O movimento da codificação foi característico do século XIX. Nascida como símbolo do “despotismo esclarecido”, ainda no século XVIII, como se observa do Código Civil da Áustria, a codificação foi capturada pelo liberalismo no alvorecer do Oitocentos.
Napoleão Bonaparte fez-se arauto desse movimento, que passou a confundir civilização com codificação. Promulgar códigos, ou decretar a vigência do Code Civil de 1804 nos países conquistados, era um ato revolucionário de grande significado político.
Após a queda do imperador dos franceses e a reação das monarquias vitoriosas no Congresso de Viena, codificar tornou-se elemento integrante das políticas de Estado de nações que se pretendiam “liberais” — em oposição ao absolutismo e ao direito divino dos reis — e também um ato fundacional de países recém-unificados ou cuja independência acabara de ser assegurada, ao exemplo da Itália e dos jovens Estados balcânicos, liberados do domínio otomano. Possuir um código, mais especificamente um código civil, era uma espécie de senha para ser admitido no rol das nações civilizadas e cultas.
A Alemanha, graças à influência teórica de Friedrich Karl Freiherr von Savigny, resistiu até 1896, quando foi promulgado seu famoso código civil (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), em vigor a partir de 1900. Outra causa desse retardo histórico estava na ciosa manutenção das prerrogativas das monarquias que compunham o Reich. Lembre-se que, a despeito da unificação presidida por Otto von Bismarck, no ano de 1871, os antigos reis, príncipes e duques dos territórios alemães mantiveram seus tronos e gozaram, até o final da Primeira Guerra Mundial, de “status” político e de autonomia legislativa consideráveis. O imperador (Kaiser) não o era “da Alemanha”, mas “dos alemães”. Uma sutileza linguística que demarcava sua condição de “primus inter pares” em face de seus “colegas” dentro do Reich. Nesse sentido, a Saxônia, a Baviera e a Prússia, ainda no século XVIII, possuíam codificações (ou consolidações). A preservação desse espaço normativo parece ter influído na tardia codificação nacional alemã.
O século XX assistiu ao nascimento de algumas codificações importantes, como foi o caso da italiana (1942) e da portuguesa (1966), que substituíram antigos diplomas do século XIX. No geral, contudo, muito se falou de um movimento de descodificação, a ponto de Natalino Írti haver celebrizado a expressão “a idade da descodificação”, em artigo homônimo. A irrelevância dos códigos civis, em razão do aumento crescente de legislações emergenciais ou conjunturais, deu espaço a que Ricardo Luís Lorenzetti, fazendo uso de uma bela metáfora, comparasse os códigos civis aos antigos centros das grandes cidades: esvaziados, envelhecidos e substituídos pelas alternativas de lazer, comércio e serviços públicos encontráveis nos bairros, esses últimos correspondendo ao que também se convencionou chamar de “microssistemas”, especialmente no final do século XX.
Áreas inteiras como a legislação trabalhista (a primeira a ser subtraída dos códigos civis, que regulavam os vínculos entre patrões e empregados nos “contratos de locação de mão de obra”), as leis do inquilinato (com forte caráter protetivo ao locatório), os estatutos da criança e do idoso, os códigos de proteção ao consumidor, as leis autônomas de direitos autorais e de propriedade industrial são exemplos clássicos da perda de espaço normativo dos códigos civis.
Independentemente disso, no final do século XX e início da atual centúria, aprovaram-se novos códigos civis, como são exemplos os da Holanda, do Quebec, do Equador e do Brasil. Na Alemanha, em 2002, o BGB foi profundamente alterado pela Lei de Modernização do Direito das Obrigações. Na França, o anteprojeto de reforma do Código Civil de 1804, sob a regência do hoje falecido professor Pierre Catala, é um exemplo de uma onda de “recodificação” ou, de modo menos ambicioso, de “atualização” dos códigos civis, algo que também se almeja em Portugal e Espanha. No caso europeu, há forte influência das diretivas, que têm causado grande impacto nos modelos normativos locais. A tal ponto que hoje se tem defendido a tese de um movimento de “europeização” do Direito Internacional Privado na Europa.
O movimento de codificação é surpreendente. Mesmo quando foi tido como historicamente ultrapassado, ele parece ressurgir de tempos em tempos, como que a provar a utilidade desse modelo de racionalização normativa, concebido pelos iluministas e posto em prática no século XIX por uma heterogênea comunidade de estudiosos, compreensiva de pandectistas, exegetas e historicistas, que pouco ou nada tinham em comum, seja em termos filosóficos, seja em questões ideológicas.
Mais do que uma narrativa dos sucessos e insucessos do movimento da codificação, esta coluna fere uma questão extremamente atual: a onda codificadora (ou de reforma de códigos) em curso no Brasil.
Em tramitação no Congresso Nacional, encontram-se os projetos de Código Penal, Código Comercial, Código de Processo Penal, Código de Processo Civil e de reforma do Código de Defesa do Consumidor.
As críticas e as eloquentes defesas apresentadas a essas iniciativas têm seu espaço apropriado em outro lugar. Evidentemente, há paixões, interesses acadêmicos (ou mesmo de prestígio intelectual), boa vontade e desejo de aprimorar a legislação em cada um desses grupos de reformistas e antirreformistas.
A questão central está em outro ponto: o tempo e as condições históricas para a tramitação desses projetos.
O Código Civil de 1916, cujo projeto é de 1899, levou quase vinte anos para ser aprovado. O Projeto Reale, do qual se originou a codificação civil de 2002, é de 1973. Muito bem. É um longo período de discussões. Esses textos legais, no entanto, são excepcionais no marco de nossa história legislativa. O Código Penal (1940), a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e o Código de Processo Penal (1941), assim como o Código de Processo Civil (1973), foram rapidamente aprovados por uma circunstância histórica peculiar e comum a todos eles: eram tempos ditatoriais.
Tanto os regimes do Estado Novo, quanto o de 1964, possuíram uma ampla agenda codificadora. Em alguns casos, houve insucessos, como o Código Penal de 1969 (exemplo singular de lei que foi publicada, mas que nunca entrou em vigor) ou mesmo o Código Civil atual, que só seria aprovado trinta anos depois de sua apresentação ao Congresso Nacional. No geral, porém, essa agenda foi exitosa. A razão é simples: a inexistência de instituições democráticas. É evidente que não se podem tirar os grandes méritos técnicos desses projetos das décadas de 1940 e 1970. Posto que inegáveis, esses merecimentos não tiveram tanto peso na aprovação dos projetos quanto a falta de um parlamento livre, do pluralismo de ideias e da liberdade de crítica.
Não é um desvalor a demora na tramitação dos projetos e, mais que isso, o levantamento de críticas a seu conteúdo ou ainda à conveniência de sua tramitação no Congresso Nacional. A Lei de Modernização do Direito das Obrigações, que reformou profundamente o BGB em 2002, é o resultado de quase vinte anos de debates (acérrimos, diga-se de passagem) na academia alemã. Sua aprovação deu-se apesar da crítica dos principais professores de Direito Civil da Alemanha, sob a liderança de Reinhard Zimmermann, um dos maiores privatistas europeus contemporâneos, que fizeram um abaixo-assinado contra o projeto, então defendido pelo muito conhecido professor Claus-Wilhelm Canaris.
O projeto de reforma do Código Civil francês não tem logrado êxito. Até o presente momento, salvo mudanças pontuais em matéria de prescrição (aprovadas pela Lei n° 2008-561, de 17.6.2008), o projeto Catala parece que não irá adiante. E veja-se que integram a comissão encarregada nada menos que os mais importantes catedráticos de Direito Civil da França, como Alain Bénabent, Jacques Ghestin, Yves Lequette, Philippe Malinvaud e Geneviève Viney.
Na República Argentina, o projeto de novo Código Civil, embora extremamente censurado por respeitáveis catedráticos das universidades platinas, tem alguma hipótese de ser aprovado. Nesse caso, a preeminência política da presidente Cristina Fernández de Kirchner é um dos fatores mais relevantes para que o projeto ganhe força no Parlamento.
Na análise do atual quadro legislativo brasileiro, dois pontos devem ser considerados, além da defesa de que tramitações demoradas e amplos debates acadêmicos não podem ser considerados, “de per si”, como algo negativo. São os seguintes:
(1) Os códigos precisam assentar-se em princípios e em um sistema. Mudar um código é, em alguma medida, reconhecer a quebra de um paradigma teórico (ou também filosófico ou político). A alteração na Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984, é um excelente exemplo disso. E, note-se que ela se deu ainda sob o regime da ditadura de 1964. A passagem do causalismo para o finalismo foi uma opção do legislador de 1984, mas que guardou profunda conexão com um debate acadêmico de alto nível. Reconhecia-se, à época, o esgotamento do modelo causalista e a reforma encontrou coerência sistêmica e principiológica em seus termos.
As sucessivas reformas do Código de Processo Civil de 1973 desfiguraram o projeto de Alfredo Buzaid, que deita suas raízes na Escola Processual de São Paulo, fundada pelo jurista italiano Enrico Tullio Liebman. A codificação de 1973, em sua formulação original, era sistêmica e principiologicamente coerente. Sua eventual superação histórica pode ter ocorrido. Se isso é verdade, é de se indagar qual a escola ou o movimento que inspira e dá forma a uma nova codificação?
Essa pergunta há de ser formulada a toda e qualquer proposição de mudança de um código. Os caracteres relativos a um sistema e a um corpo coerente de princípios, ligados a uma escola jurídica, diferenciam e especializam os códigos em face de leis, estatutos ou consolidações. Esses caracteres tornam o código um tipo diferenciado de conjunto normativo, que exige dos congressistas maior cuidado em sua apreciação.
Em nosso tempo, prevalece o discurso da simplicidade e da agilidade. Não há espaço para berloques, excentricidades ou erudições artificiais. Isso está bem. Mas, a exigência apresentada neste item 1 é algo bem diverso desse “parnasianismo jurídico”. Antes de qualquer coisa, é necessário exigir que o código (civil, penal, comercial ou processual) seja continente de princípios e que tenha vocação sistemática. O exemplo das reformas do CPC é eloquente. Desde 1994, alteraram-se mais de 100 dispositivos desse código, sem que haja sido comprovada melhoria efetiva no sistema processual brasileiro. As marchas e contramarchas no agravo de instrumento e na apelação são exemplos da falência dessa iniciativa. A se utilizar um argumento que possui grande prestígio em nosso tempo, existe um custo econômico nessas mudanças assistemáticas.
(2) O segundo ponto que merece atenção está na importância dos códigos como símbolos do desenvolvimento civilizatório de uma nação. Os códigos são produtos culturais e, nessa condição, devem também merecer o respeito do legislador. Os franceses e os alemães não substituíram seus códigos civis de 1804 e 1900, respectivamente. Charles de Gaulle, que foi o todo-poderoso presidente da República Francesa em duas ocasiões (1944-1946 e 1959-1969), tentou elaborar um novo Código Civil, mas fracassou ante a veneração que seus conterrâneos sempre demonstraram para com o velho Code Napoleon.
O respeito a essa tradição jurídico-cultural é de ser levado também em consideração. Muita vez, se ganha mais em se adaptar o código antigo aos tempos atuais do que em proceder a sua revogação pura e simples. Alguns projetos bem que poderiam se submeter a um teste muito simples: quantos de seus dispositivos são meras reproduções do código em vigor? Se o percentual chegar a mais de 60%, é o caso de se indagar sobre a real necessidade de se “criar” uma codificação que apenas parafraseia ou reproduz textos legais antigos.
Reitere-se: não se discute aqui este ou aquele projeto em tramitação no Congresso Nacional. Levanta-se o problema da necessidade de codificações, recodificações e de reformas legislativas, segundo as circunstâncias históricas, e quais os parâmetros reitores desse processo de câmbio normativo. Sem um sistema, um conjunto de princípios e uma “virada” teórica, como a ocorrida, por exemplo, na reforma do Código Penal de 1984, parece ser injustificável impor à nação o custo social, jurídico e econômico de uma mudança tão drástica em seu ordenamento jurídico.
E, se presentes esses elementos, o debate democrático e a abertura para a crítica (profunda e ampla) dos meios acadêmicos, corporativos e sociais são indispensáveis para que se legitimem tais proposições legislativas.
Essas condições teóricas, políticas e sociais não ocorrem facilmente. E é por isso que o trabalho de codificação ou de reforma dos códigos há de ser lento e acompanhado de perto pela comunidade jurídica. E não é possível se limitar ao controle de projetos apresentados ao Congresso. É perfeitamente possível que, mesmo em tramitação, as iniciativas se revelem inadequadas, tecnicamente falhas ou destituídas dos caracteres apontados no item 1 desta coluna.
Nessa hipótese, não é vexatório simplesmente abandonar o projeto, como já se fez (em estágio bem mais avançado) com o Código Penal de 1969 ou com os diversos projetos de Código Civil dos séculos XIX e XX. Não será esse um privilégio nacional. Em 1962, o Governo alemão ofereceu ao Parlamento um projeto de reforma do Código Penal (o famoso Entwurf 1962) que foi duramente criticado, apesar de suas enormes qualidades, pela comunidade jurídica. Em reação, um grupo de juristas, de entre eles Claus Roxin, elaborou o igualmente famoso “Projeto Alternativo” (Alternativ Entwurf 1966), até hoje uma referência em estudos dogmáticos de Direito Criminal.
A universidade brasileira tem sido alijada dos processos de reforma ou de elaboração dos códigos. A causa disso está em sua própria condição de eterna “torre de marfim”, que se revela, n’alguns casos, pela postura do “não li e não gostei”. Mas, é também respeitável sua recusa em legitimar projetos elaborados sem qualquer preocupação com o debate acadêmico de alto nível. Para não se falar nas discussões relâmpago, realizadas “pro forma” e sem qualquer hipótese real de modificação ou, o que também deveria ser possível, de rejeição da proposta.
Nesse desalentador cenário, caberia à Presidência da República e ao Ministério da Justiça assumir o necessário protagonismo na coordenação de tantos projetos. A força do Poder Executivo no Brasil, que é excessiva, pode muito bem se revelar de grande utilidade para se permitir que a elaboração (ou reforma) dos códigos seja realmente um processo democrático e digno da importância desses diplomas. Desde a redemocratização, o Brasil tem sido governado por pessoas que se dedicaram, com maior ou menor intensidade, à construção de instituições perenes, estáveis e capazes de assegurar os valores civilizatórios.
Zelar pela legitimidade e pela qualidade do processo codificador é também uma forma de se defender tais conquistas. Os alemães e os franceses, nesse aspecto, fornecem belos exemplos de como se lidar com o tema da reforma dos códigos.
Otavio Luiz Rodrigues Junior
Napoleão Bonaparte fez-se arauto desse movimento, que passou a confundir civilização com codificação. Promulgar códigos, ou decretar a vigência do Code Civil de 1804 nos países conquistados, era um ato revolucionário de grande significado político.
Após a queda do imperador dos franceses e a reação das monarquias vitoriosas no Congresso de Viena, codificar tornou-se elemento integrante das políticas de Estado de nações que se pretendiam “liberais” — em oposição ao absolutismo e ao direito divino dos reis — e também um ato fundacional de países recém-unificados ou cuja independência acabara de ser assegurada, ao exemplo da Itália e dos jovens Estados balcânicos, liberados do domínio otomano. Possuir um código, mais especificamente um código civil, era uma espécie de senha para ser admitido no rol das nações civilizadas e cultas.
A Alemanha, graças à influência teórica de Friedrich Karl Freiherr von Savigny, resistiu até 1896, quando foi promulgado seu famoso código civil (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), em vigor a partir de 1900. Outra causa desse retardo histórico estava na ciosa manutenção das prerrogativas das monarquias que compunham o Reich. Lembre-se que, a despeito da unificação presidida por Otto von Bismarck, no ano de 1871, os antigos reis, príncipes e duques dos territórios alemães mantiveram seus tronos e gozaram, até o final da Primeira Guerra Mundial, de “status” político e de autonomia legislativa consideráveis. O imperador (Kaiser) não o era “da Alemanha”, mas “dos alemães”. Uma sutileza linguística que demarcava sua condição de “primus inter pares” em face de seus “colegas” dentro do Reich. Nesse sentido, a Saxônia, a Baviera e a Prússia, ainda no século XVIII, possuíam codificações (ou consolidações). A preservação desse espaço normativo parece ter influído na tardia codificação nacional alemã.
O século XX assistiu ao nascimento de algumas codificações importantes, como foi o caso da italiana (1942) e da portuguesa (1966), que substituíram antigos diplomas do século XIX. No geral, contudo, muito se falou de um movimento de descodificação, a ponto de Natalino Írti haver celebrizado a expressão “a idade da descodificação”, em artigo homônimo. A irrelevância dos códigos civis, em razão do aumento crescente de legislações emergenciais ou conjunturais, deu espaço a que Ricardo Luís Lorenzetti, fazendo uso de uma bela metáfora, comparasse os códigos civis aos antigos centros das grandes cidades: esvaziados, envelhecidos e substituídos pelas alternativas de lazer, comércio e serviços públicos encontráveis nos bairros, esses últimos correspondendo ao que também se convencionou chamar de “microssistemas”, especialmente no final do século XX.
Áreas inteiras como a legislação trabalhista (a primeira a ser subtraída dos códigos civis, que regulavam os vínculos entre patrões e empregados nos “contratos de locação de mão de obra”), as leis do inquilinato (com forte caráter protetivo ao locatório), os estatutos da criança e do idoso, os códigos de proteção ao consumidor, as leis autônomas de direitos autorais e de propriedade industrial são exemplos clássicos da perda de espaço normativo dos códigos civis.
Independentemente disso, no final do século XX e início da atual centúria, aprovaram-se novos códigos civis, como são exemplos os da Holanda, do Quebec, do Equador e do Brasil. Na Alemanha, em 2002, o BGB foi profundamente alterado pela Lei de Modernização do Direito das Obrigações. Na França, o anteprojeto de reforma do Código Civil de 1804, sob a regência do hoje falecido professor Pierre Catala, é um exemplo de uma onda de “recodificação” ou, de modo menos ambicioso, de “atualização” dos códigos civis, algo que também se almeja em Portugal e Espanha. No caso europeu, há forte influência das diretivas, que têm causado grande impacto nos modelos normativos locais. A tal ponto que hoje se tem defendido a tese de um movimento de “europeização” do Direito Internacional Privado na Europa.
O movimento de codificação é surpreendente. Mesmo quando foi tido como historicamente ultrapassado, ele parece ressurgir de tempos em tempos, como que a provar a utilidade desse modelo de racionalização normativa, concebido pelos iluministas e posto em prática no século XIX por uma heterogênea comunidade de estudiosos, compreensiva de pandectistas, exegetas e historicistas, que pouco ou nada tinham em comum, seja em termos filosóficos, seja em questões ideológicas.
Mais do que uma narrativa dos sucessos e insucessos do movimento da codificação, esta coluna fere uma questão extremamente atual: a onda codificadora (ou de reforma de códigos) em curso no Brasil.
Em tramitação no Congresso Nacional, encontram-se os projetos de Código Penal, Código Comercial, Código de Processo Penal, Código de Processo Civil e de reforma do Código de Defesa do Consumidor.
As críticas e as eloquentes defesas apresentadas a essas iniciativas têm seu espaço apropriado em outro lugar. Evidentemente, há paixões, interesses acadêmicos (ou mesmo de prestígio intelectual), boa vontade e desejo de aprimorar a legislação em cada um desses grupos de reformistas e antirreformistas.
A questão central está em outro ponto: o tempo e as condições históricas para a tramitação desses projetos.
O Código Civil de 1916, cujo projeto é de 1899, levou quase vinte anos para ser aprovado. O Projeto Reale, do qual se originou a codificação civil de 2002, é de 1973. Muito bem. É um longo período de discussões. Esses textos legais, no entanto, são excepcionais no marco de nossa história legislativa. O Código Penal (1940), a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) e o Código de Processo Penal (1941), assim como o Código de Processo Civil (1973), foram rapidamente aprovados por uma circunstância histórica peculiar e comum a todos eles: eram tempos ditatoriais.
Tanto os regimes do Estado Novo, quanto o de 1964, possuíram uma ampla agenda codificadora. Em alguns casos, houve insucessos, como o Código Penal de 1969 (exemplo singular de lei que foi publicada, mas que nunca entrou em vigor) ou mesmo o Código Civil atual, que só seria aprovado trinta anos depois de sua apresentação ao Congresso Nacional. No geral, porém, essa agenda foi exitosa. A razão é simples: a inexistência de instituições democráticas. É evidente que não se podem tirar os grandes méritos técnicos desses projetos das décadas de 1940 e 1970. Posto que inegáveis, esses merecimentos não tiveram tanto peso na aprovação dos projetos quanto a falta de um parlamento livre, do pluralismo de ideias e da liberdade de crítica.
Não é um desvalor a demora na tramitação dos projetos e, mais que isso, o levantamento de críticas a seu conteúdo ou ainda à conveniência de sua tramitação no Congresso Nacional. A Lei de Modernização do Direito das Obrigações, que reformou profundamente o BGB em 2002, é o resultado de quase vinte anos de debates (acérrimos, diga-se de passagem) na academia alemã. Sua aprovação deu-se apesar da crítica dos principais professores de Direito Civil da Alemanha, sob a liderança de Reinhard Zimmermann, um dos maiores privatistas europeus contemporâneos, que fizeram um abaixo-assinado contra o projeto, então defendido pelo muito conhecido professor Claus-Wilhelm Canaris.
O projeto de reforma do Código Civil francês não tem logrado êxito. Até o presente momento, salvo mudanças pontuais em matéria de prescrição (aprovadas pela Lei n° 2008-561, de 17.6.2008), o projeto Catala parece que não irá adiante. E veja-se que integram a comissão encarregada nada menos que os mais importantes catedráticos de Direito Civil da França, como Alain Bénabent, Jacques Ghestin, Yves Lequette, Philippe Malinvaud e Geneviève Viney.
Na República Argentina, o projeto de novo Código Civil, embora extremamente censurado por respeitáveis catedráticos das universidades platinas, tem alguma hipótese de ser aprovado. Nesse caso, a preeminência política da presidente Cristina Fernández de Kirchner é um dos fatores mais relevantes para que o projeto ganhe força no Parlamento.
Na análise do atual quadro legislativo brasileiro, dois pontos devem ser considerados, além da defesa de que tramitações demoradas e amplos debates acadêmicos não podem ser considerados, “de per si”, como algo negativo. São os seguintes:
(1) Os códigos precisam assentar-se em princípios e em um sistema. Mudar um código é, em alguma medida, reconhecer a quebra de um paradigma teórico (ou também filosófico ou político). A alteração na Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984, é um excelente exemplo disso. E, note-se que ela se deu ainda sob o regime da ditadura de 1964. A passagem do causalismo para o finalismo foi uma opção do legislador de 1984, mas que guardou profunda conexão com um debate acadêmico de alto nível. Reconhecia-se, à época, o esgotamento do modelo causalista e a reforma encontrou coerência sistêmica e principiológica em seus termos.
As sucessivas reformas do Código de Processo Civil de 1973 desfiguraram o projeto de Alfredo Buzaid, que deita suas raízes na Escola Processual de São Paulo, fundada pelo jurista italiano Enrico Tullio Liebman. A codificação de 1973, em sua formulação original, era sistêmica e principiologicamente coerente. Sua eventual superação histórica pode ter ocorrido. Se isso é verdade, é de se indagar qual a escola ou o movimento que inspira e dá forma a uma nova codificação?
Essa pergunta há de ser formulada a toda e qualquer proposição de mudança de um código. Os caracteres relativos a um sistema e a um corpo coerente de princípios, ligados a uma escola jurídica, diferenciam e especializam os códigos em face de leis, estatutos ou consolidações. Esses caracteres tornam o código um tipo diferenciado de conjunto normativo, que exige dos congressistas maior cuidado em sua apreciação.
Em nosso tempo, prevalece o discurso da simplicidade e da agilidade. Não há espaço para berloques, excentricidades ou erudições artificiais. Isso está bem. Mas, a exigência apresentada neste item 1 é algo bem diverso desse “parnasianismo jurídico”. Antes de qualquer coisa, é necessário exigir que o código (civil, penal, comercial ou processual) seja continente de princípios e que tenha vocação sistemática. O exemplo das reformas do CPC é eloquente. Desde 1994, alteraram-se mais de 100 dispositivos desse código, sem que haja sido comprovada melhoria efetiva no sistema processual brasileiro. As marchas e contramarchas no agravo de instrumento e na apelação são exemplos da falência dessa iniciativa. A se utilizar um argumento que possui grande prestígio em nosso tempo, existe um custo econômico nessas mudanças assistemáticas.
(2) O segundo ponto que merece atenção está na importância dos códigos como símbolos do desenvolvimento civilizatório de uma nação. Os códigos são produtos culturais e, nessa condição, devem também merecer o respeito do legislador. Os franceses e os alemães não substituíram seus códigos civis de 1804 e 1900, respectivamente. Charles de Gaulle, que foi o todo-poderoso presidente da República Francesa em duas ocasiões (1944-1946 e 1959-1969), tentou elaborar um novo Código Civil, mas fracassou ante a veneração que seus conterrâneos sempre demonstraram para com o velho Code Napoleon.
O respeito a essa tradição jurídico-cultural é de ser levado também em consideração. Muita vez, se ganha mais em se adaptar o código antigo aos tempos atuais do que em proceder a sua revogação pura e simples. Alguns projetos bem que poderiam se submeter a um teste muito simples: quantos de seus dispositivos são meras reproduções do código em vigor? Se o percentual chegar a mais de 60%, é o caso de se indagar sobre a real necessidade de se “criar” uma codificação que apenas parafraseia ou reproduz textos legais antigos.
Reitere-se: não se discute aqui este ou aquele projeto em tramitação no Congresso Nacional. Levanta-se o problema da necessidade de codificações, recodificações e de reformas legislativas, segundo as circunstâncias históricas, e quais os parâmetros reitores desse processo de câmbio normativo. Sem um sistema, um conjunto de princípios e uma “virada” teórica, como a ocorrida, por exemplo, na reforma do Código Penal de 1984, parece ser injustificável impor à nação o custo social, jurídico e econômico de uma mudança tão drástica em seu ordenamento jurídico.
E, se presentes esses elementos, o debate democrático e a abertura para a crítica (profunda e ampla) dos meios acadêmicos, corporativos e sociais são indispensáveis para que se legitimem tais proposições legislativas.
Essas condições teóricas, políticas e sociais não ocorrem facilmente. E é por isso que o trabalho de codificação ou de reforma dos códigos há de ser lento e acompanhado de perto pela comunidade jurídica. E não é possível se limitar ao controle de projetos apresentados ao Congresso. É perfeitamente possível que, mesmo em tramitação, as iniciativas se revelem inadequadas, tecnicamente falhas ou destituídas dos caracteres apontados no item 1 desta coluna.
Nessa hipótese, não é vexatório simplesmente abandonar o projeto, como já se fez (em estágio bem mais avançado) com o Código Penal de 1969 ou com os diversos projetos de Código Civil dos séculos XIX e XX. Não será esse um privilégio nacional. Em 1962, o Governo alemão ofereceu ao Parlamento um projeto de reforma do Código Penal (o famoso Entwurf 1962) que foi duramente criticado, apesar de suas enormes qualidades, pela comunidade jurídica. Em reação, um grupo de juristas, de entre eles Claus Roxin, elaborou o igualmente famoso “Projeto Alternativo” (Alternativ Entwurf 1966), até hoje uma referência em estudos dogmáticos de Direito Criminal.
A universidade brasileira tem sido alijada dos processos de reforma ou de elaboração dos códigos. A causa disso está em sua própria condição de eterna “torre de marfim”, que se revela, n’alguns casos, pela postura do “não li e não gostei”. Mas, é também respeitável sua recusa em legitimar projetos elaborados sem qualquer preocupação com o debate acadêmico de alto nível. Para não se falar nas discussões relâmpago, realizadas “pro forma” e sem qualquer hipótese real de modificação ou, o que também deveria ser possível, de rejeição da proposta.
Nesse desalentador cenário, caberia à Presidência da República e ao Ministério da Justiça assumir o necessário protagonismo na coordenação de tantos projetos. A força do Poder Executivo no Brasil, que é excessiva, pode muito bem se revelar de grande utilidade para se permitir que a elaboração (ou reforma) dos códigos seja realmente um processo democrático e digno da importância desses diplomas. Desde a redemocratização, o Brasil tem sido governado por pessoas que se dedicaram, com maior ou menor intensidade, à construção de instituições perenes, estáveis e capazes de assegurar os valores civilizatórios.
Zelar pela legitimidade e pela qualidade do processo codificador é também uma forma de se defender tais conquistas. Os alemães e os franceses, nesse aspecto, fornecem belos exemplos de como se lidar com o tema da reforma dos códigos.
Otavio Luiz Rodrigues Junior
Nenhum comentário:
Postar um comentário