"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Jornadas de Junho e Revolução Brasileira


“Contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres”

                                                                                  -Florestan Fernandes


Em junho de 2013, o Brasil assistiu às maiores manifestações de sua história moderna. A bronca das ruas interrompeu um longo ciclo de “paz social”, cuja origem remonta à derrota da luta por reformas democráticas, em 1989, e à consolidação do Plano Real, em meados da década de 1990. Os protestos multitudinários evidenciaram a extrema fragilidade das instituições e colocaram na ordem do dia a necessidade de mudanças substanciais na forma de organização da economia e da sociedade.

Durante algumas semanas, os poderes estabelecidos ficaram suspensos no ar. A força vul­cânica das manifestações gerou a impressão de que a sociedade brasileira assistia às primeiras labaredas de um processo social verdadeira­mente revolucionário. Os que sonhavam com dias melhores, viveram momentos de grande esperança; os que temiam por seus privilégios, tempos de apreensão e medo-pânico. Para quem estava iludido com o mito do neodesenvolvi­mentismo, a fúria das ruas estalou como um misterioso relâmpago em céu azul. A compre­ensão do significado e das implicações da revol­ta urbana que sacudiu o Brasil passam pelo en­tendimento das causas e das consequências da ira do povo.

A dinâmica dos acontecimentos

As manifestações de junho foram o resultado de uma sequência de acontecimentos que transformaram em uma revolta urbana de pro­porções inusitadas a forte insatisfação latente na população com as péssimas condições de vida. Os protestos começaram em São Paulo e genera­lizaram-se por todo o Brasil, em uma resposta reativa das massas aos desmandos e arbitrarieda­des dos governantes.

O encadeamento dos acontecimentos foi crescendo. No dia 6 de junho, o Movimento Pas­se Livre (MPL) convocou um protesto na cidade de São Paulo contra o aumento nas tarifas do transporte público municipal. O fato de o reajus­te, tradicionalmente anunciado durante as férias escolares, ter ocorrido durante o ano letivo, le­vou 6 mil jovens ao ato – número mais expressi­vo do que nos anos anteriores. Duramente repri­mido pela polícia militar, o movimento respon­deu no dia seguinte, levando o dobro de pessoas às ruas. A polícia reforçou a repressão. O prefeito da cidade, Fernando Haddad, da ala esquerda do PT, permaneceu inflexível, recusando-se a abrir conversações com os manifestantes.

No dia 11 de junho, os combates entre a tro­pa de choque e os manifestantes repetiram-se. De Paris, onde defendia a candidatura de São Paulo à Expo 2020, em companhia do governa­dor Geraldo Alckmin, Haddad condenou os pro­testos e enalteceu o comportamento da polícia militar. Os governantes apostavam no esvazia­mento natural do protesto.

Não foi o que ocorreu. As imagens da guerra campal entre a tropa de choque e os manifestantes circularam nas redes sociais e começaram a mu­dar o estado de espírito da opinião pública. A tru­culência da tropa de choque funcionou como um estopim que detonou a indignação popular. A in­trepidez dos jovens que desafiavam bombas e ba­las de borracha evidenciava a covardia da polícia e legitimava os métodos de luta do MPL. Nos flu­xos de mensagens que circulavam na internet já era possível identificar que os protestos tinham se transformado em uma revolta da juventude.

No ato do dia 13 de junho, mais de 20 mil pesso­as foram às ruas de São Paulo apoiar o MPL. Apare­ceram cartazes anunciando: “Não é só por 20 centa­vos”. Sem perceber que os protestos tinham adquiri­do um caráter de massa e seguindo as instruções de Alckmin, a tropa de choque reagiu com violência redobrada. A repulsa da opinião pública foi imediata. Os métodos convencionais de repressão estavam desmoralizados. A essa altura dos acontecimentos, a grande mídia – que até o dia anterior atiçava a polícia e intrigava a opinião pública contra os jovens –, sem nenhum pudor, começou a defender a legitimidade das manifestações. As pesquisas registravam que 80% dos brasileiros aprovavam os protestos.

No dia 17 de junho, as passeatas generaliza­ram-se pelas principais capitais do país e torna­ram-se maciças. A batalha das tarifas estava ga­nha. Governadores e prefeitos, uns após os ou­tros, revezaram-se para anunciar reduções nas tarifas dos transportes públicos. Haddad só reco­nheceu a derrota no dia 19 de junho, depois de novas manifestações. No ato da vitória do dia 20 de junho, as ruas das principais cidades foram tomadas pela multidão. A revolta da juventude tinha se transformado numa revolta urbana de grande envergadura. Aproveitando a visibilidade gerada pela Copa das Confederações da Fifa, até o último dia de junho, os protestos continuaram com força inaudita. As pautas de protesto e rei­vindicação ampliaram-se e passaram a contem­plar um amplo leque de problemas.

Finalmente, em julho, as grandes manifestações arrefeceram, mas os protestos não pararam. Desde então, a população continuou extravasando a sua profunda insatisfação com as condições de vida em milhares de mobilizações menores e fragmentadas nas principais cidades do país. No Rio de Janeiro, coração dos grandes eventos da era Lula-Dilma, as Jornadas de Junho deixaram como rescaldo uma aguerrida campanha pela saída do governador Sér­gio Cabral – figura simbólica das extravagâncias, arbitrariedades e descalabros dos políticos.

A composição social da massa que saiu às ruas foi heterogênea. Da classe média remediada para baixo, praticamente todos os segmentos da sociedade aproveitaram a oportunidade para ex­pressar seu descontentamento com o status quo, inclusive com a presença – por vezes expressiva – de franjas de trabalhadores pobres não organi­zados em sindicatos e da massa proletária e lum­pemproletária que mora em favela. No entanto, desde o princípio, o núcleo duro das manifesta­ções – suas lideranças e sua vanguarda mais aguerrida – foi composto de estudantes que tra­balham e trabalhadores que estudam.

Vencida a batalha das tarifas, os protestos mul­tiplicaram o leque de reivindicações. Nos cartazes improvisados levados às manifestações, protesta­va-se praticamente contra tudo. A grande mídia deu alarde à presença de consignas nacionalistas – “O gigante acordou”, “Verás que o filho seu não foge à luta” –; moralistas – “Contra a Corrupção”, “Contra a PEC-37” –; e até mesmo autoritárias – “Contra os Partidos” e “Contra a Violência”. Em várias cidades, as organizações empresariais aproveitaram a confusão para infiltrar pessoas contra­tadas com cartazes impressos que destoavam completamente do que vinha sendo reivindicado – “Menos Impostos” e “Imposto Zero”.

Contudo, a avassaladora maioria dos manifes­tantes portou consignas claramente radicais e anti­capitalistas, com evidente caráter democrático e anti-imperialista – “Passe Livre”, “Educação pú­blica não mercantil”, “Saúde não é mercadoria”, “Moradia: Direito de ‘todos’”, “Fora Fifa”, “Con­tra a privatização do Maracanã”, “Fora Eike”, “Não às remoções”, “Fora Rede Globo”, “Da Copa eu abro mão, não da saúde e da educação”, “A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela”, “Contra a homofobia”.

A juventude atacou os símbolos do poder eco­nômico e político: palácios de governos, bancos, concessionárias de automóveis, zona de exclusão Fifa, grandes redes de televisão, praças de pedá­gios, empresas de ônibus, e, evidentemente, a tropa de choque da Polícia Militar. A violência espontâ­nea das ruas denunciava a violência institucional do status quo e expressava a necessidade de abrir ca­minho para uma nova ordem. As exceções – mag­nificadas pela grande mídia – ficam por conta da presença ostensiva de agentes provocadores dos aparelhos repressivos do Estado, valentões de parti­dos de extrema direita e até brutamontes infiltrados por empresários de transporte interessados em ver o circo pegar fogo. Os saques a lojas de eletrodomés­ticos e supermercados, muitos deles induzidos pela inação da polícia, resultaram do oportunismo de indivíduos desesperados em condição de extrema pobreza ou de bandos criminosos que agiam com a explícita condescendência das forças da ordem.

Ainda que a ausência de partidos e sindicatos na convocação e organização das manifestações dê a impressão de que as manifestações tenham ocorrido de forma totalmente espontânea, res­pondendo ao chamado difuso das redes sociais, na realidade, não houve um protesto que não ti­vesse sido convocado por organizações políticas, sindicatos e movimentos sociais curtidos nas trincheiras da resistência ao neoliberalismo nas últimas décadas. Os militantes dos diversos par­tidos da esquerda contra a ordem – PSOL, PSTU, PCB, LER, PCO e grupos anarquistas, como os Black Blocs, Radicais Livres, Anarcopunks, Anonymous – distribuiram-se, muitas vezes mis­turados, nos coletivos políticos que compuseram as vanguardas dos protestos. Com todos os méri­tos, o MPL foi o que ganhou maior notoriedade.

A lista completa das organizações que partici­param da convocação e da organização dos protes­tos seria interminável. Elas são milhares, espalha­das por todos os cantos do Brasil. A novidade sub­jacente às Jornadas de Junho é que manifestações convocadas por grupos específicos, sem a presença de organizações políticas que centralizassem o co­mando das operações, foram atendidas maciça­mente pela população. O pavio encontrou a pólvo­ra. A atmosfera era propícia a explosões. As escara­muças de resistência à ofensiva do capital transfor­maram-se em grandes manifestações de massa. As classes subalternas romperam duas décadas de marasmo político e letargia social.

Para a juventude, que enfrentou a repressão, o saldo das Jornadas de Junho foi francamente posi­tivo. A redução das tarifas significou uma vitória objetiva e tangível que beneficiou o conjunto da população. A reconquista do direito à manifesta ção representou um importante contraponto ao processo de criminalização das lutas sociais em progressão há mais de uma década. A desmorali­zação das prioridades que regem o gasto público desnaturalizou a política econômica, deixando pa­tente o componente ideológico que oculta os inte­resses por trás da linguagem técnica e suposta­mente neutra da racionalidade econômica.

No entanto, a maior vitória das ruas foi a de ter superado o cretinismo parlamentar e criado uma nova cultura política. As classes que dependem de seu trabalho para sobreviver aprenderam que para serem levadas em consideração precisam ir à luta. As experiências vividas nos embates contra as forças da ordem – policiais, midiáticas, ideológicas e políticas – provocaram um salto de qualidade na consciência política do conjunto da juventude rebelde e começou a forjar sua vanguarda mais resoluta. Enfim, o deslo­camento da luta de classes para as ruas mostrou a força da mobilização social e da ação direta como único meio de que o povo trabalhador dispõe para mudar as estruturas enrijecidas do poder.

A mudança de qualidade na relação da popula­ção com os poderes instituídos inaugurou uma nova conjuntura histórica. Ao explicitar as violên­cias vividas pela população das grandes cidades, sobretudo o cotidiano sofrido dos trabalhadores pobres da periferia, o encadeamento dos aconteci­mentos recolocou no centro de debate nacional os problemas fundamentais de uma modernização ir­racional que ata o capitalismo brasileiro ao círculo vicioso da dependência e do subdesenvolvimento.

As contradições que impulsionaram a luta de classes

Embora as manifestações de junho possuam um componente espontâneo e imprevisível que a todos surpreendeu, quando vistas em pers­pectiva histórica, o verdadeiramente surpreen­dente são as terríveis contradições de uma socie­dade em processo de reversão neocolonial terem demorado tanto para virem à tona.

A causa imediata das Jornadas de Junho foi o protesto indignado da juventude trabalhadora contra as péssimas condições de vida nas gran­des cidades. O problema fica patente nas condi­ções da mobilidade urbana – o estopim da revol­ta da juventude. Inversamente proporcional à quantidade de automóveis nas ruas e aos investi­mentos públicos em transporte particular, o tem­po gasto pelo cidadão em seus deslocamentos urbanos consome parcela crescente do tempo li­vre das pessoas. Em algumas capitais, alcança uma dimensão verdadeiramente absurda.

O caso de São Paulo é emblemático. Calcula­-se que o paulistano gaste em média quase três horas por dia no trânsito. Os moradores pobres das regiões periféricas muito mais. Estão condenados a uma vida de tempo perdido, presos em conges­tionamentos intermináveis. Para chegar ao traba­lho e voltar para a casa, são transportados como animais, espremidos como sardinhas, em trens, ônibus e metrôs que se arrastam lentamente em jornadas que duram de quatro a cinco horas. Con­siderando que precisam de oito horas para dormir e que ficam à disposição do patrão pelo menos nove horas (uma de descanso), sobram-lhes ape­nas duas ou três horas para viver. Mesmo assim, a política econômica estimula a indústria do auto­móvel, e o gasto público com transporte privado é 11 vezes superior às despesas com transporte pú­blico. Os planos diretores da cidade não cogitam colocar em questão a indústria do automóvel e da especulação urbana, obrigando o trabalhador a vi­ver cada vez mais distante de seus empregos.

Os problemas econômicos e sociais por trás do imenso mal-estar social que impulsionou os pro­testos estavam inscritos nas contradições do pa­drão de acumulação liberal periférico, iniciado por Collor de Mello, em 1990, consolidado por Fernando Henrique Cardoso, com a implantação do Plano de Real, em 1994, e legitimado por Lula, em 2003. As contradições da modernização frívo­la, impulsionada pela submissão da economia bra­sileira à lógica especulativa dos grandes negócios, estouraram nas mãos de Dilma Rousseff.

O descompasso entre o crescimento da econo­mia e as condições de vida da população fica evi­dente na incapacidade de generalizar os padrões de consumo das economias centrais para o conjunto da população, elevar os salários reais, gerar empregos de boa qualidade e melhorar os serviços sociais.

A nova rodada de modernização dos padrões de consumo somente alcançou uma restrita parce­la da população. Seria impossível ser diferente, pois, assim como uma pessoa pobre não dispõe de condições materiais para reproduzir o gasto de uma pessoa rica, a diferença de pelo menos cinco vezes na renda per capita brasileira em relação à renda per capita das economias centrais não per­mite que o estilo de vida das sociedades afluentes seja generalizado para o conjunto da população. Há muito tempo, Celso Furtado mostrou que a far­ra de consumo supõe a reprodução do elitismo. Para as camadas populares sobraram produtos su­pérfluos de baixíssima qualidade que foram com­prados a um altíssimo custo. A extravagância será paga com grandes sacrifícios. O endividamento a juros reais estratosféricos, em total assimetria com a evolução dos salários reais, acarretou crescente participação das despesas com juros e amortiza­ções no orçamento familiar.

O ciclo de crescimento recente não reverteu o violento arrocho salarial a que o trabalhador foi submetido desde 1964 e que foi substancialmente agravado nos anos 1980 com a ofensiva neoliberal imposta pelos programas de ajustamento do FMI. Apesar do esforço de recuperação do valor do salá­rio mínimo iniciado em meados da década de 1990, seu poder aquisitivo permanece inferior ao verifica­do no início dos anos 1980, e o salário médio real do trabalhador continua no patamar do início do Plano Real. A distância gritante entre o salário mí­nimo estipulado pela Constituição e o salário míni­mo efetivamente pago deixa patente a dependência absoluta da economia brasileira na superexploração do trabalho – a verdadeira galinha dos ovos de ouro do capitalismo brasileiro. Em 2012, segundo o Die­ese, a diferença entre o mínimo ideal e o mínimo real foi superior a quatro.

A expansão recente da economia tampouco re­verteu o processo de precarização e flexibilização das relações de trabalho, nem foi capaz de gerar empregos de qualidade. Na era Lula-Dilma, a rota­tividade do trabalho continuou aumentando e a me­tade dos ocupados permaneceu na informalidade. Calcula-se que 95% dos empregos gerados nesse período foram na faixa de até dois salários míni­mos, um terço deles em atividades terceirizadas.

Na política social, o descaso foi total, com falta de prioridade, independentemente do parti­do de plantão, em Brasília. Não obstante a galo­pante deterioração dos serviços, nas últimas duas décadas, os recursos públicos destinados ao setor permaneceram estagnados em proporção ao PIB. Para os que alegam que o gasto social é suficien­te, faltando apenas melhorar a gestão, a compa­ração com outros países é reveladora. A despesa per capita do Estado brasileiro com educação é: duas vezes inferior à da Grécia; menos de quatro vezes à da França; e mais de seis vezes inferior à da Noruega. Na saúde, a diferença é ainda mais escandalosa: duas vezes menor do que a Coreia; três vezes inferior à da Grécia; e quase oito vezes menor do que a dos Estados Unidos.

A misteriosa razão da crônica escassez de re­cursos para políticas públicas fica esclarecida quando se leva em consideração o abismo existen­te entre a carga tributária bruta (CTB) – o total arrecadado pelo Estado – e a carga tributária líqui­da (CTL) – os recursos fiscais efetivamente dispo­níveis para financiar o investimento público e o gasto social. A diferença explica-se pelas transfe­rências de recursos para empresas e famílias. Se­gundo o Ipea, em 2008, a CTB e a CTL foram de 36% e 15% do PIB, respectivamente. Somente a despesa com juros da dívida pública representou mais de 5,6% do PIB – o equivalente a quase todo o gasto do Estado – governo federal, estados e municípios – com saúde e educação.

As manifestações que ocorreram no Brasil não estão isoladas das turbulências sociais e políticas provocadas pela crise econômica mundial. Postas em perspectiva global, elas constituem uma nova frente de reação dos que vivem do trabalho às in­vestidas do capital sobre os direitos dos trabalhado­res, as políticas públicas e a soberania dos Estados nacionais. Nesse sentido, as Jornadas de Junho fa­zem parte do mesmo processo de revoltas e revolu­ções populares que colocam em xeque as bases sociais e as políticas da ordem global em diferentes regiões do mundo. As contradições que impulsio­nam os protestos, as revoltas e as revoluções que se generalizam – Occupy Wall Street, Revolta dos In­dignados, Primavera Árabe – possuem um denomi­nador comum: a necessidade histórica de uma es­tratégia ofensiva do trabalho como único meio de superar a barbárie capitalista.

No entanto, os móveis das manifestações não podem ser reduzidos nem às suas determinações imediatas nem às suas determinações gerais. O pro­fundo mal-estar da população com as desigualdades sociais, a pobreza, a irracionalidade da política eco­nômica, a ausência de políticas públicas, as arbitra­riedades do Estado, a violência do dia a dia, a corrup­ção generalizada e a impunidade dos donos do poder não constitui um sentimento novo na sociedade bra­sileira. Como mostrou Caio Prado Júnior em seu clássico “Formação do Brasil Contemporâneo”, foi exatamente a necessidade de superar tais problemas que impulsionou, desde a luta pela emancipação de Portugal, o longo processo de formação do Brasil.

O sentimento generalizado de que os proble­mas fundamentais do povo se agravam é fruto de um processo de reversão neocolonial, que compro­mete progressivamente a capacidade de a sociedade brasileira controlar o seu destino. Transformada em uma espécie de feitoria moderna – que tem à sua disposição um imenso reservatório de mão-de­-obra barata – e importante entreposto comercial e financeiro da periferia da economia mundial – ob­jeto de grandes negócios do capital internacional –, a economia brasileira ficou à mercê das vicissitudes da economia mundial. Sem controle sobre os fins e os meios da política econômica, o Estado tornou-se impotente para defender a economia popular e pre­servar os interesses estratégicos da Nação de ata­ques especulativos do grande capital. O processo, iniciado pelo menos há três décadas, foi determina­do pela relação de condicionamento recíproco entre ajuste às exigências da ordem global, liberalização progressiva da economia, especialização regressiva na divisão internacional do trabalho, desnacionali­zação da economia, naturalização da desigualdade social, crise federativa, desarticulação dos centros internos de decisão, crise da identidade nacional e mimetismo cultural levado ao paroxismo.

Nesse sentido, as contradições que emergi­ram com vigor de uma erupção vulcânica con­densam determinações históricas profundas e complexas, que combinam condicionantes mo­dernos, relacionados com o modo pelo qual o Brasil se integrou, sob os imperativos do capital internacional, nas revoluções produtivas e mer­cantis do capitalismo contemporâneo, com con­dicionantes herdados de um passado remoto ain­da não superado, associados à persistência de estruturas econômicas, sociais, políticas e cultu­rais típicas de sociedades que ficaram presas no circuito fechado do capitalismo dependente.

As novas formas de exploração do trabalho e reprodução da pobreza – que definem em última instância as contradições subjacentes ao modo de produzir, viver e ser da sociedade brasileira con­temporânea – consubstanciaram-se na formação de relações de produção sui generis, marcadas por duas características fundamentais.

De um lado, a relação capital-trabalho está con­dicionada pela presença de uma imensa massa de trabalhadores pauperizados, no campo e na cidade, sem perspectiva de superar a miséria. A persistência da pobreza como um problema endêmico, que atin­ge aproximadamente um terço das famílias, provo­ca um desequilíbrio estrutural na correlação de for­ças entre o capital e o trabalho. A reprodução de condições econômicas, sociais e morais, que man­têm em um patamar mínimo as necessidades consi­deradas essenciais para a reprodução da força de trabalho, permite que o desenvolvimento capitalista venha acompanhado de novas formas de superex­ploração do trabalho que degradam ainda mais as condições de vida da classe operária, condenando os trabalhadores livres do século XXI a reviver eternamente as misérias da escravidão.

De outro lado, a relação capital-trabalho está determinada pela presença dominante do capital internacional na economia brasileira. Os novos mecanismos de conquista do capital financeiro de­sarticularam os alicerces fundamentais do sistema econômico nacional e solaparam as bases dos cen­tros internos de decisão. A inserção subalterna da divisão internacional do trabalho desencadeou um processo de desindustrialização e revitalizou o la­tifúndio – a base do agronegócio. A presença do­minante do capital financeiro provocou uma ex­pansão exponencial do passivo externo financeiro – capitais de altíssima volatilidade aplicados no mercado financeiro, boa parte em títulos da dívida pública. A altíssima vulnerabilidade externa deixa a economia brasileira refém do capital internacio­nal. A dimensão do problema fica patente quando se leva em consideração que, em 2012, os recur­sos de estrangeiros no mercado financeiro prontos para deixar o país em caso de risco representavam quase três vezes o valor das reservas cambiais.

Em síntese, as contradições que impulsionaram as Jornadas de Junho estão condicionadas, em últi­ma instância, pela miséria humana que fermenta na sociedade brasileira e contamina todos os poros da vida nacional. É todo o edifício do capitalismo de­pendente que começou a ser posto em questão, de baixo para cima, pela crescente resistência da popu­lação a continuar aceitando condições de vida su­bumanas. Os motivos que levaram a juventude às ruas revelaram uma vontade difusa – ainda não condensada num programa alternativo de organiza­ção da sociedade, mas facilmente reconhecível nas motivações dos protestos – de vencer o colonialis­mo, o subdesenvolvimento, a segregação social, o imperialismo e o próprio capitalismo.

As consequências da revolta popular

Ao exigir uma inversão radical nas prioridades que regem as políticas do Estado, os protes­tos colocaram em xeque os pilares do padrão de acumulação liberal periférico e do padrão de do­minação que lhe corresponde. A crítica à penúria permanente de recursos para políticas sociais e à prioridade absoluta ao transporte particular – a es­sência das reivindicações do MPL – questionaram toda a arquitetura do modelo econômico brasilei­ro. A descompostura nos governantes e o desacato à autoridade das forças da ordem expuseram a fa­lência do sistema de representação e a perda de eficácia dos mecanismos convencionais de repres­são dos conflitos sociais. A crise política alimenta a crise econômica e a crise econômica acirra a crise política. O agravamento da crise internacio­nal funciona como um catalisador de ambas.

O modelo econômico na berlinda

O antagonismo entre as reivindicações das ruas e o padrão de acumulação liberal periférico fica caracterizado pela absoluta impossibilidade de compatibilizar as medidas práticas que seriam necessárias para atender ao pleito dos manifes­tantes e a preservação dos princípios básicos que sustentam o Plano Real.

O atendimento do clamor da juventude por po­líticas públicas requereria que os recursos do Esta­do destinados à área social fossem de no mínimo 25% a 30% do PIB. É o que gastam os países com políticas sociais decentes. O esforço exigiria prati­camente uma duplicação do gasto social. Tais re­cursos poderiam ser obtidos, basicamente, de três fontes: redução das despesas com juros da dívida pública; diminuição de subsídios e incentivos fis­cais às empresas; e aumento da carga tributária.

A inversão na prioridade do gasto público im­plicaria uma completa reviravolta na política fis­cal. Para que o gasto social deixe de ser uma vari­ável de ajuste do orçamento público, seria neces­sário revogar a Lei de Responsabilidade Fiscal e acabar com a prioridade dada à geração de superá­vits primários. Para que as despesas financeiras deixem de asfixiar a capacidade de gasto do setor público, seria indispensável limitar os gastos do governo federal com o serviço da dívida pública e renegociar as dívidas da União com estados e mu­nicípios. Para reforçar o poder efetivo do Estado brasileiro de fazer políticas públicas, seria funda­mental fazer uma reforma tributária que permitis­se substancial elevação dos impostos sobre lucro e grandes fortunas – na contramão do que vem sen­do discutido no Congresso Nacional.

A subordinação do padrão de incorporação de progresso técnico às necessidades do conjunto da população, como reivindica a crítica do MPL ao transporte particular e sua luta a favor do pas­se livre, exigiria mudanças ainda mais profun­das. Sem romper com um padrão de acumulação que promove a mercantilização de todas as esfe­ras da vida e o incentivo indiscriminado à cópia dos estilos de vida das economias centrais é im­possível imaginar a livre mobilidade nas cidades e o fim do reinado do automóvel.

A revolta da juventude comprometeu a susten­tabilidade social e a política do modelo econômi­co. Ao refutar o princípio da austeridade fiscal, os protestos solaparam um dos pilares da política econômica do Plano Real. Ao defender a primazia do coletivo sobre o privado, repudiaram a cres­cente mercantilização dos serviços públicos. Ao questionar os valores que presidem a moderniza­ção dos padrões de consumo, negaram a própria essência do capitalismo dependente, colocando na ordem do dia a necessidade de uma verdadeira re­volução cultural que redefina os princípios que devem nortear a própria noção de progresso.

A pressão da juventude por uma radical inver­são nas prioridades do Estado coincidiu com a pres­são em direção oposta do capital internacional pelo reforço da ortodoxia econômica. O antagonismo que condiciona a política econômica não poderia ser maior. As mobilizações sociais exigem que as necessidades básicas dos brasileiros sejam postas em primeiro lugar. O agravamento da crise econô­mica e o risco de uma inflexão nos fluxos de capi­tais, provocado pela mudança na política monetária dos Estados Unidos, condicionam a estabilidade do Real à intensificação do aperto fiscal, promoção de novas rodas de privatização e absoluta obediência aos imperativos do capital internacional.

Crise do sistema político

As manifestações de junho escancararam a grave crise de representatividade que abala o sis­tema político. A bronca das ruas expôs o absoluto descompasso entre governantes e governados. A distância entre um e outro é proporcional ao abismo existente entre o Brasil da fantasia, idea­lizado e estetizado nas propagandas oficiais e nos programas eleitorais, e o Brasil real, da vida mi­serável da população em seu dia a dia infernal.

O repúdio aos políticos profissionais, a rejei­ção aos partidos e a ojeriza à política convencio­nal derivam da irrelevância prática das eleições como meio de resolver os problemas fundamen­tais do povo. Para a grande maioria dos brasilei­ros, os políticos legislam em causa própria, man­comunados com os verdadeiros donos do poder. A inocuidade das eleições alimenta o senso co­mum de que “todos os políticos são iguais” e de que “a política não resolve nada”.

A crise da democracia como forma de resolu­ção dos conflitos de interesses na sociedade e a irre­levância dos partidos como porta-vozes das aspira­ções da população ficam evidentes na trajetória que levou o Partido dos Trabalhadores da oposição ao poder. O PT conquistou seu lugar ao sol na política nacional porque, na década de 1980, encarnou a vontade política dos que lutavam a favor de refor­mas sociais. Na década de 1990, pavimentou seu caminho para o Planalto, apostando todas as fichas no jogo eleitoral e na institucionalidade. Para ga­nhar a confiança do establishment, adaptou-se às exigências do sistema político e jogou toda a sua credibilidade nas massas para tirar o povo das ruas e neutralizar a ação reivindicativa dos sindicatos e movimentos sociais.

Assim, a conquista da Presi­dência da República, em 2002, veio acompanhada da sistemática desmobilização dos militantes e do esvaziamento de sua presença nas ruas. Sem ter construído uma correlação de forças que lhe permi­tisse mudar o Estado, o que exigiria forte pressão popular, tornou-se vítima de sua própria estratégia. Ao aderir incondicionalmente às exigências do sta­tus quo, metamorfoseou-se em partido da ordem. Ocupou o espectro à esquerda desse conjunto. Em junho de 2013, as contradições que deveriam ter sido resolvidas vieram à tona, agravadas por uma década de irresponsabilidades, deixando patente a falência do PT como partido das mudanças sociais.

A origem da crise que abala o sistema de re­presentação encontra-se na impermeabilidade da esfera política às demandas da maioria da popu­lação. A tirania do capital financeiro e a mesqui­nharia da plutocracia nacional não deixam espa­ço para a assimilação das pressões das classes que vivem do trabalho. Sem mecanismo para absorver e enfrentar a insatisfação crescente que se acumula na base da sociedade, a democracia torna-se um embuste. O único meio de garantir a paz social é pela criminalização crescente da luta política e social que se dirige contra a ordem.

A crise de legitimidade do sistema político é profunda e não será resolvida com medidas for­mais, decididas nas altas esferas do circuito polí­tico. De nada adianta alterar aspectos operacio­nais, de importância secundária, do sistema polí­tico-partidário. É a incapacidade de dar vazão ao processo de democratização impulsionado pelas classes subalternas que constitui, em última ins­tância, a verdadeira causa da crise política. Quando a população reconhecer a relação de causa e efeito entre a ação dos partidos e suas aspirações, os mecanismos de representação po­lítica serão reconstituídos. Até então, o país vive­rá um período de turbulência política, sempre sujeito às ameaças de soluções autoritárias.

As respostas da ordem

A reação dos governantes ao desacato das ruas revelou o despreparo e a inconsequência da “classe política” para enfrentar a nova situação da luta de classes.

Pegos de surpresa por mobilizações populares gigantescas, que fugiam totalmente de seu contro­le, num primeiro momento as lideranças entraram em estado de catatonia. Durante quase duas sema­nas, a presidente da República sumiu de cena e os parlamentares abandonaram o Congresso Nacio­nal. Lula, o grande líder do bloco de poder, nunca antes em toda a sua história tinha ficado tanto tem­po em silêncio. Assistiu calado a suas grandes obras tombarem em efeito dominó – Haddad, Dil­ma, a Copa do Mundo, o neodesenvolvimentismo.

No vácuo de liderança, a grande mídia assu­miu integralmente o papel de partido da ordem. Sem condições de se opor às hordas de jovens irados, as redes de televisão e a grande imprensa procuraram disputar a direção das manifestações e neutralizar seu caráter subversivo. A principal preocupação foi barrar a presença das organiza­ções de esquerda nas passeatas e garantir à pró­pria mídia o monopólio da direção dos protestos. A fim de diluir o componente de classe, bem vi­sível nos primeiros atos, os ventríloquos da or­dem fizeram de tudo para transformar a revolta popular numa grande festa cívica, atraindo a classe média e a direita aos atos.

Com o objetivo de jogar os jovens uns contra os outros, as bandeiras vermelhas foram veementemen­te condenadas e os manifestantes foram divididos entre “pacíficos” e “violentos”, “ativistas do bem” e “vândalos do mal”. Em sintonia com a tradição auto­ritária brasileira, o enaltecimento da bandeira branca – da paz social – e a verde amarela – da ordem e progresso – como as únicas legítimas foi uma tenta­tiva de canalizar a revolta popular para reivindica­ções moralistas, nacionalistas e institucionais.

Em boa medida, a ação diversionista da grande mídia teve êxito. A intimidação e a confusão gera­das nos partidos de esquerda e a estigmatização da própria noção de partido criaram barreiras que difi­cultaram – mas não impediram totalmente – o diá­logo das vanguardas dos coletivos, que convoca­ram as manifestações, com a juventude que passava por sua primeira experiência de luta de classes.

No dia 24 de junho, finalmente, a presidente saiu de seu auto-ostracismo e fez um pronuncia­mento à Nação. No outro dia, o Congresso Na­cional, com casa cheia, procurou mostrar servi­ço. Começava a fase da comédia composta de um festival de declarações de boas intenções, bajulação aos jovens, juras de intenção sincera de ouvir as vozes das ruas e redimir-se dos erros do passado. No entanto, ao invés de medidas concretas, Brasília respondeu com factóides, evasivas, promessas vãs, espertezas e transferên­cia de responsabilidades.

Do pronunciamento de Dilma, de concreto e palpável, sobrou apenas a reafirmação dos compro­missos de manutenção da austeridade fiscal – o oposto do que seria necessário para atender à de­manda por melhoria nos serviços sociais. A propos­ta de reforma política não durou um dia. Das vota­ções do Congresso Nacional, tirando alguns proje­tos da pauta moralista e comportamental, imposta em boa medida pela grande mídia, sobrou apenas o reforço do poder de chantagem dos deputados fren­te a um poder executivo em frangalhos. Posto con­tra a parede pela população, o governo de Dilma e o Congresso Nacional esmeraram-se em tranquili­zar o grande capital, o grande irmão do Norte e a plutocracia nacional de que aqui nas terras do Bra­sil tudo continuará como dantes.

Olhando em retrospectiva, a estratégia da or­dem para enfrentar a rebelião popular resumiu-se a abrir as comportas e deixar a enxurrada passar na esperança de que, sem direção política, os protestos acabassem por se exaurir naturalmente.

Bastou que o ímpeto das ruas arrefecesse para que a farsa ficasse patente. Poucas semanas após o fim das grandes manifestações, Brasília reto­mou a rotina como se nada tivesse acontecido. Ficou como rescaldo uma presidente zumbi, cer­cada de subordinados canhestros, que assiste atô­nita ao colapso de sua autoridade; um Congresso Nacional desmoralizado, incapaz de quebrar o círculo vicioso da desfaçatez parlamentar; e uma burguesia, acuada pelo avanço da crise econômi­ca, em pânico de que o povo volte às ruas.

Desdobramentos da luta de classes

Ao evidenciar a falência do sistema de repre­sentação, as Jornadas de Junho deslocaram a luta de classes para as ruas. A contraposição entre o Partido das Ruas, que defende mudanças, e o Partido da Ordem, que não abre mão do sta­tus quo, polarizou a luta de classes entre revolu­ção e contrarrevolução.

Sufocada pela ditadura militar em 1964, pro­telada pelo aborto das “Diretas Já”, em 1984, derrotada, em 1989, pela vitória do projeto de modernização neoliberal, liderado por Collor e FHC, frustrada pela capitulação do PT ao grande capital, em 2002, a revolução brasileira emergiu como necessidade histórica premente. Para tor­nar-se realidade, precisa converter as forças difu­sas das ruas em forças organizadas, portadoras de um programa que condensa a vontade política de superação dos problemas responsáveis pelas mazelas do povo.

As terríveis contradições represadas nas pro­fundezas da sociedade procuram meios para aflo­rar na superfície. Sem direção política, que aglu­tine e dê sentido construtivo à avassaladora ener­gia das ruas, a luta pela transformação social não acumulará vigor suficiente para aproveitar as brechas históricas e para vencer a resistência das grossas placas tectônicas da contrarrevolução. Para os que lutam contra a barbárie de uma vida infernal, a constituição do Partido da Revolução Brasileira é uma necessidade histórica.

Plínio de Arruda Sampaio Júnior

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