A relação entre a liberdade religiosa e os modernos Estados seculares tem suscitado desde sempre controvertidas e complexas questões de Direito Constitucional.
Em recente e instigante livro, o filósofo Russell Blackford (Freedom of Religion and Secular State) começa por dizer que a “liberdade religiosa não é apenas uma liberdade entre outras”, mais do que isso, se firmou como autêntica pedra angular dos modernos direitos dos cidadãos.
Não obstante a importância da liberdade religiosa, diante da complexidade que as relações entre Estado e religião conformam, o grande problema, entretanto, tem sido determinar quando podemos dizer que essa liberdade foi ou não violada (atingida de forma inconstitucional).
A jurisprudência dos tribunais, no mundo todo, tem confrontado casos — para dizer o mínimo — constrangedores, tanto do ponto de vista jurídico, como político e religioso. Recentemente, por exemplo, a imprensa alemã mostrou-se surpresa com a decisão de um de seus tribunais superiores, que entendeu que um empregado muçulmano teria sido injustamente demitido do supermercado em que trabalhava como carregador. O trabalhador tinha sido demitido ao se recusar, por motivos religiosos, a abastecer as prateleiras do estabelecimento com garrafas de bebidas alcoólicas.
Em síntese, o tribunal alemão decidiu que os trabalhadores muçulmanos de supermercados não têm a obrigação de carregar ou manusear garrafas de bebidas que contenham álcool. O tribunal entendeu que não se poderia impor uma obrigação contrária às normas morais da fé muçulmana, que proíbem aos muçulmanos tocarem em álcool. A ironia, segundo o semanário Der Spiegel, é que, se o supermercado não contratasse o carregador por sua condição de muçulmano, poderia ser processado por por discriminação.
Mais especificamente em consideração à neutralidade do Estado e sua relação com símbolos religiosos no chamado caso do véu (Kopftuchurteil), o Tribunal Constitucional alemão teve que decidir, em 24 de Setembro de 2003, se o Estado de Baden-Württemberg poderia negar a posse de uma mulher (Fereshta Ludin) de fé muçulmana numa vaga de professora em escola pública por sua declarada recusa de, no futuro, abandonar o véu muçulmano durante o período em que ministrasse as suas aulas. As autoridades estaduais e os tribunais administrativos argumentavam que, na condição de servidor público que representa o Estado laico, Fereshta Ludin não poderia ostentar símbolos religiosos.
A resposta do Tribunal Constitucional, contudo, decidindo o caso em favor de Fereshta Ludin por ausência de autorização legislativa, parece não ter agradado a ninguém, pois deixava em aberto a possibilidade de os Estados-membros, desde que houvesse legislação, imporem restrições aos trajes e aos símbolos religiosos (véus, crucifixos e estrelas de Davi) que os indivíduos, na condição de servidores públicos, quisessem ostentar.
Também são comuns as dificuldades em lidar com a recusa manifestada por adeptos das testemunhas de Jeová quanto a tratamentos médicos básicos (especialmente transfusões de sangue), não sendo incomum aos tribunais terem que decidir se condenam ou não aqueles crentes dessa religião que recusam a si e até mesmo a outros membros de sua família transfusões de sangue ou outros tratamentos médicos.
Nos Estados Unidos, também com base na liberdade de religião, são bem atuais e, contudo, já célebres as disputas sobre a presença de conteúdos nos currículos escolares de teorias de inspiração religiosa como o Criacionismo (teoria que consiste, basicamente, afirmação, desafiando o Darwinismo/Evolucionismo, de que o homem e os demais seres vivos teriam sido criados por Deus a menos de dez mil anos).
O inusitado é que tanto opositores como defensores fundamentam sua posição com base na liberdade religiosa e, especialmente, na neutralidade do Estado. Afinal de contas, deve o Estado, com base na sua neutralidade, impedir, ou permitir, a presença nos currículos escolares do Criacionismo?
A liberdade religiosa tem inspirado igrejas e religiões pelo mundo todo a exigiram a sua exclusão de regras e restrições de planejamento urbano, alegando para tanto, inclusive, exceções que, no passado, foram conferidas a outras religiões. Seria bem constrangedor, por exemplo, que as demais religiões pretendessem reivindicar agora um lugar para seus templos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, como foi concedido à Igreja Católica para a construção da famosa Catedral de Brasília. Fôssemos levar às últimas consequências, como querem alguns, o princípio da neutralidade do Estado, descartada a hipótese mais radical de colocar abaixo uma das mais famosas obras de Oscar Niemeyer, então, ter-se-ia que ou consentir com a construção de novos templos na Esplanada dos Ministérios, ou transformar a Catedral de Brasília em um templo ecumênico.
Outra difícil questão é saber se pode o Estado intervir em seitas apocalípticas. Em tais circunstâncias, o Estado estaria protegendo o cidadão inocente, ou interferindo na liberdade religiosa? Pode o Estado impedir os cidadãos, ou servidores públicos, de portarem turbantes, burcas, ou hábitos católicos? Em tais situações, tanto defensores como oponentes podem alegar em seu favor a liberdade religiosa.
Todas essas questões, como se vê, estão longe de ser simples.
No Brasil, como se percebe com a recente polêmica sobre a frase “Deus seja louvado” nas cédulas do Real, temos sido confrontados, após a Constituição de 1988, com problemas novos, ou pelos menos com problemas antigos que antes não se manifestavam. De fato, a discussão sobre a neutralidade do Estado em relação à religião é um desses problemas que não se sabe se é novo ou apenas resolveram aflorá-lo.
Além disso, ficamos sempre com a dificuldade de responder se alguns desses problemas merecem mesmo a intervenção do Estado. Dito de outra forma, em tais situações não se sabe se o Estado falha quando intervém ou quanto se mostra alheio. Devemos mesmo nos preocupar com crucifixos nas salas dos tribunais? Devemos mesmo nos preocupar com a remissão a Deus nas cédulas de nosso dinheiro? Os países têm dado a essas mesmas questões, ou similares, respostas distintas.
Sendo magistrado e atento ao fato de que esses dois últimos problemas estão agora sob julgamento em tribunais brasileiros, não quero nem devo lançar uma resposta definitiva e concreta sobre o problema. Fico, portanto, apenas no âmbito de uma elaboração apenas teórica.
Em primeiro lugar, como saber se aqueles são, no Brasil, de fato, problemas verdadeiros? Comparados com a maior parte dos países do mundo, somos (eu quase disse “graças a Deus”) uma sociedade relativamente tolerante do ponto de vista religioso (e espero não ter ofendido ninguém com essa conclusão). Quem quer que tenha vivido em outros países compreenderá o que estou dizendo.
O simples fato de o Estado se relacionar com alguma religião não é uma novidade no mundo. Na verdade, isso sequer é essencial para que um país se possa qualificar como uma Democracia. Para ficar num exemplo muito conhecido e simbólico, na Inglaterra, uma das mais indiscutíveis democracias religiosas do globo terrestre, a rainha ou rei, é simultaneamente, chefe de Estado e chefe da Igreja Anglicana.
De fato, segundo informação prestada pela própria Igreja Anglicana, “a rainha e/ou rei da Inglaterra é, sem dúvida, o membro mais conhecido da Igreja. Mas somente na Inglaterra há um vinculo de ambas as partes, monarquia e clero, para o bem do país. Por isso, alguns assuntos que envolvam o poder temporal, a Igreja consulta a rainha e/ou rei e vice e versa”. Como se vê, se a separação entre Estado e Igreja não garante só por si democracia religiosa, não é simples dizer que qualquer vinculação do Estado à religião compromete, só por isso, a liberdade religiosa.
Diante de tão complexas situações, há muito a jurisdição constitucional e o direito comparado vêm desenvolvendo esforços para garantir a distância e a neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso. De fato, por incrível que pareça, deve-se registrar que, no direito comparado, já há algum tempo os tribunais perceberam as graves consequências a que um sistema de separação absoluta entre Estado e religião poderia conduzir. Por exemplo, como percebeu a maior democracia religiosa do mundo, os Estados Unidos, num regime de separação absoluta, não se poderia imaginar qualquer tipo de subvenção do Estado a instituições de caráter religioso ou confessionais sem que se colocasse em causa a neutralidade do Estado.
Ali, ficaram famosos os casos em que se questionou e se tentou impugnar a possibilidade de o Estado subvencionar escolas particulares confessionais com algum tipo de auxílio financeiro (transporte escolar, material) sob a alegação de que, assim agindo, o poder pública estaria interferindo indevidamente na liberdade religiosa. Se a tese fosse aceita, por exemplo, escolas confessionais que assistiam a populações e crianças carentes seriam excluídas da concessão de ônibus e material escolar que eram fornecidos indistintamente a todas as escolas.
Tudo considerado, anota Jônatas Machado, naquela que julgo ser melhor monografia sobre liberdade religiosa, em língua portuguesa, “(u)m dos primeiros desafios jurídico-constitucionais a alcançar em matéria de relações Igreja-Estado prendeu-se com o alargamento do âmbito normativo do direito à liberdade religiosa. Este havia sido concebido num contexto social e moral dominado pelo (mono)deísmo e pelo (mono)teísmo de matriz cultural judaico-cristã, no quaro de uma comunidade (...) relativamente homogênea”.
Nos Estados Unidos, quando, na sua jurisdição inicial, a Suprema Corte teve que se confrontar com experiências religiosas diferenciadas, o que se viu foi, de fato, a afirmação da compreensão judaico-cristã, que estava na raiz daquela sociedade. Assim, nos chamados “mórmon cases”, em várias ocasiões, em que se discutia temas de interesses dos mórmons, como a legitimidade da poligamia, a Suprema Corte, apesar de ter afirmado o importante princípio da imunidade de coerção em matéria de crença religiosa, acabou considerando legítima a proibição de determinadas condutas religiosamente motivadas, designadamente quando as mesmas eram tipificadas como crimes.
Entretanto, como explica ainda o excepcional professor da Universidade de Coimbra, “num quadro de crescente diversidade religiosa, houve necessidade de construir o conceito de religião num nível mais elevado de generalidade, de maneira a estender a sua proteção a formas de expressão religiosa mais recentes e inconvencionais e a acomodar na esfera pública. Além da liberdade religiosa estava em causa a própria garantia da neutralidade estadual (do Estado")”.
Mesmo nos Estados Unidos, pois, “a tendência tem vindo a ser a da gradual superação das aspirações de separacionismo estrito, embora sem nunca chegar aos modelos de coordenação que têm vindo a caracterizar uma boa parte dos países europeus. Em vez de pretender edificar um inexpugnável muro de separação entre a Igreja e o Estado (“wall of separation between church and State”), a jurisprudência constitucional americana tem procurado acomodar o fenômeno religioso numa sociedade caracterizada pela sua importância e diversidade, pelo gradual aumento da atividade regulativa (...) e pela afirmação da igual liberdade religiosa como valor fundamental.
A separação das confissões religiosas do Estado surge cada vez mais, não como um fim em si mesmo, mas como um corolário estrutural de determinadas finalidades constitucionais substantivas, como sejam a liberdade religiosa individual e colectiva, o princípio da igualdade e a proteção de uma esfera de discurso público aberta e plural. Estas tanto podem impor ao Estado que se mantenha numa posição de rigoroso distanciamento e neutralidade perante o dissenso interconfessional, como exigir dos poderes públicos a adoção de medidas positivas no sentido de tornar possível, ou simplesmente viável em termos razoáveis, o livre exercício da religião, em condições de igualdade, por parte de indivíduos e de grupos”.
Processa-se ali, ainda que de forma não linear e com alguns sobressaltos, a chamada establishment clause (a Primeira Emenda estabelece que o Congresso não poderá fazer nenhuma lei que não respeite “an establishment of religion”. Para tanto a Suprema Corte desenvolveu o chamado Lemon Test. De acordo com o Lemon Test, que se desenvolve em três etapas, não se vetam em termos absolutos alguns vínculos do Estado com a Religião. De acordo com os critérios propostos, um ato do Estado não será inconstitucional pelo simples fato de prestar algum auxílio a uma religião.
“A inconstitucionalidade só se verificará, em princípio,
1) se o ato não tiver um propósito secular,
2) se o seu efeito primário for a promoção ou a inibição da religião, ou
3) se provocar um envolvimento excessivo entre os poderes públicos e a religião.
Trata-se aqui de conceitos sensores (sensitizing concepts), relativamente indeterminados, cuja interpretação é deliberadamente deixada aos órgãos jurisdicionais (Bradley), gozando estes de uma certa margem de flexibilidade”.
Com o caso Lynch vs. Donnelly, se reafirmou, na Suprema Corte, a jurisprudência no sentido de não considerar vedadas as manifestações do Estado que não busquem simplesmente ostentar algum apoio a determinada religião. Segundo a Justice Sandra Day O'Connor, no voto que concorreu para maioria, o Estado ofende a cláusula da neutralidade religiosa de duas maneiras. A primeira é quando revela um “entrelaçamento excessivo com as instituições religiosas”. A segunda infração, mais direta, é o apoio e endosso do governo, ou desaprovação de uma religião. O endosso enviaria uma mensagem para os não-adeptos da religião que estariam excluídos dos benefícios do Estado, ao mesmo tempo que enviaria aos adeptos a mensagem de inclusão aos benefícios do Estado, precisamente, por pertencer a uma dada religião.
Esse teste foi designado como teste de apoio, aprovação ou de endosso ("Endorsement Test”).
Em conclusão que muito poderia ajudar as cortes brasileiras nos conflitos que agora lhe são apresentados, anotou a Justice Sandra Day O'Connor, um ato governamental deve ser considerado inconstitucional quando tem o objetivo de apoiar ou desaprovar uma religião ou crença religiosa, de tal forma que segundo os seus termos aqueles que concordam com a referida crença são favorecidos (insiders) e os que discordam dela são desfavorecidos (outsiders). No lado contrário, seria a "reprovação" de uma crença religiosa por ato estatal, de tal maneira que aqueles que são adeptos dessa crença são informados de que eles serão estranhos desfavorecidos, enquanto aqueles que não concordam com essa crença são informados de que eles são favorecidos.
Néviton Guedes
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