"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 25 de maio de 2013

A PEC das Domésticas e a saudade dos "bons tempos"

A saudade dos “bons tempos”

O cenário: uma antiga fazenda de café, janelas baixas, azuladas, pé direito alto. Algo do tipo Casa-Grande &; Senzala, compreendem? Os personagens: dois recém-casados, caucasianos, que, ao acordarem, encaminham-se ao café da manhã (servido por uma empregada doméstica).

Corta! Cena 2: A câmera mostra os “colaboradores” (adoro essa tucanagem das palavras) da “casa-grande” se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles tempos”).

Corta. Cena 3: O lindo sol raia no horizonte enquanto os campesinos se afastam e o belo casal, vestindo roupas brancas (assepsia, é claro!) senta-se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato (provavelmente trazida lá do Aveiro).

Corta. Cena 4. Os patuleus já estão na plantação.

Corta. Cena 5, final. O café sendo servido. Fumegante, denso, saboroso... e uma voz vigorosa, meio rouca, em off anunciando, algo como “Café Pindorama: a volta dos bons tempos!”

Essa peça publicitária não é fruto da minha imaginação. Foi ao ar na televisão aberta já há algum tempo e representa um imaginário que (ainda) permeia as relações de trabalho doméstico (e rural) em Pindorama (ou Terrae Brasilis). Reflexos de uma cultura escravagista e segregadora que se manifesta, ora sutilmente, ora explicitamente, como vamos ver em seguida.

Historicamente o liberalismo professado pelas elites brasileiras sempre foi atravessado por posturas políticas retrógradas. Na época do Império, os chamados políticos “liberais” proferiam discursos empolgantes sobre a igualdade, liberdade e fraternidade sem ao menos levar em consideração a situação degradante dos escravos. Era a razão cínica daqueles que apenas em momentos de conveniência política resolviam apoiar-se no pensamento liberal. As conquistas revolucionárias do mundo europeu eram assimiladas somente para atender às necessidades de um seleto grupo social que detinha o controle do aparelho estatal, ou seja, o estamento burocrático (no sentido de Faoro).

Desse modo, nos momentos de defesa do “incontestável” direito universal à propriedade (afinal, escravo era coisa), os donos do poder não deixavam de citar os clássicos do liberalismo político para sustentar seus privilégios; no entanto, logo depois, faziam questão de ignorá-los completamente quando o tema era a situação dos habitantes da senzala. De acordo com Bosi, o liberalismo brasileiro, “parcial e seletivo, não era incongruente: operava a filtragem dos significados compatíveis com a liberdade intra-oligárquica e descartava as conotações importunas, isto é, as exigências abstratas do liberalismo europeu que não se coadunassem com as particularidades da nova nação”.

Essa situação também pode ser confirmada no envolvimento dos “liberais” brasileiros com os projetos estatais claramente despóticos, concretizados logo após o encerramento do processo de independência. As grandes lideranças políticas do Império conciliaram a arbitrariedade monárquica com os mecanismos de limitação do poder político apresentados pelo constitucionalismo moderno. Nesse sentido, a importação do Poder Moderador e do parlamentarismo serviu apenas como instrumento nas mãos centralizadoras do imperador, que, juntamente com o estamento burocrático, sempre esteve livre de qualquer controle constitucional.

Tempos depois, em continuidade ao projeto político autoritário dessa mesma tradição liberal, o Estado Novo foi instituído em 1937 e o regime militar se instaurou em 1964. Deve ser por isso que Sérgio Buarque de Holanda dizia que o liberalismo no Brasil sempre foi “uma inútil e onerosa superfetação”.

O liberalismo à moda brasileira, sustentado pelas oligarquias imperiais, foi, antes de tudo, um instrumento de defesa do latifúndio e do trabalho escravo. Diante da impossibilidade de compatibilizar a obra de um pensador muito caro à tradição liberal, como é o caso de John Locke, com a concentração fundiária existente no Brasil, os adeptos do liberalismo pátrio fizeram todo tipo de distorção e manipulação teórica para incorporá-la a sua realidade. E se o escravo também era visto como propriedade do latifundiário, nada melhor do que dar continuidade a essas distorções teóricas para fundamentar o domínio sobre esta “mercadoria”.

O “liberalismo” e a PEC das Domésticas

Interessante mesmo é comparar o comportamento dos oligarcas escravagistas do século XIX com a postura dos que atualmente estão demonstrando grande preocupação com a aprovação da PEC que amplia benefícios para os trabalhadores domésticos (é bom que se observe que não estou aqui a falar de uma “reformulação da carreira”, mas meramente da incorporação de alguns direitos básicos previstos na CLT, o que ainda não tem o condão de elevar as domésticas ao mesmo patamar dos demais trabalhadores). O discurso de que haveria mais prejuízos do que ganhos foi o mais explorado. Nada diferente do que aconteceu nos grandes debates parlamentares que antecederam a abolição da escravatura. Naquele momento diziam que “a-economia-do-país-iria-à-bancarrota”, que a produção seria sacrificada e que o “sagrado” direito à propriedade seria desrespeitado.

Hoje, depois de mais de um século de abolição, um expoente dessa mesma tradição liberal fez a seguinte afirmação a respeito da Emenda Constitucional que favorece os trabalhadores domésticos: “É preciso muita cautela nesse processo de desmonte das instituições que foram criadas ao longo dos anos no tocante ao trabalho doméstico. Erros poderão resultar em aumento massivo de desemprego, prejudicando milhões de trabalhadores que hoje são empregados nessas atividades. Ademais, não há sinais de rejeição ou de desconforto nessas relações” (clique aqui para ler).

Pelo visto, de acordo com a visão do nobre (a palavra “nobre” vem bem a calhar, pois não?) articulista, os trabalhadores domésticos nunca se sentiram desconfortáveis em seus respectivos empregos, já que a ausência de regulamentação constitucional nunca foi vista por eles como um problema. Afinal, trabalhar sem direito ao 13º salário, férias, limitação na jornada de trabalho, FGTS e registro em carteira sempre foi uma condição “muito confortável” para todos aqueles que dedica(ra)m parte considerável de sua vida a cuidar dos lares brasileiros.

Para fundamentar suas posições, o articulista fez referência ao Estatuto da Terra como um exemplo de impacto negativo na vida dos trabalhadores rurais. Para ele, o êxodo rural e o crescimento das favelas e periferias das grandes cidades não é consequência da concentração fundiária e da ausência de uma política capaz de realizar a reforma agrária e priorizar a produção em pequenas propriedades. Pelo contrário, a regulamentação jurídica, que buscou ajustar às distorções sociais presentes no campo, foi atacada pelo articulista como mecanismo uniformizante e pasteurizado, responsável por destruir uma estrutura social e organizacional inteiramente benéfica aos trabalhadores rurais. É aí que eu pergunto: seria mesmo benéfica qualquer relação de trabalho sem nenhum tipo de regulamentação? Como eu apenas confio nos homens desconfiando, prefiro ficar com a regulamentação.

Dois registros. Como dizia o Conselheiro Acácio (de O Primo Basílio, de Eça de Queirós), “as consequências sempre vem depois...” Pois é. Quando abolimos a escravidão, ao invés de políticas públicas, damos aos ex-escravos um novo Código Penal. E hoje nos queixamos da violência. É, de fato, as consequências vem sempre depois...

A propósito: no dia 18 de abril estará, pela primeira vez em Porto Alegre, no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Prêmio Nobel J.M. Coetzee, falando sobre Ficção e Censura (clique aqui para mais informações). Recomendo Coetzee porque é um escritor sul-africano que compreendeu muito bem a questão da transição entre regimes (lá, na África do Sul, do apartheid para a democracia), problemática não bem resolvida no Brasil, nem depois da abolição da escravatura e nem da transição da ditadura para a democracia. Ele é autor de Desonra e A Espera dos Bárbaros, que muito podem nos ajudar a entender a complexidade destes tempos.

“Doutor — eu sei o meu lugar”

É inegável que, assim como as favelas são o modelo século XXI das senzalas, o empregado doméstico é o que mais se aproxima da ideia de escravo. É o ser socialmente invisível, cuja condição de violenta sub-humanidade é eufemisticamente encoberto por frases como “a fulana é quase uma pessoa da família” ou “ela até come na mesa com a gente”. Algo bem presente no imaginário social, reproduzido muito bem pelo programa de TV Mulheres Ricas, espécie de lumpesinato tardio-burguês, que retrata um país que não existe e a saudade dos “velhos tempos”.

Pergunto: será que você aceitaria que um parente seu tivesse que sempre acordar antes que os outros e ser o último (ou última, geralmente) a dormir? A revolta contra o fim da desproteção jurídica do trabalhador doméstico (e a consequente reação à Emenda Constitucional) é o sintoma de uma sociedade que ainda não conseguiu virar uma importante página da história: a que revela a existência de um estrato de pessoas juridicamente inferiorizadas. O empregado doméstico é, assim, o invisível social. Somente é notado nos momentos oportunos. Aqui, sugiro o livro A Elegância do Ouriço (também em programa no Direito & Literatura).

Talvez essa reação, por vezes hipócrita, que forma barreiras ao reconhecimento de direitos sociais aos trabalhadores doméstico, tenha me feito escrever esta coluna, para refletir sobre os estereótipos que povoam nosso imaginário e formam o inconsciente coletivo, segundo a psicologia analítica de Jung.

O arquétipo da empregada doméstica tem suas raízes na figura da mucama. Ampliou-se apenas a etnia. Hoje, em sua ampla maioria, mestiços. Isso explicaria em boa parte a sensação de incômodo que a Emenda Constitucional causa a muitos integrantes da classe média e média alta.

Essa emenda causa um mal-estar pela quebra das expectativas e da violação do arquétipo. Algo não estaria no lugar. No lugar de sempre. No lugar-comum. Ou seja, alguém, a partir da PEC, poderá “não mais saber o seu lugar”...!

Imaginário brasileiro talvez ainda não esteja preparado para esse reconhecimento. O caminho mais fácil, então, é negação pura e simples da emancipação que essa emenda trará. Sem esconder a hipocrisia, surge o discurso de uma imediata preocupação com aquele invisível social. Agora o resquício da mucama aparece porque toca em uma parte sensível do amo: o bolso. Por isso o discurso apocalíptico do desemprego em massa. Com a abolição também ocorreu isso.

Esse pequeno, mas poderoso, contingente de desconfortáveis, não acostumados a tal estado de coisas, enumera a falta de preparo intelectual da neo-mucama, a mesma que não pôde estudar porque teve que cuidar em tempo integral dos filhos do amo-patrão ou porque precisava ficar em casa preparando e servindo o jantar, arrumando a mesa e lavando a louça. A ama, claro, não pode lavar porque “faz mal às unhas”.

Há alguns anos eu contava em palestras o seguinte episódio, que retrata bem o modo como o “imaginário doméstico-brasileiro” foi sendo introjetado: no Rio de Janeiro, um empregador enfrentou o condomínio de seu prédio, requerendo em juízo o direito de sua empregada doméstica a utilizar o elevador social (no prédio, havia o apartheid entre elevadores sociais e de serviço). De posse da ordem judicial, o patrão comunicou o fato à empregada. No dia seguinte, vinha ela carregando a sua sacola das Casas da Banha e se dirigiu diretamente ao elevador de serviço. O patrão, sabendo disso, perguntou-lhe as razões dessa atitude, ao que ela respondeu: “Doutor – eu sei o meu lugar”. Pois é. Lendo algumas reações à PEC dos empregados domésticos, tem-se a nítida impressão de que o que se quer mesmo é a preservação desse tipo de imaginário. E, claro, junto com a manutenção do apartheid entre elevadores sociais e elevadores de serviço.

Afinal, como disse a atriz Carolina Ferraz, por ocasião do projeto da então prefeita Erundina que visava a acabar com esse apartheid social, nos idos da década de 90, “as coisas estão tão misturadas, confusas, na sociedade moderna. Algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas. É importante haver hierarquia”.

Ah, bom! Já a promoter paulista Daniela Diniz, fulminou: “... cada um deve ter o seu espaço. Não é uma questão de discriminação, mas de respeito” (nota: promoters são aquelas pessoas emplumadas e chatas que fazem festas para a burguesia cheirosa que só usa “perfumes oxítonos” — gosto como se pronuncia a palavra promoter de forma bem “afetada”, com sotaque “inglesado”). Ou seja, para elas (as filósofas contemporâneas Carolina e Daniela) — e para quantos mais (!?) — a patuleia (a choldra, a rafanalha) deve (continuar a) “saber-o-seu-lugar”... E que cada um tome o elevador que lhe caiba nesse butim social.

E vejam como o Brasil é democrata... Nada aconteceu a elas por terem dito isso. Por isso, muita gente ainda gosta “dos velhos e bons tempos”. Enquanto alguém nos serve um bom e fumegante café em chávenas (chávena é legal, não? — e é dos bons tempos!) do Aveiro e em toalhas de renda feitas pelas senhoras de Ribeirão da Ilha.


 Lenio Luiz Streck: é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

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