"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Uma Proposta Modesta: a reforma do Brasil


por: Paulo Roberto de Almeida - Publicado em 06.07.2006


Monteiro Lobato, num de seus livros da série do Sítio do Pica-Pau Amarelo, atribuiu à personagem Emília a tarefa de fazer a “reforma da Natureza”: coisa pequena, apenas corrigir alguns mal-feitos do Criador e consertar o que parecia errado aos olhos de retrós de uma boneca de pano. Dotada provisoriamente de poderes originais, a boneca logo instalou a confusão no sítio, com o que o seu mandato foi cassado e o equilíbrio anterior voltou a reinar.


Monteiro Lobato também tentou, várias vezes, “consertar o Brasil”, naquilo que ele considerava como obstáculos indevidos ao nosso processo de desenvolvimento, chegando até a enfrentar a prisão, em função de algumas de suas “sugestões”. Não creio que, ao sugerir agora uma pequena lista de propostas reformadoras, como explicitadas abaixo, eu corra o mesmo risco do valoroso Lobato: vivemos em plena democracia e a cacofonia de “reformas salvadoras” condenaria a série, de todo modo, ao limbo das sugestões sem futuro. Provavelmente vou receber apenas sorrisos condescendentes, além de alguns tapinhas nas costas, do tipo: “muito bem, vamos considerar...”.


Ou seja, não tenho nenhuma ilusão de que meu cahier de doléances, seguido de sua respectiva agenda reformista, tenha qualquer chance de ser considerado como factível por qualquer força política e venha efetivamente a ser considerado no debate que se inicia sobre as grandes opções nacionais. Em todo caso, acredito colocar as questões que me parecem mais pertinentes ao atual momento político e econômico.


Formulo, em primeiro lugar, o meu diagnóstico (muito rápido) dos problemas principais e faço, depois, um pequeno receituário, também rápido, do que poderia ser empreendido para tornar o Brasil um país melhor do que ele é atualmente para a maior parte dos seus cidadãos. Não creio, para começar, que o Brasil necessite de uma simples reforma econômica. Ele precisa, sobretudo, de várias reformas estruturais, a começar pelo terreno político, onde se encontra a chave para a resolução dos muitos problemas que explicam o nosso baixo desempenho econômico.


Como essa reforma política não virá, pelo menos não com a profundidade apontada, desejada e necessária, parece evidente que a maior parte das demais propostas não será empreendida no futuro previsível. Estarei sendo pessimista? Minha leitura realista da realidade brasileira contemporânea não me impede, porém, de apontar o que me parece fundamentalmente errado na situação atual do Brasil e de indicar uma lista de tarefas a serem consideradas pelos que se preocupam, como é o caso deste autor, com o país que queremos deixar aos nossos filhos e netos.




Primeiro: O diagnóstico.




1. Constituição intrusiva demais, codificando aspectos de detalhe que deveriam estar sendo regulados por legislação ordinária.






2. Estado dotado de excessivos poderes, despoupador, perdulário, disforme e pouco funcional para as tarefas do crescimento econômico.






3. Legislação microeconômica (para o ambiente de negócios e para a regulação das relações trabalhistas) excessivamente intrusiva na vida dos cidadãos e das empresas, deixando pouco espaço para as soluções contratuais e para negociações diretas, inclusive no que se refere às disputas, nos mercados de bens, serviços e do trabalho.






4. Preservação indevida de monopólios, cartéis e outras reservas de mercado, com pouca competição e inúmeras barreiras à entrada de novos ofertantes.






5. Reduzida abertura externa, seja no comércio, seja nos investimentos, seja ainda nos fluxos de capitais, gerando ineficiências, preços altos, ausência de competição e de inovação.






6. Sistemas legal e jurídico atrasados e disfuncionais, permitindo manobras processualísticas que atrasam a solução de controvérsias e criam custos excessivos para as transações entre indivíduos e empresas.Como podem constatar os leitores, nada mencionei a respeito daquilo que muitos consideram ser os maiores problemas do Brasil atual, quais sejam, a falta de crescimento econômico, de segurança e a preservação das iniqüidades distributivas.




É porque acredito que, uma vez realizadas as reformas sugeridas, de que trato a seguir, essas questões podem ser melhor encaminhadas pelos poderes públicos e pelos agentes privados, estes últimos constituindo, aliás, as únicas fontes de riqueza que subsidiam a ação estatal em todas as áreas entregues à sua (in)competência.







Agora: A agenda das reformas.






1. Reforma política, a começar pela Constituição: seria útil uma “limpeza” nas excrescências indevidas da CF, deixando-a apenas com os princípios gerais, remetendo todo o resto para legislação complementar e regulatória. Em vista dos seus custos para o País e os cidadãos (que pouco sabem do nível real de despesas), seria conveniente operar uma diminuição drástica dos corpos legislativos em seus vários níveis (federal, estadual e municipal). No campo da reforma eleitoral, introduzir a proporcionalidade mista, com voto distrital em nível local e alguma representação por listas no plano nacional, preservando o caráter nacional dos partidos.









2. Reforma administrativa com diminuição do número de ministérios, e atribuições de funções a diversas agências reguladoras. Retomada da privatização das empresas estatais que ainda existem e que são fontes de ineficiências e corrupção. Fim geral da estabilidade no serviço público, salvo para algumas carreiras de Estado (estritamente definidas).









3. Reforma econômica ampla, com diminuição da carga tributária e redução das despesas do Estado; severo aperto fiscal nos criadores de despesas “inimputáveis”, que são os legislativos e o judiciário. Reformas microeconômicas de molde a criar um ambiente favorável ao investimento produtivo e ao lucro e para diminuir a sonegação e a evasão fiscal.









4. Reforma trabalhista radical, no sentido da flexibilização da legislação laboral, dando maior espaço às negociações diretas entre as partes. Extinção da Justiça do Trabalho, ela mesma uma das fontes de criação e sustentação de conflitos. Eliminação do imposto sindical, que alimenta organizações de papel, de comportamento rentista.






5. Reforma educacional completa, com retirada do terceiro ciclo da responsabilidade do Estado e concessão de completa autonomia às universidades públicas (mantendo-se a transferência de recursos para fins de pesquisa e projetos específicos). Concentração dos recursos públicos nos dois primeiros níveis e no ensino técnico-profissional, cuja valorização passa pelo treinamento e qualificação adequados dos professores e a introdução de sistemas de remuneração por mérito e rendimento (diretamente aferidos pelos resultados dos alunos).






6. Prosseguimento da abertura econômica e da liberalização comercial; acolhimento do investimento estrangeiro e adesão a regimes proprietários mais avançados.Talvez subsista alguma contradição entre o título deste ensaio e o seu escopo amplamente reformista, mas o fato é que a distância entre a amplitude dos problemas brasileiros detectados e as modestas possibilidades de seu encaminhamento satisfatório pela via das reformas justifica, realisticamente, o uso do conceito. Não podemos esperar mais do que progressos modestos, se é que algum será feito nos próximos meses e anos...


quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Familia Imperial brasileira


A mesma família que em 1808 aportou no Rio de Janeiro com festas grandiosas, onde atualmente fica a "Praça XV", foi expulsa do Brasil na madrugada de 16/17 de novembro de 1889, no mesmíssimo lugar... Os Príncipes de Bragança reinaram aqui como soberanos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de 1815 a 1822 e, depois, como Imperadores do Brasil, de 1822 a 1889.

Em 2008, um sem-número de instituições de todo o país comemoraram o Bicentenário da vinda da Corte Portuguesa ao Brasil e, neste sentido, as festas pelos 160 anos de D. Isabel de Bragança inauguram as comemorações.


Mesmo exilada, ela foi reconhecida Chefe da Casa Imperial e Imperatriz de direito do Brasil (D. ISABEL I), em 1891, em Paris, pela representação dos estadistas e nobres brasileiros que a acompanhavam no momento da morte de D. Pedro II. Desse modo, os quatro filhos originados do casamento com o Gastão de Orleãns (Conde d'Eu), bem como os demais descendentes, teriam direito sucessório legítimo ao trono brasileiro, caso a Monarquia fosse restaurada.

D. Luiza Victoria, D. Pedro de Alcântara, D. Luiz e D. Antonio - nomeados pela ordem de nascimento - foram os primeiros, Orleãns e Bragança, junção do nome do pai e da mãe.
Somente D. Pedro e D. Luiz tiveram descendência.



A atual Família Imperial brasileira é representada notadamente pelo Chefe da Casa Imperial, D. Luiz, nascido em 1938, residente em São Paulo. Ele é o neto homônimo de D. Luiz e é bisneto e sucessor da Redentora.

D.João VI e a formação da diplomacia brasileira.


por José Alexandre Altahyde Hage


O ano de 2008 marca os duzentos anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, então a mais importante colônia lusitana. A chegada do principal membro da Corte, Dom João VI, em 1808, é acompanhada de grande simbologia que contribui enormemente para a transformação cultural, política e social da grande posse americana. Na leitura de Caio Prado Junior, a presença do monarca no Rio de Janeiro fez com que o espírito de autonomia nacional, bem como o início da construção institucional tivesse ímpeto, cujo desfecho se deu em setembro de 1822 (Caio Prado Junior. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo, Brasiliense, 1957).


De fato, com Dom João VI no Brasil a paisagem e a atmosfera política e cultural havia muito se alterado. Para começar, foi necessário dar ares mais cosmopolitas à antiga capital brasileira com novas instituições que pudessem auxiliar na criação de um centro metropolitano. A transferência de artistas e estudiosos como Taunay, Martius e outros ainda são marca do interesse de se compreender as terras dos trópicos para nelas viver por muito tempo sob o Reino Unido de Portugal e Brasil.


A fundação da Escola de Belas Artes, atualmente integrada à UFRJ; a Academia Naval e a Faculdade de Medicina da Bahia, agora da UFBA, as três feitas entre 1810 e 1816, são exemplos da atividade joanina na mudança para fazer do Rio de Janeiro uma cidade de referência internacional. A importação da Biblioteca Real, atual Biblioteca Nacional da avenida Rio Branco também está neste âmbito.


Mas para congruência deste breve texto uma das relevantes marcas da família real no Brasil foi a tentativa de se fazer uma política externa que, no final das contas, fosse lograda ao crescimento da colônia, sede do império ultramarino português. Quando Dom João VI apareceu, junto com ele veio a artimanha e a “escola diplomática” lusitana que, em grande parte, criou raízes no Brasil e ajudou a dar origem ao Itamaraty no que diz respeito aos valores e ações - fatores que devem procurar ser permanentes no comportamento da Casa até neste momento.


Dom João VI ao montar os arquivos e exercitar os trabalhos diplomáticos da Lisboa tomada por Napoleão não deixou de modo claro uma linha divisionária que separasse os interesses metropolitanos dos brasileiros. Quais eram portugueses e quais os brasileiros precisamente? Daí a fundição da colônia com o centro metropolitano dando origem a algo novo para a época e talvez nunca mais repetido em toda a história, uma colônia que tem status de centro decisor.
Com efeito, não deixa de ser licito afirmar que os valores atuais ou trabalhados tradicionalmente pela Chancelaria brasileira sejam herdados dos portugueses em grande monta. Afinal, o gosto pela contemporização com atores ou Estados de maior projeção de poder, a valorização dos tratados e das normas acordadas pelo direito internacional etc não são ações diplomáticas lusitanas?


O grande historiador José Honório Rodrigues, em companhia de Ricardo Seitenfus, diz que as lembranças e maneiras de ser da diplomacia portuguesa se integraram à nacional que, guardadas as devidas proporções, as utilizou em momentos cruciais da historia nacional, sobretudo administrando conflitos junto às republicas sul-americanas, procurando esgotar suas demandas consideradas contrárias ao interesse nacional brasileiro, mas sem deixar sinal nem de arrogância, nem de leniência que pudesse comprometer a autoridade do País (José Honório Rodrigues e Ricardo Seitenfus. Uma História Diplomática do Brasil: 1531 a 1945. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995.). Para os autores isso se deu ainda mais no período imperial, em que a existência de uma unidade política de regime monárquico era vista por estranha em uma América republicana.


A diplomacia bragantina, sob Pedro II, teve o intuito de manter o Brasil incólume na maneira do possível perante as republicas, mormente, as platinas em que Argentina tencionava abarcar os frágeis Uruguai e Paraguai aos seus domínios de “vice-reinado”, como preferia Rosas. Na ótica de Rodrigues e Seitenfus o que fez o Império fora apenas manter o território fora das conflagrações e crises de toda a ordem que havia na parte sul do continente.


Crises, cujo poder de irradiação em grande parte atingia o equilíbrio das fronteiras no Rio Grande. Daí as intromissões cuidadosas do Rio de Janeiro para operar equilíbrio de poder na área do Prata, mas sem necessariamente imprimir relação de hegemonia.


Na verdade, a valorização do período joanino no Brasil foi tarefa considerada árdua de um importante historiador, mas diplomata relativamente apagado, Manuel de Oliveira Lima. Oliveira Lima havia exercido a cabeceira na Embaixada em Washington, em época coincidente com a de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia.


Freyre após sua permanência em Nova York traz na cabeça o feitio de Casa Grande & Senzala, livro não considerado de interesse diplomático de modo direto e reto, mas que aponta passagens sensíveis ao leitor mais atento para compreender a forma de como o colonizador conseguiu manter integra uma malha territorial deste tamanho e apesar de todos os contratempos políticos da época. Os dois pernambucanos do Recife eram amigos e trocavam idéias sobre a cultura brasileira.


Já Oliveira Lima fora transferido para a capital norte-americana com livro publicado para fazer justiça ao trabalho feito pela Corte de Dom João VI. Como se fosse uma pecha eterna o monarca português já era visto com imagens depreciativas sobre sua pessoa e sua inteligência. Assim, Oliveira Lima procura escrever obra vingadora para o estadista português - trabalho que virou clássico brasileiro. O livro é Dom João VI no Brasil que irá informar boa parte da artimanha diplomática e, por que não, geopolítica da “colônia metropolitana”.


No começo o autor descreve as urgências e as razões política que levaram o principe-regente a deixar Lisboa e rumar para o sul. A questão mais premente seria a de conservar e proteger efetivamente o império no mais que pudesse. Antecipando um século e meio o escritor italiano Lampedusa, em O Leopardo, Dom João VI preferia perder os anéis aos dedos.


No Brasil o estadista procurou definir a geografia a favor do Brasil. Valendo-se de artimanhas e interpretações particulares das cartas geográficas ele tencionou fazer com que o desenho territorial fosse mais bem definido, indo ao encontro do que seria conveniente para o Rio de Janeiro. Por exemplo, aumentar a presença política, militar e econômica do Brasil na região do Prata era uma constante. Tudo isso porque fatalmente seria por certo o encontro entre o Brasil e a Argentina pelo domínio da região mais setentrional.


A idéia joanina era justamente a de dominar a margem oriental do rio da Prata, assegurando controle no Uruguai (Cisplatina) e afastando as perturbações de toda ordem no já complicado Rio Grande.Desta forma, o mesmo empenho político-diplomático para dilatar o território nacional ao sul deveria se reproduzir ao norte sobre território, cujo oponente era grande potência, embora machucada por anos de guerras e quedas violentas nos fatores do poder nacional: a França. O Império Luso-Brasileiro disputaria a região do Amapá/Guiana com Paris.


Tomando Caiena logo de pronto a diplomacia estava aproveitando o período de relativa fraqueza da França em virtude das guerras napoleônicas e os limites impostos pelo recém-feito Congresso de Viena, e 1815.
O Rio de Janeiro entendera que uma maior definição geográfica para o Império seria também arredondar o território ao norte, buscando saída com proximidade ao Caribe. O resultando esperado seria a defesa do território em duas áreas consideradas das mais delicadas para o Brasil: o Prata e Amapá.


Dom João VI toma Caiena dos franceses e tenta ganhar tempo para que a causa fosse ganhada em momento que Paris não tinha condições militares e políticas para descer ao sul e tomar sua antigas posses. No fundo a diplomacia luso-brasileira acredita fazer uma justiça, um reparo, visto que havia queixa de que a França havia vilipendiado a presença portuguesa por volta do século XVII, quando da reconstrução de Portugal.


Ainda que muitos projetos joaninos não houvessem logrado progresso longo sua imagem ou exemplo foi marcante para trabalhos futuros. Rodrigues e Seitenfus são da opinião de que o Barão do Rio Branco muito se valeu do empenho luso-brasileiro para defender limites junto à Argentina, Questão de Palma, e à França, quando da dilatação mais ao norte do Amapá. Por conseguinte, dando a entender que o espírito trazido em 1808 perpassava os trabalhos de Rio Branco, pois essas operações de reconhecimento foram feitas sob a letra do direito internacional, não tendo o Brasil a necessidade de contestação armada.


É certo que toda figura, ou obra, histórica pode ser contestada. São construções ideológicas para aqueles que seguem o raciocínio marxista. Podem os observadores ter suas razões.


Aproveitando atmosfera que fora favorável nos anos 1980 e 1990 houve muita tentativa de revisão histórica, procurando inaugurar um tipo de historia que não fosse a dos vencidos, a oficial, mas sim daqueles que não têm voz. Não há dúvidas de que essas manifestações são democráticas e legitimas, mas de pouca serventia tem para a sofisticação cultura e melhor preparo dos pesquisadores que, realmente, querem ter seus textos respeitados (Francisco Doratiotto escapa dessa moda com seu Maldita Guerra. São Paulo, Cia das Letras, 2002.


O professor da UnB procurou fazer estudo reto da guerra do Paraguai que não caísse ao gosto de um tipo de militância político-universitária, cujo mote era de que o Paraguai possuía condições sociais e econômicas moderníssimas em face do Brasil e Argentina.


Por temor da concorrência de um poderoso ente sul-americano a Grã-Bretanha arquitetara a guerra que acabou com o Paraguai. A investigação de Doratiotto nega esta cultura da guerra que fora muito em voga.).


Sob a alegação de serem historiadores ou pensadores a serviços das classes dominantes muitas obras clássicas foram renegadas a favor daquelas assumidamente partidárias. E por causa disso, entre outras coisas, muitas passagens de nossa historia diplomática foi desprezada.Mas a questão não se debate aqui longamente. Há quem possa dizer que a vinda da família real não operou o processo que pudesse, ao fim, lograr condições de fazer o Brasil a grande potência que deveria ser. Um dos pontos debatidos como limitados da ação joanina foi a famosa abertura dos portos, logo em sua chegada ao Rio de Janeiro.


Tal abertura havia privilegiado muito a Grã-Bretanha em detrimento dos nacionais, o que ocasionou atraso econômico.Amado Cervo e Clodoaldo Bueno já escreveram algo sobre o tema (Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno. Historia da Política Exterior do Brasil. Brasília, Universidade de Brasília, 2002.). Os dois reconhecem que houve muitas falhas na constituição do tratado dos portos amigos; concordam também que as obrigações luso-brasileiras foram leoninas para uma unidade política com dificuldades.


Contudo os autores fazem algo positivo para o assunto em questão, e nem sempre evidente, reconhecem que toda a ação de caráter diplomático não é desvencilhada das condições econômico-políticas e formas sociais com a qual se organiza o Estado. A assinatura da abertura dos portos não foi voluntária, foi fruto da fraqueza do ator sul-americano perante uma grande potência. Mas Cervo e Clodoaldo acreditam que poderia ser pior.


O período de liberalismo imposto por Londres, com a abertura dos portos, antes de tudo, ao Brasil pode ter sido o dínamo que fez a diplomacia brasileira esperar ansiosamente por sua conclusão. Logo após as variadas crises de instabilidade política e lutas internas que perpassaram os anos de 1820 e 1830 abriram caminho para uma época de maior altivez, que pudesse ajudar a construir o poder do Império.


Daí por diante o Brasil não será, de fato, uma grande potencia, mas angariará respeitabilidade internacional e credibilidade diplomática.A leitura dos textos sobre historia da política exterior brasileira, dos clássicos do pensamento político nacional, podem jogar luzes sobre esse importante período que certamente tem a ver com a maneira de como o Brasil existe e se comporta tanto no âmbito doméstico quanto no internacional. Relembrar a obra joanina nos trópicos é um bom passo para isso.



José Alexandre Altahyde Hage é Doutor em Ciência Política pela Unicamp e professor do curso de Relações Internacionais da Trevisan – São Paulo (alexandrehage@hotmail.com).

A Estratégia Brasileira para Nacionalizar a Amazônia



por: Artur Andrade da Silva Machado

Até hoje, não foram poucos os acontecimentos interpretados como pressões externas para “internacionalizar” a Amazônia. O temor por uma “internacionalização” da Amazônia brasileira remonta ao final da década de 1950 e início da de 1960, quando foi fixado o Tratado da Antártida submetendo a região antártica ao julgo internacional. Na época, preocupado com a proteção das fronteiras nacionais, o governo brasileiro criou a Zona Franca de Manaus, com o intuito de integrar a Amazônia Ocidental às dinâmicas socioeconômicas nacionais. Desde muito antes, no entanto, o governo brasileiro já demonstrava preocupação com atuação de forças externas na região.


No primeiro semestre deste ano, em parte devido à saída de Marina, mas também devido a outros fatores (como o relatório lançado pelo Bird em abril que apontava o Brasil como o país que mais desmatou entre 2000 e 2005; e a divulgação das pessimistas cifras do desmatamento do Inpe em maio), a pressão para a “internacionalização” da Amazônia de fato aumentou. Não faltam fatos ilustrativos de tal pressão, como o artigo publicado pelo correspondente do New York Times no Rio de Janeiro; as recorrentes críticas ao Estado brasileiro pelas ONG internacionais; e a preocupação, por parte dos países desenvolvidos, com os efeitos colaterais de incentivar um programa de biocombustíveis nacional, demonstrada durante a visita da Chanceler alemã à Brasília e atribuída ao candidato à presidência dos EUA, Barack Obama, pelo embaixador do Brasil em Washington, Antônio Patriota.


No entanto, embora o debate travado em torno da Amazônia no plano internacional tenha de fato pendido para uma maior cobrança de responsabilidade por parte do Estado brasileiro, tal debate não é novo, mas está associado a uma popularização da temática ambiental, que desde a década de 1970 permanece incorporada à agenda política da comunidade internacional.


As pressões internacionais sobre a gestão da Amazônia devem, portanto, ser entendidas como um processo que se estende no plano histórico e tende a se prolongar no futuro das relações internacionais do Brasil. Assim, o exercício que se faz mais válido agora é analisar como vem respondendo o Estado brasileiro a essas pressões em vias de assegurar e de legitimar sua soberania na região amazônica.


A esse respeito, seja por configurar um plano de ocupação da região, seja por representar demandas de setores oficiais por maiores ingerência e responsabilidade no trato de recursos naturais estratégicos, seja por reproduzir contestações populares à soberania brasileira na região, o trato das questões amazônicas por fontes externas sempre foi interpretado pelo governo brasileiro como ameaça aos interesses e à soberania nacionais. A leitura de ameaças à jurisdição nacional sobre a Amazônia brasileira foi responsável pela formulação de políticas públicas que visam vivificar uma região rica em recursos naturais, mas com baixa presença da população e do Estado nacionais.

Nesse sentido, embora a Amazônia, devido a suas próprias possibilidades, constitua região de potencial estratégico para o desenvolvimento nacional, as ações do Estado em vias de incorporar a Amazônia à área de atuação estatal e às dinâmicas da população nacional respondem historicamente a uma percepção da necessidade de fazê-lo devido a incentivos externos. Sob essa perspectiva, é possível argumentar que é o governo do brasileiro, e não atores internacionais, que desenvolve uma estratégia para “nacionalizar” a região.


A primeira percepção de “ameaça” que forçou a uma mobilização da atenção do Estado para a região amazônica deriva de um plano norte-americano de ocupação da região em meados do século XIX. Tal plano, atribuído ao empreendedor Willian Troousdale, era pautado na transferência da população negra dos EUA para exploração de borracha e algodão amazônicos e derivava do mito do eldorado produtivo da região, formulado em artigos da marinha dos EUA em 1853.



Nessa circunstância, o Estado norte-americano pressionou o Brasil para que este abrisse a navegação dos rios amazônicos em seu território às nações amigas. A resposta da diplomacia brasileira a esse episódio foi permitir estrategicamente a navegação de seus rios pelos países ribeirinhos superiores, protelando o pedido norte-americano até que fosse possível incentivar a ocupação da região com população nacional.


Em 1876, novamente a atenção do Estado brasileiro foi atraída para a região quando o inglês Henry Alexander Wickham levou mudas de seringueira para a Inglaterra de onde foram enviadas à Malásia e à África, o que destruiu o monopólio que o Brasil exercia sobre o comércio da borracha. Desde então o Estado preocupa-se com a “segurança” dos recursos naturais da região impondo multas pesadas pela extradição ilegal de produtos amazônicos e vendo com desconfiança a atuação de atores internacionais na região.


Mais uma vez, no começo do século XX, as pretensões bolivianas de arrendar grande área limítrofe do Brasil em seu território a uma corporação de capitalistas estrangeiros culminaram com intensa mobilização da diplomacia brasileira durante a gestão do Barão do Rio Branco, o que acabou por ampliar o território nacional sobre tal área com a aquisição do estado do Acre. Todavia, não obstante o advento de tais passagens, as preocupações estratégicas do Estado brasileiro estavam direcionadas historicamente para a região do Prata, característica que o Brasil herdara da diplomacia portuguesa de Dom João VI.


Foi somente com a ascensão da temática ambiental na agenda internacional durante a década de 1970 que a região amazônica passou a atrair atenção do Estado de maneira mais evidente. A partir de tal período, cada vez mais a Amazônia passou a ser entendida como um complexo ecológico transnacional estratégico para a manutenção de características ecológicas equilibradas nos níveis regional e planetário. Tal entendimento deriva das dimensões de tal complexo e da natureza das funções que ele desempenha. Em relação ao total dos recursos naturais planetários, a Amazônia reúne um terço das florestas tropicais úmidas, 50% da biodiversidade e 15% da água doce não congelada. Essas características lhe atribuem enorme peso na constituição do regime de chuvas da América do Sul, na possibilidade de desenvolvimento de conhecimento biológico e biogenético e na manutenção da temperatura da terrestre.


Assim, quando cresceu, na comunidade internacional, uma maior conscientização sobre a necessidade do uso sustentável dos recursos naturais já havia, naturalmente, uma crescente preocupação em combater o desmatamento florestal, o que pode ser atribuído à ativa participação das ONG na articulação dos Estados à causa ambiental.


A tal conscientização corresponderam pressões externas para que a gestão de florestas tropicais passasse a ser objeto de deliberação da comunidade internacional e de aplicação do direito internacional, o que ocorreu, pela primeira vez, durante a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992. Recentemente, o governo brasileiro foi trazido a debater a questão amazônica inclusive em cúpulas do G-8, ocasiões nas quais o ex-Premier inglês Tony Blair chegou a advogar a privatização da floresta.


Durante tal processo, já havia antecedentes da atuação do Estado brasileiro na região, estimulada pela percepção de ameaça externa à integridade do território nacional. Desde então, conforme aumentavam, em marcha cada vez mais densa, as pressões para a “internacionalização” da gestão da Amazônia, aumentava também a preocupação do Estado com a manutenção de sua soberania na região.


Assim, o Estado, que passou a considerar a região como estratégica para garantir os seus interesses de defesa, respondeu às novas “ameaças à soberania” aumentando a presença do exército no local, instituição que passou a ser o principal veículo do Estado na região amazônica.


O corpo militar brasileiro atua na Amazônia em duas frentes: o Programa Calha Norte (PCN) e o Sistema de Vigilância Amazônico (SIVAN). A primeira delas segue os preceitos da tese da vivificação da fronteira, segundo a qual a posse (presença de facto) reforça o direito ao território; assemelhando-se, dessa maneira, à estratégia que a diplomacia brasileira concebeu em meados do século XIX quando tentou incentivar a ocupação da região com população nacional. O PCN procura, portanto, incentivar a migração de nacionais e o estabelecimento de atividades econômicas nas proximidades das fronteiras com cinco países ao norte, bem como nas calhas dos rios Amazonas e Solimões.


Ao exército cabem as funções de fornecer a infra-estrutura mínima necessária para a ocupação e de monitorar tanto a navegação dos rios quanto pontos estratégicos da área coberta pelo programa.
Com o SIVAN, pretende o Estado brasileiro monitorar as fronteiras nacionais de forma a levantar informações para o combate de ameaças definidas a partir de uma noção ampliada do termo, que envolve atividades como o tráfico de ilícitos e o desmatamento.


Na prática, as informações geradas pelo mecanismo permitem a monitoração de uma série de outras variáveis, como o uso de recursos hídricos e o uso e a ocupação do solo. Em relação ao uso do solo, o Estado monitora atividades como a aquisição de terras por estrangeiros e a mineração que ficam proibidas na faixa de fronteira (no Brasil equivalente a uma área de 150 km adentrando o território nacional a partir da linha de fronteira).


A despeito da atuação do exército na região, no entanto, a pressão da comunidade internacional pela “internacionalização” da Amazônia não cessou e apareceram novos atores transnacionais aos quais o exército não está preparado para combater. Assim, nesses momentos em que se reforçam as pressões internacionais, tem o Estado nova chance de corrigir os rumos das políticas para a região. Tais políticas dependerão da leitura que o Brasil fará do teor da pressão para a “internacionalização” da Amazônia. Nesse sentido, se por um lado não há nada que aponte, nas declarações oficiais, para a constituição de uma ameaça de invasão clássica, seja por parte de algum Estado especificamente, seja por parte da comunidade internacional como um todo; por outro, a leitura que faz o Estado de pressões desse tipo é historicamente tendenciosa a uma interpretação da questão como afronta aos interesses de defesa nacional.


No entanto, a estratégia brasileira para “nacionalizar” a Amazônia precisa ser revisada. Antes de escolher entre um tipo de política e outro, o ideal seria adotar medidas pensadas para que a comunidade internacional enxergue a soberania brasileira na região amazônica como legítima. Sob essa perspectiva, faz-se necessário, para avaliar a questão de maneira holista, segmentar as fontes de legitimidade em três facetas: uma legal, garantida por tratados; uma coercitiva, garantida pelo componente militar; e uma racional, garantida pelos retornos positivos a ela vinculados.


Em relação a uma legitimidade legal, o Brasil firmou tratados com todos os países lindeiros, gozando do privilégio de não reconhecer contentas em relação às fronteiras nacionais. Em relação a uma legitimidade coercitiva, ao mesmo tempo em que o cálculo estratégico estabelece que a Amazônia é região prioritária, apenas 10% do contingente militar foi enviado à região, ficando responsável pela proteção da metade do território nacional.
Finalmente, dentre essas facetas de legitimidade, a menos desenvolvida no caso brasileiro é a racional tendo em vista que a comunidade internacional não recebe os retornos que espera ao confiar a proteção do complexo amazônico ao governo brasileiro.


Terá agora, o Estado brasileiro, nova chance de provar que essa região, tão cara à manutenção da estabilidade ecológica do planeta, está bem protegida sob sua jurisdição com o novo Fundo da Proteção Amazônica, criado no primeiro dia do mês e que conta com recursos de diversos países preocupados com a gestão responsável dos recursos naturais da floresta. Tal fundo representa uma insistência na confiança que deposita a comunidade internacional na capacidade brasileira de proteger seus recursos naturais, mas também indica que haverá ainda maior cobrança por ingerência e responsabilidade na gestão dos recursos amazônicos.


Artur Andrade da Silva Machado é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília - PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais - LARI (andradesmachado@gmail.com).

Segurança Multidimensional da Pan - Amazônia




por: Alberto Teixeira da Silva

A Pan-Amazônia vai se transformar na arena dominante dos debates promovidos pelo Forum Social Mundial (FSM) que ocorrerá na cidade de Belém no período de 27 de janeiro à 1 de fevereiro de 2009. Será um momento de reflexões, diálogos e proposições para compreender e atualizar as agendas temáticas no contexto dessa imensa porção geográfica estratégica para o desenvolvimento local, nacional, continental e global.

Com efeito, no cenário da sociedade pós-industrial, mudanças substantivas conformam novas percepções e paradigmas num mundo em franca ebulição de idéias, dilemas e projetos civilizatórios. Diante das complexas dimensões da globalização - econômica, política, social, tecnológica, cultural e ambiental - desafios inadiáveis e ameaças sistêmicas como a pobreza, desigualdade, estagnação econômica, corrupção, violência e catástrofes climáticas; cresce a importância de trocas de experiências, pesquisas e saberes sobre processos contemporâneos na formatação de padrões de estabilidade, desenvolvimento e paz, como condição do progresso e bem estar das sociedades humanas.

O paradigma da política internacional fundado no domínio exclusivo dos Estados está sendo tencionado por novas configurações de políticas de governança baseadas numa multiplicidade de agendas e atores. No contexto da globalização multidimensional e emergência de arenas multifacetadas como meio ambiente, migrações, direitos humanos, criminalidade; potencializada pela velocidade das inovações tecnológicas, formação de redes (networks), surgem novos desafios cognitivos e busca de referenciais que reorientem perspectivas interpretativas na apreensão dos fenômenos contemporâneos. O cenário atual das relações internacionais molda-se nos arranjos sistêmicos da política para além da clássica abordagem interestatal.

Agora se inicia uma era pós-política internacional, na qual os atores estatais são obrigados a partilhar o cenário e o poder global com organizações internacionais, companhias transnacionais, além de movimentos políticos e sociais de escopo transnacional/global. Isso não quer dizer que o Estado deixou de ser o ator mais importante e influente, mas agora não são os únicos no palco das decisões mundiais.
A segurança ambiental adquire importância, pois implica na segurança vital da biosfera, na perspectiva de regulação sustentável dos recursos naturais, cooperação entre Estados e mobilização de populações em torno dos objetivos de proteção. Vai perdendo sentido a diferenciação entre high politics (agenda estratégico-militar) e low politics (agenda econômica, social e ecológica), considerando que a interdependência crescente no contexto da sociedade global vai minando as fronteiras nas agendas de governo, fazendo com que os objetivos de uma ampla segurança humana se entrelacem.

A agenda da segurança mundial com o término da guerra fria e derrocada do socialismo histórico tem se alargado de forma significativa para incorporar novos temas e distintas problemáticas. O fim da bipolaridade e as transformações no leste europeu resultaram numa ordem multipolar de interdependências globais e agendas multifacetadas que tencionam o conceito de segurança para além do enfoque tradicional de estudos estratégico-militares. A noção de defesa nacional centrada na visão estadocêntrica no marco da soberania territorial mostra-se insuficiente para garantir situações de estabilidade e desenvolvimento.
A globalização está erodindo a soberania dos Estados, expondo vulnerabilidades num contexto da nova arquitetura da (in)insegurança mundial. As formas clássicas de resolução dos conflitos pela via armamentista e intimidação bélica já não respondem aos desafios e impasses contemporâneos.

A segurança militar continua relevante e decisiva, mas não é a única a ser garantida. Emergem ameaças e desafios que afetam a segurança internacional, mostrando que novas configurações planetárias - interdependência econômica, velocidade tecnológica e informacional e desequilíbrios ecológicos, irão conduzir políticas de segurança para outras esferas não exclusivamente militares. Riscos e efeitos devastadores derivados do aquecimento global, perda de diversidade biológica, desertificação, violência, marginalidade, exclusão social, lixo urbano, degradação dos recursos hídricos, enfim, um conjunto de situações caóticas expõe uma crise mundial sistêmica e projeta desequilíbrios perturbadores que já ameaçam a paz no contexto das relações internacionais.
Conflitos ambientais transfronteiriços decorrentes do processo combinado de crise de escassez e crescente mercantilização da natureza estão hoje no centro das políticas de governança mundial, conformando incertezas no curso da nova geopolítica global tensa e turbulenta.


A Amazônia está no epicentro das grandes preocupações regionais, nacionais e transnacionais. Não por acaso, suscita questionamentos e disputas calorosas, reacendendo debates controversos sobre soberania, defesa, territórios, presença incontrolada de múltiplos atores e desafios crescentes de compatibilizar proteção dos recursos naturais, crescimento econômico, justiça social e gestão democrática, enfim, a quadradura do círculo do desenvolvimento sustentável. A ampla variedade de temas suscitados pelo problema da segurança numa região de fronteira do capitalismo global, marcada por profundas assimetrias e conflitos, projeta análises e configurações significativas sobre o subcontinente amazônico no cenário das transformações e políticas de integração forjadas pelos blocos e arranjos de governanças na América do Sul.

Na agenda da segurança global multidimensional (atores e processos), a Amazônia internacional (Brasil, Bolívia, Colômbia, Peru, Equador, Suriname, Guiana, Venezuela e o território da Guiana Francesa) tem papel de destaque pela importância crucial dos recursos naturais que abriga, conformando territórios de sociobiodiversidade, serviços ambientais e climáticos absolutamente decisivos no limiar do século XXI. As análises sobre segurança da Pan-Amazônia devem estabelecer inter-relações entre as dimensões militar, social, energética, alimentar, hídrica, climática, florestal, etc. Não é possível defender a região num ambiente hostil, adverso, sem infraestrutura, carente de saúde pública e políticas de inclusão social. Não se pode deixar de almejar um modelo de desenvolvimento centrado nos direitos básicos de cidadania e sustentabilidade dos recursos e bens coletivos.

No entanto, a fragilidade institucional dos países amazônicos e baixa integração de ações no âmbito da cooperação bilateral e multilateral enfraquecem as iniciativas de governança regional de sustentar uma política sul-americana de desenvolvimento endógeno. A perspectiva dos problemas e soluções que afetam as populações panamazônicas é de natureza sistêmica e dialética, realidades entrelaçadas pela história das civilizações que se cruzam no tempo e no espaço, transbordando em fronteiras físicas e vivas de culturas milenares e modernas. Os múltiplos movimentos, alianças e cidadãos planetários presentes no FSM, querem ser protagonistas da construção de outra globalização.


Alberto Teixeira da Silva é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (alberts@superig.com.br).

domingo, 18 de janeiro de 2009

Ambientes, Costumes, Civilizações...



Têm os símbolos, a pompa e a riqueza uma função na vida humana?

Chegou o momento de "Catolicismo" dizer algo sobre as críticas feitas por Lord Altrincham e parte da imprensa britânica à Rainha Elizabeth.



O pronunciamento desta folha só poderia ser em "Ambientes, Costumes, Civilizações". E isto pela própria natureza do assunto. Pois foram bem do gênero desta seção as críticas que a jovem Soberana sofreu.



Em resumo, Lord Altrincham e seus sequazes atacaram Elizabeth II por julgar que sua apresentação, seu modo de ser, o tônus aristocrático da corte inglesa são incompatíveis com a idéia que nosso século igualitário faz de uma Rainha.



O que pensar disto?

Que a crítica de Lord Altrincham é espantosamente superficial, ou fundamentalmente insincera. Pois se nosso século é tão igualitário que as mais belas tradições do passado monárquico e aristocrático não podem sobreviver, então também a própria monarquia não tem mais razão de existir. O que Altrincham pediu foi, no fundo, a transformação da monarquia em instituição pequeno-burguesa.




Ele quereria Elizabeth II vestida, não como Rainha da Inglaterra, mas como rainha de beleza de arrabalde, capaz de figurar sem demasiada dissonância ao lado de Kruchev e Bulganin nas cerimônias oficiais. Se ele não o percebeu, foi superficial. Se o percebeu, foi insincero quando formulou suas críticas como monarquista. Pois por sua boca falava um igualitarismo essencialmente antimonárquico. Sobre Altrincham, é quanto basta. Não merece que se perca mais tempo com ele.



Vamos ao mérito da questão. É verdade que o cerimonial monárquico inglês é anacrônico e deve ser plebeizado?



A pergunta está mal formulada. Importa agir, não segundo os caprichos deste ou daquele século, mas segundo a ordem posta por Deus na criação.



Quis a Providência que houvesse na natureza os materiais belos e preciosos com os quais o engenho humano, retamente movido por um anelo de beleza e perfeição, produz as jóias, os veludos, as sedas, tudo enfim que serve para o ornamento do homem e da vida.



Imaginar uma ordem de coisas - qualquer que seja a forma de governo, aliás - em que tudo isto fosse proscrito como mau, seria rejeitar dons preciosos concedidos para a perfeição moral da humanidade.



De outro lado, Deus deu ao homem a possibilidade de exprimir por gestos, ritos, formas protocolares, a alta noção que tem de sua própria nobreza, ou da sublimidade das funções de governo espiritual ou temporal que por vezes é chamado a exercer. Daí, além do luxo, a pompa como elemento natural da vida de um povo culto.



Esses recursos decorativos foram feitos para adornar a tradição, o poder legítimo, os valores sociais autênticos, e não para serem o privilégio de arrivistas e nouveaux-riches que estadeiam sua opulência — para o que nada os preparou — em boates, cassinos, ou hotéis suntuosos. E muito menos para serem trancados nos museus como incompatíveis com a simplicidade funcional e a sisudez lúgubre de um ambiente mais ou menos sovietizado.



Assim entendidos, esses elementos decorativos têm essencialmente uma admirável função cultural, didática e prática, da maior importância para o bem comum.







Num balcão, a Rainha, o Duque de Edimburgo e seus dois filhos se apresentam aos aplausos da multidão. Séculos de gosto, finura, poder e riqueza prepararam pacientemente essas jóias magníficas, essa indumentária nobre, essa perfeita estilização de atitudes e expressões fisionômicas.




Considerando as conveniências do corpo, é bem possível que a Rainha achasse mais cômodo nessa hora estar de peignoir e chinelos fazendo tricot, o Duque preferisse estar numa piscina, e as crianças rolando num gramado. Mas eles compreendem que essas coisas só se fazem em particular. Elas podem ser boas, por exemplo, para um pastor fazê-las diante de seu rebanho de irracionais; não porém para um chefe de Estado se impor ao respeito de um povo inteligente. A animais se tange fazendo uso de um bordão e dando capim. Para homens, são necessárias convicções, princípios, e em conseqüência símbolos em que tudo isto se exprima.




Quando a Família Real assoma assim ao balcão, ela simboliza a doutrina da origem divina do poder, a grandeza de sua nação, o valor da inteligência, do gosto, da cultura inglesa. As multidões aplaudem. Do mundo inteiro, vêm pessoas desejosas de contemplar esta manifestação de grandeza da Inglaterra. E, ao terminar, todos se dispersam dizendo: "que grande instituição, que grande cultura, que grande país".







Aqui está, em nosso segundo clichê, Elizabeth em trajes comuns. Imagine-se que doravante ela só se apresentasse assim ao povo.




Quem viria para vê-la? E, vendo-a, quem pensaria na glória da Inglaterra?



Dos poucos que acorressem para a ver, a quase totalidade pensaria: que moça simpática. A alta finura, a distinção tão autêntica da Rainha, velada pela banalidade dos trajes hodiernos, muitos não a notariam. E como de moças simpáticas estão cheias as ruas, praças, cinemas, ônibus e metrôs, a coisa ficaria nisso.

Admirável, legítimo, profundo poder dos símbolos! Só o nega quem não tem inteligência para compreendê-lo. Ou quem quer destruir as altas realidades que estes símbolos exprimem. E ai do país em que — qualquer que seja a forma de governo, repetimos — a opinião pública se deixa transviar por demagogos vulgares, endeusando a trivialidade e simpatizando só com o que é banal, inexpressivo, comum.



A União Ibérica e a Expansão Oficial do Brasil


Em 1580, instalou-se uma crise sucessória em Portugal. Em 1578, o rei Dom Sebastião I morrera na batalha de Alcacer-Quibir, no Marrocos contra os mouros, no norte da África, não deixando herdeiros. Assumira o trono português, como regente, o cardeal Dom Henrique, seu tio-avô, que morreu em 1580. Extinguia-se com ele a dinastia de Aviz.

Vários candidatos, por ligações de parentesco, apresentaram-se para a sucessão. Felipe II, rei da Espanha, por ser neto de Dom Manuel, o Venturoso, e tio de D. Sebastião, julgava-se o candidato com mais direito ao trono português. Assim, as forças espanholas invadiram Portugal, em 1580, e Felipe II tomou a Coroa portuguesa, unindo Portugal e Espanha. Este fato ficou conhecido como
União Ibérica, que se estendeu até 1640.
O período da União Ibérica marcou uma mudança na orientação da política de
colonização do Brasil, até então baseada, principalmente, na ocupação da costa do pau-brasil. A conquista do litoral oriental tornou-se extremamente importante para a metrópole espanhola, como forma de ampliar a cultura canavieira e, também, facilitar a penetração e ocupação do norte do território. Essas medidas demonstravam a preocupação da Coroa espanhola em consolidar sua presença nessa parte do Brasil, e evitar a ocupação estrangeira.

As alianças entre franceses e grupos nativos hostis aos portugueses tanto ameaçavam quanto dificultavam a expansão da atividade açucareira no litoral oriental.

Potiguaras e franceses que traficavam pau-brasil e âmbar ameaçavam a capitania de Itamaracá. A ampliação dos limites da região açucareira só foi possível a partir da fundação da cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, por Frutuoso Barbosa, em 1584, e a conquista definitiva da Paraíba por Martim Leitão, nos três anos seguintes.

A necessidade da ligação terrestre entre os dois principais núcleos da Colônia - Bahia e Pernambuco - levou à conquista do território ocupado pelos caetés e frequentado por franceses. Realizou-a Cristóvão de Barros, que fundou, em 1590, a cidade de São Cristóvão do Rio Sergipe, núcleo irradiador da ocupação de Sergipe. Essa região ficou subordinada administrativamente à Capitania da Bahia de Todos os Santos.

Seguindo em direção ao norte, agora sob o comando de Manuel Mascarenhas Homem, colonizadores e colonos empreenderam a conquista do Rio Grande, onde também ocorria uma aliança entre nativos e franceses. No início de 1590, às margens do rio Potengi, Mascarenhas Homem ergueu o forte dos Reis Magos, origem da cidade de Natal e ponto de partida da ocupação da quarta capitania real: Rio Grande.

No fim do século XVI, os núcleos de São Vicente e Natal eram os pontos extremos da ocupação na América portuguesa. Entretanto, essa era uma ocupação por pontos, interpondo-se o vazio entre eles.

O Tratado de Madri.



Em meados do século XVIII, aproveitando-se de uma conjuntura de boas relações políticas e diplomáticas, os soberanos ibéricos aceitaram fazer um novo tratado, que não deveria decidir apenas a respeito da posse da Colônia do Sacramento. Ele foi assinado na capital do Reino da Espanha, a 13 de janeiro de 1750, pelos representantes dos "Sereníssimos Reis de Portugal e Espanha", recebendo o nome de Tratado de Madri. Em certo trecho do acordo firmado lia-se que os reis Fernando VI, de Espanha, e Dom João V, de Portugal, "resolveram pôr termo às disputas passadas e futuras, e esquecer-se, e não usar de todas as ações e direitos, que possam pertencer-lhes em virtude dos Tratados de Tordesilhas... e de Utrecht e Saragoça, ou de quaisquer outros fundamentos que possam influir na divisão dos seus domínios..."


O novo tratado se tornou possível porque o soberano espanhol reconhecia que dominava ilegalmente as ilhas Filipinas, no Mar do Sul, enquanto o rei português admitia que os seus súditos ocupavam, também ilegalmente, várias áreas da América do Sul. A Colônia do Sacramento era uma delas. E porque reconheciam e admitiam também um princípio proposto por Alexandre de Gusmão - um paulista, secretário do soberano português, que no ano anterior mandara fazer o Mapa das Cortes, no qual apareciam as terras já efetivamente ocupadas pelos súditos portugueses na América do Sul. Era o princípio do uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa. Assim as ilhas Filipinas ficaram para a Espanha, enquanto que para Portugal ficaram o vale do Rio Amazonas, as regiões de Vila Bela e Cuiabá e as missões de Itatim, Guairá e Tape.

Pela primeira vez, desde o Tratado de Tordesilhas (1494), procurava-se definir a totalidade dos limites entre as possessões dos reis de Portugal e Espanha na América do Sul. E isto acabou por dar às possessões e conquistas do rei português na América do Sul uma configuração muito próxima à atual delimitação territorial do Brasil.
Para separar as conquistas dos dois soberanos foram adotados limites naturais - como o "curso dos rios e os montes mais notáveis" -, evitando-se, sempre que possível, futuros litígios. Entretanto, por ser também considerada a idéia da continuidade territorial, havia exceções na aplicação do princípio do uti possidetis.
Assim, embora tivesse a posse da Colônia do Sacramento, Dom João V concordou em cedê-la aos espanhóis: mais importante que o contrabando na foz do Rio da Prata era, naquele momento, o ouro de Goiás e Mato Grosso. Por outro lado, as missões religiosas localizadas na margem oriental (leste) do Rio Uruguai - que ficaram conhecidas como os Sete Povos das Missões - estavam com os jesuítas espanhóis, mas Fernando VI concordou em cedê-las a Portugal: mais importante do que a erva-mate e as cabeças de gado dos pampas e as novas almas cristãs era a prata do Vice-Reino do Peru ou as especiarias do Mar do Sul.


O Tratado de Madrid (ou dos Limites)


I- A consolidação e expansão da presença portuguesa em terras brasileiras na centúria de Setecentos, levantou problemas na definição fronteiriça com a àrea de influência espanhola no continente sul americano, uma vez que os limites impostos pelo velho Tratado de Tordesilhas (linha meridiana situada a 370 léguas a oeste de Cabo Verde) já não se adequavam às novas realidades de ocupação do território. Esta situação, potencialmente perigosa e geradora de conflitos entre as potências ibéricas conduziu à necessidade de negociações com Espanha, por forma a alterar esse limite. O resultado dessas negociações viria a dar origem ao denominado Tratado de Madrid, também conhecido por Tratado dos Limites, assinado em 1750.Do lado português as negociações forma conduzidas por Alexandre de Gusmão que conseguiu a alteração dos limites impostos em Tordesilhas em troca da cedência à Espanha da colónia de Sacramento, na margem esquerda do rio da Prata, ficando assim estabelecidas, nas suas linhas essenciais, as actuais fronteiras do Brasil.


«Trato de limites das conquistas entre os muito altos e poderosos senhores d. João V, Rei de Portugal, e d. Fernando VI, rei de Espanha, assinado em 13 de janeiro de 1750, em Madrid, e ratificado em Lisboa a 26 do dito mês, e em Madrid a 8 de fevereiro do mesmo ano.Em nome da Santíssima TrindadeOs sereníssimos reis de Portugal e Espanha, desejando eficazmente consolidar e estreitar a sincera e cordial amizade, que entre si professam, consideraram que o meio mais conducente para conseguir tão saudável intento é tirar todos os pretextos, e alhanar os embaraços, que possam adiante alterá-la, e particularmente os que se podem oferecer com o motivo dos limites das duas coroas na América, cujas conquistas se têm adiantado com incerteza e dúvida, por se não haverem averiguado até agora os verdadeiros limites daqueles domínios, ou a paragem donde se há de imaginar a linha divisória, que havia de ser o princípio inalterável da demarcação de cada coroa.
E considerando as dificuldades invencíveis, que se ofereceriam se houvesse de assinalar-se esta linha com o conhecimento prático que se requer; resolveram examinar as razões e dúvidas, que se oferecessem por ambas as partes, e à vista delas concluir o ajuste com recíproca satisfação e conveniência.Por parte da Coroa de Portugal se alegava que, havendo de contar-se os 180 graus da sua demarcação desde a linha para o oriente, ficando para Espanha os outros 180 para o ocidente; e devendo cada uma das nações fazer os seus descobrimentos e colônias nos 180 graus da sua demarcação; contudo, se acha, conforme as observações mais exatas e modernas dos astrônomos e geógrafos, que começando a contar os graus para o ocidente da dita linha, se estende o domínio espanhol na extremidade asiática do mar do Sul, muitos mais graus, que os 180 da sua demarcação; e por consegüinte tem ocupado muito maior espaço, do que pode importar qualquer excesso, que se atribua aos portugueses, no que talvez terão ocupado na América meridional ao ocidente da mesma linha, e princípio da demarcação espanhola.
Também se alegava que, pela escritura de venda com pacto de retrovendendo, outogarda pelos procuradores das duas coroas em Saragoça a 22 de abril de 1529, vendeu a coroa de Espanha a Portugal tudo o que por qualquer via ou direito lhe pertencesse ao ocidente de outra linha meridiana, imaginada pelas ilhas das Velas, situadas no mar do Sul a 17 graus de distância de Maluco; com declaração, que se Espanha consentisse, e não impedisse aos seus vassalos a navegação da dita linha para o ocidente, ficaria logo extinto e resoluto o pacto de retrovendendo; e que quando alguns vassalos de Espanha, por ignorância ou por necessidade, entrassem dentro dela, e descobrissem algumas ilhas, ou terras, pertenceria a Portugal o que nesta forma descobrissem.
Que sem embargo desta convenção, foram depois os espanhóis a descobrir as Filipinas, e com efeito se estabeleceram nelas pouco antes da união das duas coroas, que se fez no ano de 1580, por cuja causa cessaram as disputas que esta infração suscitou entre as duas nações; porém tendo-se depois dividido, resultou das condições da escritura de Saragoça um novo título, para que Portugal pretendesse a restituição, ou o equivalente de tudo o que ocuparam os espanhóis ao ocidente da dita linha, contra o capitulado na referida escritura.
Quanto ao território da margem setentrional do rio da Prata, alegava que, com o motivo da fundação da Colônia do Sacramento, excitou-se uma disputa entre as duas coroas, sobre limites: a saber, se as terras, em que se fundou aquela praça, estavam ao oriente ou ao ocidente da linha divisória, determinada em Tordesilhas; e enquanto se decidia esta questão, se concluiu provisionalmente um tratado em Lisboa a 7 de maio de 1681, no qual se concordou que a referida praça ficasse em poder dos portugueses; e que nas terras disputadas tivessem o uso e aproveitamento comum com os espanhóis. Que pelo artigo VI, da paz, celebrada em Utrecht entre as duas coroas em 6 de fevereiro de 1715, cedeu S. M. C. toda a ação, e direito, que podia ter ao território e colônia, dando por abolido em virtude desta cessão o dito Tratado Provisional.
Que devendo, em vigor da mesma cessão, entregar-se à Coroa de Portugal todo o território da disputa, pretendeu o governador de Buenos Aires satisfazer unicamente com a entrega da praça, dizendo que pelo território só entendia o que alcançasse o tiro de canhão dela, reservando para a Coroa de Espanha todas as demais terras da questão, nas quais se fundaram depois a praça de Montevidéu e outros estabelecimentos: que esta inteligência do governador de Buenos Aires foi manifestamente oposta ao que se tinha ajustado, sendo evidente que por meio de uma cessão não devia ficar a Coroa de Espanha de melhor condição do que antes estava, no mesmo que cedia; e tendo ficado pelo Tratado Provisional ambas as nações com a posse, e assistência comum naquelas campanhas, não há interpretação mais violenta do que o supor que por meio da cessão de S. M. C. ficavam pertencendo privativamente à sua Coroa.
Que tocando aquele território a Portugal por título diverso da linha divisória, determinada em Tordesilhas (isto é, pela transação feita no Tratado de Utrecht, em que S. M. C. cedeu o direito, que lhe competia pela demarcação antiga), devia aquele território independentemente das questões daquela linha ceder-se inteiramente a Portugal com tudo o que nele se houvesse novamente fabricado, como feito em solo alheio. Finalmente, que suposto pelo artigo VII do dito Tratado de Utrecht, se reservou S. M. C. a liberdade de propor um equivalente à satisfação de S. M. F. pelo dito território e colônia; contudo, como há muitos anos passou o prazo assinalado para oferecê-lo, tem cessado todo o pretexto, e motivo, ainda aparente, para dilatar a entrega do mesmo território.Por parte da Coroa de Espanha se alegava que, havendo de imaginar-se a linha de norte a sul a 370 léguas ao poente das ilhas de Cabo Verde, conforme o tratado concluído em Tordesilhas a 7 de junho de 1494, todo o terreno que houvesse nas 370 léguas desde as referidas ilhas até o lugar, aonde se havia de assinalar a linha,pertenceria a Portugal, e nada mais por esta parte; porque desde ela para o ocidente se hão de contar os 180 graus da demarcação de Espanha: e ainda que, por não estar declarado de qual das ilhas de Cabo Verde se hão de começar a contar as 370 léguas, se ofereça dúvida, e haja interesse notável, por estarem todas elas situadas a leste-oeste com a diferença de quatro graus e meio; também é certo que, ainda cedendo Espanha, e consentindo que se comece a contar desde a mais ocidental, que chamam de Santo Antão, apenas poderão chegar as 370 léguas à cidade do Pará, e mais colônias, ou capitanias portuguesas, fundadas antigamente nas costas do Brasil; e como a Coroa de Portugal tem ocupado as duas margens do rio das Amazonas, ou Marañon, subindo até a boca do rio Javari, que entra nele pela margem austral, resulta claramente ter-se introduzido na demarcação de Espanha tudo quanto dista a referida cidade da boca daquele rio, sucedendo o mesmo pelo interior do Brasil com internação, que fez esta Coroa até o Cuiabá e Mato Grosso.Pelo que toca à Colônia do Sacramento, alegava que, conforme os mapas mais exatos, não chega com muita diferença à boca do rio da Prata a paragem, onde se deveria imaginar a linha; e conseqüentemente a referida colônia com todo o seu território cai ao poente dela, e na demarcação de Espanha; sem que obste o novo direito, com que a retém a Coroa de Portugal em virtude do Tratado de Utrecht; porquanto nele se estipulou a restituição por um equivalente; e ainda que a Corte de Espanha o ofereceu dentro do termo prescrito no artigo VII, não o admitiu a de Portugal; por cujo fato ficou prorrogado o termo, sendo como foi proporcionado e equivalente; e o não tê-lo admitido foi mais por culpa de Portugal que de Espanha.
Vistas e examinadas estas razões pelos dois sereníssimos monarcas, com as réplicas que se fizeram de uma e outra parte, procedendo com aquela boa fé e sinceridade que é própria de príncipes tão justos, tão amigos e parentes, desejando manter os seus vassalos em paz e sossego, e reconhecendo as dificuldades e dúvidas, que em todo o tempo fariam embaraçada esta contenda, se se houvesse de julgar pelo meio da demarcação, acordada em Tordesilhas, assim porque se não declarou de qual das ilhas de Cabo Verde se havia de começar a conta das 370 léguas, como pela dificuldade de assinalar nas costas da América meridional os dois pontos ao sul, e ao norte, donde havia de principiar a linha, como também pela impossibilidade moral de estabelecer com certeza pelo meio da mesma América uma linha meridiana; e finalmente por outros muitos embaraços, quase invencíveis, que se ofereceriam para conservar sem controvérsia, nem excesso, uma demarcação regulada por linhas meridianas; e considerando, ao mesmo tempo, que os referidos embaraços talvez foram pelo passado a ocasião principal dos excessos, que uma e outra parte se alegam, e das muitas desordens que perturbaram a quitação dos seus domínios; resolveram pôr termo às disputas passadas e futuras, e esquecer-se, e não usar de todas as ações e direitos que possam pertencer-lhes em virtude dos referidos Tratados de Tordesilhas, Lisboa, Utrecht e da Escritura de Saragoça, ou de outros quaisquer fundamentos que possam influir na divisão dos seus domínios por linha meridiana; e querem que ao diante não se trate mais dela, reduzindo os limites das duas monarquias aos que se assinalaram no presente tratado; sendo o seu ânimo que nele se atenda com cuidado a dois fins: o primeiro e principal é que se assinalem os limites dos dois domínios, tomando por balizas as paragens mais conhecidas, para que em nenhum tempo se confundam, nem dêem ocasião a disputas, como são a origem e curso dos rios, e os montes mais notáveis; o segundo, que cada parte há de ficar com o que atualmente possui; à exceção das mútuas cessões, que em seu lugar se dirão; as quais se farão por conveniência comum, e para que os confins fiquem, quanto for possível, menos sujeitos a controvérsias.Para concluir este ajuste, e assinalar os limites, deram os dois sereníssimos reis aos seus ministros, de uma e outra parte, os plenos poderes necessários, que se inseriram no fim deste tratado: a saber Sua Majestade Fidelíssima a Sua Excelência o Senhor Tomás Silva Teles, Visconde de Villa-Nova de Cerveira, do Conselho de S. M. F., e do de Guerra, mestre de campo general dos Exércitos de S. M. F. e seu embaixador extraordinário na Corte de Madrid; e Sua Majestade Católica a Sua Excelência o Senhor d. José de Cavajal e Lencastre, gentil-homem de Câmara de S. M. C. com exercício, ministro de Estado, e decano deste Conselho, governador do Supremo de Índias, presidente da Junta de Comércio e Moeda e superintendente geral das Postas e Estafetas de dentro e fora de Espanha; os quais depois de conferirem, e tratarem a matéria com a devida circunspecção e exame, e bem instruídos da intenção dos dois sereníssimos reis seus amos, e seguindo as suas ordens, concordaram no que se contém dos seguintes artigos:

Artigo I

O presente tratado será o único fundamento e regra que ao diante se deverá seguir para a divisão e limites dos dois domínios em toda a América e na Ásia; e em virtude disto ficará abolido qualquer direito e ação, que possam alegar as duas coroas por motivo da bula do papa Alexandre VI, de feliz memória, e dos Tratados de Tordesilhas, de Lisboa e Utrecht, da escritura de venda outorgada em Saragoça e de outros quaisquer tratados, convenções e promessas; o que tudo, enquanto trata da linha da demarcação, será de nenhum valor e efeito, como se não houvera sido determinado ficando em tudo o mais na sua força e vigor; e para o futuro não se tratará mais da dita linha, nem se poderá usar deste meio para a decisão de qualquer dificuldade que ocorra sobre limites, senão unicamente da fronteira, que se prescreve nos presentes artigos, como regra invariável, e muito menos sujeita a controvérsias.

Artigo II

As ilhas Filipinas e as adjacentes, que possui a Coroa de Espanha, lhe pertencem, para sempre, sem embargo de qualquer pertença que possa alegar por parte da Coroa de Portugal, com o motivo do que se determinou no dito Tratado de Tordesilhas, e sem embargo das condições contidas na escritura celebrada em Saragoça a 22 de abril de 1529; e sem que a Coroa de Portugal possa repetir cousa alguma do preço que pagou pela venda celebrada na dita escritura, a cujo efeito S. M. F., em seu nome, e de seus herdeiros, e sucessores, faz a mais ampla e formal renunciação de qualquer direito, que possa ter pelos princípios expressados ou por qualquer outro fundamento, às referidas ilhas e à restituição da quantia que se pagou em virtude da dita escritura.»

O Tratado de Madrid (ou dos Limites)


II- Artigo III

Na mesma forma, pertencerá à Coroa de Portugal tudo o que tem ocupado pelo rio das Amazonas, ou Marañon, acima e o terreno de ambas as margens deste rio até as paragens que abaixo se dirão; como também tudo o que tem ocupado no distrito de Mato Grosso, e dele para parte do oriente, e Brasil, sem embargo de qualquer pretensão que possa alegar, por parte da Coroa de Espanha, com o motivo do que se determinou no referido Tratado de Tordesilhas; a cujo efeito S. M. C., em seu nome, e de seus herdeiros e sucessores, desiste e renuncia formalmente a qualquer direito e ação que, em virtude do dito tratado, ou por outro qualquer título, possa ter aos referidos territórios.

Artigo IV

Os confins do domínio das duas Monarquias, principiarão na barra, que forma na costa do mar o regato, que sai ao pé do monte de Castilhos Grande, de cuja fralda continuará a fronteira, buscando em linha reta o mais alto, ou cumes dos montes, cujas vertentes descem por uma parte para a costa, que corre ao norte do dito regato, ou para a lagoa Mirim, ou del Meni; e pela outra para a costa, que corre do dito regato ao sul, ou para o rio da Prata; de sorte que os cumes dos montes sirvam de raia do domínio das duas coroas: e assim continuará a fronteira até encontrar a origem principal, e cabeceiras do rio Negro; e por cima deles continuará até a origem principal do rio Ibicuí, prosseguindo pelo álveo deste rio abaixo, até onde desemboca na margem oriental do Uruguai, ficando de Portugal todas as vertentes, que baixam à dita lagoa, ou ao rio Grande de S. Pedro; e de Espanha, as que baixam aos rios que vão unir-se com o da Prata.

Artigo V

Subirá desde a boca do Ibicuí pelo álveo do Uruguai, até encontrar o do rio Peipiri ou Pequiri, que deságua na margem ocidental do Uruguai; e continuará pelo álveo do Pepiri acima, até a sua origem principal; desde a qual prosseguirá pelo mais alto do terreno até a cabeceira principal do rio mais vizinho, que desemboque no rio Grande de Curitiba, por outro nome chamado Iguaçu. Pelo álveo do dito rio mais vizinho da origem do Pepiri, e depois pelo do Iguaçu, ou rio Grande de Curitiba, continuará a raia até onde o mesmo Iguaçu desemboca na margem oriental do Paraná; e desde esta boca prosseguirá pelo álveo do Paraná acima; até onde se lhe ajunta o rio Igurei pela sua margem ocidental.

Artigo VI

Desde a boca do Igurei continuará pelo álveo acima até encontrar a sua origem principal; e dali buscará em linha reta pelo mais alto do terreno a cabeceira principal do rio mais vizinho, que deságua no Paraguai pela sua margem oriental, que talvez será o que se chamam de Corrientes, e baixará pelo álveo deste rio até a sua entrada no Paraguai, desde a qual boca subirá pelo canal principal, que deixa o Paraguai em tempo seco; e pelo seu álveo até encontrar os pântanos, que forma este rio, chamados a lagoa dos Xarais, e atravessando esta lagoa até a boca do rio Jauru.

Artigo VII

Desde a boca do Jauru pela parte ocidental prosseguirá a fronteira em linha reta até a margem austral do rio Guaporé defronte da boca do rio Sararé, que entra no dito Guaporé pela sua margem setentrional; com declaração que se os comissários, que se hão de despachar para o regulamento dos confins nesta parte na face do país, acharem entre os rios Jauru e Guaporé outros rios, ou balizas naturais, por onde mais comodamente, e com maior certeza se possa assinalar a raia naquela paragem, salvando sempre a navegação do Jauru, que deve ser privativa dos portugueses, e o caminho, que eles costumam fazer do Cuiabá para o Mato Grosso; os dois altos contraentes consentem, e aprovam, que assim se estabeleça, sem atender a alguma porção mais ou menos no terreno, que possa ficar a uma ou a outra parte. Desde o lugar, que na margem austral do Guaporé for assinalado para termo da raia, como fica explicado, baixará a fronteira por todo o curso do rio Guaporé até mais abaixo da sua união com o rio Mamoré, que nasce na província de Santa Cruz de la Sierra, atravessa a missão dos Moxos, e formam juntos o rio chamado da Madeira, que entra no das Amazonas ou Marañon, pela sua margem austral.

Artigo VIII

Baixará pelo álveo destes dois rios, já unidos, até a paragem situada em igual distância do dito rio das Amazonas, ou Marañon, e da boca do dito Mamoré; e desde aquela paragem continuará por uma linha leste-oeste até encontrar com a margem oriental do Javari que entra no rio das Amazonas pela sua margem austral; e baixando pelo álveo do Javari até onde desemboca no rio das Amazonas ou Marañon, prosseguirá por este rio abaixo até boco mais ocidental do Japurá, que deságua nele pela margem setentrional.

Artigo IX

Continuará a fronteira pelo meio do rio Japurá, e pelos mais rios que a ele se ajuntam, e que mais se chegarem ao rumo do norte, até encontrar o alto da Cordilheira de Montes, que mediam entre o Orinoco e o das Amazonas ou Marañon; e prosseguirá pelo cume destes montes para o oriente, até onde se estender o domínio de uma e outra monarquia. As pessoas nomeadas por ambas as coroas para estabelecer os limites, conforme é prevenido no presente artigo, terão particular cuidado de assinalar a fronteira nesta parte, subindo pelo álveo da boca mais ocidental do Japurá: de sorte que se deixem cobertos os estabelecimentos, que atualmente tiveram os portugueses nas margens deste rio e do Negro, como também a comunicação ou canal, de que se servem entre estes dois rios: e que se não dê lugar a que os espanhóis, com o pretexto ou interpretação alguma, possam introduzir-se neles, nem na dita comunicação; nem os portugueses subir para o rio Orinoco, nem estender-se para as províncias povoadas por Espanha, nem para os despovoados, que lhe hão de pertencer, conforme os presentes artigos; para o qual efeito assinalaram os limites pelas lagoas e rios, endireitando a linha da raia, quanto puder ser, para a parte do norte, sem reparar no pouco mais ou menos no terreno, que fique a uma ou a outra Coroa, com tanto que se logrem os fins expressados.

Artigo X

Todas as ilhas, que se acharem em qualquer dos rios, por onde há de passar a raia, conforme o prevenido nos artigos antecedentes, pertencerão ao domínio a que estiverem mais próximas em tempo seco.

Artigo XI

Ao mesmo tempo que os comissários nomeados por ambas as coroas forem assinalando os limites em toda a fronteira, farão as observações necessárias para formar um mapa individual de toda ela; do qual se tirarão as cópias, que parecerem necessárias, firmadas por todos, que se guardarão pelas duas cortes para o caso que ao diante se ofereça alguma disputa, pelo motivo de qualquer infração; em cujo caso, e em outro qualquer, se terão por autênticas, e farão plena prova. E para que se não ofereça a mais leve dúvida, os referidos comissários porão nome de comum acordo aos rios, e montes que o não tiverem, e assinalarão tudo no mapa com a individuação possível.

Artigo XII

Atendendo à conveniência comum das duas nações, e para evitar todo o gênero de controvérsias para o diante, se estabelecerão as mútuas cessões conteúdas nos artigos seguintes.

Artigo XIII

Sua Majestade Fidelíssima em seu nome, e de seus herdeiros e sucessores, cede para sempre à Coroa de Espanha a Colônia do Sacramento, e todo o seu território adjacente a ela, na margem setentrional do rio da Prata, até os confins declarados no artigo IV, e as praças, portos e estabelecimentos, que se compreendem na mesma paragem; como também a navegação do mesmo rio da Prata, a qual pertencerá inteiramente à Coroa de Espanha; e para que tenha efeito, renuncia S. M. F. todo o direito e ação, que tinha reservado à sua Coroa pelo Tratado Provisional de 7 de maio de 1681, e sua posse, direito e ação que lhe pertença, e possa tocar-lhe em virtude dos artigos V e VI do Tratado de Utrecht de 6 de fevereiro de 1715, ou por outra qualquer convenção, título e fundamento.

Artigo XIV

Sua Majestade Católica em seu nome, e de seus herdeiros e sucessores, cede para sempre à Coroa de Portugal tudo o que por parte de Espanha se acha ocupado, por qualquer título ou direito possa pertencer-lhe em qualquer parte das terras, que pelos presentes artigos se declaram pertencentes a Portugal, desde o Monte de Castilhos Grande, e sua fralda meridional, e costa do mar, até a cabeceira, e origem principal do rio Ibicuí, e também cede todas e quaisquer povoações e estabelecimentos, que se tenham feito por parte de Espanha no ângulo de terras, compreendido entre a margem setentrional do rio Ibicuí e a oriental do Uruguai, e os que possam ter-se fundado na margem oriental do rio Pepiri, e a aldeia de Santa Rosa, e outra qualquer que se possa ter estabelecido por parte de Espanha na margem oriental do rio Guaporé. E Sua Majestade Fidelíssima cede na mesma forma a Espanha todo o terreno que corre desde a boca ocidental do rio Japurá, e fica entre meio do mesmo rio, e do das Amazonas ou Marañon, e toda a navegação do rio Içá, e tudo o que se segue desde este último rio para o ocidente, com a aldeia de S. Cristóvão e outra qualquer que por parte de Portugal se tenha fundado naquele espaço de terras; fazendo-se as mútuas entregas com as qualidades seguintes.

Artigo XV

A Colónia do Sacramento se entregará por parte de Portugal sem tirar dela mais que a artilharia, armas, pólvora e munições, e embarcações do serviço da mesma praça; e os moradores poderão ficar livremente nela, ou retirar-se para outras terras do domínio português, com os seus efeitos e móveis, vendendo os bens de raiz. O governador, oficiais e soldados levarão também todos os seus efeitos, e terão a mesma liberdade de venderem os seus bens de raiz.

Artigo XVI

Das povoações ou aldeias, que cede S. M. C. na margem oriental do rio Uruguai, sairão os missionários com todos os móveis e efeitos levando consigo os índios para os aldear em outras terras de Espanha; e os referidos índios poderão levar também todos os seus bens móveis e semoventes, e as armas, pólvoras e munições, que tiverem em cuja forma se entregarão as povoações à Coroa de Portugal com todas as suas casas, igrejas e edifícios, e a propriedade e posse do terreno. As que se cedem por Sua Majestade Fidelíssima e Católica nas margens dos rios Pequiri, Guaporé e das Amazonas, se entregarão com as mesmas circunstâncias que a Colônia do Sacramento, conforme se disse no artigo XIV; e os índios de uma e outra parte terão a mesma liberdade para se irem ou ficarem, do mesmo modo, e com as mesmas qualidades, que o hão de poder fazer os moradores daquela praça; exceto que os que se forem perderão a propriedade dos bens de raiz, se os tiverem.

Artigo XVII

Em consequência da fronteira, e limites determinados nos artigos antecedentes, ficará para a Coroa de Portugal o monte de Castilhos Grande com a sua falda meridional; e o poderá fortificar, mantendo ali uma guarda, mas não poderá povoá-lo, ficando às duas nações o uso comum da Barra ou enseada, que forma ali o mar, de que se tratou no artigo IV.

O Tratado de Madrid (ou dos Limites)


III- Artigo XVIII

A navegação daquela parte dos rios, por onde há de passar a fronteira, será comum às duas nações; e geralmente, onde ambas as margens dos rios pertencerem à mesma Coroa, será privativamente sua a navegação; e o mesmo se entenderá da pesca nos ditos rios, sendo comum às duas nações, onde o for a navegação; e privativa, onde o for a uma delas a dita navegação: e pelo que toca aos cumes da cordilheira, que hão de servir de raia entre o rio das Amazonas e o Orinoco, pertencerão a Espanha todas as vertentes, que caírem para o Orinoco, e a Portugal todas as caírem para o rio das Amazonas ou Marañon.

Artigo XIX

Em toda a fronteira será vedado, e de contrabando, o comércio entre as duas nações, ficando na sua força e vigor as leis promulgadas por ambas as coroas que disto tratam; e, além desta proibição, nenhuma pessoa poderá passar do território de uma nação para o da outra por terra, nem por água, nem navegar em todo ou parte dos rios, que não forem privativos da sua nação, ou comuns, com pretexto, nem motivo algum, sem tirar primeiro licença do governador, ou superior do terreno, aonde há de ir, ou sem que vá enviado pelo governador do seu território a solicitar algum negócio, para o qual efeito levará o seu passaporte, e os transgressores serão castigados com esta diferença: se forem apreendidos no território alheio, serão postos em prisão e nela se manterão pelo tempo que quiser o governador ou superior que os fez prender; porém, se não puderem ser colhidos, o governador ou superior da terra em que entrarem formará um processo com justificação das pessoas e do delito, e com ele requererá ao juiz dos transgressores, para que os castigue da mesma forma: excetuando-se das referidas penas os que navegando nos rios, por onde vai a fronteira, fossem constrangidos a chegar ao território alheio por alguma urgente necessidade, fazendo-a constar. E para tirar toda a ocasião de discórdia, não será lícito nos rios, cuja navegação for comum, nem nas suas margens levantar gênero algum de fortificação, nem pôr embarcação de registro, nem plantar artilharia, ou por outro qualquer modo estabelecer força, que possa impedir a livre e comum navegação. Nem tampouco seja lícito a nenhuma das partes visitar, ou registrar, ou obrigar que venham à sua margem as embarcações da parte oposta; e só poderão impedir e castigar aos vassalos da outra nação, se aportarem na sua margem; salvo em caso de indispensável necessidade, como fica dito.

Artigo XX

Para evitar alguns prejuízos, que poderiam ocasionar-se, foi concordado que nos montes, onde em conformidade dos precedentes artigos ficar posta a raia nos seus cumes não será lícito a nenhuma das duas potências erigir fortificação sobre os mesmos cumes, nem permitir que os seus vassalos façam neles povoação alguma.

Artigo XXI

Sendo a guerra ocasião principal dos abusos, e motivo de se alterarem as regras mais bem concertadas, querem Suas Majestades Fidelíssima e Católica que, se (e que Deus não permita) se chegasse a romper entre as duas coroas, se mantenham em paz os vassalos de ambas, estabelecidos em toda a América meridional, vivendo uns e outros como se não houvera tal guerra entre os soberanos, sem fazer-se a menor hostilidade, nem por si sós, nem juntos com os seus aliados. E os motores e cabos de qualquer invasão, por leve que seja, serão castigados com pena de morte irremissível; e qualquer presa que fizerem, será restituída de boa fé, e inteiramente. E, assim mesmo, nenhuma das nações permitirá o cômodo de seus portos, e menos o trânsito pelos seus territórios da América meridional, aos inimigos da outra, quando intentem aproveitar-se deles para hostilizá-la; ainda que fosse em tempo que as duas nações tivessem entre si guerra em outra região. A dita continuação de perpétua paz e boa vizinhança não terá só lugar nas terras e ilhas da América meridional, entre os súditos confiantes das duas monarquias, senão também nos rios, portos e costas, e no mar Oceano, desde a altura da extremidade austral da ilha de Santo Antão, uma das de Cabo Verde, para a parte do sul; e desde o meridiano, que passa pela sua extremidade ocidental para a parte do poente: de sorte que a nenhum navio de guerra, corsário, ou outra embarcação de uma das duas coroas seja lícito dentro dos ditos termos em nenhum tempo atacar, insultar ou fazer o mínimo prejuízo aos navios e súditos da outra; e de qualquer atentado, que em contrário se cometa, se dará pronta satisfação, restituindo-se inteiramente o que acaso se tivesse apresado, e castigando-se severamente os transgressores.
Outrossim, nem uma das duas nações admitirá, nos seus portos e terras da dita América meridional, navios, ou comerciantes, amigos ou neutrais, sabendo que levam intento de introduzir o seu comércio nas terras da outra, e de quebrantar as leis, com que os dois monarcas governam aqueles domínios. E para a pontual observância de todo o expressado neste artigo, se farão por ambas as cortes os mais eficazes encargos aos seus respectivos governadores, comandantes e justiças; bem entendido, que ainda em caso (que não se espera) que haja algum incidente, ou descuido, contra o prometido e estipulado neste artigo, não servirá isso de prejuízo à observância perpétua e inviolável de tudo o mais que pelo presente tratado fica regulado.

Artigo XXII

Para que se determinem com maior precisão, e sequer haja lugar à mais leve dúvida ao futuro nos lugares por onde deve passar a raia em algumas partes, que não estão nomeadas e especificadas distintamente nos artigos antecedentes, como também para declarar a qual dos domínios hão de pertencer as ilhas que se acharem nos rios que hão de pertencer de fronteira, nomearão ambas as Majestades, quanto antes, comissários inteligentes: os quais, visitando toda a raia, ajustem com a maior distinção e clareza as paragens por onde há de correr a demarcação, em virtude do que se expressa neste tratado, pondo marcos nos lugares que lhes parecer conveniente; e aquilo em que se conformarem, será válido perpetuamente em virtude da aprovação e ratificação de ambas as Majestades. Porém, no caso em que se não possam concordar em alguma paragem, darão conta aos sereníssimos reis, para decidirem a dúvida em termos justos e convenientes. Bem entendido que o que os ditos comissários deixarem de ajustar não prejudicará de sorte alguma o vigor e observância do presente tratado; o qual, independentemente disso, ficará firme e inviolável, nas suas cláusulas e determinações, servindo no futuro de regra fixa, perpétua e inalterável, para os confins do domínio das duas coroas.

Artigo XXIII

Determinar-se-á entre as duas Majestades o dia em que se hão de fazer as mútuas entregas da Colônia do Sacramento com o território adjacente e das terras e povoações compreendidas na cessão, que faz S. M. C., na margem oriental do rio Uruguai; o qual dia não passará do ano, depois que se firmar este tratado: a cujo efeito, logo que se ratificar, passarão Suas Majestades Fidelíssima e Católica, as ordens necessárias, de que se fará troca entre os ditos plenipotenciários; e pelo que toca à entrega das mais povoações, ou aldeias, que se cedem por ambas as partes, se executará ao tempo, que os comissários nomeados por elas chegarem às paragens da sua situação, examinando e estabelecendo os limites; e os que houverem de ir a estas paragens serão despachados com mais brevidade.

Artigo XXIV

Declara-se que as cessões contidas nos presentes artigos não se reputarão como determinado equivalente umas de outras, senão que se fazem respeitando ao total do que se controvertia e alegava, ou reciprocamente se cedia, e àquelas conveniências e comodidades que ao presente resultavam a uma e outra parte; e em atenção a isto se reputou justa e conveniente para ambas a concórdia e determinação de limites que fica expressada, e como tal a reconhecem e aprovam Suas Majestades em seu nome, e de seus herdeiros e sucessores, renunciando qualquer outra pretensão em contrário; e prometendo na mesma forma que em nenhum tempo, e com nenhum fundamento, se disputará o que fica assentado e concordado nestes artigos; nem com pretexto de lesão, nem outro qualquer, pretenderão outro ressarcimento, ou equivalente dos seus mútuos direitos e cessões referidas.

Artigo XXV

Para mais plena segurança deste tratado, convieram os dois altos contraentes em garantir reciprocamente toda a fronteira e adjacências dos seus domínios na América meridional, conforme acima fica expressado; obrigando-se cada um a auxiliar e socorrer o outro contra qualquer ataque, ou invasão, até que com efeito fique na pacífica posse, e uso livre e inteiro do que se lhe pretendesse usurpar; e esta obrigação, quanto às costas do mar, e países circunvizinhos a elas, pela parte de S. M. F. se estenderá até as margens do Orinoco de uma e outra banda; e desde Castilhos até o estreito de Magalhães. E pela parte de S. M. C. se estenderá às margens de uma e outra banda do rio das Amazonas ou Marañon; e desde o dito Castilhos até o porto de Santos. Mas, pelo que toca ao interior da América meridional, será indefinida esta obrigação; e em qualquer caso de invasão, ou sublevação, cada uma das coroas ajudará e socorrerá a outra até se reporem as cousas em estado pacífico.

Artigo XXVI

Este tratado com todas as suas cláusulas e determinações será de perpétuo vigor entre as duas coroas; de tal sorte, que ainda em caso (que Deus não permita) que se declarem guerra, ficará firme e invariável durante a mesma guerra, e depois dela, sem que nunca se possa reputar interrompido, nem necessite de revalidar-se. E presentemente se aprovará, confirmará e ratificará pelos dois Sereníssimos reis, e se fará a troca das ratificações no termo de um mês, depois da sua data, ou antes se for possível. Em fé do que, e em virtude das ordens e plenos poderes que nós abaixo assinados recebemos de nossos amos, el-rei fidelíssimo de Portugal e el-rei católico de Espanha, assinamos o presente tratado e lhe fizemos pôr o selo de nossas armas. Feito em Madri a treze de janeiro de mil setecentos e cinqüenta.


(Ass.) Visconde Tomás da Silva Teles e D. Joseph de Carvajal y Lancaster.