formas sui generis de composição, as quais – na medida em que vão sendo acabadas – vêm produzindo um modo diferenciado de controlar, que o Brasil oferta à consideração do mundo ocidental. Tem razão Jorge Miranda: O sistema brasileiro compreende um acervo de meios de garantia de constitucionalidade quase sem paralelo noutros sistemas. O que não significa que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade não esteja precisando de simplificação. Precisa, mesmo. Tanto, que já surgem propostas para descomplicá-lo, vale dizer, sistematizá-lo com maior rigor.

Nesse sistema, ocupa lugar ímpar o Senado Federal. Sua intervenção é uma forma sui generis, que aproxima o sistema difuso do concentrado, no que diz respeito à eficácia da norma inconstitucional. Dando seqüência a uma prática anterior, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, atribuiu a esse órgão variadas funções específicas, previstas em sua maioria no artigo 52, mas revestidas – todas elas – por duas funções gerais e basilares: a de representação dos estados-membros e a de moderação institucional. Somente nesse quadro funcional de representação e moderação é que se pode compreender devidamente a função especial de suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, posta como privativa do Senado Federal pelo inciso X do artigo 52 da Constituição de 1988.

Essa função já está envelhecida entre as que compõem a competência constitucional do Senado. Nela ingressou na terceira década do século passado, com a redação seguinte: suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário (artigo 91, inciso IV, da Constituição de 1934). É um instituto tradicional, cuja prática já caiu no automatismo. Quiçá por isso, a doutrina o venha relegando a plano secundário, apesar de ser ele – a suspensão da execução da norma inconstitucional – uma das melhores contribuições do Brasil para fortalecer o direito constitucional na luta para garantir a Constituição, especialmente nas federações cujo sistema jurídico seja de índole romanística, integrando a família romano-germânica.

Rever a atualidade e a utilidade desse instituto – contra a acomodação causada pela inércia que o atrofiou – é a finalidade do presente estudo, que visa a reativá-lo segundo uma compreensão e extensão que não lhe podem ser negadas.

UM CONTROLE DEMOCRÁTICO

A Constituição brasileira de 1891 delegou ao Supremo Tribunal Federal o poder de rever definitivamente as decisões das Justiças estaduais, quando questionada a validade de leis federais ou estaduais ante a Constituição federal. Assim, na federação brasileira, o “power of judicial review” não dependeu de atribuição jurisprudencial, não principiou por força de uma assunção auto-referencial de competências por parte do Supremo Tribunal Federal, a símile dos Estados Unidos, mas nasceu do próprio texto constitucional. Contudo, ao criar com esse perfil uma corte constitucional, na qual concentrou a competência terminante das questões de constitucionalidade, aquela Constituição também deixou clara a competência difusa por todo o restante Poder Judiciário de decidir sobre a constitucionalidade das leis, ainda que não terminantemente. Qualquer juiz da novel República poderia sentenciar a inconstitucionalidade. Esse poder, ainda que formidável, seria natural e inseparável de sua faculdade de livre convicção. O desígnio republicano, cujo alento democrático revolucionava o Brasil, impunha que nascesse como nasceu – da própria Constituição – uma distribuição democrática do poder judicial de controlar a constitucionalidade das leis na federação brasileira. Essa distribuição não conteve nenhuma reserva ou privilégio de competência, senão por efeito da hierarquização natural, que é congênita a todo o poder, incluído o dos juízes.

A AUSÊNCIA DO STARE DECISIS

Constitui o stare decisis um princípio jurisprudencial, cujo enunciado integral é stare decisis et non quieta movere, traduzindo-se: estar com as coisas decididas e não mover as quietas. Significa que o juiz deve conformar-se com a jurisprudência das cortes superiores e, acima de tudo, respeitar a da corte suprema, não bulindo nas decisões que já estejam pacificadas. Quer dizer: no que está quieto não se mexe. Sob esse princípio jurisprudencial se pacifica ainda hoje, como sempre, a justiça constitucional nos Estados Unidos, dando estabilidade ao controle difuso, ainda que alguns juízes não se tenham acomodado ao rigor dos precedentes, como é o caso de Earl Warren, o qual nunca se contentou em considerar-se um mero vigário da tradição do “common-law”. Em vez disso, foi o paradigma de juiz “orientado para o resultado”, que usou seu poder para assegurar o resultado que julgava certo nos casos que vieram ante o seu Tribunal. Para alcançar o que considerava o resultado justo, este Juiz Presidente não foi barrado pelas exigências do “stare decisis”.

Não se ignora a ausência do stare decisis no Brasil. Ele é nativo e próprio de um direito de índole jurisprudencial, como o inglês e o norte-americano. Já um direito de origem romanística, como o do Brasil, não condiz espontaneamente com tal rigidez de jurisprudência, mesmo no topo constitucional. Eis um fator que tolheu o surgimento do stare decisis no constitucionalismo brasileiro.

UM INSTITUTO CRIATIVO

Tolhido o stare decisis, como obter a generalização imprescindível para dar estabilidade, segurança e economicidade ao controle difuso? Realmente, a tacha de inconstitucionalidade não tinha conseqüências formais no direito constitucional brasileiro de 1891–1934. Entretanto, embora sensível à necessidade de formalizar no direito positivo alguma conseqüência geral, a Constituição de 1934 não ousou transformar o julgamento in concreto, no caso examinado pelos juízes, em julgamento definitivo, geral, da lei, nem, tampouco, em apreciação in abstracto e derriscante da lei. Isso, não obstante escritores norte-americanos falassem de veto judicial (Allen Smith, “The Spirit of American Government”, 95). Mas, a despeito dessa fala avançada, prevaleceu o fato de que o sistema dos Estados Unidos da América e o do Brasil são os de simples julgamento, in casu, da inconstitucionalidade. Por conseqüência, o art. 91, IV, da Constituição de 1934, reproduzido no texto de 1946 e no de 1967, criou algo de novo – uma suspensão de execução – que está mais distante do veto judicial e mais perto do veto tradicional, muito embora só nos resultados, na eficácia. O que significa um prudente comedimento, equacionado com a lógica do controle difuso.

Exatamente por seu perfil de moderação, a suspensão de execução instituída pelo sistema brasileiro é uma boa oferta do Brasil aos sistemas de controle de constitucionalidade, sobretudo onde a jurisprudência não chega a estabelecer um vínculo como o stare decisis.

OUTROS FATORES

Não foi só a índole romanística que tolheu o stare decisis no Brasil. Também, aquela distribuição democrática do poder de controlar, promovida pela própria Constituição federal, desde o início da república, contribuiu para inibir o despontar na federação brasileira de uma jurisprudência constitucional vinculante, similar à norte-americana. A essa inibição, ainda se aliou outro fator: a necessidade de preservar a separação de poderes. No todo, um complexo de causas levou a afastar da corte constitucional brasileira não somente o stare decisis, mas qualquer outro meio de generalizar erga omnes a inconstitucionalidade verificada inter partes.

Poderia ter sido outorgada ao Supremo Tribunal Federal uma tal competência generalizadora, a qual em 1934 já não era estranha às cortes dotadas de suprema jurisdição constitucional. De mais a mais, bastaria uma súmula efetivamente vinculante para assegurar a generalidade que traria aquelas condições de estabilidade, segurança e economicidade desejáveis para o controle de constitucionalidade brasileiro, então praticado apenas no modo difuso. Mas a missão de generalizar erga omnes as decisões havidas inter partes foi atribuída ao Senado Federal, por determinação da Constituição de 1934, influindo nessa atribuição a origem histórica e a posição institucional desse órgão, que o predestinam à temperança.

NÍTIDA  DIVISÃO DE COMPETÊNCIA

Desde 1934, então, o Supremo Tribunal Federal é senhor da constitucionalidade e o Senado Federal é senhor da generalidade, no controle difuso brasileiro. Cuidar da generalidade é tarefa que foi subtraída ao Supremo para ser reservada ao Senado, que deve provê-la mediante a espécie normativa dita resolução. Essa repartição de competência no funcionamento do controle difuso está clara na Constituição brasileira. Convém sublinhar: ela se refere ao controle difuso, para cuja efetivação, no ordenamento atual, ex vi da conjunção do caput do artigo 102 com o inciso X do artigo 52, o Supremo decide da constitucionalidade e o Senado decide da generalidade. Já no controle concentrado, ambas – a constitucionalidade e a generalidade – estão nas mãos do Supremo, sendo necessariamente erga omnes o acórdão que decide as ações diretas. Dessa maneira, cada modo de controle conserva sua lógica, o que é imprescindível para que se misturem sem que se confundam, fazendo misto o sistema sem torná-lo confuso. Para prevenir confusão, deve a prática do sistema misto ser iluminada por uma teoria exata a respeito de qual é a posição institucional do Senado Federal no concerto da federação, uma vez que ele não desce dessa posição – não se descaracteriza – na sua intervenção no controle da constitucionalidade.

A POSIÇÃO DO SENADO

Paulino Jacques encontra no Estado ateniense, no período áureo de Sólon (sec. VI a. C.), vestígios de ação moderadora do Senado, então, conhecido por Boulé ou Gérousia, ou Conselho dos 400, cujos membros eram escolhidos pela sorte – desígnio dos Deuses –, que afastava a influência maléfica das paixões humanas no processo eleitoral. Esse Senado, moderando a atividade legislativa da Eclésia, ou Assembléia Popular – então, o poder supremo de Atenas – exercia o que, hoje, denominamos “poder moderador”. É o que se depreende das lições de G. Glotz (in “La Cité Grecque”, Paris, 1953, págs. 226 e ss.). No entanto, por depender de sorteio, esse Conselho ateniense, mesmo sendo um moderador, não era um senado, instituição de consulta, que teve por berço o patriciado da república romana, em cuja fase originária os senadores se escolhiam entre os patrícios, não por sorteio, mas em razão de sua idade, ou melhor, do patrimônio físico e moral acumulado ao longo da vida.

Na origem latina, o vocábulo senado – significando assembléia dos velhos – prende-se à raiz sen, também encontrada em palavras outras, todas afins, sempre indicando o avanço da idade e, no étimo primário, a sabedoria daí obtida. Exemplo expressivo é o nome do retórico e do filósofo, pai e filho, aos quais os romanos chamaram Sêneca. Ainda hoje freqüentam o direito político termos que portam essa raiz, a indicar mescla de conhecimento com idade, denotando que o velho – e não apenas nas sociedades tradicionais e estáticas, como registra Bobbio, mas em todos os tempos e lugares – sabe por experiência aquilo que os outros ainda não sabem.

Dessa maneira, desde sua procedência romana, o Senado tem uma função moderadora expressa na raiz do próprio nome e radicada na prudência de seus membros, fruto de sua vivência mais extensa e intensa. É um órgão de temperança, tanto nos estados unitários, como nas federações. Essa função inata não lhe pode ser negada, sobretudo nos atos de sua competência constitucional, como é o caso da generalização da inconstitucionalidade. Ora, não há moderação onde não há discrição, mas apenas vinculação. Senhor da generalidade, como dela cuidará o Senado, como fator de temperança, se não tiver para tanto a necessária discricionariedade?

Além disso, com a moderação, em federações como a norte-americana e a brasileira, o Senado acumula a representação dos estados-membros. Esta é outra função que não lhe pode ser furtada. Sob pena de periclitar a concepção federativa que lhe dá forma. Tanto que, na Constituição dos Estados Unidos, a única cláusula que fixa restrição material permanente, similar às cláusulas ditas pétreas, é a que proíbe emenda constitucional que prive algum estado-membro, sem seu consentimento, de sua igualdade de sufrágio no Senado. A voz dos senadores é a voz dos estados federados; e estes – mesmo sem atingir o grau de soberania – são dotados de autonomia constitucional. Ora, não há autonomia onde não há discrição, mas apenas vinculação. Senhor da generalidade, como dela cuidará o Senado, como órgão de representação de estados autônomos, se para tanto não tiver a devida discricionariedade?

Não há negar esta verdade evidente: a posição institucional do Senado Federal não aceita uma competência estritamente vinculada como alguns intérpretes lhe querem discernir no poder de suspender erga omnes a execução da lei que o Supremo julgou inconstitucional no controle inter partes. O Senado não compadece uma vinculação assim rígida e total. É certo que a declaração de inconstitucionalidade provinda do Supremo o vincula. Porém, não como causa, mas apenas como condição de sua competência constitucional. Desta competência, obviamente, a causa é a Constituição.

Ensina a lógica que uma condição permite, mas não compele a causa a atuar. O exemplo clássico é o do “abrir a janela”. Dando esse exemplo, Goffredo Telles Júnior ensina: Condição é a presença ou realização daquilo sem o que a causa eficiente não pode produzir o efeito para o qual está ordenada e com o que pode produzir esse efeito. É aquilo que permite ou faculta à causa eficiente produzir seu efeito. Ou seja: uma janela aberta pode ser condição que permita ao sol iluminar o interior de uma sala, mas não é a causa da iluminação. A causa é o sol, em razão de sua própria constituição, determinada por leis físicas. A janela aberta é condição, que impede ou permite a ação da causa. O ato de abrir a janela é condicionante, mas não é eficiente do ato de iluminar. A causa eficiente é o sol.

Similarmente, o ato do Supremo em relação ao ato do Senado. A inconstitucionalidade decidida por aquele é condição, mas não causa da resolução de generalidade a ser decidida por este. Esta causa está na própria constituição do Senado, nas normas constitucionais que o instituem, só que não por lei física, mas ordenado por uma lei ética, que o constitui dotado de vontade própria, quer dizer, apropriada ao exercício de suas funções de moderação e representação na federação. Assim o quer a Constituição Federal. Querê-lo diferente é querer inconstitucionalmente.

Em síntese: a inconstitucionalidade decidida pelo Supremo é pressuposto condicionante, cuja existência permite (primeiro caso) ou cuja ausência impede (segundo caso) um efeito de generalização, causado pela resolução do Senado. No primeiro caso, a resolução do Senado – exatamente porque é permitida – não é imposta pela decisão do Supremo. Mas, no segundo caso, ausente originariamente ou retirado posteriormente o pressuposto de inconstitucionalidade, a condição se torna impeditiva da resolução do Senado, o qual não pode editá-la ou, se já a editou, deve revogá-la. Na ida – edição – há discricionariedade, mas no retorno – revogação – há vinculação. Como se estuda a seguir.

UMA FUNÇÃO DISCRICIONÁRIA

É necessariamente discricionário o ato de inibir erga omnes a execução da lei havida por inconstitucional, seja esse ato praticado pelo Supremo Tribunal Federal, como ocorre no controle concentrado, seja pelo Senado Federal, como no controle difuso. Ao Senado não se podem negar suas funções de moderação e de representação, nem podem elas – essenciais que são, ainda que tenham por pressuposto indispensável uma inconstitucionalidade decidida externamente – ser exercidas sem a necessária discrição. Pelo que a competência de editar a resolução, prevista no inciso X do artigo 52 da Constituição de 88, constitui poder discricionário e não simples poder vinculado. Essa conclusão condiz com a própria essência do Senado. Não obstante, contra ela se opõem parte da doutrina e a jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal.

Cabe endereçar ao bom senso uma indagação: por que o Constituinte teria escolhido o Senado para tal função, se este nada pudesse acrescentar, senão um carimbo automático de generalidade? A resposta só poder ser: não foi vã a escolha. Foi para prover em nome dos estados federados um contrapeso de moderação no âmbito da Republica Federativa. Foi para isso que a Constituição delegou ao Senado Federal e não à corte constitucional a função de suspender em todo o território nacional a execução da lei tida por inconstitucional no epílogo do controle difuso. O Constituinte deu ao Senado um descortino federal e nacional, no âmbito da República, o qual só pode ser discricionário, sob pena de não ser descortino.

Atendendo assim à própria natureza institucional do Senado, a Constituição fez dele o senhor da generalidade e não mero servo da corte constitucional, embora dela dependa de certo modo. Mas, mesmo que a corte tenha por definitiva a inconstitucionalidade, estando a negar aplicação à lei em casos inter partes, e por isso peça a ampliação erga omnes, o Senado não está obrigado a generalizar, pois – no exercício de sua função moderadora, em nome dos estados-membros – pode muito bem achar oportuno e conveniente que a inconstitucionalidade continue a ser decretada inter partes.

Com isso, o Senado não estará convalidando uma inconstitucionalidade. Estará apenas entendendo que ela deva ser, ainda, mantida no âmbito particular dos casos concretos. O Senado não entra no mérito da inconstitucionalidade. Não a reaprecia. Não invade competência alheia. Não desdiz a inconstitucionalidade dita pela corte constitucional. Não a rejeita. Não faz um novo juízo sobre a inconstitucionalidade. Apenas, entende não ser oportuno e conveniente estendê-la erga omnes personas alcançadas pela soberania do Estado. Nada mais. Esse poder discricionário não lhe pode ser negado. Obviamente, o exercício dessa competência política não implica aceitação da lei inconstitucional, não significa rejeitar a decisão do Supremo. Apenas constitui uma limitação política do âmbito e do modo de aplicação da inconstitucionalidade. Nada mais, além disso.

Lúcio Bittencourt é elogiável pelo pioneirismo. Avançou boas contribuições para a doutrina do controle de constitucionalidade no Brasil. Mas precipitou um entendimento, que muitos seguiram, em detrimento da competência constitucional do Senado. Ainda no tempo da Constituição de 1946, opinou ele que o ato do Senado não é optativo e que o objetivo do art. 64 da Constituição é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Além de parte da doutrina, tribunais diversos adotaram essa opinião, até em sua literalidade. Mas nela se esquece que a decisão de qualquer tribunal – mormente do Supremo Tribunal Federal – já é pública de per si, por sua própria natureza. O cordel de adesões continua ainda hoje, tolhendo um poder do Senado, que é optativo, sim, no que tange à generalidade. Com isso se atrofia indevidamente o sistema brasileiro de controle da constitucionalidade. É chegada a hora de sanar essa atrofia.

A SEPARAÇÃO DE PODERES

Essa intervenção do Senado é um meio jurídico-político de atender à teoria da separação de poderes. Na prática, suspender a execução é como que revogar o executável enquanto ele estiver suspenso. Deve-se frisar: é como que, mas não é exatamente o mesmo. Nem, muito menos, é revogá-lo irreversivelmente. Na teoria, a concepção dessa intervenção atendeu àquele princípio de separação imposto fortemente pelo Estado liberal, entre cujos corolários está o de que só uma lei pode revogar outra lei. Esse princípio tem de ser mantido no sistema difuso, pois é parte de sua lógica. Exatamente para manter essa lógica é que se teoriza que o Senado subtrai executoriedade à lei, mas não a revoga. Logicamente preso ao rigor da separação de poderes, o ato de suspender erga omnes a execução, embora esteja próximo, não é idêntico ao ato de revogação da lei, pois só a lei pode revogar a lei. Mas, mesmo admitindo isso, há quem entenda que o princípio da separação de poderes é mantido tão-só pelo fato de ser o Senado um órgão legislativo, não saindo assim do recinto do Poder Legislativo a decisão que esteriliza a lei. Contudo, examinando melhor, vê-se que esse princípio, embora assim se considere mantido, realmente é preservado pelo fato de o Senado não revogar a lei posta pelo Poder Legislativo, mas apenas lhe subtrair a possibilidade de execução. A lei elaborada pelo Congresso Nacional com a sanção do Presidente da República continua presente no ordenamento jurídico, não sendo possível ao Senado, por si só, já que é apenas uma das câmaras do Congresso Nacional, revogá-la. Daí, que peca contra essa lógica Othon Sidou, quando – após afirmar que o mandado de segurança pode e deve ser concedido contra o efeito atuante da lei inconstitucional – acrescenta: A revogação é que representa o ataque à lei em si, e por isso é tarefa do Poder Legislativo, o Senado, seu corpo mais qualificado.Em suma, a resolução do Senado não desconstitui a lei.

UM EFEITO SOMENTE EX NUNC

O Senado não atua como legislador negativo, revogando ou desconstituindo a lei. Apenas a desativa: suspende-lhe a eficácia. É o que consoa com a lógica do controle difuso, cuja prática deve atendê-la sempre, mesmo se tratando de um sistema misto. Sob pena de o difuso se tornar confuso. Por isso mesmo, a resolução do Senado somente pode ter efeito ex nunc. Não pode ter efeito ex tunc, nem pro futuro. Sua intervenção constitui uma intersecção do sistema difuso com o concentrado, que os aproxima entre si. Mas não os assimila, nem os identifica, nem muito menos os confunde, um com o outro. Pelo que, de um lado, essa intersecção não tem o efeito ex tunc próprio do sistema difuso, porque não está julgando um caso concreto, e, de outro lado, porque não está julgando a lei em si, não tem possibilidade de modular no tempo – ex tunc, ex nunc ou pro futuro – a eficácia da decisão de inconstitucionalidade vinda do Supremo, ao qual o Senado não substitui. O Senado não é órgão de jurisdição constitucional.

Modular a eficácia no tempo é próprio do legislador negativo, função estranha ao Senado e ao sistema difuso. O Senado não é tribunal constitucional. Legislador negativo é a corte que atua como tribunal constitucional, segundo a lógica do sistema concentrado, decidindo ações diretas sobre a lei em si. Exatamente porque apreciam a lei assim, nessa condição objetiva (tomando-a em si mesma) e nessa condição subjetiva (agindo como legislador negativo), é que as cortes constitucionais – ao negarem a constitucionalidade de uma lei erga omnes subditos do Estado – têm de modular essa negação no tempo e no espaço, dizendo quando e onde ela entra vigor, tal como faz o legislador positivo, ao pôr a lei. A corte constitucional pratica um ato desconstitutivo, não igual, mas similar ao constitutivo. Assim como o legislador positivo pôde modular o efeito constitutivo da lei, logicamente o legislador negativo poderá modular o efeito desconstitutivo. Mas essa lógica somente assiste o sistema concentrado, tomado em sua pureza e inteireza. Não assiste o sistema difuso, nem a intersecção do difuso com o concentrado, feita mediante a intervenção Senado.

Outrossim, a intervenção do Senado, embora complemente o sistema difuso, não consiste no julgamento de nenhum caso concreto, em que a decisão, se não recuar ex tunc, pode prejudicar uma parte em benefício da outra. Ao contrário, o ato do Senado é erga omnes e, por isso mesmo, se recuar ao passado, atingirá outras partes, cujos direitos e obrigações não foram questionados nos casos concretos, ao fim dos quais o Supremo solicitou ao Senado a suspensão da lei. Esse recuar ao passado provocaria uma sublevação automática e imediata das relações jurídicas que estavam pacíficas, causando uma guerra generalizada entre incontáveis partes. O que, além de injusto para os atingidos, seria inconveniente para a paz social, escopo maior da administração da Justiça pelo Estado.

Por esses, entre outros motivos, a ampliação erga omnes resolvida pelo Senado só pode ser ex nunc, a partir da publicação da resolução. Reforça Ada Pellegrini que neste caso a decisão judicial não se reveste da autoridade da coisa julgada, de modo que, se sobrevier a suspensão da execução da lei, sua ineficácia, decorrente exclusivamente da resolução do Senado, terá efeitos ex nunc, se bem que devam ser ressalvadas as posições que sustentam que a ineficácia, mesmo nesse caso, seria ex tunc.

Tem razão a ressalva de posições contrárias. Além dos ministros Soares Munhoz, Djaci Falcão, Décio Miranda, citados em rodapé à ressalva, também na doutrina existem abalizadas opiniões contrárias. Gilmar Ferreira Mendes afirma: A suspensão constitui ato político que retira a lei do ordenamento jurídico, de forma definitiva e com efeitos retroativos. No entanto, pela lógica do sistema difuso, no qual foi concebida e adotada, a resolução senatorial – além de não retirar a lei do ordenamento de forma definitiva, pois a lei persiste e a suspensão incide apenas sobre sua eficácia, que pode até ser restaurada, como aqui demonstrado – exatamente por isso e, mais ainda, por ser ato meramente político e não jurisdicional, não pode ter efeitos retroativos.

 Lênio Luiz Streck, discordando expressamente de Gilmar Ferreira Mendes e perfilhando a opinião de Alexandre de Moraes, crê discutível que os efeitos da decisão suspensiva do Senado possam ter efeitos ex tunc e conclui que a razão está com aqueles que, como Alexandre de Moraes, sustentam os efeitos ex nunc da decisão suspensiva do Senado.

A questão deve ser resolvida. O efeito ex nunc é a única tese que a resolverá adequadamente, como o presente estudo demonstra. Ainda mais, porque a atribuição de efeito necessariamente ex tunc à resolução do Senado não passa de ser uma das amarras do nó górdio com que o Brasil atou o sistema concentrado ao difuso, inclusive neste ponto de intersecção entre os dois. Essa amarra tem de ser desfeita, urgentemente, a bem da inteireza e correção do sistema misto que o direito constitucional brasileiro vem construindo.

A POSSIBILIDADE DO RETORNO

No arremate de tais raciocínios, cumpre – até imperiosamente – perguntar: se conforme a lógica do controle difuso a lei não é revogada, mas remanesce existente, pode ela ser restaurada em sua executoriedade, uma vez que ela subsiste à resolução do Senado?

Exatamente porque a lei continua existindo e sua suspensão teve efeito meramente prospectivo, e não retrospectivo e cabal, é que o retorno – a restauração da executoriedade – é realmente possível na hipótese do inciso X do artigo 52 do Constituição. Esta não o veda. Na hipótese, a lei continua existindo para todas as pessoas (erga omnes personas) e, especialmente, para ambos os órgãos envolvidos no controle, tanto para o Supremo, quanto para o Senado, de modo que estes têm o dever de restaurar-lhe a execução, quando for o caso; e o caso pode ser até freqüente, pois é bem possível e provável a proliferação de casos dessa restauração. Por exemplo, o que impede propor ação declaratória de constitucionalidade para reativar uma lei desativada pelo Senado, se sobrevierem razões de direito ou de fato que, inequivocamente, mostrem haver erro na declaração de inconstitucionalidade?

Gilmar Ferreira Mendes, firme na doutrina alemã, compôs com duas ressalvas relevantes a tese de ser inadmissível reapreciar inconstitucionalidade de lei já assim declarada. Deixou ressalvadas as hipóteses de significativa mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes. Realmente, são possíveis casos – e muitos – que preenchem essas hipóteses.

Ada Pellegrini Grinover, em recente livro, aponta para alguns. No campo tributário, tem acontecido de o Supremo Tribunal Federal, pela via do Recurso Extraordinário, declarar, incidenter tantum, a constitucionalidade do tributo, em casos concretos distintos daqueles em que se deu a coisa julgada favorável ao contribuinte. Continua: Outra hipótese também tem ocorrido: após a coisa julgada, acobertando sentenças que afirmaram a inconstitucionalidade do tributo, o Supremo declarou sua constitucionalidade, pela ação declaratória introduzida no ordenamento brasileiro pela Emenda nº 3, de 17 de março de 1993. Esses apontamentos mostram que são possíveis casos – máxime, decorrentes do emprego da ação declaratória de constitucionalidade – em que o restabelecimento da executoriedade se imponha após editada a resolução do Senado.

Paulo Brossard relata um caso concreto que comprova a necessidade ou, no mínimo, a conveniência de restaurar a executoriedade, ainda que ele não sustente essa possibilidade.

Certa feita, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul declarou inconstitucional o art. 160 da Constituição estadual de 1947... e, no mesmo sentido, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (RE n. 22.241). Em função desse acórdão, o Senado suspendeu a execução do artigo mencionado, Resolução n. 48, de 14 de setembro de 1961. Não passou muito tempo, contudo, e o Tribunal sul-rio-grandense, aprofundando a sua análise, a partir de voto vencido, pôde verificar que o preceito fulminado, e já então suspenso, seria “válido, subsistente, se endereçado aos delitos de responsabilidade de cunho político”, quer dizer, aos crimes que não são crimes. (...) Não tivesse havido a suspensão da norma referida e o Tribunal do Rio Grande do Sul, longe de concluir pela inconstitucionalidade do art. 160, teria lhe dado a exata exegese e a correta aplicação, circunscrevendo-o aos “crimes de responsabilidade” que não são ilícitos penais.

A restauração da executoriedade pode ser necessária – não apenas porque o Tribunal não deu à lei a exata exegese e a correta aplicação – mas até porque cometeu mero descuido procedimental. Errare humanum est. Mas somente o Tribunal pode e deve rever decisões suas que apresentem quaisquer falhas, até vícios formais. O Senado não pode corrigir os atos do Supremo. Andou certo Paulo Brossard, quando – indo em contrário ao Ministro Pedro Chaves e à doutrina de Celso Bastos – negou aos senadores tal poder de inspeção formal, por ocasião da resolução suspensiva, até mesmo porque o Senado não é fiscal da Corte Suprema, nem tem por ofício cuidar da observância das regras de julgamento. Às partes, não ao Senado, é reservada essa vigilância. Mas, porque a vigilância das partes e a do próprio Tribunal podem resultar na reconsideração da decisão definitiva de inconstitucionalidade, mesmo após editada a resolução do Senado, é que não se pode negar a possibilidade de revogar essa resolução.

Pontes de Miranda, para escapar à hipótese de suspensão da suspensão, usa de um volteio formal. Se o Senado Federal suspende a execução da lei ou ato, deliberação ou regulamento, e o Poder Judiciário volve a considerá-lo constitucional... quid juris? Ao que responde: suspensa a lei, não mais pode o Supremo Tribunal Federal, ou qualquer tribunal, ou juízo, aplicá-la. Mas logo vem o volteio que, infirmando a resposta, confirma a possibilidade de voltar a lei – na forma de “outra” lei – a ser aplicada. Se nova lei se faz e o Supremo Tribunal Federal não na tem como contrária à Constituição, é essa lei – e não a outra, a que sofreu a suspensão – que se aplica. Cabe ponderar: em vez de fazer “outra” lei, não é mais lógico revogar a suspensão de execução da lei? Pontes responde, sem esconder a vacilação que o assaltou. Não há suspensão de suspensão, se bem que, ao primeiro exame, nos tivesse parecido admissível a volta atrás do Supremo Tribunal Federal e do Senado Federal. Mas, por que não há suspensão da suspensão? Quem ou o que impede a volta atrás? Por que apelar para um volteio formal, que não passa de subterfúgio inútil? Não foi sem razão sua vacilação. Tanto, que no fim ele não escapou de admitir que – mesmo após suspensa a execução – pode a lei volver à aplicação, ainda que na forma de “outra” lei. O que não deixa de ser mero formalismo.

Bem mais recentemente, André Ramos Tavares. Ainda que entenda que perderá interesse qualquer pronunciamento posterior do Senado sobre questão já decidida em controle concentrado pelo Supremo Tribunal, admite a confluência do controle difuso com o concentrado. Se é certo que o Senado Federal só suspende os atos normativos declarados inconstitucionais em controle difuso pelo Supremo Tribunal, não é menos certo que este pode ser instado, por qualquer dos legitimados ativos, a se pronunciar em controle abstrato sobre o mesmo ato normativo que está sendo objeto de recurso extraordinário ou que o será. Ora, confluindo assim os dois tipos de controle, pode daí resultar – possibilidade não afastada pelo autor – que uma decisão do Supremo no controle concentrado sobrepuje o já decidido pelo mesmo Tribunal no controle difuso, a respeito do mesmo ato normativo, implicando a necessidade de revogar a resolução do Senado. Essa revogação será um pronunciamento posterior do Senado sobre questão já decidida em controle concentrado pelo Supremo Tribunal. Mas não perderá interesse. Ao invés, terá grande valor. Pois, se não for editada, a execução continuará suspensa e, se o Supremo aplicar ou permitir aplicar a lei, estará cometendo inconstitucionalidade ou, no mínimo, descumprindo um preceito fundamental decorrente da Constituição.

OTIMIZAÇÃO DA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE

Particularmente interessante, sem dúvida alguma, é a hipótese de sobrevir à resolução do Senado uma ação declaratória de constitucionalidade, buscando a reconsideração da inconstitucionalidade, com base em inéditos que – antes não prezados – agora justifiquem ou até exijam a reversão do decidido. Por que não admitir essa hipótese? Podem sobrevir significativas mudanças das circunstâncias fáticas ou relevantes alterações das concepções jurídicas dominantes que imponham tal reversão.

Gilmar Ferreira Mendes considera plenamente legítimo que se argúa, perante o Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionalidade de norma anteriormente declarada constitucional em ação direta de constitucionalidade. A contrário senso, necessariamente, também é legítima a proposição da ação declaratória de constitucionalidade para argüir a constitucionalidade de uma norma já anteriormente declarada inconstitucional. Não turva essa legitimidade o fato de já ter sido essa norma objeto de resolução suspensiva, pois nesta, como em qualquer hipótese, é rigorosamente lógico e ético o dever de reverter uma inconstitucionalidade que se verificou ser insustentável, uma vez que a norma constitucional tem de viger plenamente, sob pena de se estar fraudando a concepção e abalando o alicerce do Estado de Direito.

Esse emprego daria especial utilidade à ação declaratória de constitucionalidade, cuja valia causou tanta polêmica, quando de sua criação pela Emenda nº 3, de 1993. Nada impede – mas tudo aconselha e até impõe – que, diante de mutações históricas supervenientes ou de argumentos ainda não ouvidos, um dos legitimados pelo § 4o do artigo 103 da Constituição Federal proponha a ação declaratória de constitucionalidade de uma lei, mesmo após haver o Senado tolhido sua execução.

Com isso se tornará a ação declaratória de constitucionalidade um dos institutos mais proveitosos dentre os que têm sido criados pelo constitucionalismo brasileiro. Insista-se: nada o impede. Apenas, anote-se: no final, se o Supremo reverter a inconstitucionalidade, a decisão da ação terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo, como prescreve a Constituição Federal, no artigo 102, § 2o, o que fará não só conveniente e adequada, mas indispensável e obrigatória a edição pelo Senado de uma resolução revogando a anterior, sob pena de incidir ele em inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, tal como prevê a mesma Constituição no artigo 103, § 2o.

A REVERSIBILIDADE DO DEFINITIVO

Atualmente, o inciso X do artigo 52 da Constituição refere que o Senado atenderá a decisão definitiva do Supremo. Na Constituição de 1934, não havia essa condição. Surgiu no artigo 64 da Constituição de 1946. Permaneceu no artigo 45, inciso IV, da Constituição de 1967. Repetiu-se no artigo 42, inciso VII, da Emenda Constitucional n. 1 de 1969. Subsiste na Constituição de 1988. O que leva a indagar se tal decisão definitiva não implica estar o Supremo fechando as portas atrás de si, tornando impossível o regresso. A resposta é: o termo definitivo aí significa conclusivo e, como lembra Ada Pellegrini Grinover, aponta para a conclusão de uma série de decisões próprias do controle difuso. Apenas isso. Ao que se deve acrescentar: não significa irreversível, mas tão-só que algo está definido nas presentes condições históricas. Até mesmo porque a decisão definitiva pode padecer de algum vício formal que obrigue o Tribunal a revertê-la, mesmo depois de estar em vigor a resolução do Senado, como acima já se aventou.

Sabiamente, o direito contratual tempera o princípio pacta sunt servanda com a condição rebus sic stantibus. Igual sabedoria não pode faltar ao direito constitucional. Ainda mais, por ser ele o mais político dos direitos. Não se pretende, para as condições jurídico-políticas que arrimam a decisão de inconstitucionalidade, uma mutabilidade como a das nuvens no céu. Aliomar Baleeiro, Ministro do Supremo, atestou como extrema a vacilação do Tribunal a que pertencia, no qual encontramos, às vezes, num espaço pequeno de tempo, decisões declarando que tal lei é inconstitucional, e outras, que é constitucional, acerca de vários problemas. Ao reconhecer ao Senado o discricionarismo político de suspender ou não, chegou a admitir que este passe a resolução numa tarde e, nessa mesma tarde, resolva o Supremo que aquela lei, que era inconstitucional, seja constitucional... Afirmou que isso pode acontecer. [31] Mas não é preciso ir a tais extremos para afirmar o que seria insensatez negar: as condições de definição da jurisprudência são mutáveis no espaço e no tempo da história. Em suma, o definitivo é relativo. Relatividade não é instabilidade. Ao contrário, o definitivo se torna absoluto, assim como o absoluto se torna absurdo, quando subsiste além da relação que o definiu, podendo causar instabilidade. Prudentemente, mudadas as condições da definição, o definitivo deve ser mudado, conseqüentemente.

Já há muito tempo Kelsen firmou a perene reversibilidade das decisões sobre constitucionalidade. Em sua obra sobre a justiça constitucional, reafirmou o dito pela Suprema Corte norte-americana em 1873, no caso Morgan County. A saber: as questões constitucionais são sempre abertas a novo exame. Tais questões são sempre abertas, por serem sempre de natureza política, porque tocam na expressão da vontade geral em si mesma considerada (controle abstrato) ou em sua correlação com as vontades particulares (controle concreto).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho reconhece esse teor político. Certamente é o seu entendimento de que o controle de constitucionalidade ora é político-jurídico, ora é jurídico-político, que o leva a reconhecer que as leis inconstitucionais admitem que, excepcionalmente, por razões de segurança jurídica ou de relevante interesse social, sejam restringidos os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade, ou fixado o momento em que esse reconhecimento passará ou passou a ter efeitos. Muitos outros pensam de modo igual ou similar. Ninguém mais duvida da politicidade do controle de constitucionalidade em qualquer dos seus tipos ou modos.

De tais premissas – são sempre políticas e reexamináveis as questões constitucionais – resulta certa uma conclusão: pode ocorrer a necessidade político-jurídica ou jurídico-política de revogar a resolução do Senado e reverter a inexecutoriedade, restaurando a plena eficácia da lei, não devendo a locução decisão definitiva, no inciso X do artigo 52 da Constituição, ser tida como sinônimo de decisão irreversível, pois essa interpretação não está conforme com a Constituição, na medida em que implica a possibilidade de negar eficácia a uma lei constitucional.

AS CONDIÇÕES DO RETORNO

Um tal retorno pode até parecer absurdo, uma vez que a prática nunca o exercitou e a doutrina não o meditou, a não ser rapidamente, com ânimo negativo, como Alexandre de Moraes, citando Celso de Mello e alguma jurisprudência do Supremo. Mas é preciso repensar essa negativa, pois, ao invés de absurdo, o retorno da lei à eficácia é rigorosamente lógico em sua coerência com o sistema difuso, seja este considerado em si mesmo, seja em sua intersecção com o sistema concentrado, permitindo colher bons frutos de uma intervenção do Senado que constitui um verdadeiro check and balance, engenhosamente criado pelo constitucionalismo brasileiro. Por força da natural congruência entre os atos jurídicos, exceto se houver expressa proibição legal, resulta que, do mesmo modo que se pode retirar, também se pode restaurar um poder ou uma condição de poder. Este é um princípio de coerência do sistema. Assim, o vigor da lei se restabelece nas mesmas condições em que foi retirado. No stare decisis, a jurisprudência pode por si mesma reavivar a executoriedade que amortecera. Similarmente, na hipótese do inc. X do art. 52 da Constituição brasileira, a resolução do Senado pode pôr ou tirar o efeito erga omnes. Absurdo seria negar ao Senado o poder de revogar uma resolução sua.

Em ambos os sentidos, seja para pôr, seja para tirar a eficácia geral, o trâmite é complexo: compete ao Supremo julgar da inconstitucionalidade e ao Senado, cuidar da generalidade. Com uma diferença significativa: se para editar a resolução, a competência do Senado é discricionária, como visto acima, para revogá-la sua competência é vinculada. Pois, se o Supremo reconsiderar a inconstitucionalidade e, mesmo assim, o Senado mantiver a resolução, aí estará este impedindo a aplicação de uma lei constitucional e, com isso, tolhendo a competência do Judiciário (ou melhor, do Supremo Tribunal Federal) e do Legislativo (ou melhor, do Congresso Nacional), uma vez que a lei, sendo considerada constitucional, tem de ter vigência plena e ser plenamente aplicável. O retorno não só é possível, mas necessário e vinculado, e não há por que negá-lo.

CONCLUSÃO

O enlaçamento do sistema concentrado com o difuso é algo de peculiar ao modelo de controle de constitucionalidade ora em desenvolvimento no Brasil. Esse enlaçamento principiou por ampliar erga omnes ex nunc a inconstitucionalidade decidida inter partes ex tunc, como o fim de prover o controle difuso de condições de estabilidade, segurança e economicidade, muito semelhantes, embora não iguais, às do controle concentrado. A resolução do Senado Federal, prevista no inciso X do artigo 52 da Constituição de 1988, é discricionária no que respeita à generalidade que estabelece. Porém, se o Supremo Tribunal Federal reverter a inconstitucionalidade que a condiciona, o Senado pode e deve, vinculadamente, revogá-la, de modo que, por isso mesmo, ela só pode ter efeito ex nunc, a fim de não viger aquém ou além do período em que perdurar o seu pressuposto: a decisão de inconstitucionalidade. Assim bem compreendida, na intersecção entre os sistemas difuso e concentrado, essa intervenção do Senado brasileiro, em vez de ser uma função exígua, torna-se fértil pela possibilidade que abre de freios e contrapesos entre os Poderes do Estado, em prol da correta prática do Estado Democrático de Direito na Republica Federativa do Brasil, consolidando um instituto de controle que poderá até mesmo ser utilizado por outros estados, cujo direito seja de índole romanística, sobretudo federações.

Essa conclusão maximiza o valor e o uso dos muitos meios de ação que enriquecem o controle de constitucionalidade no Brasil, justificando sua natureza e sua funcionalidade mistas.

Sérgio Resende de Barros

segunda-feira, 25 de março de 2013

É possível um exercício do papado diferente?



A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com que  o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade. Francisco é o seu nome.

A figura do papa é talvez o maior símbolo do sagrado  no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia  da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra caminhos, concentraram na figura do papa  estes ancestrais anseios humanos que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é importante analisar o tipo de exercício de poder  que o papa Francisco vai exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas.

Para os cristãos é irrenunciável o ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé” segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais igrejas. Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas. A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno (440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma.

Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados como  estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da sociedade.

A partir daí o papa emerge como um monarca absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa.  Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas. Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da fé, com viagens e eventos massivos,  como a dos jovens a se realizar  no Rio.

Esta forma monárquica e absolutista representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja.

Criou-se pelo Concílio a colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais locais, sempre em comunhão com Roma. Representantes do Povo de Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia? O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de Igrejas?  O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos humanos e justiça, na América Latina?

A Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade  condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desparecer. Como a Igreja ajuda em sua preservação?

Tudo isso é possível e realizável, sem renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá  resgatar a credibilidade perdida  e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos.

Leonardo Boff

quinta-feira, 21 de março de 2013

Hora de institucionalizar o governo



Por um lugar ao sol palaciano, se é capaz de tudo, pois, para alguns, estar fora dos holofotes governamentais soa como um nada absoluto. Pobre país este que navega sem norte entre homens públicos medíocres, partidos tíbios e um sistema político completamente assistemático. Entre tantas sandices e incredulidades que transbordam na cena pública atual, os homens e mulheres de bem são insistentemente provocados por uma incômoda indagação: será que há solução?

Pois bem. A solução necessariamente existe; a questão é saber onde ela está. Sabidamente, a democracia é – e sempre será – uma obra inacabada a exigir um permanente devotamento cívico em prol do progressivo aperfeiçoamento político da nação. Nesse contexto, chegamos a um ponto crítico do sistema político brasileiro: a corrupção e a imoralidade vicejam em um país carente de referências políticas de envergadura. Por quê? Ora, o motivo é único: o sucesso democrático depende de partidos fortes, conscientes e responsáveis. Sem bons partidos, não há boa política. E, sem boa política, não há bons políticos.

A realidade está aí e não nos deixa mentir. Sem o esteio partidário, a democracia, ao invés de se transformar em um sistema político orgânico, vira pura e simplesmente uma projeção pessoal de poder. Infelizmente, a Constituição de 88 não tem tido êxito no processo republicano de institucionalização do governo. Na verdade, entre a lei e realidade social, existe o hiato da política, aquele espaço do possível que procura dar cores de pragmatismo à utopia do ideal. Por assim ser, quando a política vai bem, a realidade se aproxima do plano teórico da norma; já, quando a vida pública fracassa, a lei fica desamparada de sua necessária efetividade material.

Sem cortinas, o sistema político brasileiro, ao invés de estimular a formação e desenvolvimento dos partidos, privilegia o passar de personalismos passageiros. Aliás, em certas latitudes, os egos andam tão elevados que existem aqueles que pensam estar acima do bem e do mal; chegam ao ponto, inclusive, de desmerecer soberanas decisões da colenda Suprema Corte. Frisa-se, que a crítica técnica e bem intencionada é sempre bem-vinda, pois faz pensar e refletir. Agora, a ofensa institucional é algo baixo e desprezível, não podendo ser admitida em uma Nação que se queira civilizada.

Entre os muitos aperfeiçoamentos que temos a fazer, é urgente e necessário institucionalizar o governo. Não é mais possível que, a cada eleição, a estrutura pública seja desmantelada para atender os interesses da casta partidária. Ora, o governo é do Brasil e, não, deste ou daquele partido. Logo, a confusão entre máquina pública e interesses partidários apenas serve para cavar valas de clientelismo e corrupção no seio das instituições públicas nacionais.

Em um autêntico Estado Constitucional de Direito, o governo deve representar segurança jurídica, previsibilidade de condutas, cumprimento da lei e efetiva responsabilidade contra eventuais transgressões políticas. Por conseguinte, um governo firmemente institucionalizado evita o parasitismo e a demagogia de maiorias parlamentares eventuais que apenas querem o poder pelo poder. O tempo corre e precisamos de dias melhores. Acontece que nada muda por inércia.

A política não mudará por milagre nem por graça dos céus. É necessário agir e colaborar em maior grau e profundidade. Precisamos, definitivamente, assumir a responsabilidade pelos deveres da democracia que impõem a cada cidadão a obrigação de participar ativamente das questões de interesse público. A inação cívica apenas tem o condão de fazer o nada, permitindo o silencioso desmanche das estruturas éticas das instituições republicanas. Está chegada a hora de o Brasil se reencontrar, definitivamente, com seus bons cidadãos. Até quando deixaremos que poucas dezenas de políticos rasteiros prejudiquem o destino de milhões de brasileiros decentes?

 Sebastião Ventura Pereira Da Paixão Jr

quarta-feira, 20 de março de 2013

Mudar o sistema: eis a luta!


Mudar o sistema eleitoral, mudar o sistema inteiro. Acabar com o controle dessa minoria predadora que suga as riquezas e a vida do povo

Tenho acompanhado nas redes sociais as manifestações de centenas de pessoas protestando contra o fato de um assumido homofóbico e racista ser o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Confesso que ainda não consegui entender muito bem o motivo da estupefação. Eu, particularmente, acho magnífico. Penso que essas ditas “aberrações” conseguem fazer com que as pessoas, que no geral não se preocupam com política, percebam que alguma coisa não cheira bem. Mas é só isso.

O fato é que o legislativo brasileiro não é espaço de representação dos movimentos sociais organizados, nunca foi. Não é locus das maiorias. O legislativo é lugar dos interesses de grupos muito específicos, que representam negócios lucrativos e que legislam para eles. No universo dos 503 deputados há uma ínfima parcela – mas ínfima mesmo – de pessoas que representam alguma demanda popular. Os demais, ou é testa de ferro de algum interesse, ou é o chefe mesmo: vide Sarney.

O Congresso Nacional é composto por gente que se elege a partir de milionárias campanhas bancadas pelos interesses do mundo dos negócios: construtoras, fazendeiros, empresas multinacionais, coisa graúda mesmo. Não é lugar para “zezinhos”. Os poucos que conseguem se eleger apesar de toda essa frente econômica dos poderosos de plantão, acabam apenas legitimando a algaravia dos sem-vergonha que vendem a ideia de que as eleições são uma “festa democrática”. Pode até ser festa, mas não é democrática.
Eleição democrática é aquela em que as pessoas podem escolher um candidato que foi indicado pelos movimentos sociais, uma pessoa que se conhece, que trabalha para as causas coletivas.

Como acontece em Cuba, por exemplo. Os candidatos são indicados nas assembleias de bairro, por gente que sabe em quem está depositando sua confiança. Não há campanha com rios de dinheiro correndo porque ninguém vai ao parlamento para “encher os bolsos”, nem o deles nem o de ninguém. As pessoas se elegem para fazer o país caminhar. E também não recebem altos salários para servir ao seu país. O fazem, ou trabalhando no seu trabalho de sempre, ou recebendo o mesmo salário que receberia se estivesse no seu local de trabalho original. Opa, isso sim é que é um legislativo passível de ser confiável. E aí sim causaria estupor se um indicado à comissão de minorias e direitos humanos fosse um reacionário. Porque seria uma excrescência total.

Mas, aqui, no Brasil, onde os congressistas se elegem a partir o poder econômico, e muitas vezes são completos desconhecidos dos eleitores, o que se poderia esperarar? É óbvio que os que vão comandar as comissões, de direitos humanos ou qualquer outra, serão os prepostos do capital, dos interesses alheios aos desejos das gentes. É o óbvio!!! É ululante!! Uma pessoa comprometida com os interesses da nação numa presidência de comissão qualquer é que seria algo inédito e perturbador.

Assim que respeito muito as pessoas que estão aí a se manifestar contra o pastor homofóbico. Mas isso não é suficiente. Vejam quem controla a comissão de Finanças, a da Amazônia, da Agricultura, Ciência e Tecnologia, Educação, Desenvolvimento Urbano e as demais... Cada um deles mereceria o repúdio massivo das gentes. Defendem interesses que não são os nossos. Não são! Então, talvez, a partir de momentos como esse, em que, por um particularismo, a maioria se dá conta sobre os lobos que estão a cuidar do galinheiro, fosse tempo de se começar a pensar em mudar esse sistema político, como vimos tratando de fazer – em poucos - há tanto tempo. Mudar o sistema eleitoral, mudar o sistema inteiro. Acabar com o controle dessa minoria predadora que suga as riquezas e a vida do povo.
Essa luta sim, seria bonita de a gente travar.

Elaine Tavares é jornalista.





Veja os principais pontos da reforma eleitoral

A principal inovação é a ampla liberdade para o uso da rede mundial de computadores nas eleições. O tema gerou muita polêmica em Plenário e, antes, nas duas comissões em que a matéria foi votada - a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT). A versão final aprovada foi apresentada pelos relatores da proposta - os senadores Eduardo Azeredo (PSDB-MG), na CCT, e Marco Maciel (DEM-PE), na CCJ - apenas no final da votação desta terça-feira, 15. O Senado também inovou ao permitir a propaganda paga em páginas noticiosas na rede, mas apenas para a campanha à Presidência da República.


Entre outras medidas aprovadas pelos senadores, e que alteraram a proposta aprovada pela Câmara dos Deputados, destacam-se: o fim da impressão de votos, para permitir auditagem posterior das urnas eletrônicas; a possibilidade de doações pela internet por outros meios de pagamento que não o cartão de crédito; o estabelecimento de eleições diretas nos casos de cassação de governadores e prefeitos; e a possibilidade de realização de debates com 2/3 dos candidatos, assegurada a presença de candidatos de partidos que tenham dez ou mais representantes na Câmara dos Deputados.


Veja abaixo as principais alterações:

Internet


O texto final aprovado determina que "é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores" e "outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica". A proposta assegura o direito de resposta e diz que as representações pela utilização indevida da rede "serão apreciadas na forma da lei".



A proposta foi feita na última hora pelos relatores. Eduardo Azeredo explicou que a redação dada evita que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determine as normas para utilização da internet, como fez ao editar a Resolução 22.718, que regulou as práticas nas eleições de 2004 e 2006.



Foi mantida a exigência de que a internet, quando veicular programas de áudio e vídeo, obedeça os critérios estabelecidos para a realização de debates entre os candidatos aplicados às emissoras de rádio e de televisão.



Foi mantida a emenda que permite a propaganda paga, em sites noticiosos semelhantes a jornais impressos, na campanha para presidente da República. Foram permitidas 24 inserções, no tamanho máximo de um oitavo do espaço total do conteúdo. A propaganda não pode ser destinada exclusivamente a um único partido ou candidato. Foi proibida a veiculação, ainda que gratuitamente, de propaganda em sítios de pessoas jurídicas cuja principal atividade não seja a oferta de serviços noticiosos e sítios oficiais. 



Emenda apresentada por Mercadante, inicialmente rejeitada pelos relatores mas depois aprovada em destaque para votação em Plenário, permitiu que os candidatos manifestem-se por meio da internet - seja em páginas de campanha, blogs pessoais, sites de relacionamento ou mensagens eletrônicas - até o dia das eleições. A regra prevista pelos relatores determinava nas 48 horas que antecedem o pleito. O argumento utilizado foi que, como outros sites e blogs poderão fazer críticas aos candidatos, eles devem ter o direito de defesa.



Debates



Os debates no rádio, na televisão e na internet devem ter a participação de pelo menos dois terços dos candidatos, assegurada a participação dos candidatos de partidos com mais de dez representantes na Câmara dos Deputados. A emenda do Senado determinou "a participação dos demais (candidatos) em processo compensatório", ou seja, as emissoras poderão negociar com candidatos que não participem dos debates a veiculação de notícias sobre suas candidaturas.



A proposta foi repudiada pelo senador do PSOL, José Nery (PA). Já Aloizio Mercadante (PT-SP) considerou que a medida impede que "oportunistas sem votos e sem ideais inviabilizem os debates".



Doações



A internet também poderá ser utilizada para receber doações para campanha eleitoral. A Câmara dos Deputados já havia aprovado a doação por meio de cartões de crédito. No Senado, as possibilidades foram ampliadas. Essas doações poderão ser feitas pelo cartão de débito, por meio de boleto ou transferência bancária e ainda autorização de débito na conta de telefone. Foi aberta ainda a possibilidade de doação por outros meios eletrônicos de pagamento, que deverão conter a identificação do doador e a emissão obrigatória de recibo eleitoral para cada doação realizada.



Partidos e candidatos foram proibidos de receber direta ou indiretamente doação em dinheiro de entidades esportivas que, por sua vez, recebam recursos públicos.



Cassação de mandato



Os senadores estabeleceram que, no caso de cassação de registro ou de diploma de candidato a governador, prefeito e respectivos vices pela Justiça Eleitoral, será marcada nova eleição no prazo de 90 dias.



A emenda inicialmente aprovada pelas comissões incluía os cargos de presidente da república  e vice. O texto determinava que essas eleições somente seriam realizadas caso a cassação se desse nos dois primeiros anos de mandato. Caso ocorresse nos dois últimos anos, a eleição de novo mandatário seria feita de forma indireta, pelo Congresso Nacional ou pela respectiva Assembleia Legislativa ou Câmara de Vereadores.



Impressos



O Senado derrubou a determinação da Câmara para a impressão dos votos pela urna eletrônica. Esses votos impressos seriam utilizados na auditagem de 2% das urnas de cada seção eleitoral. Para manter a possibilidade de auditagem, o texto aprovado pelos senadores determina que o registro eletrônico dos votos de cada urna será mantido por pelo menos seis meses. Senadores de todos os partidos concordaram que a lisura da votação por meio de urnas eletrônicas é incontestável.



Trânsito



O voto em trânsito para presidente da República, também autorizado pela Câmara dos Deputados, foi retirado do texto aprovado pelos senadores. Estes consideraram que o voto em trânsito é passível de fraude, pois permite que um eleitor possa votar mais de uma vez, em localidades diferentes. A solução para impedir isso, que seria a interligação on line de todas as urnas eletrônicas, foi considerada economicamente inviável.



Inaugurações



O Senado havia proibido a participação de candidatos em inaugurações ou lançamentos de pedra fundamental de obras públicas seis meses antes da eleição. No texto final, no entanto, esse prazo foi reduzido para quatro meses, uma vez que é este o prazo para a escolha dos candidatos nas convenções partidárias. Para os relatores, o prazo de seis meses obrigaria ao impedimento desnecessário de quantos fossem os pré-candidatos às eleições. O prazo previsto pelos deputados era de três meses, considerado pequeno pelos senadores. O mesmo ocorreu no prazo para a proibição para propaganda institucional ou eleitoral relacionada à inauguração ou ao lançamento de pedra fundamental de obras públicas.



Benefícios



O texto aprovado no Senado permite o reajuste no valor de benefícios concedidos por meio de programas de assistência social, desde que haja previsão orçamentária para tal. Tal medida fora inicialmente rejeitada pelos relatores da matéria, mas votação em Plenário pedida por Mercadante resultou em sua aprovação. Esses programas, no entanto, não poderão ser ampliados, como também não poderão ser executados por entidade nominalmente vinculada a candidato ou por ele mantida.



Propaganda eleitoral obrigatória



Todas as empresas concessionárias, permissionárias e autorizadas para realizarem serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, serão obrigadas a veicularem a propaganda eleitoral. Também foram incluídas nesse rol as rádios e TVs comunitárias. Para os relatores, elas são, muitas vezes, o único canal do candidato com muitas comunidades. Ficaram excluídos dessa obrigatoriedade os canais de TV por assinatura.



Outdoors



A propaganda eleitoral nas ruas ficará restrita a bens particulares, por meio da fixação de faixas e cartazes não-colantes que não excedam a quatro metros quadrados. Ficam proibidos a utilização de outdoors, como já ocorre desde 2004, e a afixação de cartazes em áreas públicas, como parques e jardins. O Senado proibiu a pintura de muros e paredes externas, que havia sido autorizada pelos deputados.



Currículos



Os candidatos terão de comprovar idoneidade moral e reputação ilibada para obterem o registro de candidatura. Também deverão apresentar curriculum vitae para se registrarem, motivo de emenda apresentada pelo senador Wellington Salgado (PMDB-MG) aprovada em Plenário nesta terça-feira.



Dívidas



As instâncias nacionais dos partidos não poderão mais ser responsabilizadas por dívidas contraídas e não pagas por seus candidatos - a não ser que assumam, deliberadamente, essas dívidas. Os responsáveis por elas serão os próprios candidatos.

  
Pesquisas


As entidades e empresas que realizarem pesquisas de opinião pública relativas às eleições ou aos candidatos deverão informar à Justiça Eleitoral o nível econômico, sexo, idade e grau de instrução dos pesquisados com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A proposta partiu de emenda do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), determina ainda que o IBGE forneça aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), até o dia 31 de janeiro do ano das eleições, os dados relativos a sexo, idade, grau de instrução e nível econômico apurados em seu último levantamento, em nível federal, estadual e municipal.

  
Mulheres


Os partidos serão obrigados a preencher 30% de suas candidaturas com mulheres, e não apenas oferecer 30% das vagas para elas, como está na legislação hoje vigente. Também devem assegurar que 5% do montante que recebem do Fundo Partidário sejam utilizados para a capacitação de mulheres e reservar 10% do total do tempo de propaganda política a que têm direito todos os anos - e não apenas nos anos eleitorais - para as mulheres. Caso esses percentuais não sejam cumpridos, deverão ser aumentados, como forma de punição.


Quarta-feira, 16 de setembro de 2009/    Agência Senado

segunda-feira, 18 de março de 2013

Tributação, eficiência e moralidade



O artigo 3º da Constituição determina que são objetivos da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, para fins de garantia do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, bem como para a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 

Resta claro, portanto, que nossos objetivos republicanos são amplos e variados, exigindo uma postura competente do Estado brasileiro para que seja dada vida e cores ao preto e branco da norma sobre o papel.

Pois bem. Não traduz nenhuma novidade dizer que o governo precisa arrecadar tributos para administrar a máquina pública e, assim, efetivar politicamente os ideais normativos traçados na Constituição. Logo, quanto mais eficiente for a gestão pública, menor será a necessidade de recolhimento tributário. O motivo é simples: a eficiência é uma forma de otimização administrativa, gerando redução dos gastos, aumento da produtividade e incremento material das políticas de interesse coletivo. Todavia, quanto maior for o grau de corrupção, burocracia e falta de espírito público de uma nação, maior será a gula de arrecadação fiscal para compensar as mazelas da ineficiência estatal.

Com uma carga tributária que beira os 40% do PIB nacional, seria de supor que os serviços públicos brasileiros seriam modelares. Todavia, a realidade pulsante não é tão doce como a ilusão dos sonhos. O fato é que pagamos muito para receber muito pouco. Na verdade, quem dispõe de capacidade contributiva no Brasil tem o elevado encargo de pagar duas vezes: primeiro, para a ineficiência pública e, depois, para a proteção privada.

Os exemplos não nos deixam mentir: como o Estado não proporciona segurança, temos que contratar guardas privados; como a escola pública está dilapidada, o ensino particular surge como alternativa; diante do caos da saúde pública, os planos médicos particulares são a saída; e, diante das insuficiências do INSS, os aposentados têm que buscar dignidade em programas de previdência privada. Aliás, se o governo recebe e descumpre sua parte, não haveria, no caso, ofensa ao próprio princípio da moralidade administrativa (art. 37, CF)?

Sim, é verdade que esse sistema defectivo não é de hoje, como também é perceptível que o Brasil está melhor em muitos aspectos. Agora, no setor público, em especial na área política, ainda há muito para avançarmos. Para aperfeiçoar o sistema, precisaremos trabalhar e construir uma nova cultura de apreço republicano. E o trabalho inicial deverá ser feito em cada núcleo familiar, pois a família é o berço da boa política e dos bons costumes.

Depois, teremos que valorizar o empreendedorismo e a criatividade empresarial, pois, sabidamente, não há emprego sem empresa. Nesse contexto, quanto maiores os sucessos das empresas brasileiras, maiores serão os ganhos coletivos. Por fim, teremos que ser politicamente mais participativos, assumindo a intransferível responsabilidade pelos rumos futuros do país. Aqui, chego, paro e penso: será isso possível ou apenas estarei a sonhar?

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr

O Supremo e a agenda legislativa



Embora vulgarmente identificada com a regra da maioria, a democracia é muito mais do que isso. A questão da titularidade do poder político – o governo do povo – não prescinde das discussões sobre o modo e os limites do processo de tomada de decisões nos Estados democráticos de direito. Neste sentido, a Constituição funciona como o estatuto jurídico da democracia; o manual que disciplina as regras do jogo democrático.

O respeito às regras constitucionais do processo legislativo é garantia de transparência, participação popular e respeito aos direitos das minorias. Sua observância é direito público subjetivo de cada parlamentar e de toda a sociedade. A decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou a observância da ordem cronológica para a apreciação dos 3.066 vetos acumulados desde 2001 nos escaninhos do Congresso Nacional nada mais fez do que exigir o cumprimento do devido processo legislativo estabelecido na Constituição.

Com efeito, o art. 66, parágrafos 4º e 6º, da Constituição institui a obrigatoriedade de apreciação do veto, em sessão conjunta das Casas Legislativas, no prazo de 30 dias a contar do seu recebimento. Esgotado tal prazo sem que tenha havido deliberação, o veto será colocado na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final.

O sentido das normas constitucionais é o de assegurar a efetiva deliberação do Congresso Nacional sobre os vetos presidenciais, evitando-se o rolo compressor do Executivo. Daí ter o constituinte estabelecido um prazo para a sua apreciação, cuja inobservância deflagra o sobrestamento das demais proposições até sua votação final. Extrai-se da sistemática constitucional, assim, um dever congressual de deliberação sobre os vetos em ordem cronológica, eis que a pendência dos mais antigos impede a apreciação dos mais recentes.

No caso antes referido, uma maioria ocasional do Parlamento pretendia inverter a ordem cronológica prevista na Constituição e apreciar o veto parcial aposto pela presidente da República sobre algumas disposições da lei que fixou novas regras de distribuição de royalties e participações especiais entre os entes da Federação. Foi, portanto, acertada a decisão do ministro Luiz Fux que determinou a observância da ordem cronológica dos vetos pendentes de apreciação, como exige a Constituição da República. O atropelo ao procedimento representava uma nítida estratégia da maioria para esmagar a capacidade de mobilização política e popular da minoria parlamentar interessada na manutenção do veto.

Carece de fundamento a alegação de que a decisão do STF estaria a manietar a independência do Poder Legislativo. Primeiro, porque nenhuma instituição republicana pode arrogar-se poder superior ao que lhe confere a Constituição. Se a agenda legislativa está disciplinada de determinada maneira pelo texto constitucional, a própria independência do Poder Legislativo já foi concebida sob tais balizas.

Além disso, a decisão da Corte Suprema não se substituiu aos parlamentares, nem avançou de qualquer modo sobre o conteúdo das deliberações políticas a serem tomadas sobre os vetos. Ao contrário – e quase ironicamente -, o Supremo decidiu que cabia ao Congresso decidir sobre os vetos pendentes, o que não fazia desde 2001.

Assim, antes que alguma interferência indevida na independência do Parlamento, o gesto do Poder Judiciário representou um fortalecimento do Congresso Nacional ante o reconhecido poderio do Executivo.

Em importantes precedentes o Supremo tem obstaculizado a tramitação de projetos de lei e até de propostas de emendas constitucionais que contrariam os procedimentos ou avançam sobre cláusulas pétreas da Constituição. Ao assim agir, o STF não está a restringir a independência dos Poderes, nem a comprometer a soberania popular. Ele está apenas cumprindo o seu papel de guardião da Constituição e das regras do jogo democrático. Sua intervenção se dá a favor, e não contra a democracia.

 Gustavo Binenbojm

Deus, o diabo e ética eleitoral


Permita o leitor que eu comece com uma observação fora dos quadrantes jornalísticos. Se tudo, conforme aprendi quando jovem, é político (logo, o político inclui o religioso e o moral) e se nós, brasileiros, veneramos o “jogo” ou “briga política” a ser revelada ou esquecida quando os interesses são atendidos e os objetivos alcançados, por que diabos a política é o campo menos confiável e mais fluido da sociedade brasileira e do mundo moderno em geral?

Se Deus morreu e o papa renunciou; se não há mais religião e a moralidade perdeu para o “politicamente correto”; por que então a “Política” (com p maiúsculo) não é o campo mais sério, consistente e confiável do sistema em que vivemos e eventualmente morremos?

Faço essa pergunta porque temos belos bate-bocas no palco do teatro político nacional. FHC contra Dilma; Lula contra FHC e Eduardo Campos; os irmãos Cid e Ciro Gomes contra Campos; Sérgio Cabral contra Lindbergh Farias; e, como arremate, Lula se imaginando um novo Abraham Lincoln.

Nesse ambiente de bate-boca, a presidente Dilma, suprema magistrada da nação, disse uma frase decisiva: “Podemos fazer o diabo só na hora da eleição. Quando a gente está no exercício do mandato, temos que nos respeitar”. Como, pergunta o ouvinte, o político eleito se transformará num governante correto – e eventualmente pensar que é Deus – quando se elegeu fazendo o diabo? Outra grave questão embutida na fala de Dilma é como levar a sério esse rito de passagem sagrado das democracias liberais e competitivas – as eleições –, com todo mundo com o diabo no corpo. Fazendo tudo o que der na telha e, assim, confirmando que em política vale tudo, menos perder. E ganhar de qualquer modo, como estamos fartos de saber, pode significar uma desastrosa perda para o país.

Quando a presidente Dilma Rousseff diz, em resposta ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que “nós não herdamos nada, nós construímos”, ela tenta evitar o impossível. O ponto é o seguinte: como não lidar com heranças que, afinal, são a parte mais humana da vida social – pois tudo o que somos é herdado e aprendido de outras gerações e linhagens —, sem ter de abandonar o esquerdismo infantil que pensa construir o Brasil por si mesmo, naquela linha lulista do “nunca antes se fez isso ou aquilo na história deste país”?

A autossuficiência que surge abertamente na fala da presidente Dilma nunca foi boa conselheira política. Ela leva à ausência de diálogo e, no limite, à eliminação do outro. O outro, na democracia, é a oposição política que, perdendo ou vencendo, vem confirmar a difícil vocação liberal de viver ao redor de um sistema de poder que muda seus atores, mantendo, porém, seus princípios e papéis. Uma oposição que deve se fortalecer na medida mesma da centralização, das tendências estatizantes, do aumento da inflação e do “pibinho”.

Entendo que, num país que no campo da “política” tudo permite, o problema não é saber se a presidente é ingrata ou não, como disse FHC. O que está em jogo é a questão da continuidade de certas políticas públicas e de uma visão estratégica do lugar do Brasil neste mundo globalizado e – por isso mesmo – confuso em que vivemos.

Todo sistema que recusa o despotismo – coisa que ainda temos de politizar com seriedade no Brasil – tem valores que ninguém discute. Muitos modos de fazer e pensar os problemas do país são necessariamente discutíveis. As democracias liberais são sistemas envolvidos em batalhas (mas não em guerras) rotineiras de opinião. Se não fossem, a democracia liberal acabaria. Quem inventou a herança como um conceito político negativo – a famosa “herança maldita” – não foi o PSDB nem a oposição. Foi justamente a reação petista que recusou literalmente todas as transformações realizadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Havia todo um discurso de recusa, embutido na fórmula da “herança maldita”, que criticava a privatização da telefonia, a reestruturação do sistema bancário e financeiro e o Plano Real — cujo fracasso o PT previu. Até que o contexto engendrado graças ao Plano Real revelou sua eficácia e fez surgir os “pibões” do Lula, porque, mesmo com as crises, todos os marcos financeiros estavam compostos.

Só um partido de índole antidemocrática pode usar a expressão “herança maldita” quando o regime eleitoral que o levou ao poder estabelece a rotatividade. Seria possível a um time de futebol campeão falar que o título que acaba de conquistar e o futebol em que mostrou excelência são uma herança maldita? Se fizer isso, obviamente cospe no prato que comeu. Porque rejeita a linhagem que o levou ao campeonato e ao poder que – eis uma lição do futebol e do esporte em geral – deve ser mantida e devolvida com avanços ao novo vencedor.

Existe no Brasil uma dificuldade em manter lealdade a sistemas políticos eleitorais de cunho liberal e competitivo e a administrações éticas. O ético aqui não é palavra para uso eleitoreiro, mas um valor que, entre outras coisas, coage o ator a limitar seu projeto de “levar vantagem em tudo” (essa máxima conhecida como Lei de Gerson), uma tendência onipresente em nossa prática política.

Roberto DaMatta