Por Ingo Wolfgang Sarlet
Embora já transcorrido o aniversário propriamente dito da
promulgação da nossa Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, ainda está
em tempo de se esboçar um breve apanhado geral sobre o reconhecimento, proteção
e promoção dos direitos e garantias fundamentais na atual ordem constitucional.
Quanto à sua posição e significado na arquitetura constitucional, inegável que
a CF representou um salto de feição quantitativo, mas especialmente
qualitativo, seja no que diz com o número dos direitos e garantias, seja
especialmente no tocante ao seu regime jurídico reforçado.
Com efeito, ademais de ter o Constituinte, em termos gerais,
optado por concentrar os direitos fundamentais de todas as espécies (civis,
políticos, sociais, econômicos e culturais) no Título II do texto
constitucional, logo na sequência dos Princípios Fundamentais, apontando, de
tal sorte, para a relevância dos direitos e garantias fundamentais para o
conjunto da ordem constitucional, o próprio termo “Direitos Fundamentais” é
novo no âmbito da trajetória constitucional brasileira.
Além disso, calha sublinhar que a terminologia adotada não
representou mero rótulo desacompanhado de real significado, visto que, na
esteira da tradição inaugurada pela Lei Fundamental da Alemanha de 1949 e desde
então amplamente difundida, a condição de direitos fundamentais, para que
efetivamente mereçam ostentar tal título, é determinada essencialmente, para
além da assim chamada fundamentalidade material, por um conjunto de garantias
expressas e implícitas que asseguram um regime jurídico reforçado e
diferenciado dos direitos fundamentais em relação a outras normas
constitucionais.
Nessa esteira, igualmente sem precedentes no Brasil, a CF
estabeleceu que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são:
a) de aplicação imediata, sendo, portanto, diretamente vinculativas (artigo 5§
1º); b) integram o conjunto as assim chamadas “cláusulas pétreas” (artigo 60§
4º) e c) não correspondem a um rol de caráter taxativo, incluindo, além dos
direitos expressamente enunciados, direitos decorrentes do regime e dos
princípios da CF e – e aqui outra novidade! - os direitos constantes dos
tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (artigo 5º,
§ 2º).
No que diz com o elenco dos direitos em espécie consagrados
pela CF, incluindo-se aqui direitos positivados para além do Título II, não é
demais recordar que mesmo tendo os principais tratados de direitos humanos (os
dois pactos da ONU de 1966 e a Convenção Americana de 1969) sido incorporados
apenas na primeira metade da Década de 1990, portanto alguns anos depois de
promulgada a nossa Lei Fundamental, o texto originário de 1988 já contemplava
em sua ampla maioria os direitos reconhecidos no plano internacional,
demonstrando, de tal sorte, a abertura aos desenvolvimentos registrados na
seara constitucional e mesmo em ordens constitucionais estrangeiras.
Note-se, nesse contexto, que embora o caráter analítico do
catálogo constitucional de direitos e garantias possa merecer alguma crítica,
em especial quanto à sua sistematização e mesmo quanto ao número de direitos em
espécie consagrados, o fato é que a CF não desborda do quadro internacional,
visto que já se contam centenas de direitos previstos em tratados de direitos
humanos. O aspecto numérico, portanto, até pode ser causa de algumas
perplexidades teóricas e práticas, mas não poderá por si só deslegitimar o
papel dos direitos fundamentais na ordem constitucional.
À riqueza numérica soma-se o caráter relativamente pioneiro
e mesmo inovador de alguns direitos e garantias fundamentais, como é o caso da
proteção do consumidor, do mandado de injunção, do habeas data, da proteção do
ambiente, do reconhecimento de direitos das minorias étnicas e culturais,
dentre tantas outras. Dada a dinâmica da vida, também o poder de reforma
constitucional não deixou de contribuir significativamente para o
enriquecimento do catálogo, mediante a inserção do direito à razoável duração
do processo, dos direitos sociais à moradia, à alimentação e ao transporte, bem
como da introdução do § 3º do artigo 5º assegurando valor de emenda
constitucional àqueles direitos constantes de tratados internacionais aprovados
mediante procedimento legislativo qualificado.
Todavia, não fosse o labor produtivo da doutrina e da
jurisprudência constitucional, que, especialmente na seara dos direitos
fundamentais, alcançou — sem prejuízo de importantes aspectos carecedores de
crítica — um incremento quantitativo, mas também qualitativo inimaginável
quando da promulgação da CF, a generosa e avançada previsão textual dos
direitos no plano constitucional poderia ter sido substancialmente esvaziada ao
longo do tempo. Nesse particular, é possível adiantar que a despeito de alguns
revezes, a trajetória pós-88 é essencialmente evolutiva e não regressiva.
Apenas em caráter ilustrativo, relembre-se o reconhecimento,
pelo STF, de uma série de direitos fundamentais implícitos (direito ao nome,
sigilo fiscal e bancário, mínimo existencial, direito à ressocialização,
direito à execução da pena em condições dignas, entre outros), mas saliente-se,
ademais, o caráter proativo (para alguns demasiadamente ativista!) da nossa
Corte Suprema no que diz com a afirmação e mesmo aperfeiçoamento do regime
jurídico dos direitos fundamentais. Nessa senda, é possível referir, ainda, a
extensão aos direitos sociais da prerrogativa da imediata aplicabilidade das
normas de direitos fundamentais, a interpretação extensiva das “cláusulas
pétreas” nesse domínio, a exegese ampla da titularidade dos direitos
fundamentais, assim como o inegável avanço – ainda que não ideal – no
concernente ao valor jurídico atribuído aos tratados internacionais de direitos
humanos.
A atuação da jurisdição constitucional brasileira também se
revela afinada com as grandes questões que dizem respeito aos desafios dos
direitos fundamentais na atualidade, protagonizando, de modo geral, uma
jurisprudência dinâmica e progressista, como dão conta, em caráter ilustrativo,
as decisões repudiando o discurso do ódio, reforçando a liberdade de reunião e
expressão, reconhecendo a união estável entre parceiros do mesmo sexo,
chancelando políticas de ações afirmativas, valorizando a proibição de
crueldade contra os animais (casos da farra do boi, rinha de galos e por último
a polêmica vaquejada), bem como o reconhecimento de um estado de coisas
inconstitucional em relação a situação dos presídios brasileiros, decisões que
foram objeto de majoritário aplauso.
Com isso não se está, à evidência, olvidando que no seu
labor o STF tem sido alvo de importantes críticas, em especial no tocante a
eventual excesso de intervenção na seara da política e da economia, mas também
no que diz com a falta de consideração dos limites textuais postos pelo direito
constitucional positivo, como dão conta – novamente em caráter ilustrativo – a
assim chamada “judicialização” das políticas públicas, assim como os casos
envolvendo a fidelidade partidária, a assim chamada Lei da Ficha Limpa, o caso
Raposa Serra do Sol e mesmo a discutida decisão autorizando a execução
provisória da pena depois da condenação em Segundo Grau de Jurisdição à pena
privativa de liberdade.
Ainda nesse contexto, é de se enfatizar que também os atores
legitimados a promover a proteção dos direitos fundamentais, assim como os
meios processuais para levar a efeito tal desiderato, merecerem particular
atenção por parte do Constituinte, ademais de terem sido ampliados no
transcurso desses 28 anos. É o caso, por exemplo, do mandado de injunção, do
habeas data, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, da
ampliação gradual do controle concentrado de constitucionalidade, do
fortalecimento do papel do Ministério Público, na criação e fortalecimento da
Defensoria Pública, entre outros.
Por outro lado, mesmo diante de diversas tentativas no
sentido de relativizar direitos e garantias, não se registram mutilações de
relevo no sistema de direitos fundamentais da CF, muito antes pelo contrário,
os ganhos superam em muito eventuais perdas, se é que é possível, ao menos no
que diz com o reconhecimento formal (textual), identificar alguma perda
realmente significativa.
Até mesmo a gradual formação de uma cultura dos direitos
fundamentais, cada vez mais disseminada no próprio corpo social, há de ser
visualizada como um avanço, ainda que o “véu da ignorância“ (aqui evidentemente
não no sentido Rawlsiano!) cubra muitas mentes.
A proliferação de Organizações Não-Governamentais dedicadas à causa dos
direitos humanos e fundamentais, a disseminação de comissões de direitos
humanos no setor público, a difusão de questões ligadas a direitos fundamentais
nas mídias, são alguns indicadores que dão conta desse processo.
Assim, tudo somado e mesmo diante de um panorama tão
esquemático, seria até mesmo desarrazoado negar que há sim muito a comemorar.
Mas também há motivos suficientemente relevantes para preocupação e que no
limite podem transformar, ainda que em parte, o justificado otimismo em significativa
dose de frustração – que, de resto, já se verifica no corpo social - e mesmo
pessimismo em relação à capacidade de a gramática política e jurídica dos
direitos fundamentais assegurar de fato uma vida condigna aos brasileiros e
estrangeiros que no Brasil se encontram.
Possivelmente o principal fator a ser apontado é o índice
alarmante de casos envolvendo a violação de direitos fundamentais, tanto por
parte do poder público, quanto ao nível da sociedade, destacando-se aqui os
agudos níveis de desigualdade, o aumento da criminalidade violenta (basta
referir que dentre as 50 cidades mais violentas do Mundo quase a metade se
encontram em território brasileiro), o déficit de efetividade dos direitos
sociais básicos, os altos níveis de corrupção e desperdício, sem falar nos
crescentes índices de intolerância de toda natureza, desnudando, no seu
conjunto, uma crise que é tanto de efetividade dos direitos fundamentais,
quanto de confiança no seu papel de garantes da dignidade da pessoa humana.
Dito de outro modo, é perceptível que cada vez mais pessoas
se revelam céticas em relação ao discurso dos direitos fundamentais e sua real
eficácia e mesmo bondade intrínseca, o que sugere a urgência de se enfrentar de
modo sereno, mas firme, tais desenvolvimentos, que aprofundam o hiato entre as
promessas (e esperanças) constitucionais e a realidade nua e crua do cotidiano
de expressivo número de brasileiros.
Mas se não devemos quedar cegos diante de tal fenômeno, que,
de resto, em maior ou menor escala, não se traduz em “privilégio” do Brasil e
nem é de ser atribuído à CF, mas especialmente não aos direitos e garantias
fundamentais (como infelizmente sempre há quem sugira), também é verdade que,
por mais que se verifiquem problemas reais de violação de direitos, não podemos
ficar engessados e deixar de acreditar no - e lutar pelo - papel emancipador e
promotor da dignidade humana dos direitos fundamentais. Afinal, os direitos fundamentais seguem sendo
condição de existência e o fim de um Estado Democrático de Direito que mereça
ostentar esse título e, especialmente em período marcados pela instabilidade,
devem operar como pautas diretivas da ação pública e privada, deslegitimando
toda sorte de arbítrios e atuando como cláusulas de barreira contra
intervenções, por ação e omissão, do poder estatal e do poder privado, em
particular o poder econômico exercido de modo abusivo.
Nesse contexto, é de se recordar que a CF estabelece tanto
um rol atual e alentado de direitos e garantias, quanto os instrumentos
(jurídicos, mas também políticos) para a sua eficácia e efetividade, cabendo a
todos, Estado e sociedade, assegurar que a
distância entre os direitos nos textos e nos livros e os direitos na
realidade diminua, porquanto se nem tudo são vitórias, o conjunto da obra nos
diz que a causa vale a pena, pois sem direitos efetivos poderemos eventualmente
não ter mais muito por que lutar.
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