Estudo da Unicamp traça trajetória da política social
brasileira de1964 a 2002
A Constituição brasileira de 1988 nasceu cercada de grande
expectativa. No papel, o documento previa grandes avanços sociais para a
população como a viabilização de reformas progressistas, entre as quais a da
previdência social, saúde e educação. Na prática, no entanto, essas mudanças
não se consolidaram desde então. Um estudo realizado pelo economista Eduardo
Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ajuda a
entender os motivos ao analisar a trajetória da política social brasileira
entre 1964 e 2002.
Para a pesquisa que realizou em seu doutorado, Fagnani teve
como ponto de partida a identificação do quadro geral de carências estruturais
existentes no Brasil e atuação do Estado em cada setor durante os últimos
quarenta anos. Segundo o economista, esse período foi marcado pelo embate de dois
movimentos opostos. Enquanto o primeiro defendia uma agenda social, com as
bases institucionais e financeiras – características do chamado Estado de
bem-estar social –, o outro gerava uma série de reações a essas propostas.
Este primeiro grupo ganhou força a partir dos meados dos
anos 1970, ao criticar a política autocrática dos militares, principalmente na
área social. Para o pesquisador, o regime militar foi marcado por uma
modernização conservadora: embora tenham sido criados novos mecanismos financeiros
e institucionais que ampliaram a oferta de bens e serviços, essa modernização
voltou-se especialmente para as classes médias e ricas, o que deixou as camadas
mais pobres da sociedade de fora.
A luta por uma agenda de reformas progressista e redistributiva,
ou seja, mais social, culminou na Constituição de 1988. “Desenhou-se, pela
primeira vez na história do Brasil, o embrião de um efetivo Estado de bem-estar
social, universal e equânime”, ressalta Fagnani. Ao mesmo tempo, ele afirma que
a constituição é um instrumento frágil porque só define os princípios gerais.
“É num momento hostil da política nacional que acontece a regulamentação
constitucional e, portanto, as leis são desfiguradas pelos conservadores.”
Para o economista, as contramarchas receberam força a partir
do governo Sarney, que de certa forma procurou esterilizar o projeto
reformista, ao minar as iniciativas implementadas pelo executivo federal
(1985-1986). Após outubro de 1988, as contramarchas visavam desfigurar ou
retardar a vigência dos novos direitos constitucionais. “Os casos mais
paradigmáticos foram a reforma agrária, com o fim deste ministério em 1989, e
as políticas federais urbanas (habitação, saneamento e transporte público)”,
diz o pesquisador. “Mas essa contramarcha também atingiu os setores da saúde,
previdência social e educação, seguro-desemprego e suplementação alimentar.”
Com o esgotamento do Estado nacional desenvolvimentista no
plano internacional, passou a prevalecer a ideologia neoliberal. A partir daí,
países subdesenvolvidos com industrialização tardia, como Brasil, sofreram
pressão dos países globalizados para conterem gastos em programas sociais. É
justamente neste cenário que o então presidente Fernando Collor põe em prática
que se segue até o fim do governo FHC.
O modelo de macroeconomia vigente no mundo passa a
determinar as regras do jogo. “Se a Constituição de 1988 enaltece o Estado do
bem-estar social, a agenda neoliberal defende o Estado mínimo. Ao invés dos
direitos trabalhistas e políticas universais, mais flexibilidade do mercado e
políticas focalizadas. Por fim, ao invés dos direitos sociais, um governo mais
assistencialista”, completa o economista. “Portanto, o que seria uma
‘constituição cidadã’, segundo Ulysses Guimarães, torna-se uma ‘constituição
vilã.’“
Apesar de a pesquisa não incluir o governo Lula, o cientista
afirma que essa política assistencialista continua por meio de projetos sociais
como Bolsa-Família e Bolsa-Escola e adquire maior expressão. “Esses projetos
são fundamentais, mas não podem ser confundidos com a estratégia de
enfrentamento da questão social, como pregam os conservadores”. Ao contrário,
ela não pode prescindir de políticas universais. Outra condição necessária é o crescimento econômico
e a criação de emprego”, afirma Fagnani.
O economista alerta para os riscos da atual tentativa da
área econômica do governo de produzir “déficit nominal zero”. Essa estratégia,
segundo ele, se fundamenta no congelamento dos gastos governamentais com
previdência social, saúde, educação, seguro-desemprego etc. ”Essa nova
investida poderá implicar o início de uma nova etapa de desmonte do que ainda
restou do projeto de Estado de bem-estar social conquistado em 1988”, adverte.
Com essas ações estatais somadas ao poder inacreditável que
instituições financeiras internacionais continuam detendo sobre o país e ao
conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas, Fagnani é categórico:
“levam-nos a considerar crível um cenário em que a caridade volta a ser um
traço marcante do sistema de proteção social no Brasil”. Diante da
desconstrução do Estado social, o economista completa: “vivemos hoje mais um
desdobramento de uma mesma velha história de arraigados privilégios.”
Mário Cesar Filho
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