Vou ser curto e quero deixar minhas impressões de todo o evento. Primeiramente, ressalto: não fui às manifestações. Não que não tenha pensado em ir, não que não ache fantástico pessoas exercendo sua voz e, sobretudo, não que eu não goste de manifestações (sou presença constante em várias!). Mas, desde o início, fiquei com uma pulga atrás da orelha. Preferi ficar em casa e observar os fatos pela televisão e passei a ler várias notícias e análises a respeito. Meus alunos (ontem, liberei a turma diante da quantidade enorme deles que foram para o evento) perguntavam: por que você não vai? E eu não respondia exatamente. Ficava tangenciando a resposta.
Todos sabem que meu foco de pesquisa, que tanto trabalho nas aulas e artigos, é o que denominamos de constitucionalismo democrático. Algo que envolve uma forte dose de compreensão sobre história e uma dimensão crítica de perspectivas de justiça. De um lado, o foco é bem concreto (história); de outro, pode soar um tanto abstrato (justiça), mas se trata de uma tensão produtiva entre esses dois aspectos, capaz de levar à percepção crítica de alguns pontos nevrálgicos do que está acontecendo.
Primeiramente, temos uma história a ser pensada. A história é repleta de exemplos em que a ênfase em discursos tais como “somos neutros”, “somos apartidários” levaram a levantes os mais autoritários. Do mesmo modo, discursos genéricos, embora ressaltem uma insatisfação genuína, também são facilmente capturados pelo discurso autoritário. Por exemplo, “vamos acabar com a corrupção”, “fora políticos” e outros já se deram em vários contextos complicados de nossa e de outras histórias. Tais discursos, em que há consensos óbvios (todos, afinal, não queremos a corrupção), são facilmente manipuláveis.
Entre o discurso genuíno e o discurso de ordem a diferença é tênue. E ele encampa bem o discurso de neutralidade. Porque, em tese, ninguém precisa tomar realmente posição quando a questão é corrupção. Aqui parece não haver verdadeiras divergências no plano mais geral do termo. A neutralidade e o consenso uniforme sobre temas são circunstâncias para o alerta.
Eu venho de uma leitura prazerosa de uma coletânea da UFF que é excelente para ver como se constrói, nas bases populares, um discurso autoritário e via alguns sinais agora acontecendo. Trata-se da belíssima obra, em três volumes, organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (“A Construção Social dos Regimes Autoritários”), que traz uma coletânea de vários autores explicitando, exatamente, como se constrói, nas bases sociais, o discurso e o apoio das massas em situações que podem levar ou já haviam levado a ditaduras. São outros contextos, mas são vários contextos e isso traz uma certa – não sei se é possível assim definir – “normatividade” do discurso autoritário. Experiências que, seja na China, seja no Brasil, seja na Argentina, seja na Europa, etc., têm vários aspectos em comum, mesmo ciente dos anacronismos possíveis na análise comparada. Então, a história tem algo a nos contar. E, sim, muito a revelar para levantar nossas orelhas!
Por outro lado, vem a dimensão da justiça. Não há democracia sem ouvir o Outro, aceitar o Outro, respeitar o Outro. Essa é uma das importantes dimensões de justiça. São várias abordagens aqui possíveis. Algumas são mais focadas no procedimento discursivo (vide Habermas), outras em uma dimensão mais radical da hospitalidade decorrente da ênfase na différance (Derrida), outras que bebem no liberalismo igualitário suas fontes (Rawls e Dworkin) e assim vai. Aqui não tem consensos fáceis. Mas há uma percepção, ao menos em vários desses grandes pensadores, que a inclusão do Outro é condição de qualquer democracia.
Infelizmente, havia parcela dos movimentos em que o discurso era dominado por uma perspectiva valorativa, moralista que já, de antemão, excluía o Outro. Aqui, novamente, aparece a noção de que pessoas que iam de vermelho, vestiam roupas vermelhas, que representavam grupos – CUT, por exemplo – ou mesmo algumas manifestações mais conservadoras (pessoas, sei lá, que têm, por exemplo, alguma afinidade com os horrores felicianos recentes) não pudessem, em alguma medida, participar da passeata. Isso me preocupa. Porque, se é para sermos democráticos – e justos! – temos de aceitar e respeitar o Outro, mesmo que não gostemos do Outro. Isso faz parte do jogo democrático e devemos ganhar a batalha no discurso, não em uma violência que já o exclui de antemão do debate.
Mas o mais sério é que o movimento perdeu forte legitimidade em razão das violências praticadas. Sei que muito decorreu da truculência policial (injustificável e lamentável), mas um elemento fundamental em todo discurso que busca por mudanças é que basta um erro para que muito vá água abaixo e perca o apoio. Hoje, 20 de junho, o movimento perdeu vários apoios.
Então, meus caros, a minha pulga atrás da orelha me lançou o alerta. Acho belíssimo manifestações populares, acho fantástico ver a juventude querendo o novo, acho genial a luta contra a repetição do mesmo. Emociona-me ver a juventude e a população em geral lutando por direitos. Apavora-me, entretanto, a juventude e a população sendo tomada pelo discurso de “verdade”, ainda mais quando a “verdade” é assumida sem a crítica. Assusta-me ver o passado, que tanto lutamos para superá-lo, reaparecer em alguma medida.
Existe, por isso, muito de beleza em todas essas passeatas. Mas tem também vários alertas. Sem dúvida, esses protestos servem também como um grande aprendizado.
De qualquer modo, preciso deixar mais claros alguns pontos agora indicados. Vou trabalhá-los por tópicos:
1) No contexto de minha defesa da liberdade de expressão, que está indicada pela afirmação da inclusão do Outro, mesmo que não gostemos do Outro e não compartilhemos de seus ideais, é comum ouvir vozes que, embora concordem comigo, dizem que se sentem incomodadas com minha extensão da noção de inclusão a algum simpatizante dos horrores felicianos. Eu também – ressalto – considero um verdadeiro atraso, uma prevalência de uma ética religiosa excludente, etc., várias das manifestações do Feliciano. E, naturalmente, não gostaria de dar as mãos àquele que defende tais ideais. Mas, por outro lado, tenho de ser coerente em relação ao que disse: liberdade de expressão significa também ouvir o Outro e ir para o embate democrático de ideias. Seria impor a minha concepção de verdade negar qualquer possibilidade de outra pessoa, mesmo com as mais bizarras propostas, se manifestar. E eu não sou dono da verdade, embora defenda meus posicionamentos sempre, mas troco de lado, se assim for convencido.
Porém, é importante ressaltar, isso não á pacífico no debate sobre liberdade de expressão. Há, até mesmo entre autores liberais, perspectivas mais limitadas no que atine aos denominados discursos de ódio (vide, por exemplo, Waldron no livro “The Harm in Hate Speech”), mas vários autores preferem o livre mercado de ideias. Eu tenho defendido uma perspectiva mais limitadora do “hate speech”, mas reconheço que isso não é simples. Ultimamente tenho pensado em defender uma visão mais ampla da liberdade de expressão e que os filtros institucionais, próprios da democracia, façam as devidas “correções” de rumo do discurso. É o constitucionalismo impondo limites à democracia, como condição da democracia. Mas, enfim, entendo o incômodo de muitos, mas ressalto que não é tema tranquilo. Aqui a divergência é daquelas mais complexas do constitucionalismo (digo, aliás, que é o grande drama do constitucionalismo: os âmbitos da justiça) e eu mesmo tenho continuamente me digladiado sobre o tema.
2) No contexto da minha crítica ao neutralismo e apartidarismo, normalmente se diz que ser apartidário não seria um problema e que há causas importantes que decorrem da própria desolação em relação aos partidos que aparecem nos protestos. Entendo, perfeitamente, essa visão. Mas, realmente, desacreditar nos partidos não pode significar a inexistência de partidos. Isso, em democracias, é a própria não-democracia. É legítimo querer se sentir representado de algum modo e é natural querer ver um partido assumir essa representação, mas isso não impõe a ideia de que “não precisamos de partidos políticos” ou que “não precisamos de políticos” ou que “todos políticos são corruptos”. Do mesmo modo, neutralidade – aí mais ainda – é um discurso falacioso. Porque, simplesmente, nada é neutro (só sabão, como minha amiga Beatriz Vargas disse). E o grave do discurso de neutralidade é que ele esconde o verdadeiro intuito que lhe está por trás. Aqui a manipulação do discurso para fins os mais diversos é muito simples e a história o demonstra em diferentes oportunidades. É aquilo: prefiro a transparência, mesmo que me contrarie. E o discurso de neutralidade é muito mais uma postura estratégica do que uma abertura para o Outro. Não condiz, nenhum pouco, com a liberdade de expressão, que antes defendi.
3) A percepção empírica dos fatos. É evidente que há muito de sonho, vontade de mudança, transformar o mundo. Todos queremos, afinal, um país melhor e é fantástico que as vozes agora o manifestem. Mas é preciso pensar em nossa história também. O Brasil mudou muito desde a Constituição de 1988 e aprendeu um bocado. Somos um país bem mais democrático e inclusivo do que há vinte e cinco anos atrás e esse legado não pode ser esquecido. Muitos não viveram esse passado e só agora estão lidando com um presente que parece ter sido há muito conquistado. Não!!! O nosso presente é resultado de lutas e mais lutas, conquistas e mais conquistas. A democracia envolve um processo de mudanças, normalmente bem mais lentas do que desejamos, mas certamente mais consistentes, porque são frutos de participação coletiva. É natural, sobretudo para quem não vê essas conquistas, querer a mágica de nos transformarmos na beleza que tanto desejamos – e isso “para ontem”. Mas não é assim que as coisas funcionam. Tenham certeza: o Brasil é um outro país nesses vinte e cinco anos de aprendizado democrático e será um outro país em seu futuro. Nada é mágico aqui. Precisamos fazer reclamações, protestar, mas também respeitar esse legado, que tem muita coisa produtiva em termos de abertura para o Outro. Logicamente, temos muitas imperfeições, mas a história mundial demonstra que, quando a Constituição é valorizada e respeitada, as conquistas democráticas são fortalecidas. Isso não ocorre quando, em prol de vozes moralistas, passamos por cima dessas conquistas e digamos, para o mundo, o que é certo e errado e adeus instituições, políticos, etc. Isso não funciona e é, sim, expressão do discurso autoritário.
4) Novamente a pesquisa empírica dos fatos. O simples fato de o Datafolha demonstrar que 30% dos manifestantes (dentro da metodologia adotada) aprovam Joaquim Barbosa para presidente e 10% o dizem em relação a Dilma é a prova mais cabal de dissonância entre discurso e realidade. Por mais que a Dilma tenha caído, ela não caiu para nem perto de 10% nas pesquisas. Longe disso! Se colocarmos lado a lado as duas pesquisas lançadas na Folha (a ampla sobre a população e a específica sobre as manifestações), a diferença é gritante. Isso mostra que quem, efetivamente, estava nas manifestações de quinta-feira não era o Brasil, mas parcela pequena deste Brasil. Portanto, como já havia alertado hoje pela manhã, o que tivemos foi, em certa medida, um discurso moralista que exclui o Outro (em certa medida) e um discurso vazio de consensos óbvios (“não à corrupção”, “mais educação”, “mais saúde”, etc.). Todas pautas legítimas, mas óbvias demais para serem consideradas verdadeiramente posições. Então, parece-me que o discurso moralista é dominante na passeata (ao menos, na da última quinta-feira, conforme a pesquisa). Joaquim Barbosa, afinal, é o símbolo desse moralismo, gostemos dele ou não. Ele é, para muitos, o cara, afinal, que “pegou os corruptos”. Não tenho como ver de outra forma.
5) Precisamos ficar realmente alertas. Ressalto que admiro demais os movimentos populares. Estaria, aliás, bastante contente se conseguíssemos fazer as tão desejadas incitações a mudanças a partir dessa mobilização. Mas não me parece que é o que está realmente acontecendo, analisando friamente. Parece-me, ao contrário, um movimento que começou popular, mas se transformou em protestos com pautas fortemente genéricas, “neutras” e de consenso óbvio. E isso tende à consolidação de um discurso autoritário, como a história o demonstra. A classe média, aliás, esteve atrás de vários movimentos desse passado que não queremos agora relembrar, mas que precisamos fazê-lo como objeto de crítica.
6) É claro que agora iremos ver análises na imprensa de que o Brasil acordou. Bem, novamente, com bases em pesquisas empíricas, essa conclusão é precipitada. Você pode ficar feliz, achar que acordou, mas o Brasil, meu amigo, continua, ainda em grande medida, o mesmo. Ali, como disse, não era nem de perto o Brasil (o legal de dados empíricos é que eles matam na carne vários discursos… acho um barato!). Isso pode mudar, mas, até aqui, o que observo de interessante é uma certa faísca relevante de mobilização, mas ainda pouco produtiva em termos de efetivas mudanças (até porque o discurso foi despolitizado ao longo dos acontecimentos). Posso estar enganado, mas daí concluir que o Brasil acordou vai uma enorme distância.
7) A democracia é uma construção histórica, com contínuos riscos de retrocesso e paradoxos. Conquistas são demoradas e dolorosas. Dissoluções democráticas são rápidas e eficientes. Então, fiquemos atentos. Moralismos, apartidarismos, “verdades” são uma arma poderosa para o autoritarismo. A história o comprova.
9) Lutemos por direitos, busquemos institucionalizar o discurso. Não lutemos por falsos moralismos. Isso desestrutura o constitucionalismo e suas conquistas.
10) Acreditemos no Brasil. E saibamos que muito estamos aqui para aprender. Já conquistamos vinte e cinco anos de democracia. Que venham outros tantos!
Juliano Zaiden Benvindo é professor da Faculdade de Direito da UnB
Todos sabem que meu foco de pesquisa, que tanto trabalho nas aulas e artigos, é o que denominamos de constitucionalismo democrático. Algo que envolve uma forte dose de compreensão sobre história e uma dimensão crítica de perspectivas de justiça. De um lado, o foco é bem concreto (história); de outro, pode soar um tanto abstrato (justiça), mas se trata de uma tensão produtiva entre esses dois aspectos, capaz de levar à percepção crítica de alguns pontos nevrálgicos do que está acontecendo.
Primeiramente, temos uma história a ser pensada. A história é repleta de exemplos em que a ênfase em discursos tais como “somos neutros”, “somos apartidários” levaram a levantes os mais autoritários. Do mesmo modo, discursos genéricos, embora ressaltem uma insatisfação genuína, também são facilmente capturados pelo discurso autoritário. Por exemplo, “vamos acabar com a corrupção”, “fora políticos” e outros já se deram em vários contextos complicados de nossa e de outras histórias. Tais discursos, em que há consensos óbvios (todos, afinal, não queremos a corrupção), são facilmente manipuláveis.
Entre o discurso genuíno e o discurso de ordem a diferença é tênue. E ele encampa bem o discurso de neutralidade. Porque, em tese, ninguém precisa tomar realmente posição quando a questão é corrupção. Aqui parece não haver verdadeiras divergências no plano mais geral do termo. A neutralidade e o consenso uniforme sobre temas são circunstâncias para o alerta.
Eu venho de uma leitura prazerosa de uma coletânea da UFF que é excelente para ver como se constrói, nas bases populares, um discurso autoritário e via alguns sinais agora acontecendo. Trata-se da belíssima obra, em três volumes, organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (“A Construção Social dos Regimes Autoritários”), que traz uma coletânea de vários autores explicitando, exatamente, como se constrói, nas bases sociais, o discurso e o apoio das massas em situações que podem levar ou já haviam levado a ditaduras. São outros contextos, mas são vários contextos e isso traz uma certa – não sei se é possível assim definir – “normatividade” do discurso autoritário. Experiências que, seja na China, seja no Brasil, seja na Argentina, seja na Europa, etc., têm vários aspectos em comum, mesmo ciente dos anacronismos possíveis na análise comparada. Então, a história tem algo a nos contar. E, sim, muito a revelar para levantar nossas orelhas!
Por outro lado, vem a dimensão da justiça. Não há democracia sem ouvir o Outro, aceitar o Outro, respeitar o Outro. Essa é uma das importantes dimensões de justiça. São várias abordagens aqui possíveis. Algumas são mais focadas no procedimento discursivo (vide Habermas), outras em uma dimensão mais radical da hospitalidade decorrente da ênfase na différance (Derrida), outras que bebem no liberalismo igualitário suas fontes (Rawls e Dworkin) e assim vai. Aqui não tem consensos fáceis. Mas há uma percepção, ao menos em vários desses grandes pensadores, que a inclusão do Outro é condição de qualquer democracia.
Infelizmente, havia parcela dos movimentos em que o discurso era dominado por uma perspectiva valorativa, moralista que já, de antemão, excluía o Outro. Aqui, novamente, aparece a noção de que pessoas que iam de vermelho, vestiam roupas vermelhas, que representavam grupos – CUT, por exemplo – ou mesmo algumas manifestações mais conservadoras (pessoas, sei lá, que têm, por exemplo, alguma afinidade com os horrores felicianos recentes) não pudessem, em alguma medida, participar da passeata. Isso me preocupa. Porque, se é para sermos democráticos – e justos! – temos de aceitar e respeitar o Outro, mesmo que não gostemos do Outro. Isso faz parte do jogo democrático e devemos ganhar a batalha no discurso, não em uma violência que já o exclui de antemão do debate.
Mas o mais sério é que o movimento perdeu forte legitimidade em razão das violências praticadas. Sei que muito decorreu da truculência policial (injustificável e lamentável), mas um elemento fundamental em todo discurso que busca por mudanças é que basta um erro para que muito vá água abaixo e perca o apoio. Hoje, 20 de junho, o movimento perdeu vários apoios.
Então, meus caros, a minha pulga atrás da orelha me lançou o alerta. Acho belíssimo manifestações populares, acho fantástico ver a juventude querendo o novo, acho genial a luta contra a repetição do mesmo. Emociona-me ver a juventude e a população em geral lutando por direitos. Apavora-me, entretanto, a juventude e a população sendo tomada pelo discurso de “verdade”, ainda mais quando a “verdade” é assumida sem a crítica. Assusta-me ver o passado, que tanto lutamos para superá-lo, reaparecer em alguma medida.
Existe, por isso, muito de beleza em todas essas passeatas. Mas tem também vários alertas. Sem dúvida, esses protestos servem também como um grande aprendizado.
De qualquer modo, preciso deixar mais claros alguns pontos agora indicados. Vou trabalhá-los por tópicos:
1) No contexto de minha defesa da liberdade de expressão, que está indicada pela afirmação da inclusão do Outro, mesmo que não gostemos do Outro e não compartilhemos de seus ideais, é comum ouvir vozes que, embora concordem comigo, dizem que se sentem incomodadas com minha extensão da noção de inclusão a algum simpatizante dos horrores felicianos. Eu também – ressalto – considero um verdadeiro atraso, uma prevalência de uma ética religiosa excludente, etc., várias das manifestações do Feliciano. E, naturalmente, não gostaria de dar as mãos àquele que defende tais ideais. Mas, por outro lado, tenho de ser coerente em relação ao que disse: liberdade de expressão significa também ouvir o Outro e ir para o embate democrático de ideias. Seria impor a minha concepção de verdade negar qualquer possibilidade de outra pessoa, mesmo com as mais bizarras propostas, se manifestar. E eu não sou dono da verdade, embora defenda meus posicionamentos sempre, mas troco de lado, se assim for convencido.
Porém, é importante ressaltar, isso não á pacífico no debate sobre liberdade de expressão. Há, até mesmo entre autores liberais, perspectivas mais limitadas no que atine aos denominados discursos de ódio (vide, por exemplo, Waldron no livro “The Harm in Hate Speech”), mas vários autores preferem o livre mercado de ideias. Eu tenho defendido uma perspectiva mais limitadora do “hate speech”, mas reconheço que isso não é simples. Ultimamente tenho pensado em defender uma visão mais ampla da liberdade de expressão e que os filtros institucionais, próprios da democracia, façam as devidas “correções” de rumo do discurso. É o constitucionalismo impondo limites à democracia, como condição da democracia. Mas, enfim, entendo o incômodo de muitos, mas ressalto que não é tema tranquilo. Aqui a divergência é daquelas mais complexas do constitucionalismo (digo, aliás, que é o grande drama do constitucionalismo: os âmbitos da justiça) e eu mesmo tenho continuamente me digladiado sobre o tema.
2) No contexto da minha crítica ao neutralismo e apartidarismo, normalmente se diz que ser apartidário não seria um problema e que há causas importantes que decorrem da própria desolação em relação aos partidos que aparecem nos protestos. Entendo, perfeitamente, essa visão. Mas, realmente, desacreditar nos partidos não pode significar a inexistência de partidos. Isso, em democracias, é a própria não-democracia. É legítimo querer se sentir representado de algum modo e é natural querer ver um partido assumir essa representação, mas isso não impõe a ideia de que “não precisamos de partidos políticos” ou que “não precisamos de políticos” ou que “todos políticos são corruptos”. Do mesmo modo, neutralidade – aí mais ainda – é um discurso falacioso. Porque, simplesmente, nada é neutro (só sabão, como minha amiga Beatriz Vargas disse). E o grave do discurso de neutralidade é que ele esconde o verdadeiro intuito que lhe está por trás. Aqui a manipulação do discurso para fins os mais diversos é muito simples e a história o demonstra em diferentes oportunidades. É aquilo: prefiro a transparência, mesmo que me contrarie. E o discurso de neutralidade é muito mais uma postura estratégica do que uma abertura para o Outro. Não condiz, nenhum pouco, com a liberdade de expressão, que antes defendi.
3) A percepção empírica dos fatos. É evidente que há muito de sonho, vontade de mudança, transformar o mundo. Todos queremos, afinal, um país melhor e é fantástico que as vozes agora o manifestem. Mas é preciso pensar em nossa história também. O Brasil mudou muito desde a Constituição de 1988 e aprendeu um bocado. Somos um país bem mais democrático e inclusivo do que há vinte e cinco anos atrás e esse legado não pode ser esquecido. Muitos não viveram esse passado e só agora estão lidando com um presente que parece ter sido há muito conquistado. Não!!! O nosso presente é resultado de lutas e mais lutas, conquistas e mais conquistas. A democracia envolve um processo de mudanças, normalmente bem mais lentas do que desejamos, mas certamente mais consistentes, porque são frutos de participação coletiva. É natural, sobretudo para quem não vê essas conquistas, querer a mágica de nos transformarmos na beleza que tanto desejamos – e isso “para ontem”. Mas não é assim que as coisas funcionam. Tenham certeza: o Brasil é um outro país nesses vinte e cinco anos de aprendizado democrático e será um outro país em seu futuro. Nada é mágico aqui. Precisamos fazer reclamações, protestar, mas também respeitar esse legado, que tem muita coisa produtiva em termos de abertura para o Outro. Logicamente, temos muitas imperfeições, mas a história mundial demonstra que, quando a Constituição é valorizada e respeitada, as conquistas democráticas são fortalecidas. Isso não ocorre quando, em prol de vozes moralistas, passamos por cima dessas conquistas e digamos, para o mundo, o que é certo e errado e adeus instituições, políticos, etc. Isso não funciona e é, sim, expressão do discurso autoritário.
4) Novamente a pesquisa empírica dos fatos. O simples fato de o Datafolha demonstrar que 30% dos manifestantes (dentro da metodologia adotada) aprovam Joaquim Barbosa para presidente e 10% o dizem em relação a Dilma é a prova mais cabal de dissonância entre discurso e realidade. Por mais que a Dilma tenha caído, ela não caiu para nem perto de 10% nas pesquisas. Longe disso! Se colocarmos lado a lado as duas pesquisas lançadas na Folha (a ampla sobre a população e a específica sobre as manifestações), a diferença é gritante. Isso mostra que quem, efetivamente, estava nas manifestações de quinta-feira não era o Brasil, mas parcela pequena deste Brasil. Portanto, como já havia alertado hoje pela manhã, o que tivemos foi, em certa medida, um discurso moralista que exclui o Outro (em certa medida) e um discurso vazio de consensos óbvios (“não à corrupção”, “mais educação”, “mais saúde”, etc.). Todas pautas legítimas, mas óbvias demais para serem consideradas verdadeiramente posições. Então, parece-me que o discurso moralista é dominante na passeata (ao menos, na da última quinta-feira, conforme a pesquisa). Joaquim Barbosa, afinal, é o símbolo desse moralismo, gostemos dele ou não. Ele é, para muitos, o cara, afinal, que “pegou os corruptos”. Não tenho como ver de outra forma.
5) Precisamos ficar realmente alertas. Ressalto que admiro demais os movimentos populares. Estaria, aliás, bastante contente se conseguíssemos fazer as tão desejadas incitações a mudanças a partir dessa mobilização. Mas não me parece que é o que está realmente acontecendo, analisando friamente. Parece-me, ao contrário, um movimento que começou popular, mas se transformou em protestos com pautas fortemente genéricas, “neutras” e de consenso óbvio. E isso tende à consolidação de um discurso autoritário, como a história o demonstra. A classe média, aliás, esteve atrás de vários movimentos desse passado que não queremos agora relembrar, mas que precisamos fazê-lo como objeto de crítica.
6) É claro que agora iremos ver análises na imprensa de que o Brasil acordou. Bem, novamente, com bases em pesquisas empíricas, essa conclusão é precipitada. Você pode ficar feliz, achar que acordou, mas o Brasil, meu amigo, continua, ainda em grande medida, o mesmo. Ali, como disse, não era nem de perto o Brasil (o legal de dados empíricos é que eles matam na carne vários discursos… acho um barato!). Isso pode mudar, mas, até aqui, o que observo de interessante é uma certa faísca relevante de mobilização, mas ainda pouco produtiva em termos de efetivas mudanças (até porque o discurso foi despolitizado ao longo dos acontecimentos). Posso estar enganado, mas daí concluir que o Brasil acordou vai uma enorme distância.
7) A democracia é uma construção histórica, com contínuos riscos de retrocesso e paradoxos. Conquistas são demoradas e dolorosas. Dissoluções democráticas são rápidas e eficientes. Então, fiquemos atentos. Moralismos, apartidarismos, “verdades” são uma arma poderosa para o autoritarismo. A história o comprova.
9) Lutemos por direitos, busquemos institucionalizar o discurso. Não lutemos por falsos moralismos. Isso desestrutura o constitucionalismo e suas conquistas.
10) Acreditemos no Brasil. E saibamos que muito estamos aqui para aprender. Já conquistamos vinte e cinco anos de democracia. Que venham outros tantos!
Juliano Zaiden Benvindo é professor da Faculdade de Direito da UnB
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