"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 21 de maio de 2017

O sistema alemão, adaptado ao Brasil, é a melhor solução


“O sistema alemão, que junta eleições majoritárias e proporcionais para compor um Parlamento em que os partidos têm representação ajustada aos votos que receberam, pode ser adaptado ao Brasil, mantendo sua essência”

 HELIO DOYLE  

As discussões sobre a reforma política e eleitoral deveriam ser feitas em bloco, sem fatiar os temas como se fossem independentes. O debate segmentado fica capenga e é prejudicado quando, por exemplo, discute-se financiamento de campanha ou o tempo de televisão sem considerar se as eleições para deputados serão proporcionais ou majoritárias e, nesse caso, qual o tamanho do distrito. Nem mesmo financiamento da campanha e tempo de TV deveriam ser assuntos discutidos separadamente.

Há uma forte relação entre os temas da reforma política, em vários outros aspectos. Se as eleições são simultâneas ou de dois em dois anos, isso se reflete no financiamento, no tempo de televisão, na lista aberta ou fechada e por aí adiante. Muitas outras escolhas acerca da reforma política e eleitoral deveriam estar submetidas à definição sobre o modelo para eleger deputados e vereadores.
A eleição de deputados e vereadores pode ser proporcional, como no Brasil, ou majoritária, como nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Canadá. No primeiro caso, a votação que cada partido ou coligação obtém define o número de candidatos que elegerá. Na eleição majoritária, são eleitos os mais votados em cada circunscrição, independentemente de proporcionalidade na composição da casa parlamentar.

O voto majoritário, conhecido como distrital, distorce a representação popular, pois o número de votos que cada partido recebe não se reflete na composição do Parlamento. O resultado disso é que os partidos maiores são beneficiados e os menores são prejudicados, levando a que na prática haja apenas dois partidos, como nos Estados Unidos, ou apenas três ou quatro, como em outros países que adotam o sistema distrital. Os partidos que não conseguem ser majoritários em nenhum distrito desaparecem, mesmo que representem parcelas significativas, mas minoritárias, do eleitorado.

É fácil entender a distorção provocada pelo voto distrital: o candidato A, do Partido Y, tem 50 mil votos no distrito Amarelo, derrotando o candidato B, do Partido Z, que obtém 49 mil votos. No distrito Azul, o candidato C, do Partido Y, recebe 45 mil votos e o candidato D, do Partido Z, tem 44 mil votos. O Partido Z perde nos dois distritos por dois mil votos apenas.

O Partido Y, assim, teve 95 mil votos (50,53%) e o Partido Z teve 93 mil (49,47%) nos dois distritos, praticamente empatados. Mas o Partido Y elege dois deputados e o Partido Z não elege ninguém. Em um sistema de eleição proporcional, cada partido elegeria um deputado. O segundo colocado em todos os distritos pode ficar sem representação mesmo se somar 49,9% dos votos no país.

Para simplificar, vale o exemplo das últimas eleições parlamentares no Canadá, em que foram eleitos 308 deputados em 308 distritos eleitorais, cada um com cerca de 110 mil habitantes. O Partido Conservador teve 39,62% dos votos e elegeu 54% dos deputados (166). O Novo Partido Democrático, social-democrata, recebeu 30,62% dos votos e elegeu 33% dos deputados (102). No sistema proporcional, o Partido Conservador elegeria 122 deputados e o NPD elegeria 94 parlamentares.

Esses dois partidos ganharam deputados à custa do Partido Liberal, que elegeu 35, mas deveria ter 58 cadeiras, do Bloco de Quebec, que elegeu quatro quando deveria ter elegido 18 e do Partido Verde, que elegeu apenas um deputado, mas que pelo sistema proporcional teria 12.

O sistema distrital tem vantagens: os eleitos estão mais próximos de seus eleitores, quando o distrito eleitoral não é muito grande, e as campanhas são mais baratas, pois o território a ser abrangido pelos candidatos é menor do que todo um município ou todo um estado. Como cada partido apresenta um candidato por distrito, há também maior identificação entre os eleitores e os partidos

O sistema proporcional tem a vantagem de assegurar a representação de cada partido de acordo com a votação obtida (desde que superada a cláusula de barreira, onde ela existe), mas também tem desvantagens: com a lista aberta, o eleitor vota em um candidato e pode eleger outro e não há relação próxima entre quem vota e quem é eleito. No sistema de lista fechada, a não ser onde é possível ao eleitor reordená-la, vota-se no partido e não nos candidatos.

Com a lista aberta, cada candidato disputa o voto com colegas do mesmo partido, pois são eleitos os mais votados de cada chapa. Com a lista fechada, o voto é no partido, que define previamente a ordem de colocação. A campanha é mais dispendiosa no processo de lista aberta, pois cada candidato disputa o voto do eleitor. Na campanha com lista fechada, é o partido que faz campanha e não cada candidato. A lista fechada é mais coerente com o financiamento público e por pessoas físicas.

Os alemães conseguiram juntar os dois sistemas, majoritário e proporcional, em um que é conhecido no Brasil como “distrital misto”, mas que na verdade é proporcional com eleição parcialmente majoritária. Não é perfeito, como nenhum é, mas tem mais vantagens que desvantagens e poderia ser aplicado no Brasil. Na Alemanha funciona com o voto em lista fechada, mas há países em que o eleitor pode mudar a ordem definida por cada partido e há outros em que essa ordem é decidida em eleições prévias partidárias, e não pelos caciques de cada organização.


O sistema alemão, que junta eleições majoritárias e proporcionais para compor um Parlamento em que os partidos têm representação ajustada aos votos que receberam, pode ser adaptado ao Brasil, mantendo sua essência. Aqui a lista pode ser aberta, ou reordenada, por exemplo. Ou os distritos podem ser maiores e podem ser eleitos mais deputados em cada um deles. 


O parlamentarismo deve esperar


“Diante dos senadores e deputados que temos, o mais conveniente é manter o presidencialismo e adotar medidas para melhorar a representação parlamentar, com o fortalecimento de partidos autênticos e sistema de votação que aproxime eleitores e eleitos e reduza os custos das campanhas”, avalia Hélio Doyle

 
Como não está hoje em discussão se o Brasil deva ser uma República ou uma Monarquia, e se essa República deva ser federativa ou unitária, há uma questão que deveria ser básica quando se fala em reforma política: o sistema de governo. Ou seja, é preciso decidir se o Brasil continua presidencialista ou adota o sistema parlamentarista. O sistema de governo precede, em tese, a organização política e as normas eleitorais.

Por duas vezes, em 1963 e 1993, os eleitores já se manifestaram, em plebiscito, a favor do presidencialismo. Mas, diante de novas circunstâncias que se impuseram nos últimos anos – e, inclusive, diante do traumático impeachment – seria bom retomar esse debate de maneira mais aprofundada antes de definir as demais questões.

Há quem defenda, por exemplo, que no presidencialismo um parlamentar só possa assumir cargo no Executivo se renunciar ao mandato, como nos Estados Unidos. No parlamentarismo isso não teria sentido, pois o governo é exercido pelo Parlamento e é natural que deputados e senadores sejam ministros, que exerçam funções no governo que constituíram. No presidencialismo há eleição direta do presidente. No parlamentarismo o chefe de Estado pode ser eleito diretamente (França, Portugal) ou indiretamente (Alemanha, Itália).

O chamado voto distrital misto – que na verdade assegura uma representação legislativa proporcional e não majoritária – funciona muito bem no sistema parlamentarista da Alemanha. Lá, como em outros países parlamentaristas, ao votar em uma lista partidária fechada o eleitor sabe que está indiretamente votando no chanceler, denominação que se dá ao primeiro-ministro. O líder do partido mais votado será o chefe do governo, a não ser que partidos menos votados se unam em coalizão e formem maioria no parlamento.

O parlamentarismo, porém, tem alguns pré-requisitos para funcionar bem e um deles é a existência de partidos fortes e com clara identidade política e ideológica. Assim o eleitor sabe em quem está votando para comandar o governo e que projetos serão executados. Os parlamentares que formam a coalizão têm responsabilidade pelo sucesso do governo e não se limitam a falar e votar sem compromisso, como no presidencialismo. Isso favorece a composição de um Congresso mais representativo e preparado do que o que temos hoje no Brasil.

No momento, diante dos senadores e deputados que temos, o mais conveniente é manter o presidencialismo e adotar medidas para melhorar a representação parlamentar, com o fortalecimento de partidos autênticos e sistema de votação que aproxime eleitores e eleitos e reduza os custos das campanhas.


O parlamentarismo pode esperar e, se for o caso, ser implantado quando o ambiente político estiver menos contaminado pelo poder econômico, pela corrupção e pela demagogia e o Congresso estiver sintonizado com a população.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Politica, Corrupção e Reformas


 Fernando Raphael Ferro

Noticiário recente inflamou os petistas por revelar aquilo que todos já suspeitavam: Aécio Neves e Michel Temer também recebiam propinas e mesadas de empreiteiros para manter abertos os canais de favores dentro do governo. O já insensível povo brasileiro tratou de proliferar memes na internet, espalhar falsas notícias e especular o futuro do Brasil: se Temer cair, quem assumirá Marcela?

O fato inegável é que, apesar dos pesares, avançamos mais com Temer em um ano do que em 6 com Dilma. Foram encaminhadas as reformas trabalhista e previdenciárias, que apesar das concessões realizadas aos grupos de pressões, inevitáveis para se conseguir algo, iam avançando passo a passo. A inflação caiu, a taxa de juros também e a economia mostra sinais de recuperação. Temer fazia o possível para superar a crise deixada pelo governo do qual ele fazia parte.

Isso mostra que um governo ruim ainda é melhor que um péssimo e que Dilma realmente não tinha nem condições nem vocação para governar. Mas o futuro nunca deixou de ser tenebroso. Agora parece pior. As delações da JBS fragilizam a posição de Michel Temer e parecem empurrar o país em direção a possibilidade de eleição indireta pelo congresso nacional. Neste caso, os partidos indicariam seus candidatos e o congresso mais sem noção da história votaria o futuro presidente, que governaria até 2018.

Mas as delações, tanto da Odebrecht quanto da JBS, além das demais que virão, mostram que nós liberais sempre estivemos certos quanto a uma coisa: estatais, regulamentações restritivas e protecionismo são o grande problema do Estado. Isso porque as delações apontam que as empresas mantinham esses “canais” abertos junto aos políticos para poder ter acesso a financiamentos milionários do BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil, facilidades proporcionadas na criação, regulação e abolição de Leis sobre seus setores de atividade, e para ter informações privilegiadas ou participar com privilégios de licitações e compras de grandes estatais como os já citados bancos e também a Petrobrás.

Ou seja, as diversas estatais e instituições do Estado são uma fonte inesgotável de poder e corrupção, e as empresas que desejarem prosperar devem ter acesso a estas empresas. Mas o acesso a elas passa pelo pedágio de controlar seus cargos, diretores e intermediários, por meio dos deputados, senadores e executivos eleitos majoritariamente. E a eleição desses, via voto direto, é tão mais certa quanto mais dinheiro é gasto em suas milionárias campanhas.
O grande interesse em controlar o aparelho estatal é garantir que os negócios com as empresas fluam. E esta “fluência” depende das pessoas certas nos lugares certos. As mesadas servem para azeitar esse funcionamento. Oras, é fácil deduzir que quanto menor o Estado, menor a necessidade de óleo nestas engrenagens. Não existisse a Petrobrás, não seriam necessários tantos dos indiciados no Petrolão; a JBS não precisaria desembolsar R$ 500 mil reais semanais se o BNDES não oferecesse juros tão camaradas aos campeões nacionais, mas se todas as empresas do país tivessem que buscar seu crédito nos bancos privados em igualdade de condições.

Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Valec, Furnas, EPL, e quaisquer uma das centenas de estatais existentes no Brasil, mais do que cabides de emprego, são fontes de vantagens e favorecimentos para empresas dispostas a pagar por estas vantagens e favorecimentos. Muitas das Estatais, no fundo, até fazem um bom trabalho, são relativamente competitivas e atendem a bons parâmetros de eficiências. Sejamos justos nesta avaliação. Mas isso não impede seu uso político, que muitas vezes depende destas relações escusas que hoje as delações revelam.

Igualmente as legislações restritivas: toda lei que restringe a entrada de competidores, que desestimula a competição, que afasta a concorrência, seja interna ou externa, depende do poder do Estado para existir. E toda legislação deste gênero é uma forte tentação para as empresas estabelecidas, para os monopolistas e oligopolistas. E estas empresas farão de tudo ao seu alcance para conseguir convencer os políticos e eleitores que defendem empregos, mesmo que para tanto tenham que financiar campanhas com mesadas semanais
As grandes empreiteiras nacionais atuam num mercado só delas. E eu não acredito que nossas leis sejam tão restritivas em relação a estrangeiros na construção civil, com tantos padrões jabuticabas (a começar pelo exemplo mais comum das tomadas), só porque estamos na vanguarda tecnológica. Proteger o mercado nacional é uma forma de garantir vantagens. E estas empresas, sabemos agora, pagam por isso há décadas.

O que este autor pede, portanto, em linhas gerais, é fazer um apelo geral e irrestrito a todos os brasileiros: bradem pelas bandeiras corretas. No Brasil precisamos reduzir o poder dos políticos, para que não seja necessário compra-los. Pra isso medidas simples são necessárias: Abertura comercial geral e irrestrita; Privatização, sem exceção, de todas as Estatais; Descentralização do Estado, entregando aos Estados o poder para decidir coisas como saúde, educação, previdência, reforma política, tributária e infraestrutura, acabando de vez com essa mentalidade grosseira que ora oscila entre o centralismo na União, ora no municipalismo grosseiro.


Essas três medidas permitirão que o Brasil lide com suas complexidades regionais e supere aos poucos, gradativamente o atraso histórico que vivemos em relação as demais nações do mundo. Temos que entender que nosso atraso reside em depositar sucessivamente nossas esperanças em Brasília.

Liberdade de expressão e seus limites

Marcus Vinicius Furtado Coêlho

Humor, imprensa e democracia



Às vésperas das eleições gerais de 2010, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451/DF, instando o Supremo Tribunal Federal a pronunciar-se novamente quanto à abrangência da proteção dada pela Constituição Federal de 1988 à liberdade de imprensa, à livre manifestação e ao direito à informação. Ao questionar os incisos II e III do artigo 45 da Lei 9.504 frente os incisos IV, IX e XIV do artigo 5º da Lei Fundamental, pôs-se em debate a possibilidade de manifestações humorísticas serem lidas como atividades de imprensa e, como tais, serem resguardadas contra censura prévia.

A inconstitucionalidade dos incisos II e III do artigo 45 foi levantada mais de 12 anos após a entrada em vigência da Lei das Eleições, muito provavelmente devido à edição da Lei 12.304 em 2009. Mais um diploma normativo a promover “reforma política”, a Lei 12.304 introduziu diversas alterações não só na Lei das Eleições como também na Lei dos Partidos Políticos e no próprio Código Eleitoral, reproduzindo jurisprudência sedimentada do Tribunal Superior Eleitoral nas áreas de propaganda eleitoral, pesquisa e arrecadação de recursos. A fim de melhor controlar a “companha ‘suja’ na TV”, como dispunha a justificativa do Projeto de Lei que originaria a Lei 12.304, acrescentou-se ao artigo 45 da Lei 9.504/97 os parágrafos quarto e quinto para melhor esclarecer as definições de truncagem e de montagem a que faz referência o inciso II.

De acordo com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, os incisos II e III do artigo 45 da Lei das Eleições provocariam um perigoso efeito silenciador sobre as emissoras de rádio e de televisão, que seriam obrigadas a não tratar de temas políticos controvertidos. Do contrário, seriam acusadas de favorecer ou desmerecer determinado candidato ou partido. Ademais, sustentava-se na exordial que esses dispositivos teriam o condão de inviabilizar a veiculação de conteúdo humorístico envolvendo personalidades da política durante o período eleitoral, o que configuraria violação aos incisos IV, IX e XIV do artigo 5º e ao artigo 220 da Constituição Federal de 1988. Para a requerente, proteger a higidez do pleito não deveria exigir o sacrifício da liberdade da manifestação de pensamento e comunicação ou da atividade intelectual, artística e científica, que per se constituiriam “garantias tão caras à democracia quanto o próprio sufrágio”.

A equivalência entre liberdade de expressão e sufrágio desimpedido dar-se-ia na medida em que um procedimento de eleição justo pressuporia a livre existência de informações e de ideias, observando-se restrições proporcionais à liberdade de expressão se levadas a cabo para aperfeiçoar o processo de debate acerca das preferências eleitorais. A relação intrínseca entre democracia e expressão foi bem delineada por Owen Fiss, professor da Universidade de Yale, para quem o fim da liberdade de expressão não é proporcionar à realização individual, mas, sim, a preservar a democracia e o direito do povo de, enquanto entidade coletiva, decidir qual vida deseja viver. In casu, os incisos II e III do artigo 45 da Lei 9.504 haveriam extrapolado os limites do sistema constitucional ao criar limitações excessivas e desproporcionais ao proibir a produção e a veiculação de conteúdo humorístico envolvendo candidatos e agremiações e ao vedar a veiculação de propagando política e a difusão de opiniões favoráveis ou contrárias.

A medida cautelar formulada pela associação foi parcialmente deferida pelo relator da ADI 4.451/DF, ministro Carlos Ayres Britto. Suspendeu-se a eficácia do inciso II do artigo 45 e deu-se interpretação conforme ao inciso III para impedir censura prévia, mas permitindo ao Judiciário aferir posteriormente se a conduta desequilibraria a paridade de armas na eleição ao valer-se da liberdade de imprensa para veicular propaganda em prol de uma das partes em disputa. O relator entendeu haver no pleito tanto urgência, devido à proximidade do período eleitoral, quanto fumus boni iuris, considerando a necessária plenitude da liberdade de imprensa, sobretudo na eleição de representantes políticos. No Plenário, o relator submeteu aos pares voto inicialmente idêntico à decisão monocrática na cautelar: mantinha a suspensão da eficácia do inciso II e conferia ao inciso III leitura adequada à constituição para chancelar, “entre vários sentidos a priori configuráveis da norma infraconstitucional, aquele que lhe seja conforme ou mais conforme”.

De início, instalou-se uma divergência em relação ao final do voto do ministro relator, particularmente na autorização para que o Judiciário analisasse a posteriori a ocorrência de condutas vedadas. Ainda que proibisse a censura prévia, tomou cuidado o relator em destacar a relevância de responsabilizar emissora a posteriori por matéria jornalística que nada mais fosse do que propaganda política travestida em exercício da liberdade de imprensa. Para a ministra Cármem Lúcia, que foi acompanhada pelos ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes, o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição impõe ao Poder Judiciário a análise de toda e qualquer lesão e ameaça a direito, pelo que essa leitura do inciso III do artigo 45 permaneceria inconstitucional. Em faces de tais ponderações, fez por bem o ministro em alterar o voto para suspender também a eficácia do inciso III do artigo 45 da Lei 9.504.

Assim, a maioria do Supremo, integrada pelos ministros Carlos Ayres Britto, Cármem Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Celso de Mello e Cezar Peluso, entendeu pela suspensão integral do inciso II e parcial do inciso III da Lei das Eleições, suspendendo por arrastamento a eficácia do parágrafo quarto e quinto, na medida em que a liberdade de imprensa livre não deve sofrer constrições durante o pleito, sendo defesa a invocação de afronta à isonomia na disputa por veiculação de mensagens humorísticas desde que não houvesse abuso de poder econômico, midiático ou politico.

Sendo permitido à emissora de rádio e de televisão veicular charges, sátiras e programas humorísticos em relação a um partido, candidato ou autoridade, entendeu o relator que também deverá sê-lo durante o período eleitoral. Portanto, seria indispensável suspender a eficácia do inciso II do artigo. 45 da Lei 9.504, que visaria reprimir um estilo peculiar de fazer imprensa. Já o inciso III teve sua eficácia suspende no que dizia respeito a “ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes”. A conduta será vedada apenas se a matéria jornalística descambasse em propaganda política que favorecesse abertamente uma das partes na disputa.

Acerca do periculum in mora, os ministros Gilmar Mendes e Ellen Gracie agregaram ao raciocínio do ministro relator a renovação diária do risco de o provimento final da ação tornar-se ineficaz, vez que, quando da ratificação da medida liminar, falta apenas um mês para a realização das eleições de 2010, em que seriam eleitos presidente, senadores, deputados federais, governadores de Estado e deputados estaduais.

Por sua vez, a ministra Cármem Lúcia precisou que a vedação antecipada de truncagem, montagem ou outro recurso de áudio e de vídeo que, “de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação” constituiria cerceamento prévio à livre imprensa, na contramão do artigo 220, caput, parágrafo primeiro e segundo da Carta. Quanto ao inciso III, a ministra votou por suspender parcialmente sua eficácia a fim de proibir “veiculação, por emissora de rádio e televisão, de crítica ou matéria jornalística que venham a descambar para a propaganda política, passando, nitidamente, a favorecer uma das partes na disputa eleitoral, de modo a desequilibrar o 'princípio da paridade de armas'”.

Os ministros vencidos posicionaram-se pela declaração da inconstitucionalidade parcial dos dispositivos questionados. Inaugurada pelo ministro Dias Toffoli, a divergência foi acompanhada pelos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, para os quais a interpretação conforme do inciso II, a fim de excluir da sua incidência as atividades de humor, asseguraria resultado igualmente eficaz ao obtido com o deferimento da liminar. Contudo, manteve-se a norma plenamente válida para fins da aplicação do artigo 55 da Lei 9.504. O inciso III também deveria ser interpretado em conformidade à Carta, para erradicar dúvidas sobre a constitucionalidade de “crítica jornalística, favorável ou contrária, a candidatos, partidos, coligações, seus órgãos ou representantes, inclusive em seus editoriais”. Logo, votaram por referendar a liminar em relação ao inciso II, mas indeferi-la integralmente em relação ao inciso III, sob o fundamento de que o inciso V do artigo 45 permite de antemão críticas em programas jornalísticos e debates políticos.

Com propriedade, decidiu o Supremo Tribunal Federal que o humor encontra guarida na Constituição Federal de 1988, permitindo o uso do humor no questionamento a partidos, candidatos e autoridades no geral. Ao suspender a eficácia do inciso II e do inciso III do artigo 45 da Lei 9.504 e, por arrastamento, a eficácia dos parágrafo 4º e 5º, o Poder Judiciário garantiu aos brasileiros “o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado”, como registrou o ministro Ayres Britto.


 A dignidade da pessoa humana




Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para concretizar o sentido do princípio constitucional da liberdade de expressão e pensamento, que a Constituição Federal de 1988 protege como direito fundamental nos incisos IV e IX do seu artigo 5° . Cada vez que este princípio contrapunha-se a um outro, terminava o Supremo a dar-lhe contornos mais claros na medida em que lhe impunha limites. No Habeas Corpus 82.424/RS , os contornos deveram-se à primazia do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nessa ocasião, o Supremo foi instado a decidir sobre a condenação à pena de dois anos de reclusão de indivíduo como incurso no tipo penal previsto pelo artigo 20 da Lei n° 7.716/89 – crime de preconceito . À primeira vista, o que parecia ser mais um entre os milhares dos Habeas Corpus impetrados contra ato constritivo à liberdade de locomoção, revelou-se um autêntico hard case. Ao decidir sobre a prisão de um editor de livros cuja obra foi considerada antissemita, o Supremo estabeleceu limites à liberdade de expressão diante do princípio da dignidade da pessoa humana.

A controvérsia girava em torno de dois pontos. Primeiro, questionava-se a possibilidade de enquadrar o preconceito com judeus no tipo penal do racismo, ou seja, a abrangência do dispositivo legal quando da interpretação do conteúdo de livros revisionistas escritos por Sigfried Ellwanger. Para os impetrantes, a punição do crime estaria prescrita porque o julgamento pela primeira instância aconteceu quase doze meses após o recebimento da denúncia, na forma do artigo 109 e 110 do Código Penal. A solução seria defender a natureza comum do crime para afastar a imprescritibilidade do racismo, como estipula o  artigo 5°, inciso XLII, da Constituição, ao argumento de que não existiria uma “raça judaica”, apenas a raça humana.

Em segundo lugar, defendia-se a prevalência da liberdade de expressão. Entretanto, este mesmo texto constitucional estabelece não só a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República brasileira, como também institui a igualdade entre todos os cidadãos. Instalava-se, assim, o hard case, na medida em que a controvérsia não encontra solução óbvia na ordem jurídica. É nesse momento, de acordo com Ronald Dworkin, que o intérprete da lei depara-se com a árdua tarefa de analisar o problema à luz de seus partícipes, seu contexto e suas consequências.

O Procurador Geral da República ofertou parecer pelo indeferimento do Habeas Corpus, por entender que o crime de racismo previsto na Constituição Federal de 1988, tal como fora regulamentado pela Lei 7.716/1989, deveria ser interpretado não só como preconceito fundado em “raça”, mas também por cor, etnia, religião e procedência nacional. Idêntico foi o posicionamento apresentado por Celso Lafer como amicus curiae. Deveria o inciso XLII do artigo 5° da Constituição de 1988 ser lido do modo mais aberto possível  “dada a relevância que a Constituição atribui a direitos e garantias fundamentais, entre as quais se inclui a rigorosa inaceitabilidade da prática do racismo”.

O julgamento do HC 82.424 estendeu-se por três sessões e levou mais de nove meses para ser concluído. Por um placar de 8 votos a 3, os ministros negaram o pedido. Saíram vencidos os Ministros Moreira Alves, Marco Aurélio e Ayres Britto. O primeiro entendeu que não só ocorrera a prescrição, por se tratar de crime comum, como também não se poderia cogitar do racismo porque judeus não seriam considerados uma raça. Em sentido semelhante, o ministro Marco Aurélio entendeu não haver crime de racismo, na medida em que a intenção do autor era apenas promover uma revisão histórica dos fatos e que sua manifestação individual deveria ser resguardada pelo direito. Além, foi do seu entendimento que a Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre o crime de racismo e determinar sua imprescritibilidade, referia-se ao preconceito contra negros, não contra o povo judeu.

Sendo o crime praticado por Ellwanger comum, estaria já prescrito. Para o ministro, o instituto da imprescritibilidade tornaria o cidadão refém eterno dos seus atos e das sua manifestações, “como se não fosse possível e desejável a evolução, a mudança de opiniões e de atitudes, alijando-se a esperança, essa força motriz da humanidade”. O ministro Ayres Britto, terceiro e último voto vencido, concedia a ordem, uma vez que o crime teria sido praticado antes da entrada em vigência da lei que tipifica o racismo por meio de comunicação.

Acerca da questão de fundo, os limites à liberdade de expressão, posicionaram-se Ayres Britto e Marco Aurélio. Para o primeiro, o paciente do Habeas Corpus possuía apenas os intuitos científico e histórico na publicação dos obras considerados revisionistas. Diante de um “estudioso tendencioso”, deveria ser dado espaço ao senso crítico dos leitores. Já o ministro Marco Aurélio seria indispensável resguardar a liberdade de expressão como proteção contra a tirania de pensamento politicamente correto. Estaria o editor a relatar sua versão dos fatos e as pessoas não seriam obrigadas a compartilhar de igual ponto de vista.

A divergência que se consagrou vencedora foi aberta pelo ministro Maurício de Corrêa, que indeferiu a ordem a partir do argumento de que a segregação dos seres humanos em diversas raças nada mais seria do que um processo político decorrente da intolerância da sociedade. Após ilustrar as origens bíblicas do povo judeu e as estigmatizações sofridas por ele, defendeu a exegese teleológica e harmônica do inciso XLII do artigo 5° face ao texto da Constituição Federal de 1988, não podendo a categoria “raça” ser interpretada isoladamente como expressão simplesmente biológica, mas de acordo com suas diversas conceituações. Assim, “o que vale não é o que pensamos, nós ou a comunidade judaica, se se trata ou não de uma raça, mas efetivamente se quem promove preconceito ou tem discriminado como uma raça e, exatamente com base nessa compreensão, promove e incita a sua segregação, o que ocorre no caso concreto”.

O voto do ministro Maurício Corrêa foi ainda taxativo quanto à inexistência de violação aos princípios constitucionais garantidores da liberdade de expressão e de pensamento. A colisão entre direitos fundamentais não seria mais que aparente, na medida em que o texto constitucional não ampara atos discriminatórios de qualquer natureza. Um direito individual não pode ser utilizado como salvaguarda para conduta ilícita. O direito à livre expressão apenas será exercido legitimamente acaso atendidos os limites que o próprio texto constitucional lhe impõe. Para delineá-los, “há necessidade de proceder-se a uma ponderação jurídico-constitucional, a fim de que se tutele o prevalente”. No caso do HC 82.424, preponderariam os direitos de toda a parcela da sociedade prejudicada com as obras publicadas pelo paciente.

Para o ministro Gilmar Mendes, a controvérsia também girava em torno da extensão do crime de racismo. Seria inegável o caráter racista do antissemitismo, independentemente se adotado o critério antropológico, histórico ou biológico. Valendo-se do princípio da proporcionalidade na composição entre direitos fundamentais em divergência, entendeu que deveria sobressair naquele caso concreto o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma vez que a discriminação racial travestida de liberdade de expressão comprometeria a ideia de igualdade, um dos fundamentos do Estado democrático. Nesse sentido votaram Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cezar Peluso.

Ao cabo de três sessões e nove meses, o Supremo Tribunal Federal denegou a ordem no Habeas Corpus a partir do entendimento de que o antissemitismo está abarcado pelo tipo penal do racismo, sendo, portanto, imprescritível e inafiançável. Embora não exista uma divisão de raças humanas na biologia, ela existe nas mentes preconceituosas. No direito, deve preponderar não os conceitos científicos, mas a realidade social do impacto que tal preconceito causa a fim de privilegiar o objetivo final do dispositivo constitucional.

Privilegiou-se a própria Constituição Federal de 1988, cujo texto elegeu como objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça. A legislação e a jurisprudência alinham-se à adesão do Brasil às convenções internacionais que versam sobre a matéria, a exemplo da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Ratificada no ano de 1969, o diploma veda e enquadra na prática de racismo qualquer ato que induza ou incite, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional.

Como no julgamento de Ellwanger, onde sopesadas liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana, a colisão entre princípios constitucionais deverá ser resolvida caso a caso por meio de um processo dialético de complementação e limitação – em outros termos, por meio de uma ponderação. Não foi admitido justificar a publicação das obras que ofendessem a dignidade da sociedade judaica na liberdade de expressão porque tal garantia não seria absoluta, não podendo respaldar eventual manifestação que implique ilicitude. No HC nº 82.424 prevaleceu o direito da coletividade em ser respeitada como tal.

A discussão sobre antissemitismo retornou em 2016, com a entrada em domínio público da obra Minha Luta, de Adolf Hitler. Já há precedente do Tribunal Constitucional em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade e em repúdio à discriminação e ao preconceito. Todavia, cuida-se de entendimento adotado em Habeas Corpus que, por mais significativo que seja, não é dotado de eficácia vinculante e efeitos erga omnes. Caberá mais uma vez à justiça pôr a termo um conflito entre princípios de tamanha centralidade na ordem democrática: liberdade de expressão e dignidade.



Imagem, honra e intimidade



Por ocasião do ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, pelo Partido Democrático Trabalhista, contra a Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, o Supremo Tribunal Federal foi instado a arbitrar um novo conflito envolvendo o princípio constitucional da liberdade de expressão e pensamento. Nesse caso, opunham-se aos incisos IX e X do artigo 5° e artigos 220 a 223 da Constituição Federal de 1988 os incisos V e X do artigo 5º, que versam sobre o direito à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada. Superar a aparente colisão apenas se fez possível mediante a ponderação dos valores constitucionais diante o confronto entre as características da Lei de Imprensa e as normas da nova ordem constitucional.

Editada pelo regime militar ainda na presidência do general Humberto Castelo Branco, a pretexto de regular a “liberdade de manifestação do pensamento e de informação”, a lei nada mais fez do que institucionalizar a censura junto aos meios de comunicação a fim de coibir eventuais manifestações contrárias ao governo recém-instalado. Nesse sentido, seu artigo primeiro vedava “propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe” e excluía da proteção à liberdade os espetáculos e as diversões públicas. A Lei de Imprensa ainda proibia publicações clandestinas e atentatórias à moral e aos bons costumes — a serem definidos segundo os interesses políticos do governo. "No auge do militarismo, estimular um movimento de trabalhadores na justa luta por melhores salários, pelo recurso da greve, era motivo para classificar o gesto de subversão da ordem".

De acordo com o Partido Democrático Trabalhista, a Lei 5.250, tal como promulgada pelo regime militar, afrontava os preceitos fundamentais cristalizados nos incisos IV, V, IX, X, XIII e XIV do artigo 5º e nos artigos 220 a 223 da Constituição Federal de 1988. Por ser “incompatível com os tempos democráticos”, requereu a invalidação jurídica da lei na totalidade e, alternativamente, o reconhecimento da não recepção de determinados dispositivos e a interpretação conforme a Constituição de outros. Para o requerente, tais dispositivos, se mantidos no ordenamento, poderiam justificar violações à liberdade de expressão e pensamento.

O parecer do procurador-geral da República na ADPF 130 deu-se pela procedência apenas parcial da arguição, considerando a impossibilidade de ser conhecida em relação a matérias que não foram expressamente trazidas pelo autor na petição inicial, na forma do artigo 102, parágrafo 1º, da Constituição e do artigo 3º da Lei 9.882/99. No mérito, entendeu que a invalidação da lei em sua íntegra fomentaria “grave insegurança jurídica devido ao constante estado de ameaça à intimidade e dignidade das pessoas”, pelo que deveriam ser preservadas as normas sancionadoras do abuso no exercício da liberdade de manifestação — artigos 20, 21 e 22 da lei. Em suma, opinou que o pedido deveria ser julgado procedente parcialmente em atenção às garantias personalíssimas da intimidade, honra e vida privada.

Preliminarmente, antes de adentrar o mérito da controvérsia, entenderam os ministros ser a ADPF o instrumento jurídico cabível à impugnação de normas pré-constitucionais, com base no princípio da subsidiariedade, previsto no artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei 9.882 e firmado no julgamento da ADPF 33. A constitucionalidade da Lei 5.250 fora questionada no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 521, que nem sequer foi conhecida pelo tribunal em virtude da impossibilidade jurídica do pedido: “Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação a Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as”.

No mérito, por maioria, os ministros julgaram procedente a arguição para declarar a não recepção da Lei 5.250 por meio de uma “ponderação diretamente constitucional entre blocos de bens de personalidade: o bloco dos direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa e o bloco de direitos à imagem, honra, intimidade e vida privada”. A cabo dessa operação, decidiu o Supremo que o “bloco de constitucionalidade” — lido como o conjunto das normas do ordenamento jurídico que versam sobre a mesma matéria e que detém natureza constitucional — da liberdade de expressão é procedente ao bloco da intimidade, que incidiria tão somente a posteriori para assegurar o direito de respostas e responsabilizar os possíveis abusos.

Nessa oportunidade, os ministros vencidos posicionaram-se pela improcedência parcial ou total da ação. A divergência parcial foi inaugurada pelo ministro Joaquim Barbosa e seguida pela ministra Ellen Gracie, para os quais deveriam ser mantidos os artigos 1º, parágrafo 1º, 2°, caput, 14, 16, inciso I, 20, 21 e 22 da Lei 5.250/67 ao entendimento de que a ação do Estado na área das garantias fundamentais não seria necessariamente negativa. No campo da liberdade de expressão e de pensamento, a ação seria benéfica ao impor à imprensa a observância de interesses outros que os de seus produtores. Para ambos, nem todos os dispositivos da Lei de Imprensa seriam incompatíveis com a nova ordem, uma vez que serviriam como dispositivos de proteção ao direito de intimidade e de punição a abusos não tolerados pelo sistema jurídico.

O ministro Gilmar Mendes foi além para defender a recepção dos artigos 29 a 36 da Lei de Imprensa, que entendia ser exigência constitucional em virtude da dimensão objetiva ou institucional da liberdade de imprensa. Em seu voto, defende ser dever do legislador equacionar, nos termos exigidos pela Constituição Federal, a liberdade de imprensa e os demais valores fundamentais carentes de proteção, uma vez que não fora concebida pelo legislador constituinte de 1988 nenhum direito absoluto, insuscetível de restrição diante dos casos concretos. Assim, seriam relevantes os procedimentos estipulados pela Lei de Imprensa em seus artigos 29 a 36, cujo afastamento poderia instalar quadro de extrema insegurança jurídica e de risco a uma garantia constitucional.

O ministro Marco Aurélio votou pela improcedência total dos pedidos da arguição, em atenção à necessidade de um diploma normativo específico para disciplinar as variantes da liberdade de informação. Para o ministro, a vigência da Lei de Imprensa por mais de 20 anos sob a égide da Constituição Federal de 1988 terminou por purificar eventuais vicissitudes, no que aplicada pelo Poder Judiciário aos litígios, restando em pleno vigor apenas as normas que protegiam a intimidade dos cidadãos e a liberdade de informação.

A maioria dos ministros — Carlos Britto, Eros Grau, Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Menezes Direito — decidiu pela incompatibilidade frente à Constituição de 1988 da Lei 5.250, na medida em que seu propósito era justamente cercear o livre funcionamento da imprensa — base do sistema representativo. Ao possuir tal finalidade, a lei desnaturalizaria a própria existência da imprensa.

Relator, o ministro Carlos Ayres Britto considerou ser a Lei de Imprensa integralmente materialmente aos princípios da Constituição Federal de 1988, devendo ser subtraída na íntegra da ordem jurídica. A liberdade de imprensa seria a irmã siamesa da democracia, pelo que desfrutaria de uma campo de atuação maior do que a liberdade de pensamento e de expressão dos cidadãos. Esses mesmos direitos individuais seriam melhor exercidos diante de uma imprensa livre e plena, cuja fidedignidade deveria ser fiscalizada somente pelo pensamento crítico da sociedade. Dessa forma, o ministro rejeitava toda e qualquer interferência do Estado em questões essencialmente relacionadas à imprensa, admitindo a disciplina de temas secundários ao trabalho jornalístico, como o direito de resposta e o pedido de indenização, mas não a liberdade de manifestação e o acesso a informação.

Em seu voto, o ministro Menezes Direito valeu-se da obra do professor Owen Fiss, da Universidade de Yale, ao enfatizar a importância democrática da imprensa em informar os cidadãos dos posicionamentos de candidatos a cargos eletivos e em analisar as políticas de governo. Em idêntico sentido, a ministra Cármem Lúcia frisou a importância da liberdade de imprensa como a liberdade de pensamento para informar, informar-se e ser informado, contribuindo assim com a realização da dignidade da pessoa humana. Para a hoje presidente do Supremo, o sistema jurídico já disporia de mecanismos suficientes à coibição dos eventuais abusos praticados em nome da liberdade de imprensa. Ambos os direitos fundamentais seriam complementares porquanto quanto menor a possibilidade de liberdade de ser expressar que o ser humano possui, menos sua dignidade em relação aos outros.

Entendeu pela desarmonia da Lei de Imprensa com os princípios do novo ordenamento constitucional o ministro Ricardo Lewandowski, que reputava a legislação supérflua, na medida em que a matéria estaria já disciplinada no próprio texto da Constituição Federal de 1988. De igual modo, o decano do Tribunal, Celso de Mello, reconhece que a Carta repudia o exercício abusivo do direito de informar, reconhecendo ao indivíduo lesado o direito a ser indenizado por danos morais e materiais.

Ao final do julgamento, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADPF 130/DF, privilegiando a liberdade da imprensa frente ao direito à imagem, à honra e à intimidade. Ao tempo em que era proibida a censura prévia, permitia-se ao cidadão ofendido por eventual matéria jornalística pleitear judicialmente direito de resposta e indenização por danos.

Em julgado mais recente, o Supremo Tribunal Federal deparou-se mais uma vez com o conflito entre o bloco da liberdade de imprensa e o bloco do direito à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada — dessa vez, nos autos da ADI 4.815/DF. Ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros face o artigo 20 e 21 do Código Civil, era requerida a interpretação conforme à Constituição dos dispositivos a fim de permitir a confecção e a publicação de biografias sem a prévia autorização do biografado ou dos seus responsáveis. Como os precedentes indicavam, novamente prevaleceria a liberdade de expressão, rechaçando por unanimidade a necessidade de permissão. De acordo com a relatora, ministra Cármem Lúcia, a biografia é um pedaço da história, e a autorização, uma censura particular, devendo os erros e os danos serem reparados e obterem direito de resposta assim como os termos da lei exigem.


Somente a ponderação diante da controvérsia em concreto permite aos incisos IX e X do artigo 5° e aos artigos 220 a 223 coexistirem no ordenamento ao lado dos incisos IV, IX e X do artigo 5° da Constituição Federal de 1988. Tanto na ADPF 130/DF quanto na ADI 4.185/DF, vislumbrou-se a tendência de privilegiar a liberdade de expressão, de criação artística e de produção científica em detrimento a intimidade, privacidade, honra e imagem, sob o entendimento de que o cidadão possui o direito de tomar conhecimento acerca dos fatos relativos não só às condutas do governo e das autoridades, a fim de que possam exercer um juízo crítico e livre sobre as práticas estatais, mas também à vida das personagens públicas, devido à sua importância para a história e cultura da sociedade.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

A Revolução Pernambucana e os dilemas constitucionais, do passado e do presente


Marcelo Casseb Continentino

Nosso artigo é dedicado à história. À história de Pernambuco. À história constitucional do Brasil. E à nossa Constituição Federal de 1988, cuja história parece caminhara para a beira do precipício. É fruto, portanto, de um delicado esforço de diálogo entre a história do direito e o direito constitucional.

É que falar do passado pressupõe uma ambiência do presente, que condiciona nosso olhar para trás. Toda história (do passado) é uma história do presente. Embora os fatos ocorridos no passado sejam imodificáveis, sua interpretação e o modo de escrever fazem-nos mutáveis. Destarte, novas perspectivas históricas em termos de presente e de futuro surgem.

Ao falarmos da Revolução Republicana de Pernambuco em 1817, que, neste ano, completa seu Bicentenário, também enfrentamos as mesmas intersecções temporais através das possibilidades diversas que a predisposição ao diálogo com nossas gerações passadas oportuniza. Precisamos definir o fio condutor que nos conectará aos revolucionários republicanos do século XIX: o que eles pretendiam com a emancipação do Reino de Portugal? Por que, em 1817, era tão necessária uma Constituição? E, por fim, qual aprendizado podemos extrair dessa pródiga experiência política?

Não temos como responder satisfatoriamente tais questões, o que, entretanto, não nos impede de oferecer algumas impressões sobre os pontos suscitados, a partir de destaques da história da Revolução de 1817 e de suas possíveis leituras.

1817 tem ampla significação política e marca profundamente a história do Brasil, em face de diversos motivos: foi, no dizer de Evaldo Cabral de Mello, a primeira independência do Brasil com a introdução de inédita e efetiva experiência de governo republicano; estabeleceu um regime em que todos seriam iguais, no qual já se acenava para a abolição (“lenta, regular e legal”) da escravidão; gestou a primeira “Constituição” em vigor neste país. Não se trata apenas de mera precedência temporal, mas da intensidade da experiência que marcou tais acontecimentos.

Eclodida em 6 de março de 1817, no célebre episódio em que o oficial brasileiro João de Barros Lima (conhecido como “Leão Coroado”) insurgiu-se contra a ordem de prisão de seu superior hierárquico, o brigadeiro português Manoel Joaquim Barbosa, atravessando-lhe o corpo com sua espada, a qual integra o acervo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

A motivá-la, causas mais diretas podem ser apontadas: carga tributária excessiva a que era submetida, por ser a Capitania de Pernambuco uma das mais rentáveis do Reino; a grande seca de 1816, que afetou a produção de alimentos de subsistência, aumentando o custo de vida; o declínio da exportação do açúcar e do algodão; a longeva hostilidade entre portugueses e brasileiros (ou portugueses americanos), extremada em razão de os portugueses serem designados para altos cargos administrativos e de serem credores dos grandes proprietários rurais exportadores (nativos), devido à existência de regras comerciais leoninas.

Ainda, o impacto nas relações políticas e sociais, oriundo da “interiorização” da Metrópole. Com a chegada de D. João VI e da família real para a Colônia Brasil, elevada à categoria de Reino Unido a Portugal em 1815, assistiu-se à gradual transformação na condução político-administrativa das Capitanias, o que afetou sensivelmente os diferentes graus de autonomia existente. No caso especial de Pernambuco, que enfrentara a guerra de expulsão contra os holandeses, sedimentara-se a identidade pernambucana alicerçada sobre o ideário da autossuficiência e da relativa independência da Capitania.

Segundo a Professora Maria de Lourdes Viana Lyra, a vinda da família real modificou a lógica administrativa, ocorrendo maior centralização administrativa e fiscalização das atividades comerciais desenvolvidas nas Capitanias, além do próprio aumento das despesas para manutenção da corte e de suas regalias. Dada sua relativa autonomia, a Capitania de Pernambuco sentiu mais fortemente o peso da mão direta do monarca em seus negócios.

O sentimento de injustiça, de tirania e de opressão enraizou, cenário que foi muito bem traduzido na síntese de Evaldo Cabral de Mello: “Lisboa já não estava em Lisboa, mas no Rio”.

A rejeição à coroa alastrou-se rapidamente, porque circulavam e se discutiam, naquela Capitania, muitas ideias novas, que, desde o início do século XIX, começaram a reverberar em diversas regiões do país. A atividade comercial intensa no Porto da Vila do Recife, que facilitava o acesso a pessoas, ideias e livros da Europa e da América (cuja comercialização era proibida), bem como a existência de lojas maçônicas, dentre as quais convém destacar o Areópago de Itambé, fundado por Arruda da Câmara, e do Seminário de Olinda, fundado por Azeredo Coutinho, fizeram com que a linguagem dos direitos individuais, perfilhada nas luzes europeias e americanas, tivesse boa acolhida entre os pernambucanos.

Autores como Condorcert, Voltaire, Rousseau, Sieyès, Mably, Montesquieu eram bem conhecidos àquele tempo na Capitania de Pernambuco. E, a partir deles, é que os revolucionários de 1817 tentaram constituir sua linguagem própria e fazerem atuar suas pretensões políticas bem como formular o projeto constitucional para Pernambuco, para as Capitanias do Norte e, enfim, para o Brasil.

Nesse contexto, é editada a Lei Orgânica de 1817, que segundo, o monsenhor Francisco Muniz Tavares, tinha por objetivo viabilizar uma mínima estruturação orgânico-política de Governo Provisório, legitimando-o. À Lei Orgânica, seguiria uma Declaração de Direitos.

A constituição de uma sociedade, onde imperassem a justiça social e a igualdade, foi sonhada pelos revolucionários de 1817 e se expressaria na “Declaração dos Direitos Naturais, Civis e Políticos do Homem”, que, não obstante enviada para publicação na Officina Typographica da Republica de Pernambuco, não se publicou nem circulou por força da repressão reinol.

Conforme explicou a Professora Margarida Cantarelli no “Seminário Revolução Pernambucana de 1817”, realizado nos dias 5 e 6 de abril de 2017, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Lei Orgânica configurou, por essência, uma verdadeira “Constituição”, ao se enquadrar no novo significado (moderno) de “Constituição”, definido no curso do processo revolucionário francês e norte-americano, que foi positivado na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em que se lê:

Art. 16. Qualquer sociedade, na qual uma norma não tenha estabelecido a garantia dos direitos nem a separação dos poderes, não tem Constituição.”

A Lei Orgânica de 1817 tratou da estrutura dos poderes políticos, adotando a separação tripartite dos poderes ao cuidar do Poder Legislativo (arts. 4º e 5º), Executivo (arts. 8º a 12) e Judiciário (arts. 13 a 20), bem como avançou em temas de direitos individuais, tais como liberdade de imprensa (art. 25) e tolerância religiosa (art. 23). Sob esse prisma, parece-nos adequado caracterizá-la como “Constituição”, pois garantiu direitos e a separação dos poderes.

Podemos reconhecer em acréscimo, na esteira do Professor Nilzardo Carneiro Leão, que, na Lei Orgânica, foram antecipadas garantias hoje presentes na própria Constituição Federal de 1988.

Qual o significado dessas permanências? É justamente aqui, e já encerrando nosso breve diálogo intertemporal, o momento em que entra a Constituição de 1988.

No Brasil, desde a Revolução de 1817, várias Constituições foram editadas, democrática ou antidemocraticamente. Apesar das distintas ideologias que as envolveram em cada momento específico, é inegável que garantias constitucionais presentes na Lei Orgânica de 1817 atravessaram anos e décadas e continuam presentes no texto da Constituição de 1988. Princípios fundamentais (liberdade, igualdade, legalidade e propriedade), lastreados no constitucionalismo francês, inglês e norte-americano, foram proclamados em 1817 e, dentro do horizonte constitucional de cada tempo em que aos mesmos princípios novas dimensões são atribuídas, foram sendo acolhidos nos diversos textos constitucionais brasileiros.

E onde reside o problema presente?

Deixa-se transparecer de nossa incapacidade de aplicar e concretizar, factual e socialmente, os mesmos princípios que constituem nossa identidade cultural e constitucional. Eis a permanência que nos caracteriza: a histórica e renitente inefetividade de promover os princípios da identidade constitucional brasileira.

Não por outra razão, Glauco Salomão Leite, fazendo uso de uma peculiar semântica do conceito de “revolução”, defendeu o argumento de que, no Brasil de hoje, necessita-se de uma “jurisdição constitucional revolucionária”, que, em outras palavras, demandaria interpretação judicial na qual prevalecesse a textualidade normativa. Ser revolucionário, portanto, significa ser um fiel aplicador da Constituição e das leis do país.

Destarte, os revolucionários de 1817 nos fazem ver – através dessa conversa protraída no tempo – que, não obstante estejamos há mais de 200 anos na luta pela efetivação de direitos comuns às duas gerações (passado e presente), ainda enfrentamos dificuldades similares. E que essas dificuldades estão longe de serem solucionadas, não por faltar um texto de Constituição adequado às peculiaridades brasileiras ou à sua governabilidade, mas porque, isso sim, falta-nos uma cultura jurídica de levar a Constituição a sério.

Defender-se, pois, que a solução das mazelas políticas e constitucionais do País residiria na convocação de uma Constituinte exclusiva para elaborar uma nova Constituição, parece-nos, para dizer o menos, fruto de uma ingenuidade histórica e jurídica. Porém, embora a história não seja a mestra da vida, concede-nos importante canal de interlocução a mostrar que, acima de novas leis, que pouco alterarão a atual moldura formal e textual da Constituição de 1988, o que nós precisamos mesmo é implementar esses princípios que configuram o núcleo central de todas as Constituições que o Brasil conheceu nesses últimos 200 anos.

Lembremos: foram várias Constituições (1824, 1891, 1934, 1937, 1945, 1967/1969 e 1988), com o detalhe de que a vigente Constituição foi a que mais se beneficiou da participação popular.

Reiteremos: o dilema consiste em efetivar nosso projeto constitucional cuja essência assenta-se numa identidade cultural e constitucional, formada há mais de dois séculos, da qual Constituição alguma poderá afastar-se, sob pena de já nascer eivada de ilegitimidade.


Celebrar o Bicentenário da Revolução Pernambucana é, portanto, reconhecer nossa tradição constitucional mais que bicentenária, que, lamentavelmente, ainda está distante de se concretizar e cuja solução passa ao largo da elaboração de mais um novo texto constitucional. A memória revolucionária de 1817, em que foram apropriados diversos conceitos como constitucionalismo, patriotismo, republicanismo, federalismo, nesse difícil diálogo intergeracional, está a nos exigir, isso sim, atitudes efetivas voltadas à realização das promessas constitucionais de ontem e de hoje. E que – Oh, patriotas brasileiros! – sejamos patriotas constitucionais.

Foro por prerrogativa de função — na prática, a teoria é outra


Adilson Abreu Dallari

Na prática, a teoria é outra. Lamentavelmente, é isso que acontece, na verdade, com o chamado foro privilegiado, ou, tecnicamente, por prerrogativa de função. A designação técnica indica, com mais precisão, o que ele deveria ser (um tratamento especial em decorrência do exercício de uma função pública de maior relevância), mas a designação popular identifica melhor algo no que ele se converteu; um privilégio odioso, com consequências altamente danosas ao erário, ao interesse público e à cidadania em geral.

Para servir como referência, transcrevo parte da notícia dada por Eliane Cantanhede (O Estado de S. Paulo, 10/02/17, p. A6): “O STF marcou para 18 de abril deste ano (2017) o julgamento do deputado Paulo Maluf, acusado de desvio de dinheiro de São Paulo para contas no exterior, quando foi prefeito. Quando? De 1992 a 1996, há 21 anos!”. Note-se que, além do absurdo tempo decorrido, trata-se de ato que nada tem a ver com o exercício da “função” de prefeito. Ou seja, trata-se de algo completamente fora do exercício do conjunto de atribuições inerentes ao cargo, ou mandato, de prefeito municipal.

O foro por prerrogativa de função não é um mal em si mesmo. A administração pública tem um estigma: só aparece quando não funciona. Se alguém apertar o interruptor e a luz se acender, ninguém vai se lembrar que existe toda uma complexa estrutura de administração pública funcionando para que isso aconteça. Mas, qual seria a reação usual se a luz não acendesse, ou se da torneira não saísse água, ou se o ônibus (ou metrô) estiver atrasado, ou superlotado?

Algo correlato acontece com a autoridade pública. Atualmente, no âmbito federal, o governo está levando adiante o enxugamento da máquina pública, extinguindo um número considerável de “cabides de emprego”, na administração direta e indireta. Mas isso nem é notícia. O governo do Estado de São Paulo reformulou completamente o tratamento dado às licitações para a concessão de rodovias, de maneira a aumentar o número de participantes, ampliar a competitividade e acabar com o jogo de cartas marcadas, que caracterizaram a grandes licitações no Brasil, há uma década, propiciando a mais deslavada corrupção. Mas esse saneamento na gestão pública é notado apenas pelos mais diretamente ligados ao assunto.

No âmbito municipal paulistano fica evidente uma outra característica das decisões tomadas na gestão da coisa pública: a conflituosidade. Tome-se como exemplo o combate às pichações que emporcalhavam a cidade, mas que, para uma parcela da opinião pública, representavam a liberdade de expressão do pensamento e da criatividade artística. É de se esperar um batalha em torno das medidas visando disciplinar o uso de espaços públicos por moradores de rua, que uma certa corrente política qualifica como política “higienista”. Imagine-se o tumulto que fatalmente ocorrerá, as pesadíssimas acusações que lhe serão feitas, se o prefeito adotar (como é seu dever) medidas destinadas a acabar com o espetáculo vergonhosamente dantesco que ocorre na chamada “cracolândia”, onde as autoridades públicas, há muito tempo, estão apenas enxugando gelo!

Mais um exemplo da realidade atual na esfera governamental paulistana. O prefeito tem conseguido uma série considerável de doações, de bens e serviços (máquinas, equipamentos, veículos e até obras de arte, exames de imagem e laboratoriais) feitas por pessoas e empresas para o melhor desempenho de atividades municipais, como a limpeza da cidade e a fiscalização do trânsito, entre outras coisas. Merecem especial destaque as contribuições dadas pelo setor médico hospitalar para o inquestionavelmente melhor atendimento da população de menor nível econômico. Pois bem; até isso, que parece ser algo digno apenas de louvores, já é objeto de ações populares, movidas contra o prefeito por pessoas vinculadas a partidos políticos.

O que se pretende dizer é que autoridades públicas de elevado escalão estão expostas aos azares de ações judiciais, pelo simples exercício de seu elementar poder/dever de tomar decisões. Por experiência própria, como ex-secretário municipal, tive que tomar decisões, em questões controvertidas, onde existiam interesses conflitantes, das quais fatalmente resultariam problemas, pois a parte que se sentisse prejudicada certamente iria reagir, inclusive perante o Judiciário. Fui autoridade coatora em muitos mandados de segurança. Felizmente, nunca fui acusado de improbidade.

Mas o risco de ser réu em ação judicial envolvendo a dignidade e a honorabilidade pessoal sempre existe. Assim, diante da maior vulnerabilidade de quem exerce, legitimamente, o poder/dever de decidir, é compreensível a existência de uma proteção especial no tocante a decisões ou atitudes tomadas no exercício da função pública, ou, mais exatamente, à prática de atos de ofício. Portanto, não haveria violação ao princípio constitucional da igualdade se um número restrito de autoridades, da mais alta hierarquia, fosse contemplada com o foro especial por prerrogativa de função.

O grande problema, na prática, é a multiplicação vertiginosa do número de autoridades aquinhoadas com essa prerrogativa e, o que é imensamente pior, sua aplicação a qualquer ato, qualquer atitude de tais autoridades, ainda que totalmente desvinculadas do exercício da função inerente ao cargo ou mandato. Some-se a isso a especial morosidade dos tribunais para julgar ações decorrentes do uso da prerrogativa do foro privilegiado.

Atualmente, conforme comentários na imprensa, grande vítima direta dessa distorção é o Supremo Tribunal Federal, que emerge como um formidável valhacouto, um refúgio seguro para políticos corruptos de toda ordem, pela prática de ações totalmente desvinculadas dos atos de ofício inerentes a mandatos ou cargos públicos exercidos em algum lugar do passado. Ou seja: a especial proteção é dada à pessoa física, que se valeu do mandato ou cargo para auferir indevida vantagem pessoal. Tentando explicar melhor: a absurda proteção especial é dada ao deputado Fulano, ou ao ministro Beltrano, e não ao ato de ofício por ele praticado no regular exercício da função pública. Existe, portanto, atualmente, no Brasil, uma casta praticamente inimputável, o que é evidentemente incompatível com o princípio constitucional da igualdade.

Essa inimputabilidade de fato decorre da impossibilidade concreta de que o STF possa julgar o grande número de feitos que, no nosso entender, lhe foram indevidamente encaminhados, por não se referirem a atos de ofício, praticados no regular exercício da função pública. Em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo (04/03/17, p. A2) como expressivo título de O Supremo em xeque, Miguel Reale Júnior, analisando dados fornecidos pela pesquisa “O Supremo em Números, feita pela FGV Direito Rio, afirma, com justiça, que a culpa pela existência grande número de processos que tramitam há mais de dez anos, por outro expressivo número de feitos com a punibilidade extinta pela prescrição e por um índice de condenações inferior a 1%, não é apenas do
STF, mas também da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal, mas, destaca ele, que esse estado de coisas acaba sendo imputado ao Supremo, cuja credibilidade já é periclitante.

Quem pode por cobro a esse inegável privilégio da impunidade é exatamente o STF, já que não é de se esperar que o Executivo e, muito especialmente, o Legislativo adotem alguma providência de ordem legislativa. É forçoso, portanto, mudar a jurisprudência, dando às disposições normativas uma interpretação compatível com a eficácia plena dos princípios constitucionais, tão prezada pelo ministro Barroso, tanto em seus notáveis ensinamentos acadêmicos, quanto em decisões que tem proferido.

As maiores vítimas dessa inegável concreta impunidade (“data venia” do ministro Celso de Mello) são o erário, a coletividade e a cidadania. Os recursos desviados não são recuperados e a população sofre com a deficiência de serviços públicos que poderiam ser melhorados. O pior efeito negativo, entretanto, recai sobre a cidadania, gerando o desânimo e o descrédito nas instituições do estado democrático de direito.