"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 17 de agosto de 2013

Características da segurança jurídica no Brasil

Costuma-se dizer que a segurança jurídica é um princípio essencial (e inerente) ao Estado de Direito e que sua configuração depende de cada contexto histórico. 

De fato, a doutrina acentua a relevância ímpar da segurança jurídica em conexão com as experiências do Estado de Direito e com a realização da própria ideia de justiça material. Sua relação com o princípio da legalidade é sempre revisitada, em termos históricos, relembrando a ideia central para o Estado de Direito de um governo de leis e não de homens.

Costuma-se afirmar, ainda, que toda a construção constitucional liberal tem em vista a certeza do Direito, pois necessitava-se de segurança para proteger o sistema da liberdade codificada do direito privado burguês e da economia de mercado.

Desde cedo, o princípio geral da segurança jurídica (e sua dimensão de proteção da confiança dos cidadãos) se colocou como elemento constitutivo do Estado de Direito, exigível a qualquer ato de poder (Legislativo, Executivo e Judiciário). Vincula-se à garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito, bem como à garantia de previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos do poder público.

O que exigiria, no fundo, seria o seguinte:

1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos de poder;

2) de forma que, em relação a eles, o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos de seus próprios atos.

De maneira geral, sempre se acentuou a função de certeza do Direito, de capacidade de controlar a insegurança, de previsibilidade e estabilidade temporal das regras jurídicas, de busca de unidade do ordenamento e preocupação com sua eficácia. Mas a crescente complexidade e o desenvolvimento das relações sociais e jurídicas permitem observar a ampliação do foco de observação da segurança jurídica, a considerar também como elementos centrais a efetividade de direitos fundamentais e a proteção das expectativas de confiança legítima. Por isso, faz-se necessário um exame crítico de cada ordenamento jurídico e de suas influências, o que requer cautela com as aproximações feitas a partir do Direito Comparado.

Afinal de contas, como relembra Humberto Ávila, a segurança jurídica não tem como ser investigada se não por meio de uma perspectiva analítica capaz de reduzir a ambiguidade e a vagueza dos seus elementos constitutivos e de indicar os seus aspectos: material (qual conteúdo da segurança jurídica?), subjetivo (quem são os sujeitos da segurança?), objetivo (segurança do quê?), temporal (segurança jurídica quando?), quantitativo (em que medida?), justificativo (para quê e por quê?). Daí por que ele afirma ser imprescindível olhar para um determinado ordenamento jurídico, para sua superestrutura (o conjunto) e para sua estrutura constitucional (as partes), a fim de esclarecer as possíveis acepções, dentre aquelas analiticamente discerníveis, que se podem identificar.

Contudo, dado o caráter hercúleo de desvendar todos esses mistérios, nem se cogita assumir aqui essa tarefa. Pelo contrário, o que se quer é apenas ressaltar alguns aspectos, situações e pontos de vista, pelos quais o Supremo Tribunal Federal, em especial, encontra caminhos para abordar e desenvolver esse importante princípio.

A Constituição de 1988 não só protege a segurança jurídica, mas também a consubstancia, ao definir, ilustrativamente: as autoridades competentes, os atos a serem editados, os conteúdos a serem regulados, os procedimentos devidos, as matérias a serem tratadas, tudo a potencializar os ideais de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade normativas. Assim, a segurança jurídica é protegida constitucionalmente em várias de suas dimensões: segurança do Direito, pelo Direito, frente ao Direito, dos direitos e como um direito. Sua relevância é muito grande, o que se denota pelo modo como é protegida, pela insistência de sua proteção, pela independência de seus fundamentos e pela eficácia recíproca desses mesmos fundamentos.

Assim, em diversas passagens de nossa Constituição estamos a tratar, em maior ou menor medida (de forma implícita ou explícita) da segurança jurídica. Por exemplo, quando tratamos do princípio da legalidade e de todos seus desdobramentos normativos: processo legislativo, devido processo legal, supremacia da lei, reserva de lei, anterioridade da lei, vigência da lei, incidência da lei, retroatividade e ultra-atividade da lei, repristinação da lei, lacunas da lei, legalidade administrativa (artigo 37, caput, CF/88), legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX, CF/88) e legalidade tributária (artigo 150, inciso I, CF/88).

De um lado, afirma-se a supremacia da lei (em conformidade com a Constituição) como um vetor essencial para favorecer os ideais já mencionados e incrementar a segurança jurídica. Nesse sentido, a lei é garantia de liberdade de ação e de limitação do poder decorrentes da Constituição. De outro lado, a lei reflete o princípio democrático, assentada na soberania popular. A questão da reserva de lei também é importante nesse contexto.

Além disso, a segurança jurídica, em termos de segurança do Direito (dimensão objetiva), tem na própria Constituição uma série de disposições e institutos que impedem mudanças bruscas e acentuadas. Ao mesmo tempo, bloqueia a tentativa de abolição de elementos centrais do ordenamento. Nesse sentido, destacam-se: as cláusulas pétreas (artigo 60, parágrafo 4º, CF/88); o rigor do processo de emenda constitucional (artigo 60, CF/88); os princípios sensíveis (artigo 34, inciso VI, CF/88); as cautelas relativas à intervenção excepcional nos entes federativos (artigos 34 a 36, CF/88); as limitações e o caráter sempre provisório de situações que fogem à normalidade para a garantia do Estado e das instituições democráticas (Estado de Defesa e Estado de Sítio – artigos 136 a 139, CF/88); a definição das instituições de segurança pública (artigo 144, CF/88) e das Forças Armadas (artigos142 e 143, CF/88) etc.

Mas de nada adiantaria toda essa engenharia se não se pudesse estabelecer o controle efetivo para a limitação do poder. Sob a égide da Constituição vigente, não parece haver espaço para a impossibilidade ou desnecessidade de controle (elemento importante para a segurança jurídica), embora haja debate acerca dos seus limites e da sua intensidade (em termos de mérito administrativo, de políticas públicas, de freios e contrapesos). Por isso mesmo, o texto constitucional estruturou o princípio da separação de poderes (artigo 2º, CF/88), em lembrança à lição de Montesquieu de que o poder só encontra limites no poder (é preciso que o poder detenha o poder).

Nesse sentido, destaca-se que a Constituição brasileira concebeu valor central ao controle jurisdicional da administração, capaz não só de rever a sua atuação, mas também de impor-lhe medida. O princípio constitucional da universalidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, CF/88) parece reforçar aqui a segurança jurídica, inclusive em relação ao Poder Legislativo, em determinadas situações de atuação legislativa inconstitucional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é rica em casos e discussões nos quais a segurança jurídica toma destaque. Vejamos alguns deles.

A discussão sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade, por exemplo, em suas vertentes de proibição de excesso (übermassverbot) e de vedação da proteção insuficiente (Untermassverbot), tem marcado um importante papel, em termos de segurança jurídica e estabilização de expectativas, ao exigir que o Estado atue com coerência e de forma ponderada — proibindo restrições casuísticas e operando como critério de solução de colisão de direitos fundamentais.

A discussão sobre o princípio da proteção da confiança legítima, entendido como desdobramento ou dimensão subjetiva da segurança jurídica, normalmente ligado à defesa dos cidadãos contra o arbítrio estatal, também tem sido afirmada sob a égide da Constituição de 1988 pelo STF. Tem aqui destaque o famoso caso da Infraero, em que o TCU determinara a revisão de mais de 366 admissões realizadas sem concurso público, embora tivesse havido processo seletivo rigoroso, em observância ao regulamento da Infraero, validado por decisão administrativa daquela empresa estatal e pelo próprio TCU (em acórdão administrativo anterior). Houve lapso de quase 10 anos entre o deferimento parcial da liminar em favor dos impetrantes no mandado de segurança perante o STF e o julgamento de mérito. Esses elementos, somados à boa-fé objetiva dos impetrantes e ao fato de ser o Poder Público o responsável pela situação desfavorável criada a eles, fizeram prevalecer o fundamento explícito da proteção da confiança e da segurança jurídica, como balizadores do afastamento da nulidade das contratações.

Outro entendimento interessante vem se consolidando na jurisprudência do STF nesse tema. A Corte passou a exigir que o TCU assegurasse a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassasse o prazo de cinco anos do ato de concessão inicial (emanado do órgão de origem), sob pena de ofensa ao princípio da confiança — face subjetiva do princípio da segurança jurídica. Essa jurisprudência se consolidou em período anterior à Súmula Vinculante 3, que textualmente veio a dispor em sentido contrário.

Ocorre que o desenvolvimento do debate e das situações trazidas à apreciação do STF fez com que este redefinisse seu entendimento, sem que houvesse prejuízo da segurança jurídica. É que, como a demora do envio do processo administrativo seria ocasionada pelo órgão de origem e não pelo TCU, este último acabaria sendo prejudicado, em termos de eficiência administrativa, por situação a que não teria dado causa. Por entender não se poder incutir esse ônus ao TCU, a jurisprudência foi revisitada pelo STF para assentar que o prazo de cinco anos deveria ser contado da chegada do processo de controle externo ao TCU. Caso fosse ultrapassado, estaria configurada situação mitigadora da parte final da Súmula Vinculante 3, devendo-se observar a garantia da ampla defesa e do contraditório. Assim, prestigiou-se a proteção do servidor aposentado ou do pensionista que não tiver seu processo apreciado pelo TCU após cinco anos da entrada do processo naquele órgão de controle externo, bem como assegurou-se a funcionalidade da atuação eficiente do TCU em relação ao que dispõe a Súmula Vinculante 3.

Outro questão institucionalizada na Constituição de 1988 e que se irradia para a legislação infraconstitucional é o aspecto temporal da segurança jurídica, que por vezes é levado à discussão de nossa Suprema Corte. Nesse sentido, pode-se pensar em institutos como: irretroatividade da lei mais gravosa; garantias do direito adquirido, do ato jurídico e da coisa julgada; prescrição e decadência; direito intertemporal e limitação dos efeitos jurídicos no tempo; preclusão; prazos processuais; ato das disposições constitucionais transitórias (e a possibilidade de revisão constitucional — artigo 3º, ADCT); justiça de transição de regimes.

É interessante notar que a dosagem varia conforme a área e o bem jurídico envolvido. Um caso interessante e que tem despertado certa controvérsia é a interpretação da imprescritibilidade das ações de ressarcimento, as quais têm relação com atos de improbidade cometidos por agente público (artigo 37, parágrafo 5º, CF/88). A jurisprudência do STF vem confirmando a aplicação deste artigo sem maiores ressalvas, a despeito da voz divergente do ministro Marco Aurélio, que afirma que tal entendimento contraria a segurança jurídica — responsável pela cicatrização de situações pela passagem do tempo.[Contudo, recente decisão da 1ª Turma, que decidiu pelo recebimento do recurso extraordinário e sua afetação ao Plenário, em razão da relevância do tema, pode dar novos encaminhamentos ao tema.

Ainda nessa linha, destaca-se o princípio da irretroatividade da lei mais gravosa como reflexo da segurança jurídica e que se espraia nos diversos ramos jurídicos, com destaque à anterioridade no direito penal (artigo 5º, inciso XL, CF/88) e às anterioridades clássica e nonagesimal no Direito Tributário (artigo 150, inciso III, alíneas “b” e “c”; e artigo 196, parágrafo 6º, CF/88).

Recentemente, também se colocou a discussão da segurança jurídica no centro do debate do direito constitucional e eleitoral, em razão das controvérsias ligadas à Lei da Ficha Limpa e à anterioridade eleitoral — artigo 16, CF/88 e LC 135/2010.

Um aspecto atual e extremamente difícil, em termos de acomodação da segurança jurídica, diz respeito à chamada justiça de transição, em conexão com o crescente incremento de normatização supranacional e concomitante controle de convencionalidade por organizações internacionais. Se tomarmos como exemplo a recente experiência da transição brasileira entre ditatura militar e redemocratização pós-1988, isso se torna evidente (seja em relação aos perpetradores do regime de exceção, seja em relação às vítimas — artigos 8º e 9º, ADCT).

Nesse sentido, o exemplo do julgamento da ADPF 153 no STF, em cotejo com o Caso Gomes Lund e outros (referente à Guerilha do Araguaia) na Corte Interamericana de Direitos Humanos, parece emblemático. O Supremo, por maioria, julgou improcedente a ação, destacando a impossibilidade de o Poder Judiciário rever as definições adotadas na Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), o que, em princípio, não seria óbice ao Poder Legislativo, como ocorrera em experiências do Direito Comparado (Chile e Argentina). 

Também não se reconheceu, em geral, a possibilidade de direito costumeiro internacional em matéria penal, deixando transparecer, ainda, haver uma ideia de distinção entre os efeitos de autoanistia e anistia como fruto de acordo político para transição democrática. Contudo, a Corte Interamericana condenou o Brasil a uma série de imposições (que só não causaram maior tensão, em termos de segurança jurídica, pelo fato de o Brasil ter ratificado a Convenção Interamericana na década de 1990 e de ter reconhecido a jurisdição da Corte Interamericanca com efeitos prospectivos, ou seja, para casos a partir de então).

Outro exemplo diz respeito à possibilidade de modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade (artigo 27, Lei 9.868/1999; artigo 11, Lei 9.882/1999), que é feito, segundo o texto legal, ou por razões de segurança jurídica, ou por razões de excepcional interesse social. Esse mecanismo tem aberto uma gama de possibilidades, como a expansão para aplicação em instrumentos de controle tipicamente difuso, como o recurso extraordinário. Um recente caso emblemático foi a necessidade de modular os efeitos de uma decisão que, a partir da análise de uma determinada lei de 2007 (que criara o ICMBio), faria com que todas as demais leis posteriores oriundas de projeto de conversão de Medida Provisória também fossem declaradas inconstitucionais, por vício formal (inobservância do art. 62, §9º, CF/88).

Recentemente, dois temas de inegável relevância, em termos de segurança jurídica, entraram na pauta da Suprema Corte. Em primeiro lugar, a repactuação da divisão das receitas oriundas da exploração de recursos previstos no parágrafo1º do artigo 20 da Constituição, em que já houve liminar em mandado de segurança para suspender o trâmite do processo legislativo — posteriormente cassada pelo Plenário,além de ações diretas de inconstitucionalidade, com liminar monocraticamente deferida em uma delas e que deve obrigatoriamente ser levada a julgamento plenário em curto espaço de tempo. Em segundo lugar, a questão da liberdade de criação de partidos políticos e a possibilidade de intervenção preventiva da Corte para evitar atuação legislativa em conflito com jurisprudência recente do STF — em mandado de segurança que acaba de ser julgado nesta semana. São temas de grande repercussão jurídica e social e que merecem maior reflexão e atenção de todos, inclusive em termos de interpretação do princípio da segurança jurídica.

Como mencionado, todos esses desafios dependem de um Poder Judiciário capaz de dar respostas adequadas às demandas e de garantir o alcance da segurança em suas mais variadas dimensões. A Constituição estabeleceu um Poder Judiciário consolidado e de atuação independente, dotado de garantias e de instrumentos de atuação.

Em face do panorama aqui exposto, pode-se vislumbrar que, se o princípio da segurança jurídica é caro ao Estado de Direito e sua configuração depende de cada contexto jurídico, para a Constituição de 1988 e para o ordenamento jurídico brasileiro, ele parece ser fundante e essencial. Os exemplos aqui trazidos de forma ilustrativa (perspectivas e derivações da legalidade, da proporcionalidade, da proteção da confiança, da estabilidade temporal, do sistema tributário, da Justiça de transição, do controle de constitucionalidade) demonstram que tanto a Constituição quanto a jurisprudência do STF identificam um valor fundamental a este princípio nos seus mais diversos aspectos e desdobramentos (sempre em descoberta).

Além disso, a complexidade e a dinâmica dos arranjos jurídicos-institucionais previstos na Constituição, aprimorados em sua vigência e irradiados para a legislação, exigem um contínuo desenvolvimento e o rigor normativo e hermenêutico para manter e aperfeiçoar a segurança jurídica.

Marco Túlio Reis Magalhães 

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